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Érico Bruno Viana Campos, Amanda Nunes da Silva – Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (UNESP)
Resumo: Este artigo consiste em um ensaio teórico psicanalítico, com o objetivo de caracterizar o de-
samparo como categoria afetiva fundamental do mal-estar na atualidade. Os resultados mostram que
o desamparo precisa ser caracterizado como categoria afetiva da subjetividade humana, em três di-
mensões: objetiva, de natureza constitucional biológica; psíquica, de natureza psíquica singular e sub-
jetiva; estrutural, de natureza ontológica e ética. Destacam-se dois eixos de discussão: (1) a
importância do desamparo na gênese da subjetividade e sua relação com a violência; (2) as modifica-
ções no laço social contemporâneo, que trazem o desamparo para o centro da dinâmica defensiva do
aparelho psíquico, com uma tonalidade afetiva que se desloca do âmbito da castração e da culpa para
a dor e o luto. Conclui-se que, para além das caracterizações do desamparo como condição e como es-
tado, é preciso avançar na direção do manejo técnico e interventivo e, portanto, construir mais efeti-
vamente uma clínica do desamparo.
and mourning. It is concluded that beyond helplessness characterization as a condition and as a state,
it is necessary to move towards technical and interventional management and, therefore, to construct
a clinic of helplessness more effectively.
Introdução
modernidade (Birman, 2005). Segundo a função das demandas próprias dos mo-
proposta específica de Joel Birman (2000, dos contemporâneos de constituição da
2005, 2012), haveria um enfraqueci- subjetividade e de seus reflexos psicopa-
mento do registro dentro-de-si e uma va- tológicos, com destaque para a ansie-
lorização do fora-de-si como parâmetro dade generalizada na forma de pânico
instituinte dos modos de subjetivação da (Pereira, 1999; Menezes, 2006) ou no es-
atualidade, implicando a valorização de vaziamento subjetivo e no tédio, próprios
um modelo de sujeito voltado para a per- da relação com a morte e nas depressões
formance e exaltação de seu eu no exte- na atualidade (Campos, 2013, 2016). Por-
rior. Considerando esse modo de ser tanto, a problematização do desamparo
característico da contemporaneidade reaparece justamente na medida em que
agregado à falha de simbolização nas re- as particularidades das relações sociais
lações de vínculo narcísico, produz-se da atualidade provocam novos efeitos na
uma nova caracterização do sofrimento. angústia e no enfrentamento da dor e do
A literatura psicanalítica sobre esse as- mal-estar, demonstrando um rearranjo
sunto tem abordado a especificidade das na caracterização das formas de sofri-
relações interpessoais e do vínculo social, mento humano e apontando possíveis
ancorada na ideia de uma crise da função saídas para essas experiências de dor,
e da imago paterna na atualidade luto e castração. Nesse sentido, o pre-
(Pombo, 2018), fomentando a constitui- sente ensaio visa a indicar o desamparo
ção de um laço social perverso (Poli, como categoria afetiva fundamental do
2004) e de formas características de so- mal-estar na atualidade, por meio de
frimento, as chamadas psicopatologias uma revisão de sua caracterização na te-
contemporâneas. oria psicanalítica, no contexto da investi-
gação das circunstâncias histórico-
Embora a problemática do desam-
culturais que modulam os sofrimentos
paro seja um horizonte importante da
característicos das novas formas de sub-
metapsicologia, só recentemente ela tem
jetivação.
sido resgatada, principalmente em
horda, ou seja, daquele que detinha a fi- relacionamento com outros indivíduos,
gura de pai e protegia a todos. Em Psico- considerado o mais penoso dentre todas
logia de grupos e análise do ego (Freud, as fontes de sofrimento. De acordo com
1921/1996), a figura do pai é o objeto de Mograbi e Herzog, “não há laço social ou
identificação e idealização que constitui pacto simbólico capaz de resguardar o
o vínculo grupal. Já em O futuro de uma sujeito da ação destrutiva do outro”
ilusão (Freud, 1927/1996), a figura de (2006, p. 131) no que tange ao relaciona-
Deus é explanada como uma figura de pai mento entre indivíduos. Portanto, há
protetor, criação dos homens para expli- uma destrutividade sempre presente nos
car os fenômenos da natureza aos quais relacionamentos interpessoais.
eles não podem controlar nem se prote-
Para que seja possível uma vida social
ger. Em ambos os textos, o que está em
minimamente harmoniosa, é necessário
jogo é uma figura de pai que protegerá
que haja uma interiorização de autori-
homens e mulheres, como resposta para
dade simbólica que permita uma vida so-
evitar a revivência traumática da condi-
cial relativamente saudável. A
ção de desamparo fundamental.
interiorização da moralidade é causada,
Em Mal-estar na civilização de acordo com Mograbi e Herzog (2006),
(1930/1996), Freud faz uma reflexão da pelo amor e também pelo terror do su-
condição de desamparo dos indivíduos jeito diante da violência do outro, ou
diante desses diversos temas, nas parti- seja, da desilusão nos pactos simbólicos
cularidades da modernidade, uma cul- entre os homens. A questão da violência
tura em que havia a perda do ideal em como parte constitutiva do laço social
Deus, da figura do pai ideal e protetor. será explicitada posteriormente neste
Essa condição impôs aos indivíduos uma texto; mas cabe dizer por hora que o que
construção psíquica individual para evi- introduz o sujeito na ordem simbólica é
tar o desamparo. uma necessidade de resposta ao desam-
paro estrutural. Ao internalizar a autori-
Ainda nesse texto, Freud discorre so-
dade simbólica, a pulsão de morte é
bre o mal-estar proveniente do
capaz de controlar o sujeito, de modo
ções, e ofertam seu amor de acordo com destaca o estado de absoluta dependên-
o cumprimento da lei que impõem. Logo, cia do humano enquanto bebê, visto que
o sujeito deve passar a renunciar a busca ele necessita de auxílio externo para di-
de relação narcísica para que possa haver minuição da tensão interna. Aqui, o de-
novas identificações e investimento obje-
samparo se relaciona com uma condição
tal. (Mograbi & Herzog, 2006, p. 128)
objetiva de impotência, relacionada à
são protegidos pela mãe que, por sua fundamental no sujeito. A esse respeito,
vez, “sustenta uma ilusão de proteção Menezes (2012) descreve que, se o pro-
absoluta e um objeto idealizado de cesso de desilusão de seu narcisismo pri-
amor” (Menezes, 2012, p. 73). É pela re- mário for realizado por uma função
lação fálica entre mãe e criança que se materna adequada, será possível que a
abre a possibilidade para simbolização, e descoberta da realidade do desamparo
essa relação desvela que a mãe exerce seja uma experiência tolerável. Trata-se
seu papel de proteção em função do de- de um processo de separação da mãe
samparo original, motor e psíquico. com a criança, necessária para que a cri-
ança possa investir em outros objetos.
A relação fálica entre mãe e criança
Nesse sentido, Betts afirma que “a inclu-
deve ser suplantada pela mediação pa-
são do sujeito de desejo no laço social re-
terna, na qual a criança é privada de sua
sulta no estabelecimento da inscrição de
onipotência para com a mãe. Como ex-
uma falta no Outro, e marca um processo
posto na teoria lacaniana, trata-se da cas-
singular, diferencia-do, para cada sujeito,
tração da criança e da mãe, num
mesmo estando entre outros, por fazer
movimento que de fato dá à criança
parte de uma equipe ou de um coletivo”
acesso ao simbólico (Dör, 1991). É con-
(2013, p. 15)
senso que a castração expõe uma falta
uma sociedade que se torna cada vez mais experiência traumática (Marin, 2002).
uma “sociedade de indivíduos”, ou seja, Pela perspectiva da psicanálise francesa
quais seriam as formas possíveis de prote-
contemporânea, pode-se dizer que o
ção em uma sociedade “pós-proteção”,
bebê é violentado pelo discurso, pelas
pós Estado da previdência (...). (2009, p.
significações que a mãe lhe dá. A violên-
1137)
cia aparece, novamente, na necessidade
Ao utilizar a expressão sociedade de
de reconhecer “um mundo em confronto
indivíduos, a autora aponta que, para
com sua psique: reconhecer um espaço
além de se inverter a lógica do domínio
separado do próprio” (Marin, 1998, p. 3).
do público para o privado, a esfera do pri-
Trata-se da constituição do reconheci-
vado coloniza e esvazia a esfera do pú-
mento da alteridade. Ao mesmo tempo
blico. Mais que isso, a autora aponta para
que todo esse processo de construção da
a fragilidade das relações sociais atuais,
subjetividade permite investimentos ob-
visto que as pessoas se tornam cada vez
jetais alteritários, permitindo uma rela-
mais responsáveis individualmente pelos
ção criativa com o mundo, deve-se
riscos que a sobrevivência lhes coloca, e
admitir o caráter violento e traumático
o que seria tarefa coletiva está subjugada
nessa constituição.
à tarefa individual. Essa fragilidade se re-
laciona com um último aspecto da carac- O trabalho de Marin (1998, 2002)
terização das particularidades do laço aprofunda a questão da violência en-
social contemporâneo e de sua relação quanto quinhão imprescindível para o
com o desamparo. Trata-se da relação laço social, com base em duas dimensões
entre violência e laço social. que, na perspectiva da pesquisadora, in-
teressam à caracterização do desamparo
Pelo que foi descrito até então, pode-
contemporâneo e à sua diferenciação do
se entender que a violência é elemento
desamparo moderno. Para a autora, há
constitutivo do laço social. A internaliza-
um paradoxo entre a negação da violên-
ção da autoridade simbólica e a interiori-
cia e suas intensas manifestações na so-
zação da moral também têm um caráter
ciedade contemporânea.
destrutivo e violento, na medida em que
a entrada do bebê na cultura é uma
Como é que quando o que mais assusta o e destrutivas dos sujeitos se manifestem
homem é o ter que assumir ser violento – como sentimento de culpa, colocando a
tendo que reprimir e frustrar, assumindo
destrutividade do sujeito a favor da auto-
o lugar da lei e da ordem (...) – maiores
ridade e da vida coletiva. Ora, se o que
têm sido as manifestações de violência
está em jogo na contemporaneidade é
em nossa sociedade? (...) O que penso é
um imperativo de prazer individual so-
que quanto mais se procura negar a vio-
lência – a presença do outro na relação breposto à coletividade, percebe-se que
com cada um, ousando assumir e deter- a internalização da autoridade simbólica
minar o lugar que esse um ocupa frente foi suplantada pela satisfação das pul-
ao desejo daquele outro – mais se aban- sões. Ao mesmo tempo que se pinta um
donam os sujeitos aos seus próprios im-
mundo onde a satisfação do prazer é bela
pulsos, à ilusão de ser onipotente.
e nega-se a experiência de dor que a vio-
Certamente a reação onipotente é uma
lência acarreta, o imperativo de prazer a
resposta possível frente a situação de de-
samparo à qual é submetida o homem
todo custo da sociedade contemporânea
tativas de evitar assumir ser violento e as- mais concretas como também problemá-
contemporâneo, ela está apontando dos seus ideais, levando ao espectro nar-
Considerações finais
Referências
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