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Clínica e responsabilidade frente à banalidade do mal e biopolítica contemporâneas1

Romina Magalhães Gomes

“Para não se deixar levar ao pior, é preciso saber o que é o mal”

Éric Laurent

Resumo: O artigo retoma as noções de responsabilidade e banalidade do mal a partir da

leitura empreendida por Hannah Arendt sobre o totalitarismo no regime nazista e o

julgamento de Eichmann, com o objetivo de extrair elementos para uma discussão sobre

responsabilidade, descuido e burocracia, propondo conceber a burocracia como uma das

formas de apresentação do mal na contemporaneidade. Recorre-se à psicanálise para pensar a

responsabilidade que todo ser falante possui com relação ao inconsciente e ao seu modo

singular de gozo, considerando as implicações na vida coletiva, na medida em que a

responsabilidade pode funcionar como uma ficção articuladora capaz de legitimar os

mecanismos civilizatórios de moderação do gozo mortífero e possibilitar um tratamento da

pulsão de morte. O conceito de biopolítica e estado de exceção trabalhados por Agamben são

também retomados, visando discutir a questão da responsabilidade do louco infrator, como

elemento indispensável ao processo civilizatório, apontando a diferenciação entre punição e

responsabilização possibilitada pela teoria da psicanálise.

Palavras chave: responsabilidade; gozo; mal; burocracia.

Abstract: This article retakes the notions of responsibility and banality of evil in Hannah

Arendt’s theorizing on totalitarianism in the Nazi regime and Eichmann’s judgement, with the

objective of extracting elements for a discussion about responsibility, carelessness and

bureaucracy, proposing to conceive bureaucracy as one of the forms of presentation of evil in

contemporary times. It resorts to psychoanalysis to think about responsibility that every

1
O presente artigo retoma e desenvolve apresentação realizada no Núcleo de Psicanálise e Direito, do Instituto
de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, em
22/09/2008. Texto enviado para publicação na Revista Psicologia: Ciência e Profissão, 2023.
speaking-being has for the unconscious and its mode of relationship with jouissance,

considering its implications in collective life, as long as it can operate as an articulating

fiction capable of legitimizing the civilizing mechanisms of moderation of murderous

jouissance and make possible a treatment of the death drive. The concept of biopolitics and

state of exception developed by Agamben are also taken up, aiming to discuss the

responsibility of the insane offender, as an indispensable element for the civilizing process,

indicating the difference between punishment and responsibility that psychoanalysis makes

possible.

Key words: responsibility; jouissance; evil; bureaucracy.

Resumen:

El artículo retoma las nociones de responsabilidad y banalidad del mal a partir de la lectura

realizada por Hannah Arendt sobre el totalitarismo en el régimen nazi y el juicio de

Eichmann, con el objetivo de extraer elementos para una discusión sobre la responsabilidad,

el descuido y la burocracia, proponiendo concebir la burocracia como una de las formas de

presentación del mal en la contemporaneidad. Se utiliza el psicoanálisis para pensar la

responsabilidad que tiene todo ser hablante en relación con el inconsciente y su modo único

de goce, considerando las implicaciones para la vida colectiva, en la medida en que la

responsabilidad puede funcionar como una ficción articuladora capaz de legitimar los

mecanismos civilizatorios de moderación del goce mortal y permitir un tratamiento de la

pulsión de muerte. También se retoma el concepto de biopolítica y estado de excepción

desarrollado por Agamben, con el objetivo de discutir la responsabilidad del loco infractor,

como elemento indispensable en el proceso civilizatorio, señalando la diferenciación entre

castigo y responsabilidad posibilitada por la teoría del psicoanálisis.

Palabras-clave: responsabilidad; goce; mal; burocracia.


Em uma carta escrita a Einstein no período entre Guerras, Freud (1932/1996) destaca

que a violência que caracteriza a ação da pulsão de morte é ineliminável. Contudo, tende-se a

não reconhecer sua ação silenciosa e insuprimível. Considerando que nos momentos de

guerra a vertente destrutiva da pulsão de morte prevalece, o autor pondera que a guerra vai

contra a civilização, com sua propriedade de dissolver os mecanismos civilizatórios. (Freud,

1932/1996). Quais recursos permitiriam lidar com a destruição que caracteriza a ação da

pulsão de morte, que pode atingir as relações entre os seres falantes e os processos

civilizatórios, no âmbito da prática? É o que este artigo busca responder.

Vivemos, atualmente, um momento histórico em que assistimos estupefatos à

reascensão da extrema direita no mundo, com aumento significativo da violência (Bonis,

2020) correlato a um declínio do uso da palavra (Gomes, 2020). Para pensarmos as questões

abertas diante dessa constatação, retomamos neste artigo algumas contribuições de Hannah

Arendt e Giorgio Agamben sobre biopolítica, banalidade do mal, burocracia e

responsabilidade, bem como alguns elementos trazidos pela psicanálise para a discussão

sobre a responsabilidade como modo de humanização da pulsão de morte, que possibilita um

tratamento do gozo mortífero que acompanha a civilização.

