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O que a tragédia e o trágico pode nos ensinar?

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Mario Fleig2
Pergunto aos senhores e a mim mesmo: por que nos interessa hoje isto
que foi inventado pelos gregos – a tragédia? Por que isso é atual? O que ela
pode nos ensinar a respeito dos impasses atuais de nossa existência individual
e coletiva? Para aventar um esboço de resposta à pergunta que coloco,
precisarei retomar alguns elementos das tragédias gregas, especialmente as de
Sófocles e Ésquilo. Farei isso a partir de algumas hipóteses, baseado nos
indícios que a clínica psicanalítica me oferece da tragédia cotidiana dos
sujeitos contemporâneos e seu cruzamento com as elaborações conceituais
advindas de Freud e Lacan, assim como de Heidegger, e concluirei com
proposta de leitura da trilogia de Ésquilo, a Oréstia.
O trágico, mais do que a tragédia tomada como obra a ser encenada, é
uma questão atual e até mesmo visceral para o ser humano. Em vista disso,
que ultrapassa minha competência, gostaria de propor as interrogações que o
trágico me coloca na interface entre o conceito de trágico3 e o âmbito da
prática psicanalítica, ou seja, na intersecção entre filosofia e psicanálise. A
pergunta que retorna com insistência ao longo de meu encontro com a
tragédia, tanto clássica quanto moderna e contemporânea, assim como em
minhas leituras das teorias sobre o trágico, é a seguinte: por que a tragédia não
recobre e nem dá conta do que seja o trágico?
De início, é preciso introduzir uma noção, ainda que incompleta, do que
seja o trágico. Considerando que a tragédia surge a partir do culto ao deus
Dionísio, de dentro da trama de narrativas denominadas de mito, cabe uma

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Texto publicado em Azambuja, C. C.; Viero, C. A.; Mello, F. M.; Rohden, L. Os gregos e nós. São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009, p. 37-56.
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Psicanalista, membro Escola de Estudos Psicanalíticos (mfleig@terra.com.br).
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Situo-me na perspectiva de Szondi (2004), que diferencia as clássicas poéticas da tragédia, como a de
Aristóteles, que são normativas, do conceito de trágico, que não se esgota em nenhuma tragédia.

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primeira distinção entre essas narrativas, levando em conta a complexidade de
seus enredos e a estrutura nelas veiculada. Não simplesmente a estrutura de
uma determinada narrativa, mas quais seriam os elementos mínimos que
delimitariam estruturalmente o que podemos chamar de trágico. Temos de
convir, em primeiro lugar, que o trágico é algo que define a especificidade da
condição humana, à medida que é nele que se realiza o que há de mais
estranho no estranho: ele é to deinataton4, como nos lembra Heidegger (1987).
O trágico pode apresentar seus indícios em relatos aparentemente banais
da vida cotidiana. Um jovem se queixava a mim a respeito de suas
dificuldades em progredir na vida, tanto no trabalho quanto no estudo, e muito
mais ainda em sua vida amorosa. Em seguida, ele se lembra de pensamentos
fugidios que o atormentam, dos quais consegue reter um: tem um pensamento
terrível de que seu pai iria morrer se ele não fizesse determinadas coisas. Não
se sente à vontade para falar destas coisas, pois as considera idiotas.
Finalmente, ele as revela: para que seu pai não viesse a morrer por sua causa,
deveria contar até quatro e depois descontar até zero, ou dar três passos para
frente, três para o lado e depois recuar os três passos, e assim por diante.
Parece-nos que nessa narrativa estava presente a dimensão trágica de sua vida,
visto que me relatava seu paradoxo entre avançar um tanto e recuar na mesma
proporção, de modo a jamais sair do lugar. Estava paralisado por uma
contradição existencial.
Freud se ancora na tragédia clássica (especialmente as tragédias vividas
pelos heróis Édipo, Antígona e Hamlet), para conceituar o trágico na
psicanálise. Levanto a hipótese de que o ponto central do que constitui o
trágico, na perspectiva da clínica psicanalítica freudiana, se encontra no que

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No primeiro coro de Antígona, de Sófocles, aparece esse termo: “Muitas são as coisas estranhas, nada,
porém, há de mais estranho (to deinataton) do que o homem” (v. 332).

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Freud chama a contradição em que cai o sujeito e que resulta no sintoma.
Utilizo-me aqui do termo contradição no sentido que este tem na lógica
aristotélica, ou seja, a forma de oposição extrema que se estabelece entre o
universal e o particular. Assim, considero que o conflito descrito por Freud
como sendo o núcleo da condição humana, e do qual decorrem as soluções de
conciliação comprometidas com uma parcialidade dos termos antagônicos, nas
formações sintomáticas, corresponde à oposição contraditória específica da
dimensão do trágico em que cai o sujeito. É essa contradição, específica do
trágico, que emerge contingentemente na fala de um analisante em seu
endereçamento ao analista e, para além deste, no endereçamento ao Outro.
Então, não se trata apenas do trágico presente nos grandes textos literários,
mas daquele que emerge na vida cotidiana de cada sujeito ou em dada
formação social. Contudo, para que o trágico possa ser nomeado como tal,
requer-se um trabalho analítico específico, visto que essa primeira contradição
não está constituída de saída. A constituição do trágico que se processa em
uma análise poderia ser tomada em comparação com a constituição do trágico
que se realiza na narrativa literária. Assim, o trágico que se constitui em uma
análise já é um efeito desta, que é a precipitação do sintoma no sentido
freudiano, ou seja, quando a contradição vem na fala do sujeito, em suas
formações do inconsciente, e o sujeito se reconhece na contradição em que ele
mesmo está implicado. Esse é o sentido que o sintoma tem na concepção
freudiana. E apenas quando este se produz que pode vir a ocorrer alguma
contingência que tenha um efeito de interpretação, ou seja, que o gozo do
sintoma possa cair, produzindo um efeito de abertura para o que falta. A falta
subjetivada equivale àquilo que se especifica como causa do desejo, ou seja, a
interpretação produz um efeito de suspensão do gozo em seu viés deletério e
ao mesmo tempo viabiliza ações que possa encontrar sua efetiva inscrição em

