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Tania Coelho dos Santos

A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan*

A psicopatologia psicanalítica explica o sofrimento psíquico pela inadequação do


sujeito à civilização. Freud colocava muita ênfase na coerção abusiva da sociedade
sobre a sexualidade, cujo efeito permanente é o sentimento universal de culpa,
fonte dos obstáculos à cura pela análise. Lacan, ao final do seu ensino, considera
que esse mal radical é também a fonte de uma satisfação pulsional que não serve
aos propósitos da civilização, pois o sintoma é para cada sujeito uma maneira de viver
e ser feliz.
> Palavras-chave: Psicopatologia, recalque da sexualidade, mal-estar na civilização, sintoma
e felicidade

The psychoanalytical psychopathology explains psychic suffering by the unfitness of


the subject in the civilization. Freud stressed the abusive coercion of society towards
sexuality as a major cause that had the effect of the universal guilt, which is an
artigos > p. 74-82

impediment for the analytical cure. Lacan considered that this radical evil is also the
origin of a “pulsional” satisfaction that does not serve the purpose of the
civilization, because the symptom is for each individual a way to live and be happy.
> Key words: Psychopathology, repression on sexuality, unhappiness in civilization,
sympton and happiness
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVIII, n. 184, dezembro/2005

A dimensão do psicopatológico, no pensa- e não naturaliza o sofrimento psíquico. Mui-


mento psicanalítico, ancora-se estreitamen- to cedo, num artigo onde desponta toda a
te numa posição crítica diante dos obstácu- desconfiança freudiana face à progressiva
los que a cultura coloca para a felicidade. A tendência da civilização ao recalque, encon-
psicopatologia psicanalítica não é ingênua, tramos a tese de que o sofrimento neuróti-

*> Trabalho que resultou das discussões havidas no Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise da
ANPEPP.

>74
co advém do excesso de coerções que pesam incestuosa não é a razão que impede o su-
sobre a vida sexual do homem civilizado. O jeito de usufruir do sucesso, obrigando-o a
laço entre a “Moral sexual civilizada e a fracassar? Não seria também esse mesmo
doença nervosa moderna”, de que falou sentimento, a causa que impele ao crime
Freud em 1908, generalizou-se em “O mal- para obter o castigo? A necessidade incons-
estar na civilização” durante os anos 1929/ ciente de punição tem raízes profundas na
30. Nesse momento, ele renova toda a po- vida psíquica tal como retrata o mito do par-
tência de sua crítica aos danos causados ricídio originário. O sujeito civilizado, se le-
pela civilização aos indivíduos avançando a vamos em conta sua dívida para com a
tese de que há um paradoxo da satisfação renúncia primordial ao incesto e à agressão,
pulsional, Quanto mais renunciamos, mais não foi feito para ser feliz.
renunciamos! A renúncia não é simples- Não vamos percorrer toda a teorização de
mente a conseqüência malsã da coerção re- Lacan acerca do tema da felicidade e do so-
pressiva que pesa sobre a sexualidade. A frimento psíquico. Penso que Lacan não foi
renúncia é uma erva daninha pois é, ela nada otimista no começo de sua teorização.
mesma, um modo de satisfação pulsional. As O sujeito () se constitui mortificado pelo
pulsões de morte avançam na direção desta significante e, em conseqüência dessa per-
modalidade nefasta de satisfação, sempre que da de gozo no momento do seu advento, está
a sexualidade, o erotismo e o desejo recuam. condenado a eternizar-se como falta-a-ser.
De certo modo, em seus trabalhos sobre o O gozo perdido é um obstáculo à simboliza-
caráter, Freud já havia antecipado a proble- ção embora não seja real. O gozo, no primei-
mática de uma satisfação pulsional que, ro ensino de Lacan, é apenas uma miragem,
afastada das vias da satisfação sexual dire- um resíduo imaginário do incesto. O campo
ta, encontra o caminho regressivo da satis- da fala e da linguagem, tal como se desen-
fação na identificação. Em “Alguns tipos de rolam na experiência analítica, contribuem
caráter encontrados no trabalho analítico” para dissolvê-lo. Somente depois do Seminá-
(1917[1916]), já contrapõe os indivíduos “que rio X 1962/63 (L’Angoisse), Lacan encontra
artigos

reivindicam ser tratados como exceção”, aos uma maneira de incluir o gozo – através da
“fracassados por causa do sucesso” e aos vertente do fantasma (<>a) – na consti-
“criminosos em conseqüência do sentimen- tuição do sujeito. Reconhece nessa época
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to de culpa”. Ele não dispõe ainda do concei- que o gozo não é apenas uma dimensão au-
ano XVIII, n. 184, dezembro/2005

to de pulsão de morte, ferramenta sente do simbólico, mortificada pelo signifi-


explicativa que vai abrir novos horizontes à cante (), mas que se articula a um
clínica psicanalítica. Cada uma dessas moda- elemento positivo: o objeto a como mais-de-
lidades de caráter, depois de 1920, encontra- gozar. Uma terceira teorização, que conven-
ria seu amparo na malignidade inconsciente cionamos chamar de último ensino de
do supereu. Como não reconhecermos no Lacan, vai reduzir o fantasma – que é um
“desejo de ser tratado como uma exceção” a misto de significante () e gozo (objeto) – a
inclinação perversa em fazer-se castigar pelo um outro misto, a insígnia. A insígnia(S1/a)
pai? O sentimento de culpa pela satisfação é o matema do sujeito reduzido pela análi-
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se à pulsão. Para além do efeito mortificante seguro e minimizar o mal-estar. O Outro
das identificações, que reduz o gozo ao fan- contemporâneo calcula o custo/benefício da
tasma, o sujeito identifica-se ao sinthoma. A promessa global de igualdade e homeostase
insígnia é o matema do sujeito reduzido à social. Aposta no poder dos medicamentos
pulsão, que nas palavras de Lacan “é sem- de última geração e na prevenção psicotera-
pre feliz”. Neste momento do seu ensino, pêutica generalizada. Estamos numa socie-
Lacan já não distingue sintoma e caráter. A dade que gerencia o risco de viver e pensa
última formulação contempla a positivação poder limitar o mal-estar, maximizando a
dos obstáculos ao término de uma análise, saúde mental. Trata-se de uma ampla mu-
tal como Freud os formulou. Como afirma- dança de regime, no sentido foucaultiano,
mos anteriormente, Freud reduziu a vida desde um estado que “deixa viver ou mata”
psíquica ao seu osso, o sentimento incons- para um estado que “deixa morrer e faz vi-
ciente de culpa. O apego ao sintoma, a rea- ver”. Como adiantam Miller e Milner (2004,
ção terapêutica negativa, a inacessibilidade p. 7-30), uma mudança profunda na modali-
narcísica do paciente, a compulsão à repe- dade de gestão do mal-estar está em curso.
tição na neurose de destino, o repúdio da Incluído no campo da saúde mental, campo
feminilidade são algumas de suas traduções que faz parte dos poderes régios do Estado,
psíquicas. O último ensino de Lacan retraduz tornou-se assunto de saúde pública e segu-
o freudiano “sentimento inconsciente de ridade social. Toma-se o mal-estar como pro-
culpa” em “repetição de um mesmo fracas- blema, como queixa proveniente do social,
so”. Ele faz do vício a virtude da vida libidi- e ao homem público, o político, caberá en-
nal. Se não há acordo possível entre o contrar uma solução. Esse é o paradigma das
sujeito e a civilização, então, “não há rela- relações entre política e sociedade no uni-
ção sexual”. Logo, haverá necessariamente verso moderno. A solução se apresenta em
sintoma. Coloca toda ênfase na satisfação termos do paradigma da avaliação, da medi-
que o sujeito retira em repetir a mesma rata, da, e do calculável seja quantitativo, seja
o mesmo fracasso, em perseverar em seu qualitativo. São ambos paradigmas matemá-
artigos

sintoma. Se não há felicidade na vida civili- ticos e seu princípio é a colocação das peças
zada, deve haver, por isso mesmo, satisfação em apreço numa relação de equivalência. As-
pulsional nesse fracasso. O sinthoma é um sim, um problema será substituído pela so-
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problema ou uma solução? lução equivalente. Basta, portanto, que haja


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avaliação para que tenhamos uma solução.


A civilização contemporânea e A equivalência é um hiperparadigma e sua
sua psicopatologia inspiração é a moeda, isto que permite tro-
O discurso do capitalismo promete car uma mercadoria por outra. A outra face
maximizar o gozo útil. Hoje, mal-estar na ci- desse hiperparadigma é jurídica: o contrato,
vilização tornou-se um artigo gerenciado. O do qual os parceiros são supostos equivaler-
gosto pós-moderno é a mensuração genera- se em potência, e terem ambos alguma coi-
lizada. Medir, regulamentar, distribuir, homo- sa a trocar. Lembrem-se de Marx que
geneizar todos os gozos. Garantir o prazer desvendou a redução da força de trabalho a
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uma mercadoria que se vende. A importân- A lei não diz nada sobre todo um conjunto
cia da sociedade do contrato ultrapassa o de coisas. É uma lei, e não um contrato. Seu
nível jurídico. Sem nos darmos conta, passa- silêncio é uma expressão da autoridade ré-
mos de uma figura à outra da democracia. A gia do Estado, como garante da liberdade. No
democracia era o lugar geométrico da lei, contrato, só conta o que está expressamen-
mas a lei releva do limitado (do para todos). te estipulado de modo negativo ou positivo.
A democracia entrou na era do ilimitado O que não é expressamente dito não vale.
(não-todo). Tornou-se o lugar do contrato, O silêncio não vale. A lógica é totalmente
ou dos contratos, pois a força da forma con- diferente. Entre uma democracia fundada
tratual é que ela pode ser multiplicada de na lei, e outra no contrato, a questão do si-
maneira ilimitada. Se a ideologia do contra- lêncio regulamentar será totalmente dife-
to tornou-se o fundamento da democracia rente. Quando se procura fazer, como está
ilimitada, não a democracia clássica, mas a em voga hoje, um sistema de equivalências
democracia do futuro, a avaliação e o con- entre o limitado e o ilimitado, entre a lei e
trato tornaram-se o modo de fazer avançar o contrato, não se sabe mais o que é que
a democracia. O que chamamos agora de Di- vale: o que é dito ou o que não é dito?
reitos do homem e do Cidadão, não são mais No contrato, o que não é expressamente
os da Declaração de 1789. Os direitos de permitido, não é permitido de jeito nenhum.
1789 relevam do limitado, eles fazem limite Donde, nos estatutos das associações, o que
às leis. Mas os direitos do homem, na versão se pratica é uma forma mista: o que não é
moderna, relevam do ilimitado dos direitos, expressamente proibido, é permitido. Esta-
dos contratos dos procedimentos de avalia- mos num sistema híbrido, onde não sabe-
ção e da forma problema-solução. Implicam mos nunca em que regime estamos, se
que há um parceiro que não deve intervir: o devemos interpretar na vertente da lei, ou
Estado.. A contradição mais profunda é que na do contrato. Nesse sistema, o contrato
quando falamos das funções régias do Esta- associativo está um pouco para todo lado,
do, a noção de contrato desaparece. A ex- Precisamos de especialistas, os advogados,
artigos

pressão natural da função régia do Estado fabricantes de regulamentações. Se lhe dize-


democrático é a lei, e a lei não repousa so- mos que se trata de um contrato, e as fun-
bre a igualdade dos parceiros, e sim sobre a ções régias do Estado não têm nada a ver
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voz imperativa que não coloca em pé de com isso, ele nos responde: — “Atenção, te-
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igualdade os parceiros em questão. A lei, nho que levar em conta o bem público, preen-
como lembra Miller, supõe o terceiro, en- cha por favor os papéis.” Se lhe dizemos que
quanto o contrato é um esforço para dar sta- se trata do bem nacional, trata-se da lei,
tus simbólico ao estádio do espelho. A lei logo, o que não está expressamente interdi-
funciona tanto pelo silêncio quanto pelo que to é permitido, ele responde: “atenção, uma
ela diz. Os regimes liberais, por oposição aos expertise científica tem necessidade de to-
autoritários, são aqueles em que a lei permi- das as informações. Logo, preencha!”. Na
te tudo que ela não interdita expressamen- versão antiga, havia as funções régias do
te. O silêncio da lei é o que a faz funcionar. Estado, mas o Estado não se mete senão na
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política exterior, na polícia, nos impostos. que se inscreve como um todo limitado.
Atualmente, reina a transação, conservamos Para prosseguir nesta investigação inaugu-
uma função régia do Estado, mas ela vai se rada por Lacan, precisamos refletir sobre as
ocupar de todos os aspectos que fazem a condições éticas tanto da demanda, quanto
vida pública moderna. Entre esses elemen- do exercício da psicanálise no mundo globa-
tos, a saúde pública, a saúde mental, e o lizado. O que fazer, quando o declínio da or-
mal-estar. Não há mais nenhum limite que ganização edipiana do laço social, o avanço
se possa impor à função régia do Estado, em do discurso da ciência e de seus aparelhos de
nome do bem de todos. gestão da saúde mental e do mal-estar
É uma coisa que aparece em todas as gran- (Miller e Milner, 2004), o aprofundamento da
des doutrinas materialistas, supomos um “a inconsistência do Outro com seus comitês
mais” que excede toda forma de contrato, de ética (Laurent e Miller, 1996-1997), assim
excede toda absorção pela forma problema- como o esvaziamento de toda palavra ora-
solução. Marx demonstrou a existência desse cular (Miller, 2002-2003) nos confronta com
excesso com respeito à venda da força de casos de difícil classificação?
trabalho no mercado. Ela é supostamente li- O que se apresenta na clínica, nesse tempo
vre (quem o faz, faz porque quer), igualitá- em que o Nome-do-pai e o Estado foram ab-
ria (um compra e o outro vende). sorvidos pela lógica do ilimitado (do não-
Entretanto, há um “a mais” que se chama todo) será ainda a neurose, serão novas
mais-valia. Não se trata de um valor “a doenças da mentalidade hipercontratual,
mais”, e sim de um “mais de valor”. Um ex- canalhice pura e simples, ou novos sinto-
cesso que resiste a toda substituição calcu- mas e novas modalidades de psicose? Como
ladora. Entre força de trabalho e salário, a distinguir uma clínica do sinthoma, da ten-
essência do impossível é que há sempre um dência contemporânea ao gozo ilimitado?
objeto que não vai se deixar absorver pela
forma problema-solução. O “a mais” é algu- A solução continuísta e a
ma coisa que não se substituirá de modo descontinuísta: sinthoma e
artigos

algum. É disso que se trata também no sintoma


objeto a de Lacan. O mal-estar é hoje o No campo freudiano, a constatação do declí-
nome desse resto insubstituível, tudo pode nio da organização edipiana, fruto do avan-
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ser solucionável menos isso. Os analistas ço do discurso da ciência, produziu uma


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lacanianos não pensam que isso seja um hipótese nova: a de uma foraclusão genera-
problema! O problema é também a solução lizada do Nome-do-pai. O que vamos desen-
do problema. Vivemos com o elemento in- volver neste trabalho é uma tentativa de
solúvel. A solução é a não-solução, o im- construir um quadro classificatório, compa-
passe, assumido, consentido. Essa posição é rativo, que nos permita estabelecer diagnós-
a essência de uma política lacaniana. Ela ticos diferenciais entre as neuroses/psicoses
advoga que há uma diferença essencial modernas e contemporâneas. A idéia central
entre o Estado que se d e i x a absorver é a seguinte: o afrouxamento da organiza-
pelo ilimitado da sociedade, e o Estado ção edípica modifica o regime das relações
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entre o gozo e a lei ou, se quisermos, entre e à psicose, ou seja, o que o ser falante
o permitido e o proibido. Hoje, Estado e So- apresenta de mais singular e inclassificável
ciedade se equivalem. Novo regime demo- – em seu esforço de nomeação e de defesa
crático em que a lei se reduz ao contrato contra o gozo invasor – sem desprezar, mas
intersubjetivo, esvaziando-se do que ela sem nos servir exclusivamente da diferen-
tem de incondicional. O Nome-do-pai, nes- ça entre neurose e psicose. A perspectiva
se novo regime, está foracluído do simbóli- continuísta pode esclarecer porque, em RSI
co e os contratos sociais tentam inscrevê-lo (1974-1975), Lacan pluraliza os Nomes-do-pai.
por meio de suplências imaginárias. Quando Ele nos apresenta a inibição como a patolo-
a foraclusão do Nome-do-pai é generalizada, gia do fazer ou do laço social, nomeação do
é muito mais difícil distinguir as neuroses imaginário e, a angústia, como a patologia da
das psicoses. O que encontramos na clínica, esperança, nomeação do real. Esse passo
no lugar das doenças do grande Outro, isto implica colocar os três registros em igualda-
é, as neuroses e psicoses clássicas, são as de de condições. Desta forma, o sintoma e
doenças da mentalidade. Do mesmo modo, o delírio, patologias da crença ou do saber,
neo-modalidades de psicose – mais ordiná- não são mais os critérios, por excelência, do
rias do que extraordinárias – são a respos- diagnóstico de neurose ou de psicose. Pre-
ta psicótica à rarefação dos representantes cisamos considerar também que a inibição e
paternos. Chamamos de doenças do Outro, a angústia podem ser defesas psicóticas. O
as neuroses organizadas em torno do com- mais importante são as lições que podemos
plexo de Édipo e as psicoses desencadeadas tirar para o trabalho do analista diante das
pelo encontro com Um pai. O simbólico é o doenças da mentalidade e das psicoses or-
lugar eletivo das perturbações típicas. Na dinárias. A clínica da neurose é hoje habita-
modernidade, o sintoma e o delírio são as da por impulsões, compulsões, depressões
respostas do sujeito, neurótico ou psicótico inespecíficas, astenias, conversões histéri-
ao Outro consistente. Chamamos doenças da cas ou psicóticas, além de fenômenos psi-
mentalidade, as neuroses e psicoses em que cossomáticos. Muitas vezes não sabemos
artigos

o Outro é inconsistente, não-todo, ilimitado. distinguir esses quadros de uma psicose não
O corpo e sua imagem, e não mais a lingua- desencadeada. Como diferenciar eventos de
gem, são o campo preferencial de eclosão corpo, de fenômenos de corpo (Miller, 2003).
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das perturbações. O gozo hiperlocalizado, e Como saber quando isso é uma inibição neu-
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o gozo deslocalizado, são o modo de apre- rótica, ou uma suplência à psicose? Essa di-
sentação dos novos sintomas neuróticos e ficuldade se acentua porque, quando o
dos fenômenos psicóticos. Outro não existe, as psicoses também são
Numa cultura em que o Outro tende a ser in- menos delirantes. Quando uma psicose não
consistente, não-todo, uma clínica conti- é delirante, o corpo, na sua vertente real ou
nuísta (Georges et al., 1999) vem responder imaginária vem suprir a carência do simbó-
ao que fazer, como e quando o sintoma é lico, produzindo uma nomeação. É o caso
cada vez menos típico ou coletivo. Valoriza- das neo-conversões (Georges et al., 1999,
mos, desta feita, o que é comum à neurose p. 101-43) e dos fenômenos psicossomáticos.
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É a partir dessa modalidade de nomeação zer que não procede de uma interpretação,
que teremos que pensar os neo-desenca- nos remete a um Outro como imagem (que
deamentos. São muito mais desenlaçamen- é um saber não limitado pela interpretação),
tos e reenlaçamentos do discurso comum saber que não é suposto, e sim exposto. A
(laço social), do que grandes desencadea- isso chamamos uma neo-conversão. Ela se
mentos à maneira das psicoses extraordi- distingue também do fenômeno psicosso-
nárias. O corpo em sua vertente real (lesões mático. Este último escapa à regulação fáli-
psicossomáticas), ou imaginária (neo- ca por meio de um significante ilegível, es-
conversões), é o terreno onde se dão os crito no corpo, no lugar de um sintoma. Na
fenômenos de encadeamento e desenca- neurose ele reflete um fracasso momentâ-
deamento das neo-psicoses, ou psicoses or- neo da defesa diante de um evento traumá-
dinárias. tico. Na psicose, pode funcionar como uma
bolha do nome próprio, delimitando um es-
Como tratar o sofrimento, paço separado do Outro, que lhe permite
quando supomos que o sujeito é existir sem passar pelo Nome-do-pai. A essa
sempre feliz? passagem direta do significante ao real do
A conversão é um fato de estrutura e, é idên- corpo, chamamos sinthoma. É algo do cam-
tica ao desejo se considerada a partir da po da psicose, mas que generalizamos para
causa (o objeto a), e da inscrição corporal da todo ser falante na clínica continuísta. Mes-
castração (S1, o significante fálico). Um cor- mo assim, a posição do analista, e seu ato,
po é efeito da ação do significante mestre numa clínica continuísta, não se desvenci-
(S1), é uma significação fálica, que anima lham de uma exigência de decidir quanto ao
todo ser falante. O sintoma histérico é, jus- diagnóstico. Entretanto, não enfatizamos o
tamente, a conseqüência da desproporção déficit: presença ou ausência da metáfora
entre a causa e o significante do ideal. A paterna, porque todo sintoma, pode ser re-
castração do sujeito remete à divisão do Ou- duzido a um sinthoma, a uma conexão dire-
tro, sua impotência ou sacrifício, que coloca ta do simbólico ao real que não precisa do
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o sujeito a serviço de um ideal. O recalque, imaginário, da função do Nome-do-pai. Tra-


a identificação ao que falta ao Outro, produz tamos o mal pelo mal. A doença é o próprio
uma perda de gozo, e o reforço da satisfação remédio (Coelho dos Santos, 2004). O ana-
pulsional clandestina que prolifera no in- lista é o parceiro (Coelho dos Santos, 2002)
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consciente. Quando o Outro não existe, a de uma neo-transferência (Georges et al.,


identificação não se limita pela castração do 1999, p. 147-9) – em que o analisando é o
Outro. O uso do corpo, como manifestação agente (a) e ele analista o (). O papel que
somática do significante, só é interpretável lhe cabe é o de aprendiz de uma modalida-
a partir de sua relação com a marca da cas- de de laço social que o analisando lhe pro-
tração do Outro. A parte subjetiva depende põe. Somente depois de um árduo aprendi-
dessa relação com o texto como Outro: o zado é que nos arriscamos a agir. Isso nos
fantasma como resíduo da organização edi- desencoraja a sonhar com um ideal de saú-
piana. O uso do corpo, no sentido de um fa- de mental! E se não precisamos recuar dian-
>80
te da psicose, é porque podemos aplicar a veitava pequenas ocasiões para iniciar um
psicanálise à psicoterapia. comentário, fazer uma pergunta, contar um
Um difícil aprendizado: a língua do mais ou caso. Entre as suas respostas fragmentadas
menos. Quando eu recebi Gabriela, disse- e lacônicas pude recortar a recorrência da
ram-me que se tratava de uma depressão. frase: eu sou gorda! A certeza localizada
Ela só tinha dezoito anos, já tomava psico- neste significante era tão desproporcional à
fármacos e eu não seria sua primeira “tera- realidade de fato que tomei essa conexão
peuta”. Eu seria analista? Ela não dizia nada. como real. Seu suposto excesso de peso era
Sentada à minha frente, de cabeça baixa, uma suplência à insuficiência de sua ima-
evitava me olhar e quando muito respondia gem, uma neo-conversão. Tratava-se de um
às minhas perguntas. Nunca tomava a ini- fenômeno elementar, sinal discreto da ca-
ciativa de falar. Uma primeira modificação na rência simbólica. Um dia, medindo bem mi-
minha posição se impôs a duras penas: quem nhas palavras, eu lhe digo: — “Eu não acho
falava era eu. Docilmente, eu falava, comen- que você seja gorda, mas isso não tem a
tava, perguntava... Tudo que eu consegui sa- menor importãncia. Se você acha isso, é pre-
ber foi que ela comia muito, dormia sem ciso tomar uma providência. Você precisa de
parar, faltava às aulas, chorava muito e não uma clínica de emagrecimento!”. À surpresa,
saía sozinha. Impotente em impor limites ao seguiu-se um movimento decidido de encon-
gozo invasor do corpo. Ela sempre vinha trar uma nutricionista. Ela passou algumas
acompanhada do pai ou do irmão mais velho. semanas dificílimas num estabelecimento
Toda essa atenção que recebia era insufi- para emagrecer. Voltou um pouco mais ma-
ciente para limitar seu desamparo, sua aste- gra. O que me pareceu uma perda insignifi-
nia, sua apatia e uma forte depressão que se cante de peso, representou uma mudança
encarnava em sua recusa em falar. Fre- essencial na relação transferencial. Ela era
qüentemente, alguém da família me ligava agora “mais ou menos gorda (ou magra?)”.
dizendo que ela não viria à sessão porque Da extração desse pequeno excesso de seu
não conseguiu levantar-se da cama. O tra- corpo, construímos um artifício: a língua do
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tamento parecia inviável. As faltas prome- mais ou menos. Com ela, passamos à regu-
tiam multiplicar-se. Comecei a perceber que lação de suas relações com os pais, os ami-
ela não gozava do corpo, mas o reforçava gos, os compromissos com os estudos. Essa
como uma defesa contra a invasão de gozo. língua “dietética” resultava em evitar uma
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Outra mudança no enquadre se impôs. A lógica feroz do tudo ou nada. Uma nova su-
cada vez que me ligavam de sua casa, eu plência, tornou-se a língua comum: tudo que
pedia que a trouxessem ao consultório. Por é bom, é só “mais ou menos”. Por exemplo:
fim, quando ninguém se dispunha à fazê-lo, não se deve faltar às provas quando não se
eu solicitava que a colocassem num táxi, eu pode tirar 10. Tirar 7 já é ótimo. Daí à con-
descia e ia buscá-la na portaria. Com esse clusão de que tirar dez não é bom, foi um
dispositivo eu me oferecia como muro, ten- passo. Deste modo conseguimos evitar a
tando trocar o reforçamento de seu corpo, ameaça de novos desenlaçamentos em suas
pelo reforçamento de nosso vínculo. Apro- relações com os outros e em seus compro-
>81
missos. Os efeitos estabilizadores dessa prá- _____ ([1930]1929). O mal-estar na civilização.
tica verificam-se na redução da angústia e da In: Edição Standard Brasileira da Obras Psico-
depressão. Contornam a ausência do fantas- lógicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
ma neurótico e da significação fálica. Sem o neiro: Imago, 1972. v. XXI.
Nome-do-pai, resta fazer alguma coisa com G EORGES, P. et al. (org.). La convention
esse S1/a real: Gorda! d’Antibes. Paris: Agalma/Seuil, 1999. (Le Paon).
LACAN, J. (1974-1975). Le Seminaire XXII. RSI. Edi-
Referências tions de L’ Association Freudienne Internationale,
C OELHO DOS SANTOS, T. O que não tem remédio re- lições dos dias 10/12/1974, 14/1/75, 11/2/1975.
mediado está! Revista de Latinoamericana de LAURENT, É. e M ILLER, J.-A (1996-1997). L’autre qui
Psicopatologia Fundamental, São Paulo: Escu- n’existe pas et ses comités d’éthique. Seminá-
ta, v. VII, n. 1, p. 63-74, mar./2004. rio inédito, Aula I.
_____ O analista parceiro dos sintomas in- M ILLER, J.-A. (2002-2003). Un effort de poésie.
classificáveis. Latusa , Rio de Janeiro: Contraca- Cours du Département de Psychanalyse, Paris
pa, 2002. VIII, seção I e II.
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença _____ Conversation sur les embrouilles du
nervosa moderna. In: Edição Standard Brasilei- corps. Ornicar? Paris: Navarin/Seuil, n. 50,
ra da Obras Psicológicas Completas de Sigmund 2003.
Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. IX.
Miller, J.-A. e Milner, J. C. Évaluation, entre-
_____ ([1917]1916). Alguns tipos de caráter en- tiens sur une machine d’imposture. Paris:
contrados no trabalho analítico. In: Edição Agalma, 2004. p. 7-30.
Standard Brasileira da Obras Psicológicas Com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ima- Artigo recebido em março de 2005
go, 1972. v. IV. Aprovado para publicação em outubro de 2005

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ano XVIII, n. 184, dezembro/2005

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