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Os séculos XV e XVI correspondem a um período de intensas mudanças sociais,

políticas e culturais para o homem ocidental. Os diversos abalos sofridos em suas crenças
religiosas e filosóficas alteram drasticamente o modo como o homem vê a si próprio e como
este se posiciona e pensa o mundo e, por conseguinte, a natureza em que está inserido. É
possível, pois, ver o reflexo destas relações homem/natureza em suas produções artísticas e,
sobretudo, em seus jardins – os quais serão discutidos a seguir.

De início, é importante ressaltar que o período abordado é marcado por uma


sobreposição de “estilos” artísticos e mentalidades, abarcando a Idade Média tardia, o início e
o apogeu do Renascimento e do Barroco, e o Maneirismo. Assim, é impossível conceber uma
linearidade temporal entre estes. Portanto, ainda que para os propósitos deste ensaio os
diferentes “estilos” sejam tratados individual e ordenadamente, não deve pressupor-se uma
subsequência temporal.

Ainda que o período a ser discutido não abarque o medievo em seu auge, é impossível
conceber a relação homem/natureza característica da Idade Média tardia e como esta passou a
se dar para o homem moderno sem compreender a concepção medieval acerca desta questão.
Desse modo, debrucemo-nos brevemente sobre o contexto sócio-político-econômico da Idade
Média ocidental. O período caracterizou-se por um poder político descentralizado que se
encontrava nas mãos dos senhores feudais, bem como por uma população amplamente
subserviente e iletrada, uma economia agrária sustentada por um sistema de deveres impostos
pela nobreza sobre os servos, frequentes conflitos militares e, sobretudo, por uma cristandade
difusa que conferia um caráter soberano à Igreja.

Nesse sentido, a concepção ideológica da Idade Média era marcadamente cristã e, por
conseguinte, metafísica, preconizando a salvação da alma em detrimento da materialidade
terrena – considerada passageira e pecaminosa. Esta crença, somada ao medo suscitado pelo
desconhecido, levava a um entendimento do mundo circundante como algo profano, sombrio
e atemorizante. Demanda-se, então, uma visão simbólica da realidade e, portanto, da natureza.
Segundo Kenneth Clark:

Se a nossa vida terrena não é mais do que um breve interlúdio, o ambiente


em que é vivida não deve absorver a nossa atenção. Se as ideias são a
imagem de Deus, e as sensações viciosas, a nossa interpretação das
aparências deve ser tanto quanto possível simbólica, e a natureza, de que nos
apercebemos através dos nossos sentidos, torna-se positivamente
pecaminosa. (1968, p.20).

Esse modo de ver a natureza traduziu-se na arte naquilo que Clarck denomina
“paisagem de símbolos”. Tais representações, das quais não se possui muitos registros
íntegros, aproximam-se da linguagem decorativa, herança da estética bizantina, possuindo,
evidentemente, um aspecto pouco naturalista – característico da arte medieval – que o autor
também atribui a não observação e contato com a natureza.

Contudo, ainda que a natureza prossiga, para o homem do medievo, perturbante e


aterradora, por volta do século XII, ocorre, por parte dos mosteiros, um resgate das práticas
dos jardins. Assim, eram cultivadas em pequenos espaços planos, quadrados e cercados por
quatro paredes, plantas medicinais e alimentícias – correspondendo também, portanto, ao
início dos estudos botânicos – pelos próprios religiosos. Representações de práticas sendo
realizadas em jardins são encontradas nos frescos de Avignon, datados já do século XIV, que,
para Kenneth, são “uma visão invulgarmente imperfeita das épocas mais primitivas da arte
secular” (1968, p.27). Parte do fresco Tour de la Garde-Robe que decora o Palácio dos Papas
encontra-se reproduzido a seguir. Tais frescos, bem como as tapeçarias de Avignon são
marcados ainda pelo caráter decorativo.

Tour de la Garde-Robe, c.1343, Avihão, França. ¹


É válido ressaltar também que, por volta do século XIV, tem início, por parte de homens
aristocratas das cortes da França e de Borgonha, um movimento de exploração de bosques e
florestas objetivando, sobretudo, a caça. Também esta prática se encontra representada em
frescos de Avignon.

Tais aproximações com a natureza, seja através dos jardins monacais ou dos bosques,
foram, aos poucos, alterando a forma do homem medieval de pensá-la em seu cotidiano,
passando a voltar-lhe um olhar mais naturalista, de observação, desmistificando as
concepções medievais de uma natureza aterrorizante e cuja contemplação e experimentação é
pecaminosa. Estavam sendo postas, assim, condições para que a relação moderna
homem/natureza se desenvolvesse durante Renascimento.

Por volta dos séculos XIV e XV, então, teve início a instalação paulatina da crise
multifacetada que viria a ruir as estruturas de sustento da forma de organização feudal do
medievo. A ascensão de uma burguesia insubordinada ao sistema de classes imutável
baseados na hereditariedade, típico da sociedade medieval, e o resgate por parte de
intelectuais da época dos conhecimentos e das artes produzidos pelos Antigos, associados a
invasões e novas demandas econômicas, tornam o momento propício ao questionamento do
sistema de crenças no qual era pautado a vida do homem medieval. Insurgem, assim, novas
hipóteses científicas e filosóficas que subvertem importantes concepções medievais.

As descobertas e reflexões de Galileu, vale ressaltar, têm papel crucial na destituição da


cosmovisão cristã. Sua crença no potencial cognoscente humano, voltando, sua atenção às
propriedades da matéria, leva a uma valorização da experiência como meio para a
compreensão e transformação do real. Associadas a ideias desenvolvidas por outros filósofos
e cientistas, tais constatações, tonam, pois, o homem renascentista um sujeito observador, que
compreende e produz conhecimento sobre o mundo circundante, bem como um sujeito
transformador, capaz de submeter a natureza a intervenções se assim o desejar – esta é, de
fato, a configuração fundante do padrão da relação homem/natureza na modernidade.

Nesse sentido, o homem moderno voltou-se para a natureza afim de observá-la e estuda-
la, sem a encarar, necessariamente, como uma ferramenta para as revelações divinas. Então,
através das artes e das ciências naturais, foram sendo desvelados mecanismos de
funcionamento da natureza, tais como o heliocentrismo de Copérnico ou os estudos das
correntes marinhas e da “metamorfose” das flores de Leonardo Da Vinci. Todavia, não apenas
com propósitos científicos a natureza observada: era tida também como a fonte primária de
beleza. Tal admiração da beleza natural é facilmente perceptível nos quadros de Botticelli, nos
quais, mediada por temas pagãos, a natureza é representada de forma meticulosa e naturalista
– apenas possível a partir da observação.

Sandro Botticelli, A Primavera, 1482, têmpera sobre madeira, 203x314cm, Galeria Uffizi,
Florença. ²

Não obstante, é importante ressaltar que a pintura paisagística tal como


concebemos atualmente, isto é: em que a paisagem se mostra autônoma, sendo o tema
principal da representação, só aparece na Holanda no século XVIII

Ademais, durante o Renascimento italiano, os mesmos mecenas que financiavam as


produções artísticas do período começaram a se retirar, objetivando condições de vida
melhores, das cidades para os campos. Suas Villas, instaladas em altitudes elevadas, contavam
com grandes jardins externos. Estes jardins retomavam os modelos clássicos, predominando
áreas abertas e luminosas e uma simplicidade “nobre”, ocorrendo também um resgate das
técnicas topiarias e hidrostáticas e a busca da harmonia por meio da simetria. As residências
encontravam-se na porção mais alta do terreno, permitindo, assim, uma visão privilegiada não
apenas do jardim, mas da cidade – estabelecendo, pois, uma relação de controle, de
propriedade, sobre esta e a natureza. Os jardins deixavam, portanto, de ser locais apenas de
cultivo e coleta de plantas para se tornarem grandes áreas externas destinadas a atividades de
lazer diversas, bem como à contemplação. Serve como exemplo o jardim da Villa Madama,
encomendado a Rafael Sanzio, em 1519, reproduzido abaixo.

Villa Madama, Roma, Itália. ³

Um importante elemento, ainda não abordado, dos jardins medievais, mantido nos
novos jardins renascentistas é a fonte. Este elemento simbólico, que normalmente encontrava-
se posicionado no centro dos claustros monacais, remete à mitologia judaico-cristã, segundo a
qual haveria um Paraíso Terrestre, o Jardim de Éden, onde Adão e Eva viviam antes de serem
expulsos após o cometimento do pecado original. Segundo as narrativas bíblicas, neste
paraíso natural, um “lugar de delícias” (2013, p.145), como apontado por Umberto Eco,
haveria uma nascente da qual surgiam os rios Fision, Geon, Tigres e Eufrates. Assim, a fonte
dos jardins faz alusão à nascente do paraíso edênico.

É possível, também, traçar um paralelo entre o mito cristão deste Paraíso Terrestre e a
prática dos jardins monacais, bem como a dos jardins particulares, retomada durante o período
renascentista. A narrativa do paraíso edênico, no qual o homem seria capaz de conviver
harmoniosamente com a natureza, incute no homem cristão uma visão “mistificada” ou
romantizada da natureza, em especial desses “pedaços” de natureza controláveis e ordenados
para seu proprietário que são os jardins, nos quais este se sente plenamente seguro.

Profundas mudanças, às quais não nos ateremos, na política, cultura, economia e


religião marcam o início do século XVI europeu. Dentre estas mudanças, a Reforma
Protestante e a crise político-econômica da Itália, são essenciais para o surgimento do homem
maneirista que, de acordo com Hocke, aparece pela primeira vez em Florença. Segundo o
autor:

A ordem política e moral do mundo encontra-se conturbada. Já não se pode


dizer que o universo forme um cosmos harmonioso. (...) O mundo está
repleto de desordens e de angústias, razão pela qual ele não se deixa retratar
pelas regras do Classicismo. Tentou-se, por isso, captar o espantoso, o
mirabolante que não se restringe a nenhum tempo e a nenhum espaço, a fim
de apagar esta imagem negativa. (1957, p.21).

O homem e, portanto, o artista maneirista, encontra-se aturdido psico, emocional e


moralmente. Desse modo, sua arte caracteriza-se por formas e traços mais expressivos,
abolindo o cânon renascentista que prima por uma harmonia serena. Há, nesse sentido, um
alongamento das linhas verticais, causando deformidades nos elementos representados, bem
como, diversas vezes, uma formação de planos irreais. Tais escolhas estilísticas conferem às
obras maneiristas um aspecto onírico, ou ainda, surrealista.

Ademais, a partir de uma revisitação e reinterpretação, no final do século XV, dos


escritos platônicos e plotionianos acerca do mundo das Ideias, o maneirista descobre o
homem como o único ser capaz de decifrar e compreender essa espécie de “absoluto”
imaterial – ao qual confere atributos místicos. Tomado por um sentimento de grandiosidade
perante esta constatação, sente-se também incerto frente a natureza material que não
compreende. Novamente, de acordo com Hocke, a natureza era, para o homem desse tempo,
“por um lado, ‘magicamente’ explicável, mas por outro, racionalmente incompreensível”
(1957, p. 63). A relação com a natureza era, pois, pautada simultaneamente por um
misticismo clarificante e um mistério desestabilizador.
O caráter deformante e onírico das obras maneiristas, bem como a visão mística e
misteriosa projetada sobre a natureza encontra-se explícitos, também, em seus jardins. Muito
diferente dos jardins renascentistas, o jardim de Bomarzo, projetado provavelmente por
Bartolomeo Ammanati, descrito por Hocke, é formado por estradas tortuosas e esculturas
grotescas em grande escala representando animais, homens ou seres híbridos, cujos corpos
deformados remetem ao sonho. Também as pequenas construções arquiteturais espalhadas
pelo parque são dotadas de proporções disformes. Tais elementos, justapostos ao natural,
conferem ao jardim um aspecto de fantasia aberrante, tornam-no uma espécie de “floresta
encantada” tomada por criaturas monstruosas.

Escultura do Jardim de Bomarzo, Viterbo, Itália. 4

Se, por um lado, o movimento maneirista subverteu drasticamente os princípios sobre


os quais eram construídos os jardins renascentistas, por outro, o Barroco exasperou alguns de
seus principais aspectos, tais como a simetria e a estilização arquitetônica da natureza.

A característica talvez mais marcante dos jardins barrocos são sua riqueza exuberante,
um “exagero” opulente, que lhes confere grande imponência. Nas palavras de Wolfflin: “Já
não se conhece o prazer de uma existência bela e simples e em toda parte se torna necessário
um pesado aparato.” (1968, p.155). Este exagero exprime-se também através das composições
vegetais, havendo um predomínio da utilização de densas massas de vegetação escura, e das
dimensões dos jardins, que se expandem para ocupar áreas ainda maiores que os da
renascença, e de seus elementos.

Ademais, como ratificado acima, os jardins do Barroco levam ao extremo certas


qualidades dos jardins renascentistas. Na Renascença, ainda que houvesse uma estilização da
natureza, os motivos encontravam-se, de certa maneira, desarticulados, submetidos
frequentemente às irregularidades do terreno. Nos jardins do Barroco, por outro lado, o
homem impõe ao terreno a disposição homogênea dos motivos, que se encontram,
impreterivelmente, submetidos ao conjunto. Assim, objetivando esta unidade e
correspondência dos elementos, faz-se uso copioso das regras de simetria e proporção
vitruvianas já utilizados no Renascimento. Tal avanço na manipulação dos terrenos, bem
como no estudo e aplicação da hidrostática e na arte topiaria, evidenciam uma potencialização
do posicionamento do homem renascentista enquanto agente controlador e transformador da
natureza.

É evidente, pois, que a relação homem/natureza está intimamente associada com as


ideologias, de raízes religiosas ou não, segundo as quais o homem pensa a si e seu lugar no
mundo. Sendo vista, ora como algo temeroso, ora enaltecida como objeto de observação, é
notório que o coeficiente de conhecimento acerca da natureza é também fator decisivo no
modo como esta é percebida. A cisão com a concepção cristã medieval do mundo material
como pecaminoso, estabelecendo, portanto, uma distância a priori com natureza, permitiu o
reposicionamento do homem como observador e agente ativo da mesma, estabelecendo as
bases do pensamento moderno – bem como do pensamento contemporâneo – acerca deste
mundo circundante. A arte enquanto representação de um “modo de ver” o mundo e a
construção de jardins enquanto um modo de submeter e relacionar-se com o mesmo sevem,
portanto, como evidências dessas relações e sua transformação ao longo do tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CLARK, K.  Arte e paisagem. Lisboa:  Ulisséia, 1968. (p. 19 -57).
ECO, Umberto. História das terras e lugares lendários. São Paulo: Record, 2013. [O paraíso
terrestre, as ilhas afortunadas e o Eldorado, p. 145-182].
WÖLFFLIN, H. Renascença e barroco. São Paulo: Perspectiva, 1968. [Villas e jardins,
p.151-170].
HOCKE, G. R.  Maneirismo - o mundo como um labirinto. São Paulo: Perspectiva,
1957. [A “floresta Sagrada” de Bomarzo; os  monstros; o sono da razão, p. 139 -149).
HOCKE, G. R.  Maneirismo - o mundo como um labirinto. São Paulo: Perspectiva,
1957. [Primeira Parte, p. 13 -93).
ECO, Umberto. História das terras e lugares lendários. São Paulo: Record, 2013. [O
paraíso terrestre, as ilhas afortunadas e o Eldorado, p. 145-182].

FONTES (IMAGENS):
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