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Apresentação de

Jacques Berlioz

Monges e Religiosos
na Idade Média

Terramar
liste livro resulta de uma recolha de artigos inicialmente publicados
pela revista L'Histoire e posteriormente editados, sob a forma de
livro, pelas Éditions du Seuil. A apresentação de Jacques Berlioz
foi expressamente escrita para este livro.

FICHA TÉCNICA

© Socielé d'Éditions Scientifiques, 1994


Titulo original: Moines et Religienx au Moyen Age
] CdiçSo original: Éditions du Seuil, París, 1994
Tradução: Teresa Pérez
Ilustração da capa: pormenor de am fresco (A Verificação dos Estigmas),
de Giotto, na igreja de Santa Cruz, em Florença
Fotocomposição e fotolitagem: b&f Gráficos
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal: 96873/96
ISBN: 972-710-127-5

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Apresentação

A experiência monástica da Idade Média é fascinante pela


sua riqueza, pela sua amplitude e pelas suas contradições. Como
é que homens — e mulheres — enclausurados, fechados, em-
paredados, votados à ascese e à pura busca de Deus puderam
ter uma ta] influência sobre os seus contemporâneos, exercer
uma tal hegemonia religiosa e cultural? Como conseguiram eles
aliar a fuga do mundo a um papel de primeiro plano na vida
económica e até política do seu tempo? Como é que seres vo-
luntariamente afastados do mundo deram consigo a exprimi-lo,
a querer mudá-lo e a fazê-lo pender para o domínio do divino?
Porquê também no século XIII essa ruptura, essa atracção irre-
sistível pelas multidões, nesse desejo de as evangelizar numa
rigorosa pobreza? Curiosamente, estas perguntas parecem muitas
vezes supérfluas, por estarmos na presença de uma sociedade
medieval implantada sob o cunho do cristianismo. Afinal, não
há dúvida de que existiu na Idade Média um "mistério" monás-
tico. Os estudos aqui reunidos têm uma ambição: afastar uma
grande parte do véu.
No Ocidente, o movimento monástico triunfou sob a sua
forma cenobítica (do grego koinobion, "vida em comum") e não
eremítica. Por outras palavras, os monges (do grego monakhos,
"solitário") viram-se reunidos num conjunto de edifícios:
6 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

o mosteiro. Com alguma pena, aliás. Os monges irlandeses e


anglo-saxões pretenderam durante muito tempo ser herdeiros
dos anacoretas egípcios, fugindo do mundo e tentando reen-
contrar individualmente a experiência espiritual e religiosa dos
Apóstolos de Cristo. Mas as figuras de proa do monaquismo
egípcio foram por sua vez seguidas por discípulos desejosos de
beneficiar dos conselhos e das orações de um abba, de um mes-
tre. Numerosos são os anacoretas que se agrupam em torno de
um Antão ou de um Pacómio e lhes impõem a sua presença.
Daí a necessidade que se impunha a esses chefes, contra a sua
vontade, de estabelecer um código de comportamento para os
solitários, vivendo então paradoxalmente o seu isolamento em
grupo, num lugar retirado, auto-suficiente e rigorosamente or-
ganizado. O movimento monástico ocidental é ritmado, desde o
século iv, pelas fundações de mosteiros, regidos por regras di-
versas mas todas baseadas na obediência ao chefe da comuni-
dade e numa disciplina de vida ordenada em torno da oração e
do trabalho. Destas regras múltiplas, há uma que triunfa: a que
se institui sob o nome de S. Bento. As razões do seu êxito são
evidentes: longe dos excessos orientais — lembremo-nos dos
santos estilitas que viam o mundo do alto das suas colunas —, a
regra proposta por Bento de Núrsia — fundador do célebre
mosteiro do Monte Cassino por volta de 529 — é moderada,
maleável e equilibrada: cabe ao abade na sua discrição ter em
conta a diversidade dos sujeitos e dos locais: "S. Bento repartiu
harmoniosamente o trabalho manual, o trabalho intelectual, a
actividade mais propriamente espiritual no emprego do tempo
monástico" (Jacques Le Goff).
Sem querer à viva força atribuir simplesmente o triunfo de
uma experiência às qualidades de personagens de excepção, há
que reconhecer que o monaquismo soube impor-se por inter-
médio de figuras notáveis, cuja santidade pessoal e cujo caris-
ma foram ampliados e enlevados pela narrativa das suas vidas
copiosamente divulgadas: os Diálogos do papa Gregório Magno
— a sua "ingenuidade" levou mesmo a duvidar de que fossem
APRESENTAÇÃO 7

