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Monique David-Ménard, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

Como ler Além do princípio do prazer?1


Monique David-Ménard
Tradução: Bernardo Maranhão
Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

O texto de Freud datado de 1920 é um Eros e Tânatos, relações que ele denomina
objeto de leitura especialmente difícil de um “jogo”.
apreender, por diversas razões, que pode- 4. Enfim, qual ganho é possível
riam ser assim anunciadas: retirar dessas aproximações numerosas
e heterogêneas demais para repensar a
1. Freud coloca em série, para definir importância, na vida sexual, do sadismo
o que ele denomina “pulsões de morte”, e do masoquismo?
fenômenos tão heterogêneos que é difícil Na história da psicanálise, numerosas
acreditar que um campo unificado se vozes se elevaram para pôr em causa a
delineie nessas aproximações: pesadelos necessidade de introduzir esse princípio
de neuroses de guerra, jogos de crianças, estranho de uma pulsão de morte que
prazer de adultos em ir ao teatro, trans- caracterizaria tanto o ser vivo quanto as
posição para o tratamento analítico dos pulsões sexuais. O “fato” da repetição não
conflitos subjetivos, que impede a solução exigiria essa hipótese. E a que ela serve, já
destes em lugar de torná-la possível, re- que o próprio Freud afirma que não adere
ferência a textos filosóficos – Symposium, a ela, que se trata somente de desenvolver
de Platão, ou teses de Schopenhauer – e uma ideia para ver aonde leva?
“especulação biológica”, como ele mesmo Fica-se tentado, ante a confusão dessa
diz, isto é, inscrição da vida sexual nas con- problemática, a “jogar a toalha” ou a dizer,
cepções embriológica e evolucionista de como fez Jacques Derrida em La Carte
seu tempo. Essa heterogeneidade remete à postale, que o além do princípio do prazer
questão: qual a relação entre o fenômeno não cessa de recuar nesse texto que não
clínico da repetição e a hipótese de uma tem como “objeto” senão organizar uma
pulsão de morte colocada como um prin- sequência de deslizamentos retóricos por
cípio impossível de encontrar como tal na meio dos quais Freud, de maneira per-
experiência das análises? formativa, produz-se a si mesmo como
2. Em que a teoria dos traumas tu- escritor-fundador de uma instituição
multua as relações a serem estabelecidas analítica. Com esse fim, ele utiliza os jogos
entre o que se denomina o interior e o de seus netos, fazendo crer que somente
exterior desse “aparelho da alma” (seelische os psicanalistas sabem do que se trata na
Apparat) cujo modelo Freud construiu em oposição demasiado simples da presença
1895 e retrabalha aqui? e da ausência. Toda a história da filosofia,
3. Como Freud descreve os parado- contudo, se desenvolve nos múltiplos
xos que regulam ao mesmo tempo a função intervalos da escrita e do discurso que
do ego e as relações quase contraditórias, os psicanalistas não inventaram. Freud,
conforme os momentos do texto, entre pois, como um Sócrates ilusionista, faria

1. Conferência pronunciada em 15/04/2014, na Columbia University (Heyman Center), NY, em seminário promovido
por Judith Butler.

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Como ler Além do princípio do prazer?

crer por meio de seu texto que seria ele, e diminuir as cargas investidas em cada
não Platão, o escritor e o fundador. Já que parte do aparelho. Primeira ambiguidade,
o próprio Freud produz no texto tantos portanto.
curtos-circuitos entre dados heterogêneos, A segunda ambiguidade concerne à
por que não fazer mais um e mostrar que relação paradoxal entre a estrutura e o
o além do princípio do prazer, impossível funcionamento desse aparelho: nesse mo-
de encontrar, instaura Freud como Pai e delo, o prazer é definido como a sensação
fundador? de uma descarga, ou seja, um esvaziamen-
A leitura que proponho hoje recorre to de circuitos investidos de quantidades.
mais uma vez a esse texto para colocar a O horizonte ideal do aparelho seria que
questão das relações entre o campo da clí- o sistema se esvaziasse completamente,
nica, a escrita e a construção de conceitos. o que seria um prazer máximo, mas essa
experiência de excesso seria ao mesmo
1 O primeiro fio condutor: quais fatos tempo a extinção do próprio sistema.
obrigam a pôr um limite ao princípio do Se se combinam as duas ambiguida-
prazer como regulador da vida sexual? des, resulta que o aparelho visa à descarga
Freud toma exemplos de repetição, que das energias e, no entanto, o aumento e
parecem inicialmente nada ter em co- a repartição das cargas evita em geral que
mum em Além do princípio do prazer: os ele transborde, isto é, que sua estrutura –
pesadelos das neuroses de guerra, os jogos neuronal ou associativa – seja rompida por
das crianças, o prazer dos adultos em ir ao quantidades intensas demais para o apa-
teatro, as neuroses de destino, a própria relho. O fato de o prazer ser um princípio
transferência, que, de instrumento de implica que ele é o objetivo do funciona-
uma mudança pulsional, passa a ser regu- mento do aparelho e, ao mesmo tempo,
larmente o entrave a uma transformação. que seu excesso deve ser evitado para que
O que reúne esses exemplos é a revi- o aparelho continue em funcionamento. O
são que eles impõem ao tema freudiano, interesse do modelo freudiano – que pode
segundo o qual toda a vida anímica tem sempre ser lido seja em termos de energias
por objetivo um ganho de prazer. O “prin- circulando nos neurônios, seja em termos
cípio do prazer” é uma noção que ganha de representações e afetos – está nisto:
sentido nos modelos do funcionamento poder conferir uma figuração à ambigui-
do aparelho psíquico. O texto do Entwurf dade do prazer tomado como princípio de
einer wissenschaftlichen Psychologie,2 como funcionamento do aparelho.
se sabe, desde os anos 1950, permanecera Esse esquema de funcionamento do
inédito entre os papéis de Wilhelm Fliess. aparelho psíquico data de 1895. A ques-
Mas ele assombra toda a obra de Freud. tão do trauma e da extinção de todas as
Desde o início, desde 1895, o princípio do tensões com a função ambígua do prazer
prazer tem uma ambiguidade dupla, que não é, portanto, em 1920, um tema novo
o modelo do aparelho psíquico permite em Freud (cf. p. 9 de Beyond the pleasure
explicitar: a estrutura desse aparelho pos- principle, Standard Edition).3
sibilita armazenar energias ou representa- Qual é, pois, a novidade em 1920, com
ções, o que constitui um desprazer devido a hipótese de uma pulsão de morte? É que,
ao aumento das cargas nos circuitos, mas até então, trata-se sempre, nos fenômenos
a repartição das energias nos circuitos clínicos aos quais o “princípio do prazer”
múltiplos serve, ao mesmo tempo, para remete, de uma mescla (Mischung) de

2. Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]).


(N.T.). 3. Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 16.

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prazer e desprazer: a função da descarga mostrar que a distinção dos dois campos
se combina com a estrutura do aparelho, é igualmente demarcável, justamente na
que permite suportar a carga. Esse relativo medida em que se sabe o que ele toma
desprazer barra a ruptura. de empréstimo à biologia e o que ele não
Em Além do princípio do prazer, o ce- chegava a conceber diretamente com as
nário muda: o além do princípio do prazer palavras da psicanálise. Em um sentido,
(e não mais apenas a extinção como limite assegurar uma ligação, ainda que muito
do funcionamento do aparelho psíquico) penosa, é o contrário de se autodestruir.
é um princípio de ligação entre neurônios No entanto, Freud denomina “pulsão de
(ou representações), que seria uma experi- morte” um horizonte original contra o qual
ência de puro desprazer tornada necessária lutariam não só todos os mistos de prazer e
no caso de a estrutura do aparelho ser desprazer, mas ainda a ligação desprazerosa
posta em perigo. que se produz na proximidade, por pouco
Certos fatos clínicos conduzem a evitada, de um risco de morte do aparelho
emitir essa hipótese: não só uma pro- psíquico. Trata-se, nesse caso, de uma in-
funda ambiguidade da busca por prazer consequência, de uma falta de lógica no
que anima o aparelho psíquico e arrisca pensamento de Freud, ou de um processo
provocar sua extinção, mas também próprio do sexual e próximo dos modos de
uma independência do funcionamento determinação do ser vivo?
do aparelho com relação à finalidade de Mesmo se, desde o início do texto, o
produzir prazer. Ligar nem sempre é visar tema da pulsão de morte ligada à espe-
à descarga; pode ser também lutar peno- culação biológica é anunciado, ele não
samente contra o desligamento máximo é justificado logo em seguida: o além do
que se chama morte. princípio do prazer é inicialmente tomado
É a demarcação dessa independência como a independência de uma atividade
o que constitui a razão de ser da sucessão de ligação em situação de catástrofe.
dos exemplos: Freud tenta tornar mais Donde o privilégio do primeiro exemplo:
e mais inteligível a ideia dessa indepen- Freud parte das neuroses de guerra, nas
dência de uma tarefa de ligação que seria quais a maneira como a repetição de um
independente de toda mistura com a pro- sofrimento se produz parece impor uma
dução do prazer. Por que então ele fala em nova concepção da repetição: na vida
pulsão de morte? No plano da obra, é essa corrente, temos uma lembrança mais ou
passagem da noção de independência à menos precisa de nossos sonhos; alguns
ideia de um princípio de funcionamento continuam presentes para nós durante
“mais original” o que leva à especula- o dia, outros não. A vivacidade de sua
ção biológica. Ela é anunciada desde o lembrança varia com os períodos de nossa
início como a radicalização do conceito, existência. Em todos os casos, a impres-
operatório na clínica, da independência. são que nos fica é a de uma variedade de
Em seguida, a hipótese de uma “pulsão de cenários oníricos. Além disso, o fato de
morte” parece desenvolvida por si mesma, que esses sonhos nos escapem, que não
em páginas nas quais não se sabe mais se saibamos onde estamos nesses pensamen-
Freud fala como biólogo que também era tos em imagens que contudo produzimos,
ou como psicanalista. Ele retoma certos é ligado a essa grande diversidade; ela é
pontos da clínica sem que essa retomada, o que nos permite ter esses pensamentos
poder-se-ia dizer, seja dirigida por um es- sem nos darmos conta. Ora, após certas
quema, no sentido kantiano do termo, e provações, como as guerras (tratava-se da
sem que a heterogeneidade dos dois cam- guerra de 1914 para Freud, mas todos os
pos seja formulável. Tentarei, contudo, estudos sobre as post-traumatic syndroms
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o ilustram), os sonhos dos soldados que inventivas. Não podemos mais lidar com o
retornam a sua casa têm outra feição: horror produzindo sonhos variados e ati-
os antigos soldados revivem em sonho vidades inventivas cuja própria variedade
o evento real no curso do qual algum de permite o esquecimento do ponto de pe-
seus camaradas teve o corpo amputado ou sadelo. Contudo, essa repetição aparente-
um outro perdeu a visão, etc. Ora, o que mente vã, isto é, incapaz de vivificar a vida
retém a atenção do clínico nas neuroses de vigília graças ao jogo de esquecimento
traumáticas é que desapareceu a diversi- e lembrança que se instaura entre sonho
dade dos sonhos, que habitualmente lhes e vigília, é ainda uma atividade de nossa
dá seu caráter imaginário e que organiza o “alma”. Freud diz: “O princípio do prazer é
contraste com a coerência relativa da vida posto fora de funcionamento”. Todo mun-
de vigília. Os pacientes produzem sempre o do produz pesadelos que nos confrontam
mesmo sonho-catástrofe, e esse sonho não com aquilo que ele chamara, desde a Trau-
mantém mais nenhuma distância em rela- mdeutung, o Unerkannt [desconhecido] e
ção à realidade esmagadora e precisa que não o Urverdrängt [realçado originário].
se abateu sobre eles. Ao mesmo tempo, “Dies ist dann der Nabel des Traumes,
Freud observa que a vida desses homens die Stelle an der er dem Unbekannten
e mulheres se torna arrastada e mecânica, aufsitzt” (Gesammelte Werke Band II-III,
repetitiva no sentido de um estereótipo, de S. 530), e em inglês “This is the dream’s
uma funcionalidade vazia. Essas pessoas navel, the spot where it’s reaches down
sonham todas as noites com a mesma into the unknown (Standart Edition v. 5, p.
catástrofe e não mais inventam sua vida. 525).4 E ele fazia notar desde 1900 que esse
Há muitas famílias nas quais se conta que, ponto é também aquele no qual se perde
após a guerra da Argélia ou a do Vietnã, a possibilidade de interpretar o sonho: há
os soldados regressados não tinham mais demasiados fios associativos entrelaçados
gosto em nada, que se contentavam para que fazem fracassar a possibilidade do
o resto de suas vidas em conversar no café discurso.
com os colegas. Isso permite compreender, Depois do caso puro de repetição mo-
por contraposição, que há uma relação nótona e não mais variada, Freud retorna
entre o desenvolvimento imaginário e as outras situações em que, na ligação dos
variado de nossos sonhos e a vivacidade de componentes de uma experiência trau-
nossa existência, mesmo e principalmente mática, a necessidade de repetir sem uma
se essa correlação nos escapa a maior parte finalidade de prazer não se deixa isolar tão
do tempo. bem como nas neuroses de guerra ou de
Segundo tempo do raciocínio freudia- acidente, ou ainda no pesadelo. Foi talvez
no: Como temos também a experiência de isso o que fez Derrida dizer que o além do
sonhos que se tornam pesadelos, podemos princípio do prazer é impossível de encon-
compreender isso que aparece de modo trar nesse texto e que Freud se serve de seu
exclusivo nas neuroses traumáticas. Esses neto para mascarar esse fato. Mas eu não
pacientes vão direto ao ponto de pesadelo creio que se trate de um impasse teórico.
que apaga a possibilidade das fantasias A próxima questão é a seguinte: Se há
multiformes que ordinariamente rodeiam, sempre um ponto de pesadelo em nossos
transformam e mascaram as nossas angús- sonhos, a vizinhança entre o desprazer do
tias mais radicais. Nas neuroses traumá- pesadelo e o prazer do sonho permite dizer
ticas, um evento aparentemente exterior que há um gozo do pesadelo ou, ao contrá-
cristalizou na sua realidade aquilo que é
para nós o horror mesmo, e não podemos 4. Na ESB, v. V, 1977, p. 482: “Esse é o umbigo do sonho,
mais transformá-lo por meio de repetições o ponto onde ele mergulha no desconhecido”.

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rio, a vertente do pesadelo e a vertente da Evitemos ainda esquecer que entre os


realização prazerosa de desejo são mistu- adultos a atividade artística de jogo
radas mas distintas? Freud se pergunta se, e de imitação, que, diferentemente
em certas formas de repetição, o gozo se do comportamento da criança, visa
dá no momento (Moment em alemão) do à pessoa do espectador, não poupa
sofrimento mesmo, o que seria uma outra a este, na tragédia, por exemplo, as
forma de independência do princípio do impressões mais dolorosas e pode, no
prazer, diversa da forma-limite de repeti- entanto, ser sentida por ele como um
ção sem gozo. deleite superior.
O fort/da é apenas um entre outros
exemplos desses fenômenos de repetição. Freud era um leitor assíduo da Poética de
Mais exatamente, é um exemplo que Aristóteles, como demonstram os diversos
ainda não permite compreender, concei- empréstimos que ele toma desse texto, des-
tualmente, como se mesclam compulsão de as cartas a Fliess de 18977 até os termos
à repetição e pulsões sexuais. No fio do empregados na encenação teatral: as fan-
texto freudiano e em dois momentos dis- tasias edificadas na histeria são adereços
tintos de seu raciocínio,5 esse exemplo se de teatro que reproduzem e escondem ao
avizinha daquele do prazer dos adultos no mesmo tempo as cenas traumáticas que se
teatro e permite estabelecer dois pontos: passam fora da cena. A repetição tem uma
da primeira vez, trata-se de que somente estrutura diferente no jogo das crianças e
o prazer dos adultos no teatro permite na emoção teatral adulta;
precisar o que permanece indecidível no • primeiramente, entre as crianças,
jogo das crianças: o prazer da repetição se ela é mais próxima da repetição presente
apoia no fato de que a criança dominaria nas neuroses traumáticas: nunca uma
por meio do jogo aquilo que ela sofreu na criança deixa de retornar exatamente à
dor da partida de sua mãe? Ou o gozo da mesma história, ao passo que entre os
repetição é mais intimamente ligado à adultos sempre é preciso algo novo para
provação desse sofrimento? Ou ainda: o que a repetição seja marcada de prazer.
carretel só dá prazer à criança porque ela Reproduktion [reprodução] não é Wiederho-
pode, graças à mediação desse objeto que lung [repetição].
não é mais ele mesmo, infligir também a • segunda diferença: entre as crian-
um companheiro de brincadeira o sofri- ças, se há prazer nas experiências penosas,
mento da partida de sua mãe ou ainda o é que, ao infligir aos parceiros de brinca-
medo da visita ao médico que operou sua deira o desagrado ou as angústias causadas,
garganta? A propósito do jogo das crian-
ças, é indecidível, diz Freud,6 e é por isso
7. Briefe an Wilhelm Fliess, Fischer Verlag 1986, Brief n.
que ele vem se referir ao prazer do teatro
126, 2 ten Mai 1897, S. 253. O vocabulário de Freud
trágico: aqui, pela primeira vez no texto, concernente à formação das fantasias e dos sintomas é
apreende-se por comparação e por dife- tomado de empréstimo às traduções alemãs da Poética,
de Aristóteles: as cenas são “construções psíquicas” mon-
rença um exemplo em que o gozo advém
tadas como os adereços de teatro (vorgelegte Phantasien,
do que ordinariamente faz sofrer. Schutzbauten, psychische Vorbau). E o importante nas
fantasias são as coisas ouvidas, como no teatro trágico,
segundo Aristóteles. É isso mesmo o que faz com que
o filósofo prefira Édipo rei, como tragédia completa,
porque nela as coisas ouvidas são mais importantes do
5. A segunda vez será, após uma primeira reaproximação que o espetáculo. Agradeço a Marcus Coelen, filólogo e
com a biologia, para afirmar que os pacientes em análise, psicanalista, por haver me apontado essa anterioridade
assim como as crianças, repetem de maneira demoníaca, das referências de Freud a Aristóteles. A referência que
além, do princípio do prazer (cf. infra, seção II, in fine). se encontra em Jenseits... [Além do princípio do prazer] é,
6. p. 287; S. 15 [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 28.] portanto, um recordatório.

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por exemplo, por uma intervenção médica ção, independentemente do princípio do


sobre seu corpo, a criança coloca a distân- prazer. Essa experiência de sofrimento
cia seu próprio terror do médico. Já no não “procura” se repetir como em uma
teatro, os espectadores adultos infligem a finalidade consciente; ela se repete por
si mesmos o espetáculo trágico. Isso será compulsão, isto é, inconscientemente,
especialmente relevante quando se tratar no ato da transferência.
de retornar ao masoquismo, bem ao final Os finais de análise levam então Freud
do texto. A sublimação teatral afasta a corrigir suas primeiras concepções que
então o trauma, coisa que uma neurose valorizavam indevidamente os conteúdos
de destino não faz. A própria diferença psíquicos e o tornar-se consciente das re-
no estatuto da repetição, seu grau e seus presentações. Freud se exprime assim: as
modos de independência com relação resistências não vêm do inconsciente, é o
ao objetivo do prazer permitem a Freud Ich que resiste a deixar que ressurjam as
formar uma cadeia com essas formas de re- experiências dolorosas da infância, aque-
petição assubjetivas, nas quais uma morte las que surpreenderam a criança como
retorna independentemente de qualquer traumas. Para nomear esse fato clínico,
intenção possível do sujeito, uma morte “inconsciente” não é uma boa palavra,
que, não obstante, convém referir a um porque mantém a confusão sobre aquilo
desejo, mas a um desejo completamente de que se trata no ato da transposição da
extinto e visando a um outro, e não ao vida sexual para os tratamentos analíticos:
próprio sujeito. esse ato não é a agency de um sujeito, ele
O interessar-se pelas situações clínicas tem o caráter do impessoal e do anôni-
ou cotidianas nas quais são difíceis de de- mo. É por isso que ele “parece” aquilo
cifrar os entrecruzamentos do excesso do que descreveram, por exemplo, Foucault,
prazer com o desprazer da ligação respon- Blanchot e Deleuze em seus escritos. É
de, pois, a isso que Freud caracteriza assim: disso ainda que falava Lacan ao retomar
a repetição pode ser independente do prin- o termo aristotélico de automaton: existe
cípio do prazer sem contudo contradizê-lo. ato e existe trauma, antes de qualquer
Há uma articulação possível das ligações possibilidade de subjetivação, em todos os
que tentam transformar o traumático com sentidos desse termo. É tanto a capacidade
o objetivo do prazer, mas a atividade de de um sujeito de responder pelo que faz
ligação não se reduz a isso. quanto a submissão desse “assujeitado”
a encadeamentos de atos dos quais ele
2 A “especulação biológica” esclarece é o operador e o ponto de passagem. O
os processos paradoxais da repetição masoquismo será uma maneira pela qual
Uma das dificuldades de Freud, antes a ameaça de extinção, ainda assim, tenta
mesmo de abordar o biológico, é o papel se subjetivar.
epistêmico desempenhado pelo exemplo Esse paradoxo se desenvolve inicial-
da transferência. Esse é o último dos mente pela vizinhança, no texto freudia-
exemplos tomados por Freud para ilustrar no, entre a transferência negativa e as
o processo demoníaco por meio do qual neuroses de destino, nas quais há esse pa-
um paciente resiste a uma transforma- radoxo de um ato sem sujeito (fora de sen-
ção, mas é ao mesmo tempo a referência tido, aleatório no sentido aristotélico do
“experimental” constante que comanda termo) e que delineia, no entanto, como se
as comparações entre diversos fatos de fosse do exterior, a coerência catastrófica
repetição. É da transferência negativa de uma existência. A retomada do ques-
que se trata de dar conta, por meio da tionamento das primeiras concepções de
ideia de uma pura compulsão à repeti- Freud deveria conduzir a um abandono
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do próprio termo “inconsciente”, solidário 1. Inicialmente, Freud, que desde


demais de uma concepção da análise que 1895 já propusera o modelo de funciona-
privilegia as representações. Ora, Freud mento desse aparelho movido a prazer e
não o abandona, mas afirma, contra aquilo desprazer em que consiste nossa “alma”,
que indicara em seus escritos anteriores, reinscreve seu funcionamento na embrio-
que o inconsciente não é o recalcado, logia e na teoria da evolução. Ele toma
que é o Ich, o Ego, que resiste à mudança, então de empréstimo a linguagem dos
ao passo que o que é objeto de atuação biólogos “evo-devo,”8 isto é, dos neurobio-
é aquilo que fez mal na infância, e que a logistas do cérebro que não mais separam
transferência reproduz. Isso que se chama a embriologia da teoria da evolução. Ao
de inconsciente é essa própria resistência, fazê-lo, refere-se mais a Haeckel que a
e o tratamento favoreceu, “por meio da Darwin, pois é Hackel quem enuncia a lei
sugestão”, escreve Freud, o retorno dessa de recapitulação: o desenvolvimento de
potência demoníaca. É certo que, quando um ser vivo repassa por certos momentos-
lemos esses textos depois de haver lido -chave da evolução, a qual teve por re-
ao mesmo tempo Ferenczi e Rank, que sultado a transformação das espécies. O
discutiam com Freud em 1923 sobre o que aparelho psíquico não mais é, portanto,
se passa na transferência, Winnicott sobre um indivíduo isolado. Essa imersão do
o que se repete no tratamento porque isso indivíduo nas leis da evolução serve para
nunca foi vivido (The fair of Breakdown) repensar as relações disso que se deve cha-
e Lacan, que diz em 1973 que “o incons- mar de o interior e o exterior do aparelho,
ciente não é o desreal nem o irreal, ele é bem como a possibilidade do trauma, que,
o não realizado” (Seminário 11), temos vindo como um acidente do exterior, não
algumas referências para situar aquilo com é, contudo, sem relação com a maneira
que Freud se debate em 1920. como o ser vivo é construído desde o
Contudo, visto que se trata de uma interior. Tal é o alcance de sua referência
leitura de Além do princípio do prazer, deve- à formação do córtex cerebral, o qual, na
mos compreender melhor em que medida evolução, advém da passagem, no interior
a “especulação biológica” traz mais clareza do cérebro, do ectoderma, inicialmente em
à análise dos paradoxos da repetição. Em relação direta com os estímulos externos:
nenhum dos exemplos tomados até então
por Freud, a repetição disso que é unica- Indeed embryology, in its capacity of
mente sofrimento se produz em estado recapitulation of development history,
puro. É a repetição caricatural desses so- actually shows us that the central
frimentos nos finais de análise o que mais nervous system originates from the
favorece a hipótese de uma repetição do ectoderm; the grey matter of the cortex
desprazer. A ligação indissolúvel com o remains a derivative of the primitive
médico dispensa o paciente das repetições superficial layer of the organism and
catastróficas da existência, nas quais ele/ may have inherited some of its essential
ela revive seus sofrimentos de criança, em properties. It would be easy to suppose,
particular na vida amorosa. A aproxima- then, that as a result of the ceaseless
ção com as neuroses de destino que per- impact of external stimuli on the surface
tencem a certas vidas cotidianas permite, of the vesicle, its substance to a certain
como é sempre o caso em Freud, utilizar depth may have become permanently
o filtro do tratamento para compreender
também o que se produz fora dele. 8. A expressão “evo-devo” refere-se ao campo da biolo-
A especulação biológica se desenvolve gia denominado biologia evolutiva do desenvolvimento.
em dois tempos: (N.T.).

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modified, so that excitatory processes especializadas nas emoções e nos afetos no


run a different course in it from what ectoderma, ou seja, no cérebro límbico,
they run in the deeper layers9 (p. 27). como dizem os biólogos contemporâneos.
Trata-se aqui de uma tese decisiva: do
Essa primeira aproximação permite formu- ponto de vista da psicanálise, os órgãos
lar a hipótese de que a camada superficial dos sentidos, que estão em todo caso (isto
da vesícula viva se torna inanimada e é, para a abordagem neurofisiológica) em
perde sua capacidade de ser modificada, relação com o exterior, servem de índice
guardando, contudo, alguma coisa de sua para processos que se desenrolam no inte-
ligação com o ectoderma passado nas rior do aparelho, ou seja, com os sistemas
camadas interiores do cérebro. Na Evolu- prazer/desprazer. Freud não diz que no
ção, há um intercâmbio persistente entre psiquismo existem apenas processos de
o interior e as funções que organizam a prazer/desprazer. Ele diz, mais exatamente,
relação com o exterior do ser vivo, a saber, que as funções cognitivas são encaradas
os órgãos dos sentido. Freud já dissera que pela psicanálise unicamente do ponto de
o funcionamento do aparelho é de dupla vista do engajamento do sistema prazer/
face, e são os paradoxos dessa dupla face desprazer nessas mesmas funções. O fato
que lhe interessam. Em 1895, já se tra- biológico de que os órgãos dos sentidos
tava de um sistema de filtros sucessivos tenham se formado na evolução a partir
no aparelho movido a prazer/desprazer. do ectoderma serve para estabelecer essas
A questão era então: como esse aparelho relações sempre ativas entre órgãos dos
pode fazer a diferenciação entre os estímu- sentidos e modulações internas do prazer/
los externos e os internos, ou seja, como desprazer. Ora, é essa relação que não
podemos não alucinar constantemente funciona nos traumas, ou seja, quando
os objetos que desejamos reencontrar? a superfície tornada inanimada e que
Presentemente, no entanto, trata-se, para ordinariamente faz barreira aos estímulos
esse argumento “evo-devo”, de conceber excessivos é rompida. O relacionamento
uma outra ambiguidade: os órgãos dos sen- entre o interno e o externo é então destru-
tidos servem de peneira; eles “saboreiam” ído. Disso resulta esse aspecto de atividade
as informações que captam do mundo e, ao de ligação girando no vazio do pesadelo
mesmo tempo, diminuem a grandeza dos das neuroses de guerra ou esse aspecto
estímulos que agem sobre a superfície da monótono após os acidentes externos ou
vesícula. Esses estímulos podem então ser os danos neurológicos.
postos em relação com as zonas cerebrais Vem então essa frase frequentemente
mal compreendida: a atividade represen-
tativa que procura reconstituir ligações
se serve disso que sobrevém no exterior
para neutralizar o excesso de sofrimento
da ruptura:
9. Com efeito, a embriologia, em sua capacidade de re-
capitulação da história do desenvolvimento, nos mostra,
na verdade, que o sistema nervoso central se origina do […] and secondly a particular way is
ectoderma; a matéria cinzenta do córtex permanece um adopted of dealing with any internal
derivado da primitiva camada superficial do organismo,
da qual pode ter herdado algumas de suas propriedades excitations which produce too great and
essenciais. Seria fácil supor então que, como um resul- increase of unpleasure: there is a ten-
tado do incessante impacto de estímulos externos na
superfície da vesícula, sua substância pode, em alguma dency to treat them as though they were
profundidade, ter se tornado permanentemente modi- acting not from the inside, but from the
ficada, de modo que os processos excitatórios sigam um
curso diferente daquele que eles seguem nas camadas
outside, so that it may be possible to bring
mais profundas. (N. T.). the shield against stimuli into operation
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Monique David-Ménard, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

as a defense against them. This is the bastante particular da psicanálise: assim


origin of projection, which is destined to como agir nunca é decidir, em função de
play such a major part in the causation informações, por uma conduta a adotar
of pathological processes10 (p. 29). no mundo, e sim colocar um fim na
demora que as associações acarretam,
Projetar é tentar fabricar o pensamento afastando sofrimento e gozo, também
com o insuportável. Esse pensamento é a compulsão à repetição consiste em
então como se fosse cortado das mes- tentar (se) representar um trauma como
clas múltiplas de prazer/desprazer que exterior a fim de constituir, minimamente,
constituem nossa singularidade graças um “se” que foi destruído.11
ao distanciamento dos pontos de trau- 2. O segundo momento da “especu-
ma que se encontram regularmente em lação biológica” é mais conhecido e talvez
nossas existências como se encontra um mais bem compreendido: haveria na vida
umbigo de pesadelo, desafiando toda anímica uma tendência à morte que ape-
interpretação, em nossos sonhos. É aqui nas provisoriamente seria impedida por
que convém discutir a tese de Catherine meio dos desvios aos quais obrigam os
Malabou em Les nouveaux blessés. Segun- encontros com os outros seres desejantes.
do ela, Freud teria querido reconduzir o Freud seria, pois, pessimista ao dizer que a
exterior ao interior; ele teria ignorado, finalidade primeira da vida é a morte, que
nesse passo, que as feridas traumáticas as pulsões sexuais, que devido à sua plas-
vêm verdadeiramente de um exterior – ticidade ele caracteriza como agentes de
exterior traumático como nas violências transformação dos impasses da vida sexual,
impostas, nas lesões orgânicas, nas guer- teriam finalmente como meta retornar à
ras. Freud teria superestimado o papel época em que, assim como os organismos
de uma complacência que faria desejar elementares na evolução, “ainda tinham
inconscientemente isso que tem aparên- a morte fácil”.
cia de sobrevir do exterior. E por essa via No entanto, como de costume, o que
se seria privado de compreender como interessa a Freud nesse desenvolvimen-
as feridas destroem o antigo indivíduo to sobre as pulsões que seriam sempre,
por meio de mecanismos que é preciso enfim, pulsões de morte, é a dupla face
não reduzir. Mas Freud não diz isso: ele das pulsões. Através de todas as suas re-
afirma somente que, do ponto de vista ferências a autores da biologia – dessa vez
dos processos de prazer e desprazer, a não mais Haeckel, mas Weismann, Fliess,
realidade, mesmo quando traumática, Hartmann, Woodruff – a “especulação”
pode servir como meio para ligar isso de Freud, que examina com cuidado as
que causa sofrimento demais graças pesquisas biológicas de seu tempo, conduz
a representações; tal é a função, por a um ponto preciso: em biologia, as forças
exemplo, da projeção: afastar o maligno. que acarretam a morte de organismos
Essa tese freudiana não é redutora. A primitivos por destruição espontânea das
bem dizer, ela define o ponto de vista células se encontram contrariadas, no cur-
so da evolução, por uniões aleatórias com
outras células de organismos elementares
10. E, em segundo lugar, uma maneira peculiar é adotada
para lidar com quaisquer excitações internas que pro- que rejuvenescem as células dos primeiros
duzam um aumento muito grande de desprazer: há uma e retardam sua morte. Esse “rejuvenesci-
tendência a tratá-las como se estivessem agindo não do
interior, mas do exterior, de modo que seja possível fazer mento” dos organismos elementares pela
funcionar o escudo contra estímulos como uma defesa
contra elas. Essa é a origem da projeção, que se destina
a desempenhar um papel tão grande na causação dos
processos patológicos. (N.T.). 11. No original: “[…] un ‘se’ qui a été détruit”. (N.T.).

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Como ler Além do princípio do prazer?

perturbação de seu curso rumo à morte especulação biológica de Freud em Além


se opõe a uma perspectiva estritamente do princípio do prazer serve para formular
determinista, a de Fliess. Cada vez que, um conceito original da repetição que
no texto, Freud insiste no “caráter conser- dá conta de casos nos quais a repetição
vador” das pulsões sexuais, ele se serve da chega a não produzir o idêntico, isto é, a
analogia biológica para afirmar que, nesse destruição. A reprodução é o fracasso da
curso, muito longamente reproduzido repetição; a repetição só se distingue da
identicamente, dos organismos rumo à reprodução graças a fatores contingentes
morte, encontraram-se fatores aleatórios que se tornam criadores uma vez que, após
que fizeram desviar isso que, para uma in- muitas tentativas infrutíferas, os próprios
teligência ainda finalista, ainda se afigura materiais da reprodução são transformados
como um propósito primeiro. pela criação de circuitos novos.
Mas principalmente o intrincamento Uma vez formulada a hipótese de
dos processos de destruição e de constru- uma evolução dos seres vivos por desvio
ção sob a condição das perturbações cons- inicialmente contingente dos processos de
trutivas é um processo que o pesquisador é destruição, Freud retorna à diferença entre
levado a conceber de uma maneira quase o jogo das crianças e o prazer teatral13 a
semelhante na sexualidade humana e na fim de apreender o que a compulsão à
evolução dos seres vivos. Dito de outro repetição tem de diferente nesses ritos cul-
modo, em biologia, jamais se raciocina turais e no tratamento analítico: todos os
diretamente sobre um progresso dos se- exemplos freudianos servem, com efeito,
res vivos e é isso que interessa a Freud. para conceber a dupla face da repetição na
A aparição de novas formas de vida é o transferência e a diferença entre o sonho
resultado da inibição, surgida por acaso, e o pesadelo durante as análises.
das forças de autodestruição anteriormen-
te em ação no interior da matéria viva.12 Um dito espirituoso ouvido pela se-
Transposta para o domínio das pulsões gunda vez será quase sem efeito, uma
sexuais e das pulsões de morte, essa hi- representação teatral jamais atingirá
pótese é, com efeito, bem interessante: da segunda vez a impressão que ha-
primeiramente, não há, na vida sexual, via deixado da primeira... Sempre,
pulsão de perfectibilidade, e Freud afirma a novidade será a condição de gozo.
isso fortemente, opondo-se aos psicólogos Mas a criança, por sua vez, nunca se
de seu tempo. Aqui, ele é darwiniano. Em cansará de pedir ao adulto que repita
seguida, trata-se de distinguir as repro- um jogo que lhe foi mostrado ou que
duções que não servem para nada – ou, foi jogado com ela, até que, exausto,
mais propriamente, que fabricam indefini- esse adulto recuse.14
damente a morte – dessas repetições nas
quais a tendência à destruição é desviada Essa primeira diferença nas formas cultu-
de sua finalidade por meio de encontros. rais da repetição, ou seja, nos entrelaça-
Como as células podem rejuvenescer? mentos entre a compulsão à repetição e o
Essa é a questão. Aqui Freud explicita
que essa questão é, em psicanálise, dis-
tinta daquela da reprodução de outros 13. É esse segundo momento que eu anunciava. Vide
nota 1 supra.
seres vivos e da procriação humana. A 14. p. 307; S. 37 [Na ESB, v. XVIII, p. 52-53: “Se um
chiste é escutado pela segunda vez, quase não produz
efeito […]. A novidade é sempre a condição do deleite,
12. Œuvres complètes tome XV, p. 310, Gesammelte Werke mas as crianças nunca se cansam de pedir a um adulto
Band XIII S. 41; et p. 323, S .54. [Na ESB, v. XVIII, que repita um jogo que lhes ensinou ou que com elas
1977, p. 70]. jogou, até ele ficar exausto demais para prosseguir”.]

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Monique David-Ménard, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello

gozo, permite detalhar o que está em jogo para o espaço do tratamento: fazer do
na transferência: contingente o motor de uma transforma-
ção subjetiva.
No paciente em análise, por outro No fundo, a única afirmação contes-
lado, aparece claramente que a com- tável nesse texto de Freud é a ideia de
pulsão à repetição, na transferência, que o aparelho psíquico “procuraria” a
dos eventos do período infantil de sua morte. Para um darwiniano consequente,
vida ultrapassa, de todas as maneiras, essa formulação é inadequada. O fato de
o princípio do prazer. O doente tem que a solução da morte seja mais direta
nesse caso uma conduta completa- que a da vida não significa que a morte
mente infantil e nos mostra assim que seja exatamente procurada como tal, mas
os traços mnêmicos recalcados de suas principalmente que uma parte de nós mes-
vivências dos tempos originários não mos à qual resistimos o quanto podemos
estão presentes nele em estado de permanece, contudo, sempre confrontada
ligação e, de fato, em certa medida, com essa prova.
não são aptos ao processo secundário. Igualmente, é necessário dizer, o prin-
É também a essa não ligação que eles cípio do prazer não faz do prazer uma meta
devem sua capacidade de formar, por do aparelho psíquico, como afirma Freud
vinculação com os restos diurnos, desde 1895, mas uma possibilidade de seu
uma fantasia de desejo que deverá funcionamento devida à sua estrutura.
estar presente no sonho. Essa mesma O fato de que o prazer seja um princípio
compulsão à repetição se opõe bem não faz dele um propósito desse aparelho,
frequentemente a nós como obstá- mas um dos modos de seu funcionamento
culo terapêutico quando, no final da desde que as condições o permitam.
análise, queremos impor o completo O fato de que os nós do prazer e do
desligamento com relação ao médico desprazer não governem toda a nossa vida,
[...].15 de que haja sempre uma camada prévia
que permanece independente dessa cap-
Esse texto é um convite a reavaliar a tura pelo prazer/desprazer, não significa
importância dos restos diurnos em de- que nós procuremos esse ponto de ruptura.
corrência dos quais se forma um sonho Tal fato significa somente que, por uma
e que têm a mesma função dos detalhes parte de nossa existência, essa que aparece
insignificantes que os pacientes levam como a mais razoável ou a mais racional
enquanto funcione, nós nos defendemos
contra o excesso de sofrimento por meio
15. Ibidem [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 53: “No caso da projeção.
de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão
à repetição na transferência dos acontecimentos da
infância evidentemente despreza o princípio do prazer Epílogo epistemológico
sob todos os modos. O paciente se comporta de modo Esse trabalho conceitual de diferenciação
puramente infantil e, assim, nos mostra que os traços que permite dar um conteúdo clínico à
de memória reprimidos de suas experiências primevas
não se encontram presentes nele em estado de sujeição, noção de morte provém, ao que me pare-
mostrando-se, na verdade, em certo sentido, incapazes ce, do trabalho ordinário da inteligência
de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao científica. É verdade que Freud se engaja
fato de não se acharem sujeitas, que se deve sua capa-
cidade de formar, em conjunção com os resíduos do dia em um duplo movimento: de uma parte,
anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. ele não renuncia a inscrever as pulsões na
A mesma compulsão à repetição frequentemente se nos evolução da vida; de outra parte, ele diz
defronta como um obstáculo ao tratamento, quando, ao
fim da análise, tentamos induzir o paciente a se desligar desconfiar disso que seria aqui mais do que
completamente do médico”.]. uma analogia. Trata-se, nesse caso, em
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Como ler Além do princípio do prazer?

Freud, de um equilíbrio constante entre uma vez que se raciocinava sobre graus
um empirismo de método e uma tendên- sutis de aumento da velocidade na que-
cia a uma especulação sobre as origens da dos corpos. Não é esse, exatamente,
da qual ele se defende.16 Não seria mais o raciocínio de Freud quando examina
interessante, em vez de se deixar levar múltiplas situações repetitivas nas quais a
imaginando o ponto onde a biologia e a pulsão de morte não é isolável, situações
psicanálise se reencontrariam, afirmar que cuja série só é compreensível como ho-
se concebe da mesma maneira o intrinca- mogênea a partir dessa hipótese? Lançar
mento da morte e da vida em biologia e pedras do alto do mastro de um navio em
o intrincamento, em psicanálise, da des- movimento aparentemente nada tem a
truição e da reinvenção nos destinos das ver com as experimentações a que se de-
pulsões? Não é necessário buscar, no ser dicavam incansavelmente os engenheiros
ou em uma origem impossível de encon- do Renascimento, mesmo na ausência de
trar, esse momento comum que pertence técnicas satisfatórias: qual força e qual
somente ao pensamento. Com efeito, con- direção é preciso dar a uma bala de canhão
ceitualmente, o momento de especulação para que ela atinja uma alvo cuja posição
biológica em Além do princípio do prazer é é conhecida? Por que os engenheiros
menos exitoso em inscrever as pulsões nos hidráulicos de Florença não podem fazer
processos evolutivos do que em precisar o subir a água das fontes acima de certa
conceito de pulsão de morte, que unifica, altura? Por que os relojoeiros devem pôr
para o pensamento, as formas múltiplas da um freio no pêndulo de seus relógios se
compulsão à repetição, as quais entretêm eles querem que o tempo dos relógios não
com o gozo uma relação que é, a cada vez, seja indefinidamente acelerado? O próprio
específica. termo “aceleração” não existe ainda nesses
Leio, portanto, Além do princípio do Diálogos, mas a referência neles feita ao
prazer como leio os Diálogos entre Galileu “grau de rapidez” que um objeto móvel
e Sagredo discutindo interminavelmente adquire uniformemente a cada instante de
sobre “[...] o aumento do grau de rapidez seu movimento de queda é precisamente o
de um objeto móvel quando se lança uma conceito que se define permitindo reunir
pedra do alto do mastro de um navio”. esses fenômenos heterogêneos. A afirma-
Alexandre Koyré17 havia mostrado que ção, por Freud, de uma pulsão de morte
as experiências de Galileu eram todas em Além do princípio do prazer não tem
variadas porque nenhuma era capaz de o mesmo estatuto que o enunciado do
isolar o fator da aceleração de um movi- princípio da inércia por Descartes? Mas
mento uniforme, já que não se sabia fazer onde o Galileu experimentador e o Des-
o vazio, sendo que ele raciocinava em um cartes filósofo repartem, de certo modo,
espaço concebido como vazio. Tampouco seu trabalho, enunciando o primeiro a
se sabia como construir relógios precisos, lei da queda dos corpos, enunciando o
segundo o “princípio de inércia” que essa
lei supõe, Freud faz sozinho o trabalho
16. Por exemplo: “A especulação pretende que esse inteiro: o do mais filósofo, Descartes, que
Eros esteja em ação desde os primórdios da vida e que enuncia que não há mais diferença onto-
ele entre como ‘pulsão de vida’ em oposição à ‘pulsão lógica entre o movimento e o repouso, e
de morte’ que apareceu com o fato de que o inorgânico
ganhou vida” Op. cit., p. 335, nota 1 e S. 66. o do experimentador, Galileu, que isola o
17. KOYRE, A. Études Galiléenne (1966) e Études fator tempo realizando experiências que
d’histoire de la pensée scientifique (1966). (Em particular os jamais isolam efetivamente tal fator, mas
capítulos “Le De motu graviul de Galilée. De l’expérience
imaginaire et de son abus” e “Une expérience de me- que, graças à variedade de sua mistura
sure”). com outros fatores, permitem conceber
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o efeito correspondente. Freud formula o o que é o desprazer e como eles estão


princípio graças aos modos de raciocínio ligados no aparelho psíquico? – se perde
dos evolucionistas sobre a morte e a vida, momentaneamente quando Freud procura
e ele toma por objeto as formas empíricas a origem suposta das pulsões sexuais na
da repetição concebendo-as como as evolução dos seres vivos. Essa origem é que
relações variáveis do princípio do prazer é impossível de encontrar. Freud retorna,
e da pulsão de morte na clínica. O que é contudo, ao final, à questão do prazer e do
preciso respeitar é, pois, a heterogeneidade desprazer, graças aos exemplos e aos seus
dos fenômenos que o novo conceito de desenvolvimentos sobre o masoquismo e
repetição permite reunir. Nesse sentido, o sadismo, os quais ele determina como
convém não isolar o jogo das crianças dos os primeiros êxitos – muito custosos – do
outros fenômenos clínicos que permitem aparelho psíquico para inventar ligações
conceber de modo inédito a ambiguidade entre as pulsões de morte e as pulsões
da repetição, que é a mesma dos destinos sexuais. ϕ
da pulsão: somos compelidos a inventar.
Os jogos das crianças mas também o pra-
zer dos adultos no teatro têm o mesmo Abstract
estatuto epistêmico que a prática dos FALTOU
engenheiros hidráulicos ou dos relojoeiros
no Renascimento: são fatos que pertencem Keywords
à experiência comum, mas que mudam de FALTOU
sentido porque entram em relações novas
que os colocam em comunicação com
fatos construídos.
A leitura de Além do princípio do prazer
que proponho resulta de uma estratégia
discursiva que é também uma aposta na
fecundidade das “ciências regionais”. É
certo que a psicanálise não é uma ciência
no sentido galileano do termo, já que
ela não é, até hoje, matematizada. No
entanto, ela compartilha com as ciências
desde Galileu a ideia de uma inventividade
conceitual que supõe rupturas epistêmicas
ou mudanças de paradigmas (segundo se
faça mais referência ao vocabulário de
Foucault ou ao de Kuhn). A necessida-
de dessas rupturas é solidária do caráter
regional dessa ciência, já que se trata
de constituir conceitos para um campo
específico afastando-se de noções antes
tidas como pertinentes. Por essa razão,
o texto de Freud não se reduz a um “im-
passe teórico” que reconduziria sempre
a uma pulsão de morte que é, contudo,
impossível de encontrar. Se se pode fazer
uma crítica a esse texto freudiano é que
a questão de partida – o que é o prazer,
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Como ler Além do princípio do prazer?

Referências
FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901).
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasi-
leira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 5).

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920).


In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de
grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral
da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. p. 12-85. (Edição standard brasileira
das obras completas de Sigmund Freud, 18).

FREUD, S. Au-delà du principe du plaisir (1920). In:


______. Œuvres Complètes, t. XV. Paris: PUF, 1996.

KOYRE, A. Études d’histoire de la pensée scientifique.


Paris: PUF, 1966.

KOYRE, A. Études Galiléenne. Paris: Hermann


Editions, 1966.

Recebido em: 10/12/2014


Aprovado em: 17/02/2015

Endereço para correspondência


Place du Marché St.- Honoré
75001 Paris França
E-mail: <mdm01paris@aol.com>

SOBR E A AU TOR A

Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta
em filosofia e psicanálise.
Doutora em psicopatologia clínica e psicanálise,
sob a orientação de Pierre Fédida (1978),
Universidade de Paris 7.
Doutora em filosofia, sob a orientação
de Jean-Marie Beyssade (1990),
Universidade de Paris 4/Sorbonne-nouvelle.
Membro da Escola Freudiana de Paris
(1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa
Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade
de Psicanálise Freudiana desde 1994.
Títulos e funções atuais: psicanalista, membro
associado da Sociedade de Psicanálise
Freudiana; professora emérita de cadeiras
superiores; orientadora de pesquisa da Universi-
dade Paris-Diderot, Escola de Pós-Graduação.
Membro da Rede Internacional de Mulheres
Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.

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