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instâncias sociais de reconhecimento. Deste modo, delimitamos uma diferença
entre aquilo que pode transtornar a vida de um sujeito (e do qual se queixa,
geralmente alegando ser algo que lhe é estranho e que deveria ser extirpado) e
aquilo que se constitui como sintoma, no qual está implicada a dimensão do
trágico que vem à fala e mostra os termos opostos da contradição vivida e
enunciada pelo analisante, na medida em que se reconhece implicado naquilo
que o transtorna. A implicação do falante no que o transtorna introduz a
dimensão da responsabilidade, ela também um dos elementos fundamentais
nos enredos trágicos clássicos, haja vista que os personagens se reconheçam
responsáveis até mesmo por aquilo que desconhecem em suas decisões e
ações. Ainda que se faça diferença entre o herói antigo (como Édipo), que age
sem saber, e o herói moderno (como Hamlet), que sabe da sua ação, isso não
anula o desconhecimento radical em que se encontra o sujeito que está tomado
na dimensão trágica. Édipo age, mas não sabe que não sabe do alcance da sua
ação, ao passo que Hamlet sabe o que está acontecendo (o ghost de seu pai lhe
dá a saber), mas não sabe a respeito daquilo que o destino lhe reserva.
Um elemento suplementar que encontramos na tragédia grega, assim
como nos mitos, é a dimensão do destino, figurado nas Moiras, nas Parcas, nas
Eríneas e também nas Eumênides. Trata-se do inexorável que se impõe a um
sujeito ou a um povo, e do qual não se tem como fugir. O destino grego
corresponde, em Freud, ao determinismo psíquico, fundamental para
entendermos o que constitui o núcleo do trágico, como algo incontornável e
inevitável. A afirmação freudiana da dimensão trágica da condição humana se
contrapõe aos delírios de autonomia próprios da modernidade tardia. Em
Lacan, a noção de destino é retomada de um modo particular, pois ele postula
que, à diferença dos demais animais regulados exclusivamente pelo texto
biológico, somos desnaturados e que, em lugar do determinismo biológico,

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somos invadidos pela linguagem5. O que significa que somos parasitados por
ela, uma espécie de vírus que nos comanda e não temos como nos situar fora
dela. Esse vírus, a linguagem, se torna então constitutivo da nossa condição
trágica, visto que é o determinante de imperativos que nos comandam e dos
quais somos uma espécie de joguete. Quando falamos, algo fala em nosso ato
de falar que não está determinado unicamente por nossas escolhas, mas
preponderantemente pelo lugar que ocupamos. Mais do que cada um de nós, é
o lugar que ocupamos que determina e ratifica o que dizemos. Se formos
reduzidos à nossa pura individualidade, despidos de todos os laços e lugares
nos quais circulamos, encontraríamos o que constitui, na formulação de Lacan
(1975), o sintoma, descrito de modo precursor por Marx: o proletário, o
indivíduo desprovido de tudo. Lacan propõe que a constituição do proletário é
resultado do processo de despojamento do saber, caracterizando a passagem
do mestre antigo para o mestre moderno. Desse modo, podemos dizer que o
indivíduo moderno tem como condição básica estar na iminência de se ver
desprovido de tudo. Relacionando a condição de proletário com os ideais de
fraternidade, igualdade e liberdade, podemos constatar que os três traços do
sintoma social6 apontados por Lacan (1992, p. 107) – o despojamento, a
segregação, e o isolamento – revelam a nota própria da dimensão trágica da
condição humana moderna. Então, não há como nos sustentarmos sem o vírus
que nos parasita e que igualmente nos impõe um destino.
Contudo, há dois outros elementos da tragédia que aparecem no culto a
Baco. O primeiro é loucura das bacantes que se impõe como desmedida

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Lacan encontra uma formulação exemplar do fenômeno da linguagem como parasitando o ser humano no
que Clérambault já havia descrito como automatismo mental, retomado, por exemplo, na apresentação de um
paciente no serviço de Marcel Czermak (1998), no Hospital Sainte Anne, em Paris, que se referia ao fato de
sofre de “falas impostas”.
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Remetemos o leitor a dois textos nos quais examinamos a noção lacaniana de sintoma a partir da referência a
Marx e a questão das ideologias (Fleig, 1999; 2007).

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(hybris) ou orgulho. O segundo aparece nas procissões ou desfiles em honra a
Baco, no decurso dos quais se desenrola a ação da tragédia: o carro abre-alas
dessas procissões era um grande falo, elemento central que não poderia passar
despercebido. O falo, na leitura de Lacan, constituiria um significante
especial, em torno do qual se desdobraria a contradição estrutural da tragédia,
contradição entre os deuses e os mortais, a lei humana e a lei divina, a vida e a
morte, a escolha entre A e B, o homem e a mulher, os pais e os filhos etc. A
contradição trágica, que pode tomar múltiplas figurações, remeteria sempre a
dois pontos: à morte, e à nossa posição em relação a ela, e à contradição
própria do campo sexual. Estes dois pontos indicariam a incidência do
encontro traumático da cria humana com o descontínuo, que coincide com sua
entrada na linguagem. A morte subjetivada, assim com a inscrição na
diferença sexual, demarcam a condição da perda irremediável da harmonia
animal. Sobre a morte não há significação alguma que possa dar conta da
marca extrema de nossa finitude; assim é que ela nos afronta com o sem-
sentido radical da vida, e, de forma semelhante, a dissimetria entre o
masculino e o feminino ressalta a impossibilidade de haver proporção, no
sentido de proporção matemática, entre os sexos. Ou seja, a morte e a
diferença sexual não cessam de não nos responder sobre aquilo que emerge
como oposição radical em nosso cotidiano, constituindo-se como nosso
aguilhão habitual. O trágico vem ao nosso encontro como o traumático que
nos obriga a falar, dando-nos a chance de dizer algo que o possa pacificar de
tempos em tempos. Mas sabemos que isso não cessa de nos atiçar, emergindo
assim em sua face de desejo.
O destino trágico, na interpretação freudiana, articula então morte e
sexualidade. Qual é o problema em relação à morte? Levanto a hipótese de
que, no início remoto de todas as grandes tragédias, existe uma morte que

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nunca foi bem resolvida, ou seja, há uma morte cujo luto não se pôde fazer.
Isso é evidente nas trilogias de Sófocles e de Ésquilo ou nas tragédias de
Shakespeare. Independente da verificação exaustiva dessa hipótese, importa
aqui a dimensão trágica da morte, ou seja, destes mortos que nunca se
consegue enterrar efetivamente e que retornam em mil formas de
assombração. O que então significaria enterrar os mortos? Seria sua passagem
do lugar de entes queridos, dos quais deixamos de ser sua falta, para o lugar de
ancestral? Para além dessa possível passagem, perdura a impossibilidade de
haver um saber que dê conta da morte em sua radicalidade. Não se trata da
primeira morte (a morte biológica), mas da segunda morte, a morte do sujeito
ou da alma (ou também da honra, da dignidade). Haveria uma proteção contra
a segunda morte, representada na teologia cristã pela condenação eterna ao
suplício do inferno, e retomada nas formas de suplício para além da morte do
corpo descritas por Sade (1954)?
O herói trágico Hamlet sofre a incapacidade de realizar seu ato de
vingar o assassinato do pai. O que é que o paralisa? Não pode ser
simplesmente a suposição de que se sentiria culpado da morte do pai, pois ele
sabe quem cometeu o crime, pela revelação do espectro do morto. Parece que
é precisamente aquilo que o espectro lhe revela que o paralisa: o amor mais
puro foi traído, visto que aquele pai altamente idealizado carrega uma dívida
inexpiável e isso lhe revela a ausência de qualquer garantia no Outro contra a
morte radical. A descoberta da vacuidade total no Outro confronta Hamlet
com a ausência de apoio para seu desejo do lado do ideal. Vemos que é contra
essa segunda morte que Antígona se confronta, buscando seguir as leis mais
primitivas para preservar seu irmão da mesma. Aqui se encontra uma das
faces do encontro com o sem limites do trágico, denominado pelos gregos de
hybris.

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O elemento mínimo da contradição trágica que emerge no campo sexual
pode ser recortado não simplesmente pela via da narrativa, mas pela estrutura.
Isso se pode apreender a partir do enunciado lacaniano relativo à questão da
sexuação humana: “Não há rapport sexual.” Aqui é preciso tomar rapport no
sentido matemático de proporção, como dois está para quatro, assim como
oito está para dezesseis. Nesse caso, há uma proporção perfeita. No enunciado
lacaniano afirma-se que, entre homem e mulher, jamais haveria proporção
sexual; ou seja, quanto ao sexo, não há encontro de uma parte que completaria
a outra parte entre homem e mulher. Então, a desarmonia, a disparidade e o
desencontro ferem o falante de modo estrutural e constante, e constituindo o
núcleo do qual brota o trágico próprio de nossa condição humana. É o
desacerto do sexual que não cessa de aguilhoar e perturbar a socialidade
humana, quer de modo direito quer por meio de seus equivalentes descritos
por Freud.
A dissimetria radical a determinar a incompletude, que tanto está do
lado do homem quanto do lado da mulher, pode adquirir diversas figuras. Há
uma figura emblemática na nossa cultura, de lidar com essa dimensão trágica,
que tem a pretensão de fundar o universal e até mesmo ocupar esse lugar. Na
lógica aristotélica encontramos um modo de pretender fundar o universal que
seria por generalização, subindo de gênero em gênero até chegar a um gênero
mais abrangente. Contudo, se olhamos bem o sistema de Aristóteles, para que
se funde o conjunto daqueles que se movem é preciso supor que exista ao
menos um que não se mova, mas que funde o movimento de todos os outros.
Ou seja, para que haja entes que se movam, é preciso um motor imóvel. Isso
significa que, para se fundar um conjunto consistente, é preciso que haja uma
exceção a este conjunto que ao mesmo tempo o funde, o torna consistente, e
desminta que ele seja completo, isto é, universal. Assim, o universal

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aristotélico, para ser consistente requer que seja incompleto, pois ao menos
um dos elementos que lhe são pertinentes não pode estar contido nesse
universal. A exceção não só confirma o universal, mas também o denega, e, ao
mesmo tempo, só pode subsistir como estando excluída do conjunto dito
universal. O fundador está jogado fora, e esse lugar de exclusão radical é
figurado nas narrativas como sendo o ancestral assassinado, a exemplo do
caso do pai da horda primitiva descrito no mito freudiano. O que perdura nas
narrativas clássicas, nas quais o mito freudiano se inclui, é a suposição de que
o lugar da exceção estaria preenchido por uma divindade ou um pai poderoso.
Isso determinou o modelo patriarcal que perdurou até o advento da ciência
moderna, que desvenda a estrutura lógica das chamadas sociedades
patriarcais, calcadas na afirmação do universal como organizador subjetivo,
familiar e social, segundo o modelo masculino. Isso resulta na descoberta de
que esse não é o único modelo de organização.
Há outro modelo de organização que levou muito tempo até poder ser
formulado logicamente. Qual é sua estrutura lógica? É isso que, na esteira de
Freud, Lacan propõe, para exatamente lançar uma luz sobre a desproporção
entre a organização lógica do lado dito masculino e a organização lógica do
lado dito feminino. Ora, o conjunto dos homens – vamos chamar assim – se
funda porque há ao-menos-um que escapa à condição comum de estarem
submetidos à lei, ou seja, à castração. E esse um que não está submetido à lei,
ele só pode operar na medida em que já foi liquidado, isto é, ele nunca
comparece no conjunto. Lacan, para tentar responder à pergunta que Freud
deixou sem resposta, a saber, : “O que quer uma mulher?”, propõe
conceitualizar um conjunto diferente do conjunto consistente e fechado pelo
qual todos estão submetidos à lei e que determina o conjunto dos homens: o
conjunto aberto e incompleto que especificaria a condição feminina. Como

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não se encontra nenhuma narrativa que indique uma exceção que fundaria o
conjunto das mulheres, supomos tratar-se de um fato de estrutura, ou seja, as
mulheres não formam um conjunto e por isso resistem aos intentos de
uniformização, tanto no campo da moda quando nas organizações como
exército ou escola. Então, se não há uma exceção que fundaria o conjunto dos
sujeitos femininos, o que se passa é que, do lado feminino, teríamos um
conjunto aberto, ou seja, um conjunto destituído de consistência: assim é que
poderíamos entender o que significa a precipitação na condição de sem limites
e sem bordas, ou seja, um conjunto que não estaria regido unicamente pela
instância fálica, no sentido de lei simbólica. Como é possível isso? Se
levarmos isso às últimas conseqüências, veremos que destino do sujeito
feminino, se estiver referido unicamente ao conjunto aberto, é a desmedida, a
loucura, na forma paradigmática formulada na tragédia clássica: as bacantes.
Mas será que é isso o que se passa? A coisa não é tão simples assim.
Lacan propõe, numa formulação muito particular, que o sujeito feminino
estaria não-todo submetido à lei, indicando que está ao mesmo tempo
submetido à lei, mas não completamente. Isso é muito diferente de dizer que
está todo não-submetido à lei ou que não está submetido à lei alguma. Ele
quer dizer que o sujeito feminino está em parte submetido à lei em parte e, em
parte, não, ao mesmo tempo. Aqui se situaria a condição estrutural do
desencontro entre o sujeito masculino – que tem como referência a lei,
diríamos, a lei paterna, a lei de seu clã –, e o sujeito feminino, que está não-
todo submetido a essas leis, mantendo a face aberta do conjunto, na forma da
desmedida, como encontramos de modo exemplar em Antígona, que não se
submete à lei da polis.
Podemos então levantar a hipótese que o trágico se precipita quando a
fatalidade advém de modo absolutamente contraditório e incontornável marcar

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a existência humana enquanto destino e ao mesmo tempo responsabilidade
assumida, tingindo-se com as cores do mais estranho no estranho familiar. A
contradição entre a extrema liberdade e a fatalidade inflexível e cega do
destino impõe ao herói uma luta em que ele já entra como perdedor, visto não
haver como ultrapassar os limites que se impõem: contradição entre a
liberdade e a necessidade cega de um crime inevitável que não anula a
responsabilidade do agente, convocado-o à expiação. Deste modo, a irrupção
do trágico revela a realização do traço mais específico da condição humana:
bater-se contra os limites do impossível tanto da morte quando do sexual.
Contudo, se o trágico especifica a condição humana e se abate de modo
inexorável, que importância teria a noção de liberdade, além de indicar que
podemos escolher realizar a maldade e nos entregarmos ao inevitável destino
que nos arrasta para a ruína? As formulações das teorias clássicas da tragédia
apresentam heróis que não se entregam passivamente aos efeitos do trágico, e
sim se opõem em busca de uma transformação, como se vê na noção
aristotélica de catarse, em que se busca viabilizar a purgação dos excessos
deletérios que invadem a alma. A tradição aristotélica chegou até Freud, que
inicialmente preconizou o tratamento catártico como modo de ab-reagir os
excessos patológicos e mais tarde postulou a sublimação como
redirecionamento de pulsões mortíferas. Ainda assim, volta-nos a
interrogação: se o trágico se lhes impõe como decorrente da própria estrutura
da condição humana, haveria como introduzir uma mudança em sua
inexorável estrutura? Se estamos organizados em uma estrutura, subjetiva e
social, que impõe roteiros inexoráveis que não cessam de se repetir e assim
levam à catástrofe, à perda e ao pior, como seria possível uma mudança?
Afirmá-lo não significa se partidário de uma posição pessimista, mas partilhar
da ousadia de Freud, guiado pelo lema da Dante: “Acheronta movebo”, que

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significa: “Irei até os infernos”, com a condição de introduzir movimento. O
que podemos mover ou modificar quando se dá a irrupção do trágico em nós?
A audácia de Freud foi de achar que seria possível intervir no curso do
destino trágico e fazer com que alguma coisa nele cessasse. Isso
corresponderia à noção lacaniana de ato psicanalítico, ou seja, a introdução de
uma modificação na estrutura do sintoma, que até então se impunha de modo
repetitivo, incontornável e mortífero.
Encontramos em Lacan uma maneira de conceitualizar o que seria a
modificação da estrutura do sintoma, entendido como a emergência da
contradição trágica da existência, que se apóia na lógica modal aristotélica.
Modificação ocorre quando se pode operar com a lógica modal no destino
trágico. O destino se coloca como inexorável, ou seja, necessário. O
necessário, na formulação lacaniana, é aquilo que não cessa de se escrever,
como é o caso do destino trágico. Contudo, há outros modos de algo se dar,
além do modo necessário: o modo contingente, o modo possível e o modo
impossível. A modificação ocorreria pela passagem de um modo de algo se
dar para outro modo. Contudo, o que permitiria efetivar essa passagem que
modificaria? A modificação não pode estar do lado da categoria do
necessário, porque o necessário é, precisamente, o que resiste a qualquer
modificação. A categoria do impossível (aquilo que não cessa de não se
escrever) também é a resistência a qualquer modificação, além de ser
provocador da angústia. O necessário e o impossível definem as duas formas
da repetição: aquele indica a insistência do sintoma e este demarca a repetição
do fracasso em simbolizar o mais estranho do estranho. A categoria do
possível (aquilo que cessa de se escrever) é o que determina o conjunto
universal, ou seja, a lei comum a todos os falantes. A categoria do contingente
(aquilo que cessa de não se escrever), na postulação de Lacan, é que permitiria

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a introdução do movimento modal, na tensão entre as duas repetições: a
necessidade incontornável do sintoma e o impossível de ser significado do
real. O contingente corresponde à queda de algo de modo inesperado, na
tensão instaurada na fala endereçada ao Outro. Freud nomeia esse incidente de
Einfall, fragmento súbito que cai (fallen), correspondente à queda do primeiro
não na dupla negação do impossível (aquilo que não cessa de não se escrever).
As condições para que aconteça esse giro de um modo para outro na estrutura
são várias, como as descreve Lacan (2008) em seu seminário O ato
psicanalítico: a entrada em jogo, de modo simultâneo, das operações de
alienação (defrontar-se com o destino), de transferência (supor um outro em
posição dessimétrica) e de verdade (não há garantia no Outro), que fornecem
as condições para a operação de interpretação, resultando na queda do gozo do
destino trágico. A interpretação não tem nada de extraordinário. Dada a
constituição do trágico que se precipita como sintoma, em meio à narrativa
que enuncia a contradição em que o sujeito se reconhece implicado, algo
coloca em operação a interpretação, no modo de uma contingência, que pode
ser absolutamente ínfima, mas o suficiente para descolar a pregnância de
sentido gozoso que o trágico implica. Uma pequena letra, como um atrator
estranho, pode determinar um desvio que reordena o trágico, sem deixar de
perdurar o desamparo radical que especifica a condição humana, habitada pelo
estranho, no qual não encontramos uma resposta fundada para nossas
perguntas derradeiras: Quem sou? Para onde vou? Qual o bem que me está
destinado? Que desejo me habita? O que pode constituir minha felicidade?
Todas essas perguntas podem encontrar respostas satisfatórias no Outro,
com a condição de haver uma narrativa suficientemente acreditada e à qual o
sujeito dedique toda paixão de seu ser. A irrupção do trágico se dá quando a
força da crença na narrativa se esvai e um urro de dor quebra o silêncio da

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vacuidade no Outro, como exclama Édipo em Colono: “antes não tivesse
nascido”. A interpretação psicanalítica, como aposta na introdução de uma
modificação na estrutura trágica, requer ouvir a narrativa e ler o texto que se
enuncia em um tratamento, de modo que se destaque a contradição
subjacente, e sobre esta possa se produzir outra leitura, em geral introduzida
por um meio-dito ou uma equivocação. Não se trata de realizar uma
elucidação de sentido ou a uma explicação dos fenômenos psíquicos e
inconscientes, mas, tomando apoio nos arranjos de letras, sílabas e palavras,
submetidas aos mecanismos da condensação e do deslocamento, a
intervenção do psicanalista pode consistir, então, em assinalar os
significantes inconscientes que circulam como demanda, de modo que
possam retornar ao analisante de outro modo, determinando a subversão da
posição do sujeito. Considerando que o desejo inconsciente não está separado
do texto em que é formulado e que o sujeito do inconsciente é efeito da
cadeia significante, entendemos a afirmação de Lacan de que o desejo é sua
interpretação. Assim, aquilo que o analisante enuncia é a fala verdadeira,
cabe ao analista sancioná-la, visto que ela já contém sua resposta. Lacan
denomina isso pontuação, umas das formas da intervenção do analista que
pode produzir efeitos de interpretação, ou seja, que uma pontuação possa
colocar em questão as condições de possibilidade da contradição que é
veiculada na própria fala. Essas condições se encontram no Outro e na falta
que lá está assinalada como castração fundadora, para com a qual todo
falante está em dívida. Além da pontuação, outras formas de intervenção que
podem produzir efeitos de interpretação são a citação e o enigma, que
induzem a emergência do não-sentido que permite o deslizamento para outro
sentido, detonando pela equivocação as certezas da dupla repetição que
sustentam a manutenção do gozo mortífero veiculado na paixão pelo trágico.

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Antígona encarna o desejo puro que é perpassado por um gozo secreto e
inconfessável que a leva à morte. Esse gozo mortífero a realização de seu
desejo incestuoso, que não se deixa transpor. O desejo de um analista, na
operação do ato psicanalítico, não é o desejo puro, mas o desejo da pura
diferença que, no suporte da letra, introduz a justa equivocação que
determina a queda de um gozo.
Quero destacar dois aspectos que se encontram interligados na
manutenção do gozo mortífero veiculado na paixão trágica: o primeiro se
refere ao que chamamos de perversão. É um tema que eu venho trabalhando
sobre o título “o desejo perverso”, que veicula uma paixão pela redução do
Outro a algo inanimado que, como, supostamente poderia ser
instrumentalizado. E isso é absolutamente uma questão dos nossos dias. O
segundo aspecto que encontramos na tragédia, e que vem sendo discutido por
meu amigo Jean-Pierre Lebrun (2008), é o que ele propõe denominar de “o
gozo do ódio”, ou seja, o individuo dedica sua vida a cultiva a fidelidade ao
ódio de alguém, de modo que atravessa a vida inteira e esse ódio não cessa
nunca. Contudo, tal fidelidade é mais raro de acontecer com o amor, mas esse
ódio eternizado é algo muito impressionante. O que movimenta esse gozo do
ódio?
Se vamos aos gregos e à tragédia, encontraremos pistas orientadoras,
especialmente nas trilogias dos grandes teatrólogos gregos. Ora, o sistema
consistia em produzir três tragédias, as quais deveriam ter um enredo
interligado e ser apresentadas em um único dia. A primeira peça encenava
um problema, a segunda peça apresentava outro problema que se contrapõe
ao primeiro e a terceira peça buscava uma saída para o impasse criado. Desse
modo, podemos supor que a trilogia como um todo visaria produzir um efeito
de alteração do destino trágico, apresentado inicialmente como impasse

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insolúvel. Se nossa hipótese for consistente, a trilogia de Sófocles, que inicia
com a tragédia de Édipo Rei e se estende à tragédia da geração seguinte,
tecida pela disputa fratricida e pelo conflito sustentado por Antígona, deveria
conter em Édipo em Colono algo que interrompesse a perpetuação da sina
mortífera. Não vamos examinar aqui esta hipótese, mas nos voltarmos para a
trilogia de Ésquilo.
De fato, a audácia de pretender intervir no curso do destino trágico e
fazer com que alguma coisa nele cessasse, que já encontramos em Freud,
temos a surpresa de encontrar na própria tragédia grega, e de modo exemplar
na trilogia Oréstia, de Ésquilo, composta pelas peças Agamêmnon, Coéforas e
Eumênides, e encenada a primeira vez em 458 a.C.
Antes de entrarmos em seu enredo, quero chamar a atenção para o que
se pode considerar o sentimento do trágico, que emerge na boca do Ancião no
diálogo com o Coro: “... pois Zeus sem dúvida foi quem levou os homens
pelos caminhos da sabedoria e decretou a regra para sempre certa: „o
sofrimento é a melhor lição‟”. A expressão grega diz: pathei mathos, ou seja, a
paixão, o que é vivido e que pode se tornar experiência. O pathos que porta
um ensinamento, aquele com o qual podemos aprender algo, um sofrimento
que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno, que tenha
o poder de transformar e curar. Como é que uma paixão poderia ensinar algo e
não simplesmente levar à morte? Pensamos que a expressão pathei mathos
indica a ousadia grega de intervir no curso do destino trágico.
Vejamos um resumo simplificado do enredo. Agamêmnon e seu irmão
Menelau retornam vitoriosos da guerra de Tróia. Quando o primeiro chega em
casa, sua mulher o recebe muito bem, de modo a não levantar nenhuma
suspeita, e o assassina, com a ajuda de seu amante, Egisto. E por que o
assassina? Em vingança ao sacrifício aos deuses de sua filha Efigênia, feito

16
por Agamêmnon para que os deuses lhes fossem favoráveis, assim como os
ventos, para eles poderem ir à Tróia. Clitemnesta realiza a vingança de um
assassinato, pois era assim que ela considerava o que Agamêmnon havia feito
à filha Ifigênia. Por que essa violência irrompe? Ela já estava selada nas
gerações anteriores. Como então começa essa série de violências? Podemos
situar seu início na personagem Pêlops, do qual se origina o nome Peloponeso.
Esse Pêlops, filho de Tântalo, em sua desmesurada ambição pretendia a mão
da filha do rei de Pisa, Hipodâmia. Como ele não tinha muita chance de
consegui-lo, era um estrangeiro, ele buscou a ajuda de Mírtilo para construir
um estratagema e assim conseguir a mão da princesa. O estratagema não deu
certo, o que o deixou tão enfurecido que assassina seu companheiro. Mas
antes de morrer, Mírtilo joga uma praga em cima de Pêlops, de modo que isso
que ele estava agora fazendo passaria a acontecer nos seus descendentes, ou
seja, os assassinatos. Apesar dessa maldição, Pêlops triunfa nos seus intentos,
tanto assim que alcança poder e se imortaliza no topônimo Peloponeso.
Pêlops teve dois filhos: Atreu e Tiestes. Atreu, por sua vez, será o pai de
Agamêmnon e Menelau. Tiestes tem três filhos, sendo que um deles é Egisto,
primo então de Agamêmnon, a quem ele vai assassinar, instigado por sua
amante, Clitemnestra. O que se passa entre esses irmãos é também um destino
funesto, marcado pela disputa do trono de Micenas. Tiestes seduz Aerope,
mulher de Atreu, que o ajuda a roubar o carneiro de lã de ouro que asseguraria
ao possuidor o trono cobiçado. Contudo, Atreu, sob a proteção de Zeus, é
proclamado rei e então expulsa o irmão de Argos. Mais tarde, ao simular uma
reconciliação que permite o retorno de Tiestes, faz com este coma, por meio
de um ardil monstruoso, a carne de seus três filhos, dos quais sobrevive um,
Egisto. Frente a essa vingança macabra, Tiestes lança sobre o irmão novas

17
maldições, que se somam à maldição hereditária que cai sobre a raça de
Pêlops.
Na segunda peça, Coéforas, ou seja, as portadoras de oferendas,
desenrola-se a vingança perpetrada pelo filho de Agamêmnon, contra os
assassinos de seu pai. Orestes, inteirado do crime e inspirado por Apolo, vai
então vingar o pai não somente matando Egisto, mas também a própria mãe,
Clitemnestra.
Na terceira peça, Eumênides, ou seja, as deusas benévolas, temos a
intervenção da deusa Atenas, que instaura o primeiro tribunal, o qual se
tornará permanente, para julgar os dois crimes de homicídio. Orestes, após ter
levado a cabo a vingança de seu pai, muito perturbado sofre a perseguição das
Fúrias vingadoras de sua mãe e busca a proteção de Apolo. Este lhe promete
ajuda e lhe diz para fugir para Atenas, onde deveria buscar a ajuda da deusa
Atena. Esta, por sua vez, atende o suplicante e convence as Fúrias a concordar
com o julgamento dos assassinatos.
Instaura-se assim o primeiro tribunal a julgar um crime de homicídio,
iniciando-se o julgamento pela discussão dos argumentos a favor de
Clitemnestra e os argumentos a favor de Orestes. Apolo aparece como
defensor de seu suplicante e declara que Orestes matou a mãe obedecendo a
uma injunção divina. O acusado, Orestes, confessa seu crime, mas enfatiza
que o crime de Clitemnestra, ao matar o marido e o rei, havia também
assassinado seu pai e por isso deveria ter igualmente sofrido a vingança das
Fúrias. Por que as deusas vingadoras, as Fúrias, não perseguiram também a
Egisto e Clitemnestra quando assassinaram Agamêmnon? E por que elas
somente se manifestaram quando Orestes matou sua mãe? E qual é o
argumento dos defensores desse crime? Argumentaram os defensores da
posição de Clitemnestra e das Fúrias a partir da afirmação de uma diferença

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entre um tipo de crime e outro: crime de sangue seria mais grave que um
crime comum. Agamêmnon, sendo um estrangeiro, não teria laço de sangue.
Então, Clitemnestra, ao matá-lo, está matando alguém com quem não tem laço
de sangue: ele é apenas seu marido. Crime mais grave é o de Orestes, que
mata a mãe, ou seja, alguém com quem tem um laço de sangue. É por essa
razão, segundo os defensores de Clitemnestra, que Orestes deveria então ser
condenado. O número de juízes que estão de um lado e de outro são iguais, e a
votação resultou em um empate. O voto da deusa Atena, que instalou o
tribunal, é a pedra que pode ser colocada de um lado ou de outro da balança
para desempatar. E ela declara seu voto a favor de Orestes, que então é
absolvido de seu crime.
O que queremos destacar é a novidade do argumento trazido por Apolo
Este, ao defender Orestes, afirma que todos os crimes têm o mesmo valor,
todos os crimes têm a mesma gravidade. Como ele argumenta? Seu
argumento, que merece ser lido, se encontra no verso 865 e seguintes de
Eumênides. Diz Apolo:
“Responderei também a isso e saberás
que todos os meus argumentos são corretos.
Aquele que se costuma chamar de filho
não é gerado pela mãe – ela somente
é a nutriz do germe nela semeado –;
de fato, o criador é o homem que a fecunda;
ela, como uma estranha, apenas salvaguarda
o nascituro quando os deuses não o atingem”.
O argumento de Apolo inverte a noção de laço de sangue ao afirmar que
o filho não é gerado pela mãe (a mãe é apenas a nutriz, o que revela a
concepção antiga de que o criador é o pai). A consequência desta inversão

19
determina que, se houve crime de sangue, esse crime foi o de Clitemnestra, e
não o de Orestes. Na sequência do argumento, Apolo dá a prova de que
alguém pode ser pai sem haver mãe: é o caso da própria deusa Atena, que sai
da cabeça de Zeus, porque sua mãe havia morrido. Assim, Zeus foi ao mesmo
tempo a nutriz e o pai da deusa.
Eis, então, o novo argumento que se contrapõe ao argumento que
defendia Clitemnestra: o que determina que alguém seja filho é algo que vem
do pai, e não simplesmente a relação daquele com a nutriz. Coloca-se então a
pergunta: o que é ser um pai?
Como poderíamos interpretar o núcleo do novo argumento que se
encontra na frase “o criador é o homem que a fecunda”. E como é que o
homem que a fecunda é o criador? Minha hipótese de leitura desta frase
surpreendente e enigmática é que o ato de criação se faz pela operação que
Freud localiza e que Lacan vai precisar: a operação de nominação. Cabe aqui
diferenciar nominação de nomeação. A nomeação comporta o ato de nomear,
designar, chamar pelo nome ou propor para uma função, ao passo que a
nominação consiste em dar uma denominação a algo que não tenha nome. E
essa operação de nominação não é da ordem do sensível, mas da ordem da
hipótese a respeito daquilo que já os estóicos chamaram de o incorpóreo. Na
concepção de Lacan, trata-se de uma operação do significante mestre que
determina o ato de criação de algo.
O novo argumento introduzido por Apolo poderia ser lido como
correspondente à observação de Freud em seu texto derradeiro, O homem
Moisés e a religião monoteísta, a respeito da passagem do mítico matriarcado
ao patriarcado.
Mas esta transição da mãe para o pai define uma vitória da
espiritualidade sobre a sensualidade, ou seja, um progresso

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da civilização, pois a maternidade é demonstrada pelo
testemunho dos sentidos, ao passo em que a paternidade é
uma conjectura [Annahme], é edificada em uma dedução e
em um pressuposto.” (Freud, 1982, p. 560)

Que relação há entre a observação de Freud sobre o que determina o


progresso da civilização e o destino trágico que não cessar de se perpetuar?
Ora, no caso do destino trágico que Ésquilo nos apresenta, vamos entender o
efeito do novo argumento pelo que se segue da peça. No momento em que
Apolo introduz seu argumento, demonstrando que o laço de sangue genuíno
não é com a mãe, mas com o pai, ele desmonta a base do argumento contrário,
ou seja, desfaz a diferença entre crime de sangue e do crime comum. Quer
dizer, todos os crimes são da mesma ordem, e com isso a posição de Orestes
se torna vencedora. Mas, quando Orestes vence, ele fica quieto e sai de cena.
As Eríneas ou Fúrias continuam a não aceitar a decisão do tribunal e ameaçam
os juízes que foram favoráveis a Orestes. Contudo, Atena consegue apaziguá-
las, mostrando que a decisão do tribunal está acima da vingança. Esse é um
momento muito importante na Grécia, pois significa a passagem da lei de
talião para o estabelecimento da justiça.
Levanto a hipótese de que, no caso de Antígona, não houve uma ruptura
com a lei de talião. Eu chamaria atenção para um aspecto que está presente na
posição de Antígona: apesar de extraordinária – e talvez aí resida todo o seu
paradoxo –, ela não rompe com aquilo que é a dimensão de estar submetida ao
materno, ou seja, o incesto. Isso se evidencia na manutenção de sua escolha
pelo laço de sangue com o irmão. Em decorrência disso há a impossibilidade
de sair de uma relação totalizante e igualmente mortífera. Estamos aqui
tratando do efeito da manutenção, no sujeito, de uma posição incestuosa da
qual não se quer abrir mão. O que leva a se abrir mão de uma posição

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incestuosa? Precisamente a referência vinda de um terceiro, denominado em
nossa cultura de lugar paterno. O lugar paterno não remete necessariamente à
questão de que o pai seria mais do que a mãe, no registro de competição. Se
fosse esse o caso, isso inevitavelmente continuaria a inspirar violência. Trata-
se antes do reconhecimento de um lugar diferenciado, de onde é possível a
nominação, ou seja, uma função que até então era operada sem jamais ter sido
nomeada. Neste sentido, a tragédia tem o grande mérito de poder começar a
nomear todos esses elementos, a história, a seqüência dos assassinatos, a
seqüência das formas de sexualidade tomadas pela desmedida, e de poder
introduzir uma referência à qual todos nós estamos submetidos, que é a
dimensão da Lei. Não a lei positivada, mas a Lei simbólica, que se instaura
pelo próprio exercício da linguagem e se encontra dentro das leis da
linguagem. Então é nesse sentido que entendemos que os gregos encontraram
essa coisa extraordinária que é se submeter ao lugar de fala dentro polis, onde
cada um pode tomar a palavra, com a condição de se responsabilizar por seu
próprio ato de tomar a palavra. Ora, a dimensão da responsabilidade é o que
emerge quando lemos o que acontece em nossa existência no registro do
trágico. Desse modo, entrarmos no registro do trágico é no mínimo entrar na
dimensão da responsabilidade. Contudo, é possível escapar do registro do
trágico e tomar o que se passa na nossa vida no registro do banal. Isso é algo
sempre impressionante no herói trágico: ele age sempre sem saber o que está
fazendo, e quando sabe, como no caso de Hamlet, não consegue impedir sua
ação, mas nem por isso ele deixa de se reconhecer responsável por seu ato.
Assim, a trilogia de Ésquilo nos apresenta a queda da inexorabilidade
do destino selada pelas deusas da vingança, as Fúrias. A alteração do destino
cego tem efeito nelas mesmas, que abandonam seu nome e passam a ser
chamadas de Eumênides, as deusas benévolas. A lei de talião é substituída

22
pela Lei simbólica, determinando uma nova concepção de justiça – não mais a
justiça vingativa calcada na evidência dos sentidos, mas uma justiça que
impõe a renúncia ao assassinato do outro, operada mediante o ato de
nominação. Talvez seja isso que nós podemos aprender com os gregos: o ato
de nominação que advém daquele que supomos ser um pai. Passamos da
evidência sensível para o campo do não-sensível, que se ancora na conjectura.
Como pode acontecer tal passagem da evidência sensível para a
conjectura? Como pode cessar a espiral de mortes, assassinatos e violência
que tanto aparece na posição de Orestes quanto na de Clitemnestra? A posição
de Orestes, que, ao se ver vitorioso do julgamento, simplesmente ficar quieto
e se retirar, indica sua renúncia a fazer uso da vitória contra seus inimigos.
Orestes renúncia a continuar a gozar do ódio e da vingança, e isso certamente
determina que as Fúrias possam também fazer sua renúncia ao gozo do ódio.
Os inimigos podem então se apaziguar e sair em procissão solene para o
santuário que Atena ergue no sopé da colina de Ares, instaurando-se ali o
tribunal da Lei, o Areópago. O ato de abrir mão da vingança e do fascínio da
posse dos bens encontramos também em Édipo em Colono, quando o coro diz
“antes não tivesse nascido”, ou no momento extraordinário vivido por Tomás
de Aquino, que, diante do esplendor de sua imensa obra, assim declara: “é
como se fosse palha”. Assim, o trágico nos permitiria aprender um
atravessamento daquilo que a teologia agostiniana situava como sendo a
dimensão do orgulho. Creio ser isso que a tragédia nos aponta como um
caminho que poderemos trilhar, e então pode acontecer de virmos a fazer essa
pequena travessia: um pouco de contingência na desmedida do orgulho.

Referências:
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23
ÉSQUILO. Oréstia. Agamenon, Coéforas, Eumênides. Rio de Janeiro: J.
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1954, v. IV, p. 237-238.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004.

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