da autoria de tão grande personagem — apresentando a gesta


de S. Bento de Núrsia foram um prodigioso instrumento de pro-
paganda, cujo êxito se não desmentiu ao longo de toda a Idade
Média.
Quando os Carolíngios chamam a si os destinos do inundo
ocidental, o monaquisino é sobretudo beneditino; mesmo tendo
as missões irlandesas e anglo-saxónicas trabalhado antes labo-
riosamente, fundando mosteiro atrás de mosteiro, como é o caso
de Luxeuil em 590 ou Bobbio em 613. O modelo beneditino
achou-se imposto sob o impulso de outro Bento, este de Aniane,
no século IX. Quando nos séculos x e xi se faz uma vigorosa
renovação monástica, os grandes fundadores continuam lá. À
frente de Cluníaco (Cluny), fundado em 910, impõem-se chefes
incontestados. O movimento eremítico renascente vê-se aberto
e canalizado por personagens como Romualdo, Étienne de
Muret, Norberto, Robert d'Arbrissel ou Bruno. Tantas reformas,
tantos retornos à vida apostólica, tantas fundações: Camaldoli,
Grandmont, Prémontré, Fontevraud, a Grande Cartuxa
(Chartreuse). Se Bernardo de Claraval (Clairvaitx) não é o fun-
dador da ordem cistercience, é o propagador dela. Quanto a
Abelardo, vindo da escola do claustro, funda um mosteiro de-
dicado ao Espírito Santo, o Paráclito, e em breve é eleito abade
pelos monges da abadia de Saint-Gildas-de-Rhuys, na Breta-
nha. O monaquismo medieval é pois realmente uma sequência
ininterrupta, mas dependente das condições históricas, de
afirmações de uma vontade de retorno a uma verdadeira vida
apostólica. E isto até ao final da Idade Média, ainda que este
arrebatamento esmoreça. Mas não nos devemos esquecer de que
o próprio Lutero é um monge: não seria a Reforma um avatar
de um perpétuo retorno às fontes?
Ilha de paz num mundo hostil, o mosteiro é um refúgio para
quem deseje ter uma relação absoluta com Deus: "O mosteiro
de S. Bento é uma escola ao serviço de Deus e não é mais que
isso" (Dom Jean Leclerq). Busca que pressupõe mais que um
afastamento do mundo: uma verdadeira separação. E isto na
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MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

antecipação da vida celeste. Este mundo fechado tem a sua cul-


tura própria, feita de literatura clássica — é graças aos mostei-
ros que numerosos escritores latinos chegaram até nós —, da
Sagrada Escritura e da tradição dos Padres da Igreja. A lectio
divina, essa "leitura divina", é a abordagem incessante, remoída
da Bíblia. A liturgia (enlevada e absorvente em Cluny)
mediatiza-a, unifica-a, expressa-a. Aliás, compreende-se por que
razão os monges cultivam o gosto pela história: os acontecimen-
tos particulares (calamidades, infortúnios) inscrevem-se na
história da redenção, ditada pela Escritura. A busca intelectual
deve pois manter-se subordinada à de Deus: daí a desconfiança
no século xii de um S. Bernardo perante uma teologia especula-
tiva que parecia desprezar a humildade monástica face aos
mistérios divinos.
O mosteiro, que se pretende um recipiente fechado, está
todavia aberto ao exterior. Começa por ser um objecto de poder:
os grandes apoiam-se nele para fortalecer o domínio sobre um
território. É também um lugar de poder. Cluny, "clarão de espe-
rança num mundo de violência" (R. Fossier), subtrai-se ao mundo
feudal, ligando-se directamente a Roma, e funda um imenso
império monástico, independente, tentacular. As enormes di-
mensões da sua igreja abacial — formava a igreja mais vasta da
cristandade — "era evidentemente a imagem pura desse im-
pério sem igual" (A. Guerreau). Os superiores da ordem, como
os grandes abades, exercem uma influência política inegável,
sobretudo do século x ao século xn. Tanto no plano local como
ao nível da Europa inteira. O abade de Cluny, Pedro, o Vene-
rável, lança-se em perpétuas viagens. Bernardo de Claraval faz
o mesmo. Suger, abade de Saint-Denis, substitui, com autori-
dade e talento, Luís vn quando este parte em cruzada. É um
sentimento poderoso do dever de exercer um magistério moral
sobre o mundo que leva paradoxalmente estes homens de Deus
a deixar o seu claustro.
Se as regras monásticas proscrevem a propriedade indivi-
dual, não excluem em geral de forma alguma a posse colectiva.
APRESENTAÇÃO 9

Os mosteiros, grandes e incomensuráveis proprietários de terras,


são centros económicos importantes. Desde a época merovíngia
que os mosteiros atraem as populações e formam centros de
aglomeração urbana. Em breve os mosteiros, cumulados de
doações piedosas, comportam vastos e ricos domínios. Riqueza
essa parcialmente redistribuída através da esmola e do
acolhimento aos indigentes. A vida autárquica dos mosteiros
cistercienses — situados todavia longe das povoações—acabará
por ter uma influência que não é de desprezar na economia geral;
os cisterçienses vão implantando com efeito várias formas de
exploração do meio: o sistema dos celeiros e das adegas, mas
também o saneamento das terras pela condução de águas e a
piscicultura, a captação e a canalização da água para utilizar a
sua força motriz ao serviço dos moinhos e dos pisões, a
implantação da siderurgia por extracção dos minérios e redução
nos altos-fornos: a abadia de Fontenay, na Borgonha, é disso
um exemplo acabado.
O mosteiro é também um local privilegiado de mediação
espiritual entre este mundo e o além. A tarefa dos monges, per-
pétuos triunfadores sobre o Maligno — as narrativas
hagiográficas encontram-se recheadas de lutas vitoriosas com
Satanás —, é orar pelos que não abraçaram como eles esta vida
fundamentada no abandono de si no amor de Deus. Esta élite
"que sabe e quer medir a integridade do abismo que a separa do
resto da humanidade" (G. Miccoli) também sabe que é uma ga-
rantia, para os outros, de um além promissor.
Nesta Idade Média masculina, qual é o lugar do monaquis-
mo feminino? Pergunta importante — desde os primeiros sé-
culos da Igreja e ao longo de todo o período medieval existiram
comunidades religiosas femininas —, mas que só muito recen-
temente foi colocada pelos historiadores. Daí o interesse da ter-
ceira parte desta compilação. Há um tema constante que se des-
taca: a Igreja não recusa às mulheres consagrarem-se plenamente
a Deus mas desconfia delas, da sua natureza diabólica sempre
pronta a ressurgir. É que debaixo da arrependida, debaixo da
virgem pura, continua a ocultar-se a Eva tentadora. As comu-
10 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nidades de virgens e, depois, de monjas enclausuradas são pois


severamente controladas. E não se põe sequer a questão de as
mulheres poderem ser eremitas: "O deserto continua a ser o
domínio dos homens" (P.-L. Garier). No Ocidente, as reclusas
(cujo modo de vida alcança um grande êxito a partir do século
xii) vivem numa cela — geralmente uma casinha ligada a uma
igreja—de onde lhes é impossível sair, mas que não as priva de
todo o contacto com o exterior. Temos pois um isolamento vi-
giado. Do século vi ao século x, os mosteiros femininos mul-
tiplicam-se, mas acolhendo as filhas e as viúvas da aristocracia.
Se as mulheres participam no grande impulso de reforma dos
séculos xi e xii, não se poderá falar de uma promoção. Em Fon-
tevraud, fundado em 1101, a abadessa dirige o mosteiro "du-
plo" (homens e mulheres). Humilhação suprema para os mon-
ges ter de obedecer a um superior que considerado, secretamente,
indigno do seu posto: Fontevraud é "uma ilha de escravos, um
mundo às avessas" (J. Dalarun). Por outro lado, a maior parte
dos superiores do monaquismo tentam esquivar-se a encarregar-
-se das comunidades femininas. É certo que no final da Idade
Média o monaquismo feminino se desenvolve — as cistercienses
vêem o seu número crescer grandemente —, mas a Igreja
permanece desconfiada e vigilante, sendo nomeadamente as
comunidades de beguinas objecto de uma vigilância muito par-
ticular.
O começo do século XIII assinala uma ruptura capital na histó-
ria do monaquismo ocidental. O sistema monástico baseado na
fuga do mundo e no retiro num lugar protegido desmorona-se.
Já nos séculos XI e XII — G. Miccoli lembrava-o há pouco —,
os monges tinham saído dos claustros para pregar ou para se-
rem investidos nas paróquias. Mas estas incursões no século
eram bastante contraditórias com a tradição beneditina. O apare-
cimento das ordens mendicantes — como aliás a reforma dos
cónegos — é um testemunho da adaptação às novas necessidades
dos tempos. A partir de então a autenticidade de uma vida apos-
APRESENTAÇÃO 11

tólica deixa de se confundir com o esquema monástico de per-


feição.
O desenvolvimento das cidades, onde os habitantes eram
mal acompanhados por padres que se deixavam abater sob o
peso da tarefa, a extensão da heresia maniqueísta, a escalada de
movimentos contestatários (como os Valdenses) que exaltavam
a pobreza e o regresso a uma vida evangélica exigiam uma
reacção. Ela foi forte e eficaz. Pregação do Evangelho na
pobreza, eis o que caracteriza as ordens religiosas fundadas por
Domingos de Calaruega e Francisco de Assis. Os irmãos
mendicantes são religiosos — mais vale guardar o termo monges
para os membros das ordens que se excluíam voluntariamente
da sociedade — que se querem mergulhados no mundo. O pa-
pado exerce o seu controlo, exige uma regra, mas não será a de
S. Bento (Domingos adopta a regra chamada de Santo Agosti-
nho). Os irmãos pregadores, dotados de uma sólida formação
teológica, depressa se impõem nas universidades — Alberto
Magno e Tomás de Aquino são disso insignes exemplos.
Pregadores, constituem também os principais colaboradores dos
tribunais da Inquisição. Quanto aos franciscanos, também eles
portadores de uma palavra nova virada para os leigos, no
Ocidente e no mundo inteiro, fornecem professores às
universidades, de Boaventura a Guilherme de Occam. Mas a
discórdia instala-se nestas ordens novas. Em breve surgem outras
crises, outras reformas, outras cisões.
As ordens monásticas e religiosas modelaram no seu con-
junto o Ocidente medieval. Numa incessante dialéctica entre a
fuga do mundo e a acção sobre o mundo, formaram um fenó-
meno total: religioso, social, económico, político, artístico e
cultural. As relações complexas que se prendem com a socie
dade do seu tempo obrigaram-nas a modificar-se, a reformar se
e por vezes a apagar-se.
1. F U N D A Ç Õ E S
E RENOVAMENTOS
S. Bento e a revolução dos mosteiros
André Vauchez

Em 1980, um pouco por toda a parte no mundo inteiro,


colóquios científicos, manifestações religiosas e exposições assi-
nalaram o décimo-quinto centenário do nascimento do pai dos
monges do Ocidente, S. Bento, a quem alguns não hesitam em
chamar o pai da Europa. A França não ficou alheia a este
movimento, o que não é senão de justiça, uma vez que se avalia
em mais de vinte mil (em cem mil para o conjunto da cristan-
dade) o número das abadias e priorados beneditinos que flo-
resceram no seu solo1. Basta pensar no que representam na
nossa história nomes como Saint-BenoTt-sur-Loire, Saint-
-Germain-des-Prés, Cluníaco (Cluny), Cister (Citeaux),
Saint-Wandrille ou Sénanque — atendo-nos apenas aos mostei-
ros mais notáveis do ponto de vista cultural e artístico — para
nos apercebermos de que este aniversário não dizia respeito uni-
camente aos monges dos nossos dias. Forneceu, em todo o caso,
uma excelente ocasião para nos interrogarmos sobre o fenómeno
monástico encarado nas suas origens e na sua significação
histórica.
Ao examinar os dados sobre os quais repousam estas come-
morações, não pode deixar de nos surpreender a sua imprecisão:
segundo os trabalhos mais recentes, parece mesmo que S. Bento
lorá nascido por volta de 490 e não de 480. Pouco importaria,
16 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

em última análise, se esta hesitação não reflectisse a nossa


ignorância de tudo o que se refere à personalidade do grande
legislador monástico e a incerteza na qual mergulha a sua bio-
grafia. Certos autores muito sérios levaram mesmo o paradoxo
ao ponto de se interrogarem se ele alguma vez existiu...
Com efeito, ao contrário da maior parte das ordens religio-
sas posteriores (franciscanos, dominicanos, jesuítas, etc.), os
beneditinos não devem a sua difusão à irradiação pessoal do
seu fundador mas ao êxito de um texto — a regra beneditina —
que, segundo a fórmula do seu último editor, constitui "a ex-
pressão mais feliz e mais prática da sabedoria tradicional do
cenobitismo"2. No mínimo tratando-se de um santo, poder-se-ia
esperar saber onde se encontra o seu corpo, uma vez que o culto
que lhe é prestado deve ter irradiado da sua sepultura. Para cúmu-
lo do infortúnio, subsiste também uma dúvida, não obstante to-
das as investigações que foram efectuadas a seguir à Segunda
Guerra Mundial, sobre a localização e a autenticidade das relíqui-
as de S. Bento. O Monte Cassino, em Itália, pretende tê-las
integralmente conservadas. Mas esta afirmação é pelo menos
parcialmente contradita por uma tradição largamente documen-
tada, segundo a qual os restos do patriarca teriam sido trazidos
para Saint-Benoít-sur-Loire, em 673, por um monge franco que
as teria encontrado nas ruínas do Monte Cassino. Teriam de-
pois permanecido, no essencial, no nosso país, como afirmam
as recolhas de milagres de S. Bento que foram compostas por
monges de Fleury entre os séculos ix e xii.
De tudo o que ficou dito, o leitor poderia ficar com a impres-
são de estar mergulhado num universo lendário. Seria o "pai
dos monges do Ocidente", para retomar a expressão consagrada,
desses fundadores míticos que as instituições —- religiosas ou
outras — gostam de situar nas suas raízes, depois de terem atin-
gido grande desenvolvimento, como que para mostrar que o seu
êxito ulterior estava já contido em gérmen na perfeição das ori-
gens? O problema é complexo e deve ser estudado atentamente.
Por acaso, ele acaba de ser recentemente renovado por impor-
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 17

tantes trabalhos que tiveram o mérito de "recuperar S. Bento


para a história"3. De que se trata? De facto, duas fontes bem
diferentes informam-nos da sorte do fundador do Monte Cassi-
no. A primeira é constituída pelos Diálogos de S. Gregório
Magno, que foi papa de 590 a 604, cujo segundo livro é con-
sagrado na totalidade à vida e sobretudo aos milagres de um
certo Benedictus (Bento) que tinha vivido na primeira metade
do século vi.
O seu retrato insere-se numa visão de conjunto consagrada
àqueles a que Gregório chama os "padres italianos", isto é, a
homens de Deus comparáveis a esses "padres do deserto" cujos
feitos ascéticos e poderes taumatúrgicos tinham sido celebra-
dos, do século IV em diante, pelo Oriente. Que nos diz Gregorio
sobre Bento? Nascido na região de Nórcia, no Apenino um-
brío, no seio de uma família abastada, Bento cedo se dirigiu
para Roma. Aí recebeu uma educação escolar fortemente im-
pregnada pela cultura antiga, ainda muito viva nesses últimos
anos do século v em que Teodorico, rei dos Ostrogodos, reina-
va na Itália e restaurava as moradas imperiais do Palatino. Mas
este ensino suscitou no jovem uma reacção de aversão e ele
depressa se retirou para o isolamento a fim de aí aprender a
"douta ignorância".
Após uma estada nos arredores de Palestrina, alcançou
regiões mais selvagens e mais afastadas, a leste de Roma, e
cstabeleceu-se numa gruta, perto de Subiaco, no meio de mon-
lanhas agrestes que se debruçavam sobre o alto vale do Aniene.
Aí viveu três anos, entregando-se ao ascetismo mais extremo, à
maneira dos solitários do Egipto ou da Síria. Depois de uma vã
tentativa para se inserir numa comunidade das redondezas —
<>•. monges, dos quais se tornara o abade, consta que o tentaram
envenenar —, voltou a Subiaco e aí fundou doze pequenos
mosteiros que reuniam os eremitas da vizinhança. Dado que o
•.eu prestígio pessoal não parava de crescer, aristocratas romanos
l< vavam-lhe como oblatos crianças pequenas, das quais as mais
i élebres foram os seus principais discípulos, Mauro e Plácido.
18 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Mas Bento entrou em conflito com o sacerdote Florêncio, que


tinha jurisdição sobre a região e que tentou sublevar os jovens
noviços contra ele. Cansado destas afrontas, partiu com alguns
monges e foi estabelecer-se uma centena de quilómetros mais a
sul, no monte Cassino. A esta migração, a qual deve ter ocorrido
por volta de 530, seguiu-se o estabelecimento da comunidade
no local, desta feita definitivo. Foi construído um mosteiro no
cimo de uma montanha que dominava a cidade e a região de
Cassino, sobre as ruínas de um antigo templo de Apolo. Segundo
Gregório, Bento teria aí tido um encontro, em 542, com o rei
dos Godos, Totila, a quem convidou a mostrar-se mais clemente
para com as populações civis. Depois de ter fundado um outro
mosteiro em Terracine, pensa-se que terá morrido em 547 (ou
antes, por volta de 560, segundo as hipóteses mais recentes).
Foi enterrado com a irmã, Santa Escolástica, no Monte Cassino,
logo a seguir destruído pelos Lombardos (em 580) antes de voltar
a ser arrasado, primeiro em 1349 por um tremor de terra e depois
em 1944 pelos bombardeamentos americanos.
Ao apresentar as coisas assim, na sequência de todos os que,
no passado, escreveram a vida de S. Bento, faz-se passar o texto
de Gregório Magno por uma deformação que engana o espírito.
Com efeito, este último não quis compor uma biografia do san-
to, mas pôr em relevo o poder sobrenatural de um homem caris-
mático, que tinha realizado uma quantidade de milagres
extraordinários: a reparação de um crivo para separar cereais
que se tinha partido em dois ou de um sino quebrado pelo diabo;
o salvamento de Plácido por Mauro, que correu sobre as águas
de um lago, graças à oração do santo, para ir em socorro do seu
companheiro; o resgate de um camponês feito prisioneiro por
um godo ou a ressurreição de uma criança — tais são os sinais
que retêm a atenção do Papa e só nos meandros das suas
narrativas que constituem a trama dos Diálogos se podem
apreender as diversas fases da existência de Bento.
Esta tendência de valorizar os milagres não deve surpreender-
-nos: Gregório escreveu estas páginas em 593-594, quer dizer,
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 19

num momento particularmente trágico na história de Roma e da


Igreja. A Itália, abandonada pelos imperadores de Constantino-
pla e sangrada até à última gota de sangue pelas guerras "góti-
cas" que haviam oposto durante mais de trinta anos os generais
bizantinos aos sucessores de Teodorico, achava-se então entregue
sem defesa à invasão destruidora de um novo povo bárbaro e, o
que mais é, hostil ao catolicismo: os Lombardos, que, depois de
terem conquistado a planície do Pó, chegavam às portas de Roma.
Diante deste desfraldar de violência e como que para o esconjurar,
Gregório optou por exaltar a memória de alguns indivíduos —
bispos, monges ou simples leigos — cujos milagres tinham feito
recuar as forças do mal à sua volta, lançando assim as bases de
uma nova ordem cristã fundamentada, não em estruturas de poder,
mas numa fé absoluta na omnipotência de Deus. É verdade que o
pontífice indica de passagem que Bento tinha escrito uma regra
monástica notável, mas trata-se de uma menção isolada da qual
não seria possível extrair a argumentação para pretender que este
fosse considerado por volta do ano 600 o grande legislador do
monaquismo em Itália4.

Nascimento de uma regra

O outro documento sobre o qual se baseia o conhecimento


que podemos possuir de S. Bento é precisamente a regra cuja
paternidade lhe é atribuída. Tratando-se de um texto norma-
tivo, concebe-se sem dificuldade que o seu autor não se men-
cione a si mesmo nem faça referência explícita à sua própria
experiência, ainda que esta tenha sem dúvida influenciado os
preceitos que ele prescreve. Escreve-se muito sobre esta regra
desde há séculos e inúmeros comentadores ou apologistas
apresentaram S. Bento como um autor genial, que soube co-
dificar de uma vez por todas as observâncias que estão na base
do monaquismo ocidental. Mas, nesta perspectiva, já não se
vê tão bem a relação que poderia existir entre o fazedor de
20 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

milagres que nos apresenta S. Gregório Magno e o legislador


inspirado que teria composto este texto entre 530 e 560. Além
do mais, a primeira menção bem precisa da regra de S. Bento
(fora a breve passagem de S. Gregório já citada) não é anterior
aos anos 620-630 e o manuscrito mais antigo que dela nos
chegou (Oxford, Biblioteca Bodleiana, cód. Hatton 48) data
do ano 700, mais ou menos.
Há uns quarenta anos, uma dúvida séria sobre a identidade
dos dois Bentos — o dos Diálogos e o da Regra — começou a
invadir os espíritos quando se deu conta de que uma regra anóni-
mamuito longa, conhecida pelo nome de Regula Magistri ("Re-
gra do Mestre") e contida em dois manuscritos dos anos 600,
era na realidade anterior à de S. Bento. Longe de ser, como se
tinha acreditado até então, uma glosa prolixa desta última, ela
constituía a sua fonte e Bento, de autor original, via-se remetido
para a categoria de um simples abreviador deste "mestre" desco-
nhecido. Imagine-se a emoção que esta notícia suscitou nos
claustros! Não vamos entrar no pormenor das controvérsias
eruditas que grassaram sobre este tema no decorrer das últimas
décadas. Seria escusado, tanto mais que uma solução acaba de
ser dada a esta questão disputada pelo Padre de Vogüé, na in-
trodução à edição de La Règle de Saint Benoit que publicou
recentemente, e as suas conclusões obtiveram a adesão da maior
parte dos historiadores.
Abandonando as posições tradicionais que se tornaram
insustentáveis, o sábio beneditino considera um facto adquirido a
anterioridade da Regra do Mestre em relação à de S. Bento e
admite que este se inspirou no primeiro texto, o qual abreviou
consideravelmente. Longe de complicar as coisas, a aceitação desta
dependência simplifica-as e torna sobretudo mais verosímil o facto
de o homem de Deus elogiado por Gregório Magno e o abade
legislador do Monte Cassino serem uma única e a mesma pessoa.
Se Bento não redigiu a carta do monaquisino ocidental mas sim-
plesmente retocou um texto anterior, adaptando-o às circunstâncias
e incorporando nele outros contributos, compreende-se melhor
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 21

que a sua obra não tenha produzido uma impressão extraordinária


nos seus contemporâneos, numa época em que floresciam em
toda a cristandade numerosos textos normativos visando codifi-
car os usos da vida monástica. Renunciando a fazer dele um novo
Moisés e do Monte Cassino um outro Sinai, reencontramos o
próprio espírito do texto, cujo autor declara constituir
simplesmente "uma pequena regra para os que se iniciam" (RB,
73, 8). Não se trata de uma manifestação de falsa humildade:
S. Bento teve com efeito consciência de uma decadência da vida
monástica. Para ele, a idade de ouro pertence ao passado; foi a
época dos grandes solitários, esses padres do deserto que se tinham
entregado no Oriente à ascese mais total e tinham conseguido,
nem que fosse à custa de grandes tentações como um Santo Antão,
viver unidos em Deus na oração e na meditação, ignorando total-
mente o mundo e as suas vãs seduções5.
O abade do Monte Cassino toma em consideração as
transformações sobrevindas desde então e parte das condições
concretas que eram as do seu tempo: já que a vida solitária (ou
anacoretismo) — que ele mesmo tinha experimentado em Su-
biaco — não convinha senão a almas de eleição e muitos dos
que pretendiam ser monges não passavam de vagabundos que
se-guiam a inspiração da sua fantasia, importava antes de mais
definir as regras de uma vida comunitária (ou cenobitismo) soli-
damente estruturada. Nisso, Bento distingue-se da Regra do
Mestre, que concebia a vida monástica acima de tudo como uma
iniciação, colocando-se o noviço sob a orientação de um "guru"
— o mestre — que devia prepará-lo para a vida solitária. Sem
romper com o anacoretismo que permanece para ele "o além
glorioso e desejável do cenobitismo"6, S. Bento acrescenta à
relação vertical que une os monges ao abade uma relação hori-
zontal baseada na caridade mútua que deve reinar entre os
"irmãos". Doravante, as palavras monachus ou monacha (do
grego monos = só) não designam necessariamente um homem
ou uma mulher que vive para o amor de Deus como solitário e
celibatário, mas sim todos aqueles que, ao abrigo de um claus-
22 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

tro e no seio de uma comunidade, procurarem refazer em Deus


a unidade radical do seu ser. O monge define-se menos pelo seu
isolamento do que por um coração unificado.
O mesmo realismo, inspirado não por um pessimismo de
princípio mas pelo estado da sociedade do seu tempo, levou
S. Bento a limitar as exigências ascéticas ao mínimo. Não se
contentando em reduzir os jejuns, sobretudo no Verão, concede
aos monges uma medida de vinho a cada refeição, ao passo que
os eremitas da "grande época" só bebiam água. Do mesmo modo,
a sua insistência no trabalho manual, em particular o dos campos,
procede de uma adaptação às novas condições económicas.
Escrita no momento em que esmorecia definitivamente a
prosperidade da Itália antiga, a regra beneditina visa criar
comunidades religiosas autónomas — com os seus moinhos, a
sua forja e a sua sala de cópia dos manuscritos —, adaptadas a
tempos de penúria alimentar e de regressão cultural. É uma das
razões que explicam o seu extraordinário êxito, a partir do sé-
culo ix, altura em que a economia de trocas estará tolhida e
todas as estruturas unitárias — quer se trate do Estado ou da
rede urbana — terão sossobrado na tormenta para dar lugar a
um mundo novo baseado em células rurais autárquicas.
Subsiste contudo um elemento de mistério no êxito excep-
cional que se deparou à regra de S. Bento, para cuja explicação
o sentido prático do seu autor não é suficiente. Como é que este
texto escrito para três mosteiros italianos do século vi, que não
se encontravam entre os maiores, se pôde impor à quase
totalidade das comunidades religiosas, a ponto de se tornar a
carta do monaquismo ocidental? Dois motivos, de ordem
diferente, estão na origem deste empreendimento esmagador: o
próprio conteúdo da regra e os apoios exteriores que esta recebeu
110 decurso dos séculos da parte das autoridades eclesiásticas e
laicas em razão das vantagens que apresentava
O texto de S. Bento tem, com efeito, o mérito de ser claro e
relativamente curto. Está dividido em setenta e três pequenos capí-
tulos precedidos do célebre prólogo ("Escuta, ó meu filho, os
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 23

preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração"), ao longo


dos quais os conselhos espirituais alternam com directivas práti-
cas. Não podemos deixar de ficar impressionados pela simplici-
dade do tom e pela impressão de serenidade que dele se des-
prende: para S. Bento, a vida monástica deve ser acessível a todos
aqueles que procuram Deus; ela apresenta-se como uma "escola
do serviço do Senhor", que se opõe à escola profana. A í se aprende
como chegar à santidade: não por uma actividade febril ou esforços
excessivos, mas entregando-se à acção da graça de Cristo e
deixando-a agir no próprio ser. Os instrumentos deste retorno a
Deus são o silêncio — que permite ouvir a sua voz—, a obediên-
cia, em particular ao abade que ocupa o lugar de Cristo na comu-
nidade, e a humildade, "mãe e senhora de todas as virtudes".
Uma vez fixados estes objectivos, a regra precisa dos meios que
permitirão atingi-los e define um quadro de vida: o tempo do
monge partilha-se entre o trabalho, a oração e a lectio divina, isto
é, a leitura e a meditação da Bíblia. Cada um destes três elementos
é muito importante: o trabalho manual, consequência da dureza
dos tempos, constitui para o cenobita a forma mais normal da
ascese: "Se os monges viverem do trabalho das suas mãos, como
os nossos pais e os Apóstolos, então é que serão verdadeiramente
monges."7 Seis horas por dia (no Verão) são consagradas às ac-
tividades laboriosas, ou seja, três vezes mais que à oração. Esta é
simultaneamente pública e privada, a sua expressão comunitária
é o ofício divino: recitação de uma série de salmos e leituras tiradas
dos livros santos; a hora fixa, vigílias às completas. Mas a liturgia
não deve ser um formalismo vazio: "Que o vosso espírito esteja
de acordo com a vossa voz"—diz S. Bento. Pela oração, o monge
intercede junto de Deus por ele e pelos outros; suplica-lhe que
faça recuar as forças do mal ("Deus in auditorium nostrum in-
tende"), dá-lhe graças pelas suas mercês e louva-o por ter criado
e salvado o mundo. Quanto aos tempos previstos para a leitura,
que prossegue durante a refeição em silêncio, eles ilustram con-
cretamente o primado absoluto reconhecido pela regra à palavra
de Deus, da qual o monge deve impregnar-se a fim de a inte-
riorizar e de a ela submeter a sua vida.
24 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A última parte da regra é consagrada à disciplina comunitária:


trata-se aí do dormitório onde os monges dormem completa-
mente vestidos, das penitências infligidas aos que não respei-
tam as prescrições, da interdição da propriedade privada ("Que
esse vício do espírito seja cortado até à raiz", "Que tudo seja
comum a todos") e da caridade que deve reinar entre os irmãos.
De notar que o nem texto primitivo previa — salvo excepções
— que os monges recebessem o sacerdócio, nem os sacerdotes
beneficiavam na comunidade de qualquer prioridade. O abade
deve ser eleito pelo conjunto da comunidade, se possível de
comum acordo, ou então pela "parte dirigida por um juízo mais
são, mesmo que seja a menos numerosa". Homem de meios
termos ou, mais exactamente, da síntese ecléctica, S. Bento
combina habilmente para o governo do mosteiro os três sistemas
políticos que a Antiguidade havia conhecido: a monarquia, a
ol igarquia e a democracia. O abade beneditino é eleito para toda
a vida e possui poderes extensos, mas não pode em princípio
tornar-se um tirano. Servidor da comunidade, deve rodear-se
dos conselhos dos mais velhos e consultar a totalidade dos mon-
ges, os quais têm todos voz no cabido no que se refere às deci-
sões importantes. Em todos os domínios se encontra esta "dis-
crição", isto é, o sentido da medida e do equilíbrio, que é uma
das marcas essenciais da espiritualