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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PSICOPATOLOGIA II
PROFESSOR AMADEU DE OLIVEIRA WEINMANN

MARINA GOMES KIRST

Reflexões acerca do transtorno de personalidade borderline.

PORTO ALEGRE
2021
MARINA GOMES KIRST
Introdução
O aumento da incidência de casos borderline, ou casos limítrofes, na clínica
contemporânea é um fato reconhecido. Tratam-se de pacientes que parecem estar em um
espaço nas bordas de estruturas psicanalíticas clássicas, isto é: neurose e psicose. No
entanto, formam uma classe independente. Otto Kernberg (apud Jacques, 2015) foi o
primeiro a cunhar o termo “organização borderline de personalidade”, descrevendo
pacientes que apresentavam uma organização patológica da personalidade que é estável
e específica e não um transtorno que oscilaria entre neurose e psicose. Este autor
apresentou três critérios diagnósticos:1) a difusão da personalidade pela falta de
integração do self e pela falta do conceito de outras pessoas; 2) mecanismo de defesa
baseado na dissociação; 3) teste de realidade preservado, o que não ocorre na psicose.
Zizek (1986) descreve o surgimento dos casos borderline na clínica norte-
americana nos anos 40 e 50. Segundo ele, eram casos que não pareciam se tratar de
psicose, pois os pacientes preservavam um laço social de forma relativamente bem-
sucedida e não perdiam o contato com a realidade como é típico nos casos psicóticos
(embora, segundo Freud (1924a), a perda da realidade se dá de formas diferentes tanto
na neurose quanto na psicose). Por outro lado, não eram simples casos de neurose, pois
os pacientes de fato apresentavam alguns sintomas psicóticos: ideias paranoicas,
mecanismos de defesa primitivos (cisão, negação de aspectos da realidade, etc) e,
particularmente, narcisismo patológico acentuado.
Atualmente, o DSM-V assim descreve o transtorno de personalidade borderline:
“Um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos
afetos e de impulsividade acentuada que surge no início da vida adulta e está presente
em vários contextos (...)” (p. 663), apontado sintomas como esforços desesperados para
evitar abandono real ou imaginado; padrão de relacionamentos instáveis caracterizados
pela alternância entre idealização e desvalorização; instabilidade da autoimagem ou da
percepção de si mesmo; impulsividade autodestrutiva; recorrência de comportamento,
gestos ou ameaças suicidas ou comportamento auto-mutilante; instabilidade afetiva
devida a uma relatividade acentuada de humor; sentimentos crônicos de vazio; raiva
intensa e inapropriada; ideação paranoide transitória associada a estresse ou sintomas
dissociativos intensos.
É sempre importante pensarmos as psicopatologias de uma época como
mensageiras das questões enfrentadas coletivamente, reações às dinâmicas sociais
geradoras de adoecimento. Safra (2021) associa os crescentes casos borderline com o
atual mundo globalizado que “(…) esfacela tradições e culturas e esgarça o sentido da
vida, produzindo intenso desenraizamento do ser humano nunca visto antes. Dessa
forma, muitos são aqueles que, hoje em dia, tentam equilibrar-se em suas cercas, em
seus fiapos de sentidos, fugindo do abismo da não-existência e do não-sentido.” (p. 13-
14). É interessante notar a recorrência de termos como vazio, não-existência, não-sentido
quando esse tema está sendo abordado, como veremos adiante.
No presente trabalho, retomarei algumas formulações de Freud acerca da distinção
entre neurose e psicose para depois pensar sobre o funcionamento dos pacientes
diagnosticados com transtorno de personalidade borderline e, especialmente, de acordo
com leituras de Winnicott - autor que contribuiu muito para o pensamento psicanalítico
acerca dessas categorias fronteiriças.

Neurose e psicose em Freud


É sabido que a psicanálise nasceu, no final do século XIX, a partir do contato de
Freud com as pacientes histéricas, quando surge o germe da teorização acerca das
neuroses. Os conteúdos inconscientes recalcados pelo ego poderiam manifestar-se
através da fala e serem interpretados no contexto da relação transferencial estabelecida
em análise. Somente décadas depois o pai da psicanálise escreveu sobre uma teoria das
psicoses.
No texto Neurose e Psicose (1924a), Freud escreve que “a neurose é o resultado
de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um
distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo” (p. 189). Assim, na
psicose, ao perder o contato com aspectos da realidade externa devido a alguma grande
frustração, o ego criaria uma nova realidade, um novo mundo de acordo com as pulsões
desejosas do id. Por fim, o autor escreve que “resta a considerar a questão de saber qual
é o mecanismo, análogo à repressão, por cujo intermédio o ego se desliga do mundo
externo.” (id., p. 193). Em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (1924b), Freud
explica os sintomas alucinatórios como formas da psiquê conseguir para si novas
percepções que correspondam à nova realidade. Em outras palavras, o sujeito cria uma
ficção autorreferente na tentativa de remendar o buraco, isto é, o trauma que ele tem de
enfrentar.
Tanto na neurose, quanto na psicose, o ego é caracterizado como intermediador
entre o id e a realidade externa. É justamente essa relação dupla com o pulsional e com
as demandas do mundo que inspirará a conceitualização de Winnicott acerca do falso
self.
Winnicott e o falso self
O falso self surge, justamente, como barreira defensiva face ao ambiente ou face
às próprias pulsões instintivas na constituição do sujeito psíquico. O verdadeiro self – o
gesto espontâneo e criativo do bebê – é protegido por essa barreira de cair nas chamadas
angústias impensáveis, isto é: “retornar a um estado de não integração; cair para sempre
num vazio sem fundo; a estranheza em relação ao próprio corpo, sentido como não
próprio; a perda do sentido de realidade; a perda da capacidade de relacionar-se com
objetos; o completo isolamento, sem qualquer forma de comunicação.” (Ribeiro, Ribeiro,
Silva e Doellinger, 2016, p. 47). O falso self pode manifestar-se de forma dita saudável
quando é simplesmente a face social do ego, uma certa autotraição necessária (Neto,
2010). Em situações patológicas, essa cisão do self torna-se significante.
Neto (2007; 2010) diferencia a personalidade esquizoide da personalidade “como
se”, esta última característica dos transtornos borderline. O esquizoide seria o sujeito que,
quando infante, conseguiu constituir um mundo interno de fenômenos subjetivos, pessoal
e privado que lhe parece mais real do que a realidade. O contato com a realidade externa,
que é obscurecida, se dá através do falso self, numa relação de submissão. Já a
personalidade “como se”, inspirada nas formulações de Helen Deutsch, diz respeito ao
sujeito que não sucedeu em constituir o objeto subjetivo, ficando submetido ao
desempenho do falso self com o ambiente. Assim, essa personalidade se caracteriza pelo
nível das aparências – amálgama de múltiplas mimetizações, identificações e introjeções
alienadas de necessidades e desejos autênticos. Vazio e falta de individualidade marcam
a experiência dos indivíduos “como se”.
O falso self nos indivíduos “como se” é mais fortificado do que nos esquizoides e,
portanto, experiências de desintegração (surto psicótico) são mais raras, pois há um
grande investimento psíquico no sentido de preservar e recuperar essa casca protetora.
No entanto, Neto (2010) aponta a possibilidade de transição do paciente borderline para
uma dinâmica mais esquizoide, ao ser criado, em análise, um mundo subjetivo mais rico.
Ademais, Neto (2007) aponta para as peculiaridades na clínica com pacientes
borderline. O setting psicanalítico e o manejo do analista será imprescindível para a
análise, pois o que para o neurótico surge como símbolo, para o borderline surge como
regressão – o presente volta ao passado, aos processos primários dos estágios de
dependência, podendo ser revividos forma reparadora na relação transferencial. Trata-se,
de certa forma, de o analista sustentar a função materna.

Vínculo e vazio
O que Winnicott descreve, no paciente borderline, como a relação do falso self com
o ambiente exterior, pode ser pensado através dos sintomas típicos dessa psicopatologia.
Os relacionamentos intersubjetivos instáveis que oscilam entre a valorização e a
desvalorização parecem não permitir ambiguidades na representação do outro como
objeto. Garcia (2007) explica como a onipresença do objeto intrusivo e a inacessibilidade
do objeto idealizado impedem a construção de representações do objeto, pois a ausência
enquanto presença em potencial não se constitui. Isso faz sentido quando pensamos em
um infante que estava submetido a um ambiente intrusivo e/ou faltoso. Fica-se em um
impasse de vinculação e disjunção, face à constante ameaça de fusão regressiva. Zizek
(1986) escreve que quando um sujeito borderline considera uma pessoa boa e ruim, ele
resolve essa dicotomia criando uma cisão temporal: por um tempo, o objeto é bom,
depois, ele se tornará o extremo oposto. Isso ocorre porque o ego desse sujeito não está
suficientemente integrado (habita sempre a superfície do self), portanto ele pode sustentar
crenças libidinais contraditórias. Este sujeito dá a impressão de experienciar o outro como
uma “marionete”, sendo incapaz de uma relação intersubjetiva plena.
Andre Green (apud Garcia, 2007) escreve sobre características desses sintomas
fronteiriços: a futilidade, a falta de consciência de presença e o contato limitado como
expressões do vazio. Esse sentimento de vazio pode ser sentido como “radical,
engolfante e aniquilador”. Para esclarecer esse ponto, cito a diferenciação de Zizek (2013)
entre o vazio e o nada. O nada é localizado, como quando dizemos “não há nada aqui” -
uma dessatisfação específica. O vazio é uma dimensão sem limites, presente na psicose
como despersonalização e perda da realidade. Green (apud Garcia, 2007) aponta a
necessidade de haver o apagamento do objeto absolutamente necessário (objeto primário
mãe), de maneira a possibilitar a trajetória desejante e o pensamento. Em outras
palavras, é necessário colocar uma moldura sob o vazio engolfante da função materna,
uma moldura que permita criar o nada que é pré-condição do desejo.
Assim, é preciso pensar nas possibilidades do trabalho analítico de proporcionar ao
paciente a regressão e a reelaboração de experiências primárias, de modo que a relação
com o outro, no lugar de ser algo totalizante em que o sujeito se perde em estados
fusionais ou do qual precisa se defender, possa tomar uma forma mais sutil, ambígua, que
compreenda a dança entre ausência e presença. Talvez seja necessário que esse “nada”
emerja para dar espaço à expressão do verdadeiro self winnicottiano, isto é: para que as
pulsões instintivas possam encontrar destino, sem apresentarem ameaças de colapso.

Referências Bibliográficas
Freud, Sigmund (1924a). Neurose e Psicose. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, Sigmund (1924b). A perda da realidade na neurose e na psicose. Rio de Janeiro:
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Garcia, Claudia Amorim. (2007). Os estados limite e o trabalho do negativo: uma
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Jacques, Sabrina (2015). O lugar do borderline em Winnicott. 82 p. Dissertação
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Naffah Neto, Alfredo. (2007). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline:
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Neto, Alfredo Naffah. (2010). Falso self e patologia borderline no pensamento de
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Ribeiro, Ângela; Ribeiro, João Pedro; Silva, Raquel Ribeiro da; Doellinger, Orlando von.
(2016). "Um insuportável vazio" - falso self e a organização borderline da
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Safra, Gilberto (2021). Prefácio. In: M. Hegenberg; Borderline. Belo Horizonte: Artesã.
Zizek, Slavoj (2013). Less than nothing: Hegel and the shadow of dialectical materialism.
New York: Verso.
Zizek, Slavoj (1986). Pathological Narcissus as a Socially Mandatory Form of Subjectivity.
In: C. Lasch; The Culture of Narcissism.

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