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O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico

O desamparo como categoria afetiva


fundamental do mal-estar na atualidade:
um ensaio psicanalítico
DOI: https://doi.org/10.5935/1984-9044.20200006

Érico Bruno Viana Campos, Amanda Nunes da Silva – Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (UNESP)

Resumo: Este artigo consiste em um ensaio teórico psicanalítico, com o objetivo de caracterizar o de-
samparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade. Os resultados mostram que
o desamparo precisa ser caracterizado como categoria afetiva da subjetividade humana, em três di-
mensões: objetiva, de natureza constitucional biológica; psíquica, de natureza psíquica singular e sub-
jetiva; estrutural, de natureza ontológica e ética. Destacam-se dois eixos de discussão: (1) a
importância do desamparo na gênese da subjetividade e sua relação com a violência; (2) as modifica-
ções no laço social contemporâneo, que trazem o desamparo para o centro da dinâmica defensiva do
aparelho psíquico, com uma tonalidade afetiva que se desloca do âmbito da castração e da culpa para
a dor e o luto. Conclui-se que, para além das caracterizações do desamparo como condição e como es-
tado, é preciso avançar na direção do manejo técnico e interventivo e, portanto, construir mais efeti-
vamente uma clínica do desamparo.

PALAVRAS-CHAVE: teoria psicanalítica; desamparo; mal-estar; cultura.

Helplessness as a fundamental affective category of


current malaise: a psychoanalytic essay
Abstract: This article consists of a theoretical essay on psychoanalysis with the aim of characterizing
helplessness as a fundamental affective category of malaise in the current time. The results show that
helplessness needs to be characterized as an affective category of human subjectivity, in three dimen-
sions: objective, of as a biological constitutional nature; psychic, of as a singular and subjective psychic
nature; structural, as an ontological and ethical nature. Two axes of discussion stand out: (1) the im-
portance of helplessness in the genesis of subjectivity and its relation with violence; (2) the changes in
the contemporary social bond that bring the helplessness to the center of the defensive dynamics of
the psychic apparatus, with an affective tone that moves from the realm of castration and guilt to pain

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and mourning. It is concluded that beyond helplessness characterization as a condition and as a state,
it is necessary to move towards technical and interventional management and, therefore, to construct
a clinic of helplessness more effectively.

KEY WORDS: psychoanalytic theory; helplessness; malaise; culture.

Introdução

problematização do desam- Desse modo, como Freud afirmou em seu

A paro perpassa a teoria psica-


nalítica ao longo dos vários
momentos da obra freudiana
texto Projeto para uma Psicologia cientí-
fica (1895/1996), o desamparo é a fonte
de todos os motivos morais.
e segue como referência para o estudo
Assim, o desamparo é a condição ori-
do mal-estar humano. Como conceito
ginária da subjetividade humana e tam-
psicanalítico, o desamparo corresponde
bém seu horizonte contínuo, na medida
a uma condição fundamental da vida hu-
em que toda a dinâmica defensiva e a
mana que indica a impotência do indiví-
mobilização da angústia é, em última ins-
duo em duas dimensões. A mais ampla
tância, uma tentativa de prevenção de
diz respeito a uma condição de desam-
sua repetição. Considerando que as ten-
paro estruturante e fundante do psi-
tativas de evitar tal repetição se ligam a
quismo, obrigatória para a construção da
um desamparo estruturante da vida so-
subjetividade humana e para a vida so-
cial e individual, torna-se necessário re-
cial. Há também uma dimensão que re-
tomar as etapas de surgimento e
mete propriamente à situação psíquica
desenvolvimento do aparelho psíquico
de desamparo: a impossibilidade de sa-
para que se possa compreender como se
tisfação pulsional perante o outro, colo-
manifestam as formas de sofrer do su-
cando o sujeito de encontro com a
jeito. Não obstante, também é preciso
experiência de perda e da angústia.

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considerar os diferentes determinantes desamparo ante o aumento pulsional”


culturais que resultam em experiências (Menezes, 2012, p. 71).
de sofrimento específicas.
A reflexão crítica do mal-estar na cul-
A condição originária de desemparo tura feita por Freud (1930/1996) eviden-
é suplantada ao longo da gênese do apa- ciou que a subjetividade do homem
relho psíquico por meio de novas moda- moderno se baseava fundamentalmente
lidades de relação com os objetos e de na incerteza gerada pela perda da confi-
significação de suas perdas. A perda des- ança na figura do pai protetor, materiali-
ses objetos, seja das relações de objeto zado na ideia de Deus. Desse modo, a fim
narcísicas seja das edípicas, reflete uma de alcançar um estado de segurança, os
dimensão do desamparo, na medida em homens deveriam abdicar de seus impul-
que exprime a impotência das exigências sos, tendo necessariamente que lidar
pulsionais do indivíduo frente às restri- com o mal-estar difuso, efeito do senti-
ções da cultura e da realidade. Isso signi- mento inconsciente de culpa. Como ca-
fica que as perdas de objeto são vividas racterizou Birman (2000), a teoria
pelos sujeitos como situações de desam- freudiana pode ser entendida como uma
paro não limitadas ao período de consti- resposta à crise da subjetividade mo-
tuição inicial do psiquismo, derna e de seus valores patriarcais e bur-
acompanhando os indivíduos ao longo da gueses, constituídos em torno da figura
vida adulta. Quando o aparelho psíquico do estado liberal e do conhecimento ra-
está constituído, o desamparo se ex- cional. Outros autores corroboram essa
pressa como uma experiência de angús- contextualização da contribuição da psi-
tia. A angústia, por sua vez, sinaliza a canálise para uma certa crítica dos funda-
situação de perigo, que corresponde à re- mentos da modernidade (Figueiredo,
vivência da condição estrutural de de- 1995; Bauman, 1998; Costa, 1999). Para
samparo, motivada pela perda do objeto, nossos propósitos, cabe destacar que
de tal forma que “será sempre a perda do certos determinantes histórico-culturais,
outro amado que remeterá à condição de resultantes das alterações econômicas,
abandono total, de desajuda, de políticas e sociais, surtidas na mudança

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da ordem da sociedade tradicional para a trocaram um quinhão de suas possibili-


da sociedade moderna (basicamente a dades de segurança por um quinhão de
instituição de um sujeito psicológico e de felicidade” (Bauman, 1998, p. 10). O que
indivíduo social modernos), implicaram está em jogo é uma reconfiguração do
uma perda de garantias constituídas na mal-estar e do desamparo da moderni-
estabilidade do mundo subjetivo, colo- dade. Já há uma literatura relativamente
cando a cada um a necessidade de se bem estabelecida na área dos estudos
constituir como sujeito psicológico, a par- psicanalíticos sobre as condições socio-
tir de sua condição de liberdade e de au- culturais contemporâneas, que indicam
todeterminação (Figueiredo, 1995). Essa as consequências subjetivas do aprofun-
condição de instituição subjetiva implica damento da crise da modernidade, con-
a responsabilidade de se constituir no siderando o excesso de liberdade
risco e nas vicissitudes das relações alte- individual e a desregulamentação da or-
ritárias, com referências identificatórias dem (Bauman, 1998; Birman, 2000,
que se tornam cada vez menos totalizan- 2005, 2014; Costa, 2005). Esses autores
tes. Essa angústia da liberdade, por assim indicam a perda de reconhecimento do
dizer, é o horizonte ético que começa a outro e de ligação com a alteridade nas
se indicar na aurora da modernidade e relações humanas contemporâneas, indi-
que, a partir de sua crise, coloca o sujeito cando uma tendência de valorização do
sob o signo do mal-estar e também do individualismo e do consumismo na cons-
desamparo. tituição e manutenção dos vínculos soci-
ais. Para enfrentar a experiência de
De maneira semelhante, pode-se no-
sofrimento, os sujeitos contemporâneos
tar modificações nas formas de subjetivi-
passam a buscar a exterioridade e a este-
dade contemporânea, se comparadas às
tização do eu a todo custo, expressões
da modernidade. Enquanto Freud
características da cultura do narcisismo,
(1930/1996) afirma que o homem civili-
da sociedade do espetáculo, da cultura
zado trocou possibilidades de felicidade
performática e outros termos que têm
por uma parcela de segurança, “os ho-
sido cunhados nesse debate sobre a pós-
mens e mulheres pós-modernos

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modernidade (Birman, 2005). Segundo a função das demandas próprias dos mo-
proposta específica de Joel Birman (2000, dos contemporâneos de constituição da
2005, 2012), haveria um enfraqueci- subjetividade e de seus reflexos psicopa-
mento do registro dentro-de-si e uma va- tológicos, com destaque para a ansie-
lorização do fora-de-si como parâmetro dade generalizada na forma de pânico
instituinte dos modos de subjetivação da (Pereira, 1999; Menezes, 2006) ou no es-
atualidade, implicando a valorização de vaziamento subjetivo e no tédio, próprios
um modelo de sujeito voltado para a per- da relação com a morte e nas depressões
formance e exaltação de seu eu no exte- na atualidade (Campos, 2013, 2016). Por-
rior. Considerando esse modo de ser tanto, a problematização do desamparo
característico da contemporaneidade reaparece justamente na medida em que
agregado à falha de simbolização nas re- as particularidades das relações sociais
lações de vínculo narcísico, produz-se da atualidade provocam novos efeitos na
uma nova caracterização do sofrimento. angústia e no enfrentamento da dor e do
A literatura psicanalítica sobre esse as- mal-estar, demonstrando um rearranjo
sunto tem abordado a especificidade das na caracterização das formas de sofri-
relações interpessoais e do vínculo social, mento humano e apontando possíveis
ancorada na ideia de uma crise da função saídas para essas experiências de dor,
e da imago paterna na atualidade luto e castração. Nesse sentido, o pre-
(Pombo, 2018), fomentando a constitui- sente ensaio visa a indicar o desamparo
ção de um laço social perverso (Poli, como categoria afetiva fundamental do
2004) e de formas características de so- mal-estar na atualidade, por meio de
frimento, as chamadas psicopatologias uma revisão de sua caracterização na te-
contemporâneas. oria psicanalítica, no contexto da investi-
gação das circunstâncias histórico-
Embora a problemática do desam-
culturais que modulam os sofrimentos
paro seja um horizonte importante da
característicos das novas formas de sub-
metapsicologia, só recentemente ela tem
jetivação.
sido resgatada, principalmente em

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O papel do desamparo na gênese da subjetividade

Enquanto substantivo, o desamparo O desamparo fundamental e originá-


remete a uma desajuda, à impossibili- rio é, de fato, uma condição anterior à ex-
dade do cuidado de um outro. No que re- periência humana individual e
fere à possibilidade de vida social, é constitutiva da ordem social. A civilização
possível remeter esse substantivo a algu- surge, desse modo, de uma necessidade
mas impotências da vida humana. Para de se deslocar de uma condição originá-
Freud (1930/1996), seriam a impotência ria e traumática, limitando as possibilida-
do sujeito diante da violência de outros des de satisfação libidinal e colocando os
homens, a impotência diante das forças sujeitos diante da experiência da angús-
da natureza e a impotência diante da de- tia, da falta e da situação ou experiência
cadência eminente do próprio corpo. A do desamparo. É nesse sentido que de-
cautela para não pensar que essas impo- vem ser entendidas as atribuições feitas
tências são meramente condições que por Freud (1926/1996) ao explicar como
causam experiências de mal-estar e sofri- se dão as representações dos sujeitos no
mento individuais é reconhecer que se deslocamento de objetos para esquivar
trata de condições da própria existência da angústia.
humana. A impossibilidade de ação ou
Como sistematiza Menezes (2012),
até de elaboração psíquica, quando so-
em diversos de seus textos de análise cul-
mos atingidos por alguma destas dire-
tural, Freud atribui à figura do pai a me-
ções, como a violência, a perda, a doença
diação de autoridade simbólica para a
ou o catastrófico, se articula com o de-
possibilidade de vida em sociedade. No
samparo primordial e somos confronta-
caso de Totem e tabu (Freud,
dos de modo mais ou menos direto, com
1913/1996), trata-se da repressão dos
mais ou menos anteparos, com o
impulsos destrutivos e violentos a outros
“trauma do real irrepresentável” (Betts,
homens, graças ao assassinato do pai da
2013, p. 10).

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horda, ou seja, daquele que detinha a fi- relacionamento com outros indivíduos,
gura de pai e protegia a todos. Em Psico- considerado o mais penoso dentre todas
logia de grupos e análise do ego (Freud, as fontes de sofrimento. De acordo com
1921/1996), a figura do pai é o objeto de Mograbi e Herzog, “não há laço social ou
identificação e idealização que constitui pacto simbólico capaz de resguardar o
o vínculo grupal. Já em O futuro de uma sujeito da ação destrutiva do outro”
ilusão (Freud, 1927/1996), a figura de (2006, p. 131) no que tange ao relaciona-
Deus é explanada como uma figura de pai mento entre indivíduos. Portanto, há
protetor, criação dos homens para expli- uma destrutividade sempre presente nos
car os fenômenos da natureza aos quais relacionamentos interpessoais.
eles não podem controlar nem se prote-
Para que seja possível uma vida social
ger. Em ambos os textos, o que está em
minimamente harmoniosa, é necessário
jogo é uma figura de pai que protegerá
que haja uma interiorização de autori-
homens e mulheres, como resposta para
dade simbólica que permita uma vida so-
evitar a revivência traumática da condi-
cial relativamente saudável. A
ção de desamparo fundamental.
interiorização da moralidade é causada,
Em Mal-estar na civilização de acordo com Mograbi e Herzog (2006),
(1930/1996), Freud faz uma reflexão da pelo amor e também pelo terror do su-
condição de desamparo dos indivíduos jeito diante da violência do outro, ou
diante desses diversos temas, nas parti- seja, da desilusão nos pactos simbólicos
cularidades da modernidade, uma cul- entre os homens. A questão da violência
tura em que havia a perda do ideal em como parte constitutiva do laço social
Deus, da figura do pai ideal e protetor. será explicitada posteriormente neste
Essa condição impôs aos indivíduos uma texto; mas cabe dizer por hora que o que
construção psíquica individual para evi- introduz o sujeito na ordem simbólica é
tar o desamparo. uma necessidade de resposta ao desam-
paro estrutural. Ao internalizar a autori-
Ainda nesse texto, Freud discorre so-
dade simbólica, a pulsão de morte é
bre o mal-estar proveniente do
capaz de controlar o sujeito, de modo

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que sua agressividade passe a se mani- Para compreender como se dá essa


festar como sentimento de culpa, de renúncia da relação narcísica para novos
forma a subverter o impulso destrutivo investimentos objetais, é necessário re-
para a autoridade e estar a serviço dela. tornar ao processo de constituição do Eu
Não só a agressividade está em jogo, mas desde seu início. Por enquanto, foi possí-
também a experiência da angústia. vel explicitar brevemente como a condi-
ção estrutural de desamparo permite a
A partir da transição da sociedade
vida civilizatória e o laço social. Contudo,
tradicional para a moderna, os elemen-
ao transpor a relação do desamparo com
tos para efetuar a interiorização da moral
a constituição individual da subjetividade
e da autoridade simbólica tiveram de ser
humana, deve-se considerar uma discus-
alterados. Alguns elementos podem ser
são metapsicológica a respeito dos fenô-
explicitados como mediadores: o Estado,
menos psíquicos.
suas leis e, como longamente investigado
na psicanálise freudiana, os pais. Os pais, A fim de discutir a noção de desam-
como os indivíduos que introduzem um paro em uma perspectiva metapsicoló-
novo sujeito à cultura, servem como figu- gica, parte-se necessariamente da sua
ras ideais, conforme as quais a constru- dimensão inicial na vida humana, ou seja,
ção da subjetivação da criança se a prematuração do aparelho neurológico
estruturará, por meio de identificações do bebê recém-nascido. Essa dimensão
no complexo edipiano: primordial enfatiza tanto uma perspec-
tiva econômica quanto dinâmica dos
Os pais se apresentam como modelos na
efeitos individuais do desamparo. No
medida em que fazem exigências para a
criança, por meio de injunções e proibi-
caso do ponto de vista econômico, se

ções, e ofertam seu amor de acordo com destaca o estado de absoluta dependên-
o cumprimento da lei que impõem. Logo, cia do humano enquanto bebê, visto que
o sujeito deve passar a renunciar a busca ele necessita de auxílio externo para di-
de relação narcísica para que possa haver minuição da tensão interna. Aqui, o de-
novas identificações e investimento obje-
samparo se relaciona com uma condição
tal. (Mograbi & Herzog, 2006, p. 128)
objetiva de impotência, relacionada à

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incapacidade psicomotora do bebê em criança, já que seu aparelho psíquico se


satisfazer suas próprias necessidades vi- encontra num estado muito inicial.
tais (Menezes, 2012). Nesse sentido, a
Esse estágio inicial de vida remete a
dependência aos cuidados maternos é
uma relação, entre criança e mãe, pro-
vista como reflexo da necessidade de am-
fundamente estudada pela Psicanálise,
paro de um desamparo motor-sensorial,
havendo diferenças entre as compreen-
fundante do psiquismo e protótipo de
sões de diferentes psicanalistas. A com-
toda situação traumática.
preensão lacaniana de como se dá esse
No que diz respeito a uma perspec- processo inicial de vida com a presença
tiva dinâmica desse processo inicial de da mãe é particularmente interessante
constituição do eu, enfatiza-se o investi- para a pesquisa em questão. De acordo
mento fundamental que o cuidado ma- com a teoria lacaniana, para que um su-
terno provê para o bebê. Esse jeito possa se constituir, é necessário que
investimento não diz respeito apenas a um outro dê significados para nomear as
um amparo objetivo, mas a um auxílio sensações do bebê, introduzindo-o à lin-
materno que desvela algo de caráter se- guagem, visto o desamparo fundamental
xual, inconsciente e enigmático, para a partir do qual todo ser humano nasce
além da conservação de vida do bebê (Dör, 1991). Esse outro, geralmente a
prematuro (Menezes, 2012). Ao admitir mãe, tem função de Outro, um Outro que
que o sujeito é construído por algo que o inicia a entrada da criança na cultura,
transcende e lhe é exterior, abre-se es- numa relação totalizante com o bebê,
paço para uma nova consideração: o ca- configurando o narcisismo no âmbito do
ráter traumático da construção da estádio do espelho (Lacan, 1966/1998).
sexualidade infantil. Sintetizando a refle- Essa relação, de acordo com a terminolo-
xão, pode-se dizer que a incapacidade de gia lacaniana, é uma relação fálica e oni-
administração da tensão interna do bebê potente, na qual bebê e mãe são apenas
também é um conflito dinâmico, na me- um, numa relação fusionada. Nessa rela-
dida em que o cuidado materno é impas- ção absoluta e não obstante ilusória, to-
sível de simbolização por parte da dos os sofrimentos e perigos da criança

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são protegidos pela mãe que, por sua fundamental no sujeito. A esse respeito,
vez, “sustenta uma ilusão de proteção Menezes (2012) descreve que, se o pro-
absoluta e um objeto idealizado de cesso de desilusão de seu narcisismo pri-
amor” (Menezes, 2012, p. 73). É pela re- mário for realizado por uma função
lação fálica entre mãe e criança que se materna adequada, será possível que a
abre a possibilidade para simbolização, e descoberta da realidade do desamparo
essa relação desvela que a mãe exerce seja uma experiência tolerável. Trata-se
seu papel de proteção em função do de- de um processo de separação da mãe
samparo original, motor e psíquico. com a criança, necessária para que a cri-
ança possa investir em outros objetos.
A relação fálica entre mãe e criança
Nesse sentido, Betts afirma que “a inclu-
deve ser suplantada pela mediação pa-
são do sujeito de desejo no laço social re-
terna, na qual a criança é privada de sua
sulta no estabelecimento da inscrição de
onipotência para com a mãe. Como ex-
uma falta no Outro, e marca um processo
posto na teoria lacaniana, trata-se da cas-
singular, diferencia-do, para cada sujeito,
tração da criança e da mãe, num
mesmo estando entre outros, por fazer
movimento que de fato dá à criança
parte de uma equipe ou de um coletivo”
acesso ao simbólico (Dör, 1991). É con-
(2013, p. 15)
senso que a castração expõe uma falta

Sobre o seu deslocamento contemporâneo

Do ponto de vista da particularidade de imperativo de prazer a todo custo.


do laço social que se forma nas relações Nesse sentido, Betts (2013) retoma La-
sociais atuais, destaca-se que o que se al- can, que diz ser o laço social formado
terou, desde a sociedade moderna, é o pelo discurso, sendo este uma estrutura
surgimento da lógica de consumo desen- linguageira que organiza a comunicação
freado, conjuntamente com uma noção e especifica as relações objetais dos

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sujeitos. Na passagem da modernidade da lógica de consumo. Essa configuração


para a atualidade, o laço social foi-se gra- da relação de objeto é muito diferente da
dativamente organizando de modo mais busca por felicidade na modernidade es-
predominante no discurso do capitalista tudada por Freud. Na modernidade, os
e no discurso da ciência (Betts, 2013). O valores eram outros, pois prevalecia a
que propriamente interessa ao nosso busca do ser, e não do ter. Contudo, o ca-
tema é como esses discursos podem ca- minho tecido pelos homens e pelas mu-
racterizar o mal-estar e as experiências lheres ao longo da época moderna –
de dor dos sujeitos pós-modernos. Por caminho que alcançou a dita pós-moder-
ora, cabe desdobrar os efeitos no mal-es- nidade ou modernidade radicalizada –
tar no que se refere à lógica consumista transformou a relação dos sujeitos com a
contemporânea. Sobre essa questão, autoridade simbólica que interioriza al-
Betts afirma: guma moral para a vida em sociedade. Ao
analisar a cultura atual, vê-se um ritmo
No discurso do capitalista, o sujeito do in-
exigente e destrutivo dos mercados, cri-
consciente, sujeito de desejo, é visto ex-
clusivamente segundo sua potência fálica
ses econômicas mundiais recentes e

de consumidor manipulável pelo marke- constantes, assim como uma perda de


ting, alienável no gozo de consumo dos garantias no Estado e no coletivo. Há um
objetos ofertados. É o discurso do analista grande sentimento de impotência pe-
que vem recolher pela escuta o sujeito de rante essa conjuntura, observando-se
desejo foracluído pela universalização (...)
uma perda da subjetividade interiorizada
que o discurso do capitalista cala pela
das pessoas (Salles & Ceccarelli, 2012).
mercantilização do desejo com a oferta de
Ora, essa perda de subjetividade está jus-
consumo de toda sorte de objetos que fa-
zem semblante ao obscuro objeto do de-
tamente acoplada nessa nova visão de

sejo. (2013, p. 13-14) sujeito: um sujeito cujo prazer somente é

Afirmar que o sujeito do inconsciente reconhecido se estiver inserido numa or-

se reduz à sua capacidade de consumir dem consumista. É importante distinguir

significa afirmá-lo enquanto sujeito ex- o consumismo a que se refere ao carac-

cluído de qualquer desejo que se desvie terizar a busca contemporânea pela

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felicidade. Não se trata somente da aqui- subjetivas do registro dentro-de-si, da re-


sição de bens de consumo, mas sim de flexão interna do sujeito sobre si mesmo,
uma relação consumista entre os sujeitos e uma prevalência da cultura da imagem.
da atualidade. Para que se possa apro- O outro é um objeto a ser consumido a
fundar a compreensão desse fenômeno, fim de valorizar a própria imagem.
cabe voltar às proposições de Joel Bir-
Esses elementos permitem afirmar
man, em suas considerações acerca do
uma diferença comparativa importante
mal-estar na atualidade.
entre a relação que se faz com o desam-
Quando Birman (2000) discorre so- paro estrutural da subjetividade humana
bre uma estetização, a todo custo, do eu na contemporaneidade e na moderni-
e a uma exigência infinita da perfor- dade. Se, para a procura do prazer, ou,
mance, ele está afirmando uma confusão melhor dizendo, para a fuga do despra-
entre ser e parecer. Na projeção de si zer, o sujeito moderno devia reprimir
para o mundo, o sujeito somente se reco- suas pulsões destrutivas, internalizando
nhece pelo olhar do outro. O outro é re- o sentimento de culpa para um bem-es-
sumido, portanto, a um espectador. tar de critérios éticos, a relação se inverte
Nesse sentido, amplia-se a compreensão na contemporaneidade, predominando
do argumento de que as relações sociais um bem-estar ditado por critérios estéti-
atuais se constituem a partir de uma di- cos. Na atualidade, o sentimento de
nâmica na qual a alteridade é negada, culpa está vinculado à impossibilidade de
numa prevalência de relação de vínculo se inserir como sujeito da performance e
narcísico. Se o reconhecimento da alteri- do consumo, e as pulsões devem ser sa-
dade se constitui de uma diferenciação tisfeitas a qualquer custo, justamente
entre o eu e o outro, vê-se que esse reco- para que não haja encontro com a angús-
nhecimento não está mais em jogo para tia e com o desamparo. De acordo com
a felicidade dos sujeitos contemporâ- Freud (1930/1996), a busca pelo prazer
neos, visto que o outro é meramente um está muito mais atrelada à fuga do des-
espectador que reflete a imagem de si. prazer e do sofrimento. Nesse sentido,
Há um esvaziamento das experiências pouco ou nada mudou. Ainda somos

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fundamentalmente desamparados, seja liberdade para a concretização da felici-


na necessidade de laço social e de am- dade. Na atualidade, como afirmou Bau-
paro na vida infantil seja na efetivação da man (1998), a dinâmica se inverte: a
construção da vida civilizada e da sexua- busca agora é pelo risco.
lidade individual. O que distingue a atua-
Nesse mesmo sentido, Birman afirma
lidade da modernidade está nos objetos
que ser sujeito na pós-modernidade é
e ideais à nossa oferta e, como efeito, a
“ter de recomeçar insistentemente seu
demanda que fazemos dos objetos ofer-
percurso singular, ter de lidar com seu
tados. Nas palavras de Saroldi: “Se a soci-
desamparo em um mundo em que uni-
edade da produção precisava de um
versalidade e totalidade não mais exis-
supereu que barrasse o gozo manipu-
tem” (2000, p. 95). A perda dessa
lando a culpa, a sociedade de consumo
referência espaço-temporal diz respeito,
precisa de um supereu que incite ao gozo
portanto, a uma perda de reconheci-
ilimitado e que, por isso mesmo, não
mento do outro, manifesta por um indi-
pode ser satisfeito por nenhum objeto
vidualismo excessivo e uma falta de
possível” (2015, p. 136-137).
garantias da vida coletiva em geral, inclu-
O trecho citado indica outro fator indo o Estado, a religião e o bem-estar so-
presente na busca por felicidade contem- cial. Os indivíduos contemporâneos
porânea e que é de nosso interesse. Con- estão, portanto, fadados a pagar pelo
juntamente à lógica consumista de preço do prazer que demandam, cus-
investimento objetal, caracteriza-se uma tando-lhes cada vez mais segurança. Que
busca incessante por prazer. Essa refle- efeitos essa falta de segurança gera nos
xão é inevitavelmente uma questão que sujeitos? Fortes responde:
envolve a relação dos sujeitos com o de-
A insegurança e a liquidez das coisas ge-
samparo fundante da vida humana. A es-
ram imediatismo e falta de perspectiva de
colha moderna, para lidar com sua futuro. (...) O indivíduo é obrigado a se de-
condição estrutural, foi de renunciar ao frontar com uma vulnerabilidade advinda
prazer para prover-se de maior segu- de um mundo sem amparo, pois é difícil
rança, enquanto retirava considerável pensar de onde este último pode vir em

REVISTA DE PSICOLOGIA DA UNESP, 19 (1), 2020 79


O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico

uma sociedade que se torna cada vez mais experiência traumática (Marin, 2002).
uma “sociedade de indivíduos”, ou seja, Pela perspectiva da psicanálise francesa
quais seriam as formas possíveis de prote-
contemporânea, pode-se dizer que o
ção em uma sociedade “pós-proteção”,
bebê é violentado pelo discurso, pelas
pós Estado da previdência (...). (2009, p.
significações que a mãe lhe dá. A violên-
1137)
cia aparece, novamente, na necessidade
Ao utilizar a expressão sociedade de
de reconhecer “um mundo em confronto
indivíduos, a autora aponta que, para
com sua psique: reconhecer um espaço
além de se inverter a lógica do domínio
separado do próprio” (Marin, 1998, p. 3).
do público para o privado, a esfera do pri-
Trata-se da constituição do reconheci-
vado coloniza e esvazia a esfera do pú-
mento da alteridade. Ao mesmo tempo
blico. Mais que isso, a autora aponta para
que todo esse processo de construção da
a fragilidade das relações sociais atuais,
subjetividade permite investimentos ob-
visto que as pessoas se tornam cada vez
jetais alteritários, permitindo uma rela-
mais responsáveis individualmente pelos
ção criativa com o mundo, deve-se
riscos que a sobrevivência lhes coloca, e
admitir o caráter violento e traumático
o que seria tarefa coletiva está subjugada
nessa constituição.
à tarefa individual. Essa fragilidade se re-
laciona com um último aspecto da carac- O trabalho de Marin (1998, 2002)
terização das particularidades do laço aprofunda a questão da violência en-
social contemporâneo e de sua relação quanto quinhão imprescindível para o
com o desamparo. Trata-se da relação laço social, com base em duas dimensões
entre violência e laço social. que, na perspectiva da pesquisadora, in-
teressam à caracterização do desamparo
Pelo que foi descrito até então, pode-
contemporâneo e à sua diferenciação do
se entender que a violência é elemento
desamparo moderno. Para a autora, há
constitutivo do laço social. A internaliza-
um paradoxo entre a negação da violên-
ção da autoridade simbólica e a interiori-
cia e suas intensas manifestações na so-
zação da moral também têm um caráter
ciedade contemporânea.
destrutivo e violento, na medida em que
a entrada do bebê na cultura é uma

REVISTA DE PSICOLOGIA DA UNESP, 19 (1), 2020 80


O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico

Como é que quando o que mais assusta o e destrutivas dos sujeitos se manifestem
homem é o ter que assumir ser violento – como sentimento de culpa, colocando a
tendo que reprimir e frustrar, assumindo
destrutividade do sujeito a favor da auto-
o lugar da lei e da ordem (...) – maiores
ridade e da vida coletiva. Ora, se o que
têm sido as manifestações de violência
está em jogo na contemporaneidade é
em nossa sociedade? (...) O que penso é
um imperativo de prazer individual so-
que quanto mais se procura negar a vio-
lência – a presença do outro na relação breposto à coletividade, percebe-se que
com cada um, ousando assumir e deter- a internalização da autoridade simbólica
minar o lugar que esse um ocupa frente foi suplantada pela satisfação das pul-
ao desejo daquele outro – mais se aban- sões. Ao mesmo tempo que se pinta um
donam os sujeitos aos seus próprios im-
mundo onde a satisfação do prazer é bela
pulsos, à ilusão de ser onipotente.
e nega-se a experiência de dor que a vio-
Certamente a reação onipotente é uma
lência acarreta, o imperativo de prazer a
resposta possível frente a situação de de-
samparo à qual é submetida o homem
todo custo da sociedade contemporânea

contemporâneo. Para esse indivíduo, a viabiliza a satisfação de pulsões destruti-


ideia de submissão ao outro é insuportá- vas.
vel. Rompem-se laços sociais. Estar só
Por outro lado, a falha nas identifica-
acaba por tornar-se o modelo ideal da ma-
turidade. (Marin, 1998, p. 3) ções alteritárias estruturantes fomenta

Quando a psicanalista afirma as ten- não só modalidades de simbolização

tativas de evitar assumir ser violento e as- mais concretas como também problemá-

sumir o lugar de lei do sujeito ticas na constituição da unidade do Eu e

contemporâneo, ela está apontando dos seus ideais, levando ao espectro nar-

para uma relação contemporânea do su- císico das manifestações psicopatológi-

jeito para com a autoridade simbólica. cas e também às chamadas

Como já foi exposto, a autoridade simbó- problemáticas narcísico-identitárias

lica é intrinsecamente relacionada à ne- (Roussillon, 2012), a saber, sofrimento li-

cessidade de repressão das pulsões do gado à difusão identitária própria da pós-

indivíduo para a possibilidade de vida so- modernidade. Em especial, elas indicam

cial. Ela requer que as pulsões agressivas falhas na constituição do registro

REVISTA DE PSICOLOGIA DA UNESP, 19 (1), 2020 81


O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico

alteritário fundamental à subjetividade, vertente mais winnicottiana e remon-


que implica, do ponto de vista psicanalí- tando a Ferenczi, indicam o registro sub-
tico, a ligação do traumatismo pulsional jetivo das agonias impensáveis como
em libido e, portanto, operações de ero- experiências afetivas próprias do sofri-
geneização e de vinculação, que permi- mento contemporâneo, em que a dimen-
tem que o sofrimento se coloque no são do apelo alteritário também se
âmbito propriamente do desamparo. encontra comprometida.
Nesse sentido, ganha destaque a propo-
De todo modo, podemos, por essa
sição de Birman (2012) acerca da prepon-
perspectiva, evidenciar o paradoxo da re-
derância do registro da dor psíquica em
lação da sociedade atual com a violência
detrimento do sofrimento. Entende-se
e com o desamparo: por um lado, são ex-
por dor psíquica aqui o puro transborda-
periências constantemente recusadas e
mento traumático da pulsão para além
negadas no registro da interações sociais;
das possibilidades de simbolização ou
por outro lado, a impossibilidade de seu
vinculação, colocando inclusive o sujeito
reconhecimento infiltra-se nos vínculos
aquém da posição de se sentir desampa-
sociais, produzindo irrupções traumáti-
rado, na medida em que a intuição da ca-
cas que acabam por reforçar saídas de re-
pacidade do “outro” (tanto em sua
asseguramento e de individualização da
dimensão intersubjetiva quanto estrutu-
ordem do narcisismo secundário, o que
ral) em socorrer e a própria constituição
dificulta o reconhecimento da alteridade
de um apelo em direção a ele se veem
e assim por diante, em um ciclo vicioso e
comprometidos. Para Birman (2014),
pernicioso.
essa posição de sofrimento própria da
dor, que se constitui e se mantém aquém Ainda sobre a interiorização da auto-
do registro alteritário, seria denominado ridade simbólica contemporânea, é inte-
de desalento, em oposição ao desam- ressante aprofundá-la em suas
paro. Na mesma direção encontramos expressões concretas, no sentido de
também o trabalho de Figueiredo e Coe- avançar na consideração das possibilida-
lho Junior (2018) que, a partir de uma des de saída e gestão do mal-estar na

REVISTA DE PSICOLOGIA DA UNESP, 19 (1), 2020 82


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atualidade. Isso implica, por um lado, po- como a constituição do psiquismo e do


der endossar uma posição de crítica e de laço social se dão, considerando a relação
resistência (Birman, 2005), mas, por ou- do desamparo físico (objetivo) e do de-
tro, poder avançar nos dispositivos e samparo psíquico (subjetivo) no contexto
ações que têm sido produzidos no movi- de um desamparo ontológico (estrutu-
mento de ampliação da clínica psicanalí- ral). Além disso, procurou-se indicar que
tica para além do modelo psicoterápico essa condição de desamparo remete ins-
tradicional. Por sua vez, essa reflexão de- trinsicamente ao registro alteritário e das
pende e fomenta a discussão sobre os relações de objeto, por meio de uma po-
fundamentos propriamente metapsico- sição subjetiva que é fundamentalmente
lógicos de como entender as dinâmicas da ordem afetiva, ou seja, que é nas rela-
subjetivas individuais contemporâneas. ções com os outros e por meio da afetivi-
dade que podemos ser violentados,
A contribuição específica deste artigo
seduzidos e encontrar salvação, reto-
à discussão se deu na tentativa de cir-
mando o espírito seminal das afirmações
cunscrever o desamparo como noção
freudianas.
fundamental psicanalítica, indicando

Considerações finais

Tendo em vista o exposto, parece- ultrapassamento das balizas da moderni-


nos razoável sustentar que a ampliação e dade ocidental.
o aprofundamento na compreensão do
Contudo, há ainda algumas lacunas
desamparo em psicanálise levam à sua
em relação à delimitação do desamparo
afirmação como categoria afetiva funda-
em termos mais específicos e aprofunda-
mental da subjetividade humana, de im-
dos. No decorrer de nossa revisão da lite-
portância paradigmática para o seu
ratura, pudemos perceber que o
estudo no contexto sociocultural da atu-
desamparo é muitas vezes indicado em
alidade, marcada pelo aprofundamento e
sua superficialidade – como, por

REVISTA DE PSICOLOGIA DA UNESP, 19 (1), 2020 83


O desamparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade: um ensaio psicanalítico

exemplo, apontar o desamparo como desamparo, para apontar saídas mais


“uma das marcas do nosso tempo”, sem saudáveis e criativas para as escolhas in-
considerar que o desamparo é, propria- dividuais.
mente, marca de qualquer tempo hu-
Em suma, é preciso sair de uma dis-
mano. Nota-se também que o
cussão ontológica ou ética geral sobre a
desamparo é utilizado ora como modo de
subjetividade humana, para assumir a
substantivar uma condição fundamental
sua operacionalização técnica na escuta
de despreparo para a vida ora como ma-
e na prática dos psicanalistas, tanto na
neira de adjetivar uma manifestação de
clínica padrão quanto em sua dimensão
falta de ajuda ou de garantias na vida do
ampliada – uma clínica do desamparo. As
indivíduo – o estar desamparado. Enten-
pesquisas e os estudos acerca do desam-
demos que a face do desamparo que
paro enquanto condição e em suas espe-
mais deve ser aprofundada em estudos
cificidades contemporâneas devem
seguintes é o reconhecimento de sua im-
prosseguir, visto que se notou grande im-
portância para investimentos objetais fu-
portância do tema para a compreensão
turos. Melhor dizendo, a necessidade de
das relações sociais prevalentes na atua-
trazer esse conceito para a prática psica-
lidade e das possibilidades de atuação
nalítica, no sentido de usufruir o que a
do(a) psicólogo(a) e do(a) psicanalista.
Psicanálise tem a dizer sobre o

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