A responsabilidade é um conceito caro à Psicanálise, na medida em que permite

articular o sujeito ao seu modo singular de gozo, elemento êxtimo2 que se constitui para o ser

falante a partir do encontro com a língua. Ainda que os atos de um ser que fala sejam

referidos aos mecanismos inconscientes e ao gozo, portando uma dimensão que

inevitavelmente escapa, o sujeito é sempre responsável por sua posição, como afirma Lacan

(1966/1998 ).

De acordo com Lacan (1967), o sujeito se constitui a partir da entrada na linguagem

como um efeito do significante. Porém, a função do significante comporta uma falha, um

2
termo forjado por Lacan para designar o aspecto exterior e ao mesmo tempo íntimo que caracteriza o gozo.
buraco que decorre do fato de o ser falante ser afetado pelo sexo. O trabalho da psicanálise

envolve sempre lidar com essa falha, esse buraco da função do significante que Lacan

nomeia de real. O real indica a impossibilidade da relação sexual para o ser falante, na

medida em que essa relação só pode ser apreendida a partir da linguagem, do significante, e

justamente por isso sempre falha, rateia. Diferentemente dos animais que têm a copulação

determinada por um saber inscrito biologicamente no corpo na forma do instinto, o ser

falante não pode contar com um saber prévio que lhe permita orientar-se no campo sexual. É

esse o real para a psicanálise.

O termo gozo designa o excesso produzido pelo uso da língua que se incrusta na

falha inerente à função do significante e se apresenta como perturbação irredutível no corpo.

Essa perturbação no corpo resultante do fato de sermos seres de fala é uma consequência da

impossibilidade de satisfação no âmbito do instinto. O gozo é avesso à comunicação, por ser

fora do sentido e tem inclusive a propriedade de dissolver o sentido. Ele está ligado à

satisfação, mas também ao sofrimento, correspondendo ao que Freud (1920/1987) nomeou

como o mais além do princípio do prazer. Segundo Laurent (2016), “o gozo é o que faz

desordem no simbólico e não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço: ele se apresenta

como irrupção ou emergência” (p. 209). Designa um resto da constituição do sujeito a partir

do encontro com a língua que faz parte do sintoma de cada um e pelo qual se é, em última

instância, responsável.

No artigo Responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos, Freud pergunta se

devemos assumir a responsabilidade por impulsos que se apresentam como inadmissíveis,

pois tendemos a excluir tudo aquilo que nos parece repugnante. Entretanto, diz ele, pela via

da análise, posso chegar a saber que isso que é rejeitado “não apenas ‘está’ em mim, mas vez

e outra ‘age’ também desde mim para fora” (Freud, 1925/1987, p. 147). Dessa forma, esse

elemento exterior e ao mesmo tempo íntimo, que o sujeito tende a não reconhecer como
próprio e que define a sua posição de gozo é de sua própria responsabilidade (Gomes, 2020).

Esse elemento corresponde ao mal que cada um porta consigo. De acordo com Miller (2008),

Freud reintroduziu, assim, no humano o que nos parece mais desumano.

No que se refere à dimensão do ato, para todo ser falante existe um aspecto fora de si

que perpassa o momento em que ele se dá e só depois se torna possível reconstituir o que se

passou. Nesse sentido, a psicanálise, segundo Miller (1999), é uma ética das consequências

que implica sempre considerar o ato, com seu valor e consequências.

Serge Cottet afirma que a responsabilidade é um conceito transclínico, “ao mesmo

tempo jurídico e ético. Além de sua definição pela lei positiva, Lacan busca para ele um

estatuto contingente no sujeito” (Cottet, 2008, p. 35). Contudo, no momento da passagem ao

ato, não há sujeito, há gozo. Cottet considera que “nessa situação de ‘destituição subjetiva’ e

de cola no objeto, a escolha de gozo torna obsoleta toda deliberação” (Cottet, 2008, p. 35). É

uma escolha forçada, não livre, definida pelo gozo que é visado. Mas essa opacidade não

isenta o sujeito de responder pelo ato.

Para pensarmos as relações entre sujeito e gozo a partir da noção de responsabilidade,

vamos percorrer algumas contribuições de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, burocracia,

banalidade do mal, bem como alguns elementos que irão fazer parte do conceito de

biopolítica recuperado em Foucault por Agamben e a proposta de ampliação da noção de

responsabilidade feita por Arendt após o julgamento do carrasco nazista Eichmann.

Na leitura de Hannah Arendt (1989), o movimento totalitário apresenta uma estrutura

burocrática que muda incessantemente. A burocracia totalitária porta uma especificidade:

toda institucionalização é tomada como uma regressão. Não há permanência de regras,

instituições, lideranças; a única certeza que se tem é de que a vontade mutável do Fürher

deve ser obedecida de forma incondicional. Segundo Eichmann, as palavras de Hitler tinham

“força de lei”. A ideia de movimento é central nesse sistema de governo, as regras mudam
continuamente de acordo com a vontade do líder, mas estão sempre presentes compondo uma

nova ordem.

No totalitarismo, a burocracia visa o controle das massas, conferindo previsibilidade

ao funcionamento da estrutura, para que se torne possível o domínio total dos homens. Para

alcançar esse objetivo, busca eliminar as contingências, bloqueando as possibilidades de

invenção e o aparecimento do sujeito. Somente um modo de vida é aceito no regime de

governo totalitário, que segue diretrizes nazifacistas. Toda atividade autônoma é extinta,

exigindo-se a lealdade total e irrestrita ao líder. Do ponto de vista político, o que se busca é a

completa eliminação do diferente, de forma que a contingência não mais se manifeste no

mundo. O sujeito desejante, na sua simples existência, é uma ameaça ao movimento total.

Hannah Arendt (1989) considera que a condição de possibilidade do totalitarismo é a

transformação da sociedade em massa. Uma atomização das relações coletivas precede essa

forma de governo, com a desintegração das classes sociais.

A queda das paredes protetoras das classes transformou as maiorias adormecidas, que

existiam por trás de todos os partidos, numa grande massa desorganizada e desestruturada de

indivíduos furiosos que nada tinham em comum exceto a vaga noção de que as esperanças

partidárias eram vãs. (Arendt, 1989, p. 365).

Arendt considera que as massas não se reúnem em torno de interesses comuns, não se

articulam pelos interesses de classe que se manifestam em objetivos a serem atingidos.

O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu

número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa

organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou

sindicato de trabalhadores. (Arendt, 1989, p. 361).

A massa designa uma impossibilidade de estabelecimento de conexões laterais que

atinge o corpo social, incluindo as relações familiares, o que é mostrado pelo alto número de
delações de parentes durante o regime nazista. No sistema totalitário, a transformação da

sociedade em massa seria o primeiro passo para atingir o objetivo da dominação total: que os

sujeitos se tornem isolados, anônimos, supérfluos e, portanto, elimináveis, matáveis.

O governo totalitário conta com o apoio das massas. Mas, o que sustentaria a relação

das massas ao líder? Por que as massas se submetem à sua vontade?

Arendt (1989) propõe a tese de que o indivíduo isolado teria grande atração pelo

crime, devido ao seu desenraizamento e isolamento. Com o esgarçamento do tecido social

operado no regime nazista e o consequente isolamento que impede as ações coletivas, a

vinculação possível é somente ao líder, configurando-se um império do gozo.

O discurso do líder totalitário não faz apelo ao sentido, não apresenta coerência, mas

vai se desintegrando até restar como pura voz que convoca o gozo. É o império da violência

sem sentido. Quanto a esse aspecto, o totalitarismo pode ser lido como um sistema cujo

programa maior seria reduzir o sujeito à condição de objeto, realizando um gozo mortífero. A

voz do líder funciona como um imperativo do supereu e a política nazista busca obter dos

homens uma obediência de cadáveres (kadavergehorsam). Para Serge Cottet (2008), é pela

falha inerente ao simbólico que o supereu, em sua vertente de imperativo de gozo, pode se

religar ao Outro social e apresentar sua face obscura, sádica, cruel.

No regime totalitário alemão, havia um franco desprezo à norma jurídica. A

constituição de Weimar foi mantida, possibilitando a apresentação de uma fachada para o

mundo não totalitário. Entretanto, novos decretos e regras eram constantemente criados,

paralelamente à constituição, que era desprezada. Juntamente com a supressão da ordem

social estabelecida, a supressão da norma jurídica forma o núcleo do funcionamento desse

modo de governo, configurando-se como primeiro passo para transformação daqueles que

não aderem às proposições do governo, dos apátridas, dos desempregados e dos indesejáveis

em uma massa amorfa de indivíduos. Suprime-se inclusive a noção de culpa, surgindo a


figura da condenação sem culpa que nos faz lembrar Kafka em O processo. A diferença seria

que em Kafka (2001), ainda há o processo que leva o sujeito à condenação, mesmo que ele

não saiba por que está sendo acusado e que os dispositivos de defesa não funcionem. No

totalitarismo, por outro lado, abole-se o direito processual, não havendo quaisquer

dispositivos que permitam a defesa. Assim, os mecanismos que a civilização construiu para

refrear o gozo vão sendo destituídos, dissolvendo-se a ancoragem do sujeito em uma

realidade compartilhada.

Para Arendt (1989), essa substituição da realidade produz uma crença na ideia de que

“tudo é possível”, cuja figuração maior é o campo de concentração, local onde se produz a

banalização da morte. Tudo é possível, princípio fundante do totalitarismo como forma de

domínio total do homem, produz adesão pela suspensão da norma e de qualquer juízo,

convocando o gozo e causando uma destruição sem precedentes. Assim, os prisioneiros dos

campos de concentração são reduzidos à condição de objeto, e a humanidade, ao que ela tem

de mais básico, criando-se a figura do morto-vivo.

O campo de concentração seria o espaço absoluto da exceção, ou seja, daqueles que

foram banidos pela lei e se tornaram, por isso, extermináveis. Giorgio Agamben define o

estado de exceção como um terreno anômico, “onde o que está em jogo é uma força de lei

sem lei. Essa força de lei é seguramente um elemento místico, ou melhor, uma ficção pela

qual o direito tenta anexar a anomia” (Agamben, 2003, p. 4). O autor esclarece que a exceção

não é sem relação à norma. Ela designa um caso singular excluído da norma geral, que é,

contudo, capturado no ato de exclusão. Não se trata, portanto, de uma simples exclusão, mas

de uma inclusão que se dá pela captura no momento da exclusão. O estado de exceção porta

uma vocação, que é a de garantir a articulação entre dois elementos heterogêneos: o nomos e

a anomia, a lei e as formas de vida. Agamben (2002) recupera essa ideia em Carl Schmitt,
para dizer que a soberania, como estado de exceção, passou a ser lugar comum na vida

moderna e contemporânea, transformando a política em um aparelho de morte.

A soberania comporta um paradoxo: está dentro e fora do ordenamento jurídico, pois

o soberano tem a possibilidade de se colocar legalmente fora da lei, com seu poder de

suspender a validade da lei. Agamben concebe o totalitarismo moderno como “a instauração,

por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal” (Agamben, 2003, p. 2).

O autor acrescenta que “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer

homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que

foi capturada nessa esfera.” (Agamben, 2002, p. 91). Os gregos utilizavam dois termos para

se referir à vida: Zoé, que designa o simples fato de viver que caracteriza os seres vivos e

constitui a vida natural, e Bios, que designa a maneira de viver característica de um indivíduo

ou grupo e constitui a vida política. A implicação da vida natural (Zoé) na política que

caracteriza a modernidade corresponde ao núcleo original oculto do poder soberano.

Agamben (2002) afirma que a exceção funciona como uma relação de bando. Retoma

os significados antigos do termo na língua germânica, dentre os quais se encontra o

banimento da comunidade, que implica ser abandonado pela lei como um fora da lei, deixado

à margem, num espaço que não é dentro nem fora do ordenamento, em que a vida e o direito,

o externo e o interno se confundem. Assim, a relação primeira da lei com a vida é de

abandono, e não de aplicação.

Agamben (2002) parte de elementos trazidos por Michel Foucault e Hannah Arendt

para pensar a biopolítica e o estado de exceção. Em alguns momentos de sua obra, Foucault

ressalta que a vida natural tornou-se central na política. No século XVIII, houve uma

transformação do poder soberano que passou do “direito de causar a morte ou de deixar

viver” ao “direito de causar a vida ou devolver à morte” (Foucault, 1988, p. 130). O corpo
passou a fazer parte dos cálculos do poder e tornou-se alvo da política, levando à

transformação da política em biopolítica.

Os dispositivos de controle do corpo e da vida puderam começar a operar a partir do

surgimento das disciplinas. Foi a partir dessa mudança que surgiram as políticas higiênicas e

eugênicas, com a proposta de alcançar “melhorias” na população das cidades e nas raças,

tendo como objetivo a obtenção de uma progênie mais “saudável”.

O biopoder forneceu ao capitalismo os corpos dóceis necessários ao seu

desenvolvimento. O capitalismo, desde seus primórdios, como aponta Foucault (1989),

dirigiu seus investimentos à dimensão biológica do corpo. Para que se pudesse garantir a

oferta de força de trabalho, a vida em sua dimensão biológica e a saúde da nação passaram a

fazer parte dos cálculos do poder soberano, como problemas a serem tratados. Esse poder

soberano pode decidir sobre o estado de exceção, ou seja, sobre a vida e a morte.

Agamben (2002) considera que a característica principal da política moderna não

seria exatamente a inclusão da vida nua, que é antiga, mas o fato de que a exceção cada vez

mais se torna a regra e o espaço da vida nua vai deixando a margem do ordenamento para

adentrar o espaço político, fazendo com que interno e externo, direito e fato, bios e zoé,

passem a fazer parte de uma zona de indiferenciação irredutível. O autor define a biopolítica

como “a crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do

poder” (Agamben, 2002, p. 125). Para ele, teria escapado a Hannah Arendt o fato de que essa

“radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em um campo) legitimou e

tornou necessário o domínio total” (Agamben, 2002, p. 126). O campo de concentração seria,

então, o paradigma biopolítico da modernidade.

Hannah Arendt mostrou que os campos de concentração eram verdadeiras fábricas de

cadáveres. Aqueles que foram tomados pelo regime totalitário como indesejáveis ou
supérfluos e, portanto, poderiam ser eliminados, são transformados num primeiro momento

em mortos-vivos:

A desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação, histórica e

politicamente inteligível, de cadáveres vivos. O incentivo e, o que é mais importante, o

silencioso consentimento a tais condições sem precedentes resultam daqueles eventos que,

num período de desintegração política, súbita e inesperadamente tornaram centenas de

milhares de seres humanos apátridas, desterrados, proscritos e indesejados, enquanto o

desemprego tornava milhões de outros economicamente supérfluos e socialmente onerosos.

(Arendt, 1989, p. 498).

Os indivíduos supérfluos juntamente com os apátridas e indesejados formavam uma

massa amorfa e eram submetidos, em um primeiro momento, à morte simbólica, com o

massacre da subjetividade, o anonimato e a retirada da proteção da lei que garantiria seus

direitos, como quaisquer cidadãos. O passo seguinte seria então a morte real produzida pelos

massacres administrativos.

É espantoso notar que não havia, no governo totalitário, qualquer punição ao

descumprimento das ordens. Ninguém que se negou a participar de um massacre foi punido

ou ameaçado fisicamente; no máximo, podiam perder uma promoção. Vislumbra-se, assim, a

possibilidade de escolha, sempre presente, e que os participantes dos massacres escolheram

fazê-lo.

Para pensar o mal que surge com o totalitarismo, Hannah Arendt (1989) parte do

conceito de mal radical proposto por Kant – filósofo que antecipa a dimensão política do mal

e recusa a existência de um mal absoluto que implicaria uma concepção do homem

demoníaco – para abordar a banalidade do mal, forma contemporânea do mal que desafia

palavra e pensamento (Arendt, 1983). A dissolução dos dispositivos construídos pela

civilização operada no governo nazista tem como correlato a dificuldade de pensar essa nova
forma de mal no quadro dos sistemas político e legal existentes até então. O totalitarismo traz

uma ruptura que desafia a política contemporânea, pois surge como uma possibilidade. Nas

palavras de Hannah Arendt, “as soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda

dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça

impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”

(Arendt, 1989, p. 511).

Entretanto, essa novidade, segundo Badiou (1995), não pode ser lida como um

acontecimento, porque se baseia em simulacros de verdades, como a ideologia anti-semita e a

superioridade dos arianos. A política nazista não se constitui como um processo de verdade,

apesar de suscitar a fidelidade do povo alemão, pois ao invés de convocar um vazio, convoca

uma particularidade plena. “Toda invocação do solo, do sangue, da raça, do costume e da

comunidade trabalha diretamente contra as verdades” (Badiou, 1995, p. 85), já que as

verdades portam um traçado casual e um endereçamento a todos.

Na medida em que o totalitarismo apoia-se nas massas, procurando torná-la sempre

mais atomizadas e amorfas, produzindo o isolamento, o anonimato e o desprezo total pelos

interesses comuns e fazendo com que os homens se tornem absolutamente desprovidos de

poder, Hannah Arendt considera que haveria nesse modo de governo uma destruição do

político. É sobre esse ponto que incide a crítica de Badiou às ideias da autora, afirmando que

há sim uma política nazista. Arendt define a política como o cenário do “estar junto”.

Entretanto, Hitler buscava o “estar junto” dos alemães. Para Badiou (1995, p.75), “podem

existir políticas cujas categorias orgânicas e prescrições subjetivas sejam criminosas”.

Contudo, esse seria tema para outra discussão e aqui nos interessa retomar as contribuições

de Hannah Arendt para discutir a questão da responsabilidade. O julgamento de Eichmann

traz elementos para avançarmos neste debate.


Alguns anos depois do fim da II Guerra Mundial, após ter acompanhado o julgamento

do carrasco nazista em 1961, Hannah Arendt (1983) escreve um texto em que recolhe do

depoimento de Eichmann elementos que possibilitam intervir na comunidade judaica,

desfazendo um mito em torno de sua figura: onde se poderia esperar um monstro, dado as

proporções do mal produzido no quadro do governo totalitário, encontra o mal banalizado.

Arendt toma para si a tarefa de trazer à luz o que até então fora silenciado por seu povo,

trazendo implicações morais que vão além do que pudera imaginar (Souki, 1998). Desvela-se

algo de insuportável presente na relação carrasco-judeu causando grande incômodo3. Mesmo

diante da sugestão de que não publicasse o livro, Arendt o publica, seguindo seu

compromisso de apresentar a verdade dos fatos. Nesse sentido, podemos pensar a publicação

do livro como um ato político.

Diante da tentativa dos judeus de localizarem todo o mal em Eichmann, Hannah

Arendt afirma que “o problema com Eichmann é que havia muitos iguais a ele e que, a

maioria não era nem pervertida nem sádica, eram e ainda são terrível e aterradoramente

normais” (Arendt, 1983, p. 285).

Ela pôde constatar que Eichmann não apresentou nenhuma grande motivação para os

seus atos, ao contrário, não alimentava nenhum ódio especial aos judeus e tinha entre eles

parentes aos quais prestou ajuda. Dizia ter o desejo de construir uma carreira de acordo com

padrões de uma “sociedade respeitável” e tinha Hitler como modelo de sucesso, por ter

começado sua carreira como simples cabo do exército alemão. Em suas palavras: “Bastava o

seu sucesso para provar que eu devia me subordinar a esse homem” (Arendt, 1983, p. 143).

Seu discurso vazio, repleto de clichês, inscrevia-se na linguagem burocrática do regime

totalitário, que, em última instância, visava dar às ações do governo uma aparência de

normalidade.
3
Arendt aponta, nesse sentido, que os judeus facilitaram, de certo modo, o trabalho dos nazistas, pois
organizaram listas contendo seus nomes, das quais os nazistas se apropriaram para enviá-los aos campos de
concentração
Segundo Rinaldi, no governo nazista,

As “regras de linguagem”, mais do que esconder os crimes planejados, ao esvaziar o discurso

de seu tradicional sentido moral, através da utilização de significantes “politicamente

corretos” como  “solução final”, “evacuação”, “tratamento especial”, “reassentamento”, em

lugar dos termos  “extermínio”, “eliminação” e “assassinato”, visavam construir uma nova

consciência em que se consolidava a inversão da ordem moral transformada na própria

imagem da ordem. Assim, quando surgiam  sentimentos de piedade diante do sofrimento

infligido ao outro, ao invés de dizerem “Que coisas horríveis eu fiz com as pessoas”,  diziam:

“Que coisas horríveis eu tive de ver na execução de meus deveres, como essa tarefa pesa

sobre os meus ombros” (Arendt, op.cit:122). Essas “regras”, integradas à lei enquanto

imperativo incondicional do dever, promoviam um reviramento da posição do carrasco, de

executor da lei a objeto dessa lei, em que a piedade invertia sua direção e voltava-se para ele

próprio. É esse mascaramento que sustenta o paradoxo que Eichmann apresentou, ao final do

processo, de condenar a ordem nazista, ao mesmo tempo que reafirmava sua lealdade a ela,

sem nenhuma culpa. Vê-se aqui o lugar do carrasco como objeto do gozo do Outro, na sua

submissão à lei moral. (Rinaldi, 2001, p. 4)

O texto de Lacan Kant com Sade (1963/1998) permite esclarecer o que se encontra em

jogo nessa submissão à lei moral kantiana. Sade torna possível mostrar, na relação

torturador-torturado, o objeto que aponta a dimensão do gozo, do qual Kant tenta se esquivar

ao se ater à dimensão do ideal. Lacan mostra, assim, a face do gozo obscuro, cego e tirânico

que caracteriza o imperativo presente na lei moral.

No governo totalitário, paralelamente à ordem social compartilhada, uma nova ordem

é criada, ao despregar o significante de seu sentido comum, oferecendo-lhe um novo sentido.

Os significantes “politicamente corretos” são usados para distorcer a ordem comum e tentar

passar destruição e morte como socialmente aceitáveis, passíveis de serem naturalizados.


O nazismo empreendeu uma tentativa de dissolução dos dispositivos que a civilização

construiu para moderar o gozo que atinge a própria dimensão da linguagem, a qual aparece

em toda a sua superficialidade, ao fazê-la se despregar do sentido comum compartilhado.

Quanto a esse aspecto, Arendt se recusa a adotar a concepção de que haveria um sentido

oculto, demoníaco, a ser revelado. A figuração do mal se apresenta na linguagem superficial

de Eichmann, um homem comum, sem motivações malignas ou convicções sólidas (Arendt,

1983, p. 172).

Durante o julgamento, a defesa argumentou que Eichmann seria apenas uma “pecinha

sem importância” (Arendt, 1983, p. 297) na engrenagem que tinha como objetivo chegar à

chamada Solução Final. A tese da defesa era de que ele não agiu como homem, mas como

um funcionário e nada mais. O promotor, contudo, considerava que ele seria um motor da

engrenagem burocrática nazista. A Corte, por sua vez, concluiu que um crime dessa ordem

“só poderia ter sido cometido por uma gigantesca burocracia, usando os recursos do governo”

(Arendt, 1983, p. 297), sem, contudo, desresponsabilizar Eichmann e culminando com sua

condenação à morte.

Funcionário fiel ao Fürher que seguia à risca as ordens recebidas, Eichmann se

encaixava na engrenagem como um perfeito burocrata. Conforme aponta Souki, em torno

dele encontrava-se “o aparelho de dominação burocrática, a ideologia anti-semita, a guerra, a

responsabilidade dos estados e dos povos” (Souki, 1998, p. 83), particularmente, dos que

aderiram à essa engrenagem mortífera.

Se centrarmos a questão unicamente na responsabilidade do líder, retira-se a

responsabilidade de outros atores e despolitiza-se a experiência: como explicar que um povo

inteiro obedece a um monstro? Atenta a essa problemática, Hannah Arendt (2004) propõe que

se aumente o círculo de responsabilidades, sem, no entanto, perder de vista a

responsabilidade de cada um, e propõe uma separação entre culpa e responsabilidade. A


postura de Napoleão é um exemplo que nos permite pensar essa diferença: Napoleão

colocou-se como responsável pelos problemas gerados pelos antigos governantes da França,

mas não pode ser considerado culpado por eles, pois não se pode culpar alguém por atos que

não cometeu. No entanto, é possível assumir responsabilidades decorrentes da vida comum,

na esfera pública, cujos problemas afetam a todos.

Cabe, ainda, ressaltar a questão do descuido apontado pela autora, quando ela indica a

existência de uma complexa e “estranha interdependência entre descuido e mal” que

culminou nos chamados “massacres administrativos” (Arendt, 1983, pp. 295-296). A

banalidade estaria ainda no fato de Eichmann ter se tornado um dos maiores assassinos do

governo nazista também por esse descuido que nos remete à ação da pulsão de morte, e não

por uma natureza demoníaca. Eichmann demonstrou, durante o julgamento, um descuido com

a vida de outrem que em última instância estendia-se à sua própria vida, pois seus atos e seu

relato o levaram a ser condenado à morte.

Para Hannah Arendt (1983), “a essência do governo totalitário e, talvez, a natureza de

cada burocracia, seja transformar funcionários em meras peças no maquinismo administrativo

fora dos homens e, assim, desumanizá-los” (p. 297). Trata-se de um sistema que automatiza

as ações, que se tornam protocolares, e prescinde da reflexão, da ética que perpassa cada

escolha, do recurso à criatividade e à invenção que caracterizam a ação de um sujeito

desejante. Nesse sentido, a burocracia pode ser tomada como uma das formas de

manifestação da banalidade do mal na contemporaneidade.

No âmbito da clínica contemporânea, em que a violência cresce à medida que declina

o uso da palavra, oferecer ao ser falante a possibilidade de tomar a palavra torna-se cada vez

mais essencial, favorecendo que no lugar do descuido produzido pela burocracia possa ser

resgatada a responsabilidade de cada um. Desse modo, cabe, por um lado, pensarmos o lugar

dos profissionais “psi” na cidade e a possibilidade de intervirem frente à violência e ao


imperativo de gozo produzido pelo capitalismo na vida contemporânea. Por outro lado, isso

nos remete à presença da clínica nas instituições como possibilidade de uma experiência

distinta da burocracia, mecanismo que elimina a possibilidade de o sujeito se apresentar com

suas invenções singulares. No lugar do descuido produzido pela burocracia, pode-se ofertar

ao ser falante a possibilidade de tomar a palavra e se colocar a trabalho na construção de uma

resposta singular, levando em conta o laço social. Segundo Lacan (1975-1976/2007), a

responsabilidade deve ser pensada justamente a partir do saber-fazer próprio de cada um.

Após percorrermos as contribuições de Hannah Arendt, interessa, ainda, perguntar,

como poderíamos pensar a responsabilidade de sujeitos que praticaram atos fora da lei e

foram considerados inimputáveis. Quando um sujeito que apresenta sofrimento psíquico

comete um crime, a Psiquiatria Forense, via de regra, considera que não possui a capacidade

de entender o caráter ilícito do fato ou que não pode se determinar de acordo com esse

entendimento. Isso se encontra estabelecido no Código Penal brasileiro, no artigo 26 (Brasil,

1940/2013). Essa concepção é sustentada pela ideia de que as pessoas consideradas

inimputáveis não poderiam responder pelo ato. A Justiça absolve-as impropriamente e aplica

a medida de segurança.

Como vimos, o estado de exceção é um modo de anulação do estatuto jurídico do

indivíduo, colocando-o em um limiar, em um espaço que não é dentro nem fora do

ordenamento, em que se encontra abandonado pela lei. No Brasil, encontramos essa figura no

ordenamento jurídico que remonta ao estado de exceção, a medida de segurança. Incluído no

Código Penal em 1940, no contexto da Segunda Guerra Mundial, em que o nazismo

recrudescia e imperava no ocidente, esse instituto jurídico retira dos loucos infratores a

possibilidade de responder por atos fora-da-lei, considerando-os inimputáveis e

presumidamente perigosos e, portanto, sem garantias legais como os demais cidadãos que

respondem por crimes. Quem recebe uma pena sabe por quanto tempo irá responder, há um
limite da pena estabelecido por lei, não sendo permitida a prisão perpétua em nosso país. O

mesmo não acontece com os submetidos à medida de segurança, que não tem tempo máximo

de duração, mas deve durar enquanto persistir a suposta periculosidade do agente. Considerar

alguém como perigoso implica tomá-lo como objeto do controle, dispensando o sujeito e sua

responsabilidade (Barros-Brisset, 2011). Configura-se, com essa exceção, um abandono da

lei, pois o instituto jurídico da medida de segurança é incompatível com as garantias

constitucionais advindas com a Norma Suprema de 1988 (Brasil, 1988/2013), mas ainda

assim continua sendo aplicada. Como esclarece Agamben (2002, p. 25), “a exceção é uma

espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral”. É uma exclusão

que suspende a norma, mantendo certa relação com esta, produzindo uma zona de indiferença

entre interno e externo.

Para Juncal (2018), a inimputabilidade do louco cria um espaço de exceção,

possibilitando, ao mesmo tempo, a sustentação do sistema punitivo para os imputáveis:

Um modelo de tutela penal que é dividido em sistema de culpabilidade/pena e

periculosidade/medida de segurança (sendo que esta última retira do sujeito o direito de se

responsabilizar e o coloca em um espaço de exceção, onde o que está em questão ao fim e ao

cabo é sua própria condição existencial) realiza o louco, que comete um injusto penal, como

vida nua. Trata-se, pois, de um espaço jurídico dissonante de toda a sistemática penal. A cisão

imputabilidade/inimputabilidade apresenta a mesma lógica de culpa categorial, na qual algo é

dividido, excluído e rejeitado, no caso também o normal e o patológico, para que seja incluído

como fundamento. (...) Pode-se dizer que o fundamento do direito penal tal como está posto

se dá por essa extração do louco e sua recaptura no sistema penal através de uma exceção.

(Juncal, 2018, p. 32)


Agamben (2002) esclarece que a exceção é um tipo de exclusão inclusiva. A regra se

constitui na relação com a exceção, pois ao suspender-se, abre espaço para a exceção, que

assim constitui a regra como tal. Essas complexas relações topológicas entre interno e externo

possibilitam validar o ordenamento.

No que se refere ao louco, trata-se de algo que é muito mais amplo, não se limitando

ao abandono pela lei, no campo do Direito Penal. Tomar a loucura como exceção é uma

prática corrente no âmbito do Estado brasileiro e também de outros países. Um indicador

fundamental dessa vergonhosa e triste realidade é mostrado pela expectativa de vida dessa

população, que segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) é entre 10 e 20 anos menor

que o restante da população em geral. De acordo com a OMS, “pessoas que sofrem de

esquizofrenia ou outros transtornos mentais graves morrem, em média, entre 10 e 20 anos

antes do que a população em geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis” (OMS,

2022, p. 3). Nesse sentido, Oliveira (2022) aponta que pessoas com sofrimento psíquico têm

menos acesso aos serviços de saúde do que a população em geral. Esse dado deveria ser

amplamente divulgado e debatido e não nos deixar adormecer, pois traz à luz que há uma

determinada classe de indivíduos cuja vida importa menos, aos quais se atribui menos valor e

se consente em deixá-los morrer. Há um consentimento tácito sobre o menor valor da vida

dessas pessoas demonstrado pela escassez de políticas públicas e continuidade do estado de

exceção em que vivem, que remonta à vida nua matável do Homo Sacer recuperado por

Agamben em sua obra. Como vimos anteriormente, quando a vida nua entra nos cálculos do

poder, torna-se possível gerir a vida e a morte.

O espaço destinado aos loucos desde o surgimento da psiquiatria, o manicômio, foi

nomeado por Basaglia, em visita ao Brasil em 1979, muito precisamente de campo de

concentração nazista (Arbex, 2013). O movimento antimanicomial possibilitou o fechamento

de grande parte dessas instituições em nosso país, constituindo um novo modelo de atenção à
saúde mental, com a criação de serviços substitutivos e a possibilidade de oferecer um

tratamento digno à loucura. Esse movimento avança lentamente em direção à extinção dos

manicômios judiciários do país, verdadeiros espaços de exceção que seguem expondo a vida

nua matável dos loucos infratores. Cabe ao Estado a construção de novas respostas que os

considere como sujeitos de direitos e torne possível que tenham uma vida digna, garantindo

acesso amplo aos recursos civilizatórios e de cuidado no campo da saúde.

Retornando à questão da responsabilidade, alguns crimes, como o relatado por

Althusser em seu livro O futuro dura muito tempo, acontecem em momento de intensa

angústia e o sujeito passa ao ato num instante “fora de si”. De acordo com a psicanálise

lacaniana, todo ato porta, em alguma medida, essa dimensão “fora de si”, por sermos seres de

linguagem atravessados pelo inconsciente. Mas nem por isso somos menos responsáveis por

nossos atos. Ao contrário, a possibilidade de responder pelos atos deveria ser assegurada a

todo ser falante, tal como apontado por Althusser (1985/1992), pois é um recurso civilizatório

fundamental para tratar a violência e a pulsão de morte.

Para avançarmos na discussão sobre a responsabilidade, considero, ainda, que é

essencial nos atentarmos para a diferenciação entre punição e responsabilização possibilitada

pela clínica e teoria da psicanálise. A vontade de punição coloca-se no âmbito fora-da-lei,

resulta do imperativo de gozo do supereu, sendo um produto da destrutividade que caracteriza

a pulsão de morte e vai contra o processo civilizatório, alimentando a violência (Freud,

1924/1987; Gomes, 2002). No seu extremo, ela pode produzir a tortura, dando vazão às

fantasias mais sádicas. Punição e responsabilização não se confundem, portanto. É preciso

separar as duas noções se pretendemos lançar mão de recursos civilizatórios que possibilitem

uma regulação do gozo mortífero.

A responsabilidade é, para Lacan (1950/2003), um operador que não pode ser

dispensado, pois sem ela a experiência humana não pode chegar a nenhum progresso. A
experiência humana implica sempre um regime de gozo que pode ser tratado pela via da

responsabilidade, ficção reguladora do gozo mortífero, capaz de conter a barbárie. Tratar o

louco como irresponsável, de acordo com Lacan, corresponde a uma desumanização da

experiência humana. Tomar cada sujeito como responsável por sua posição é uma aposta da

psicanálise, que não desumaniza o criminoso ao considerar a articulação do ato ao

inconsciente, pelo qual o sujeito é sempre responsável.

Para finalizar, lembro uma advertência feita por Lacan em 1954: “Acaso não sabemos

que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência, e que ela já reina ali,

mesmo sem que a provoquemos?” (Lacan, 1954/1998, p. 376). Para fazermos frente à

violência e podermos lidar com o resto que acompanha civilização nomeado por Freud de

pulsão de morte, é essencial sustentar a clínica, nos diversos espaços da cidade, incluindo as

instituições, com a oferta que lhe é inerente para que o sujeito tome a palavra, enquanto

modo de resistir ao retorno do (neo)nazismo, do facismo e da ameaça totalitária. Face à

burocracia, intolerância às diferenças, vontade de punição e destrutividade, a oferta de

cuidado e do tratamento pela palavra ainda é uma aposta, para que a potência das invenções

de cada um possa ter lugar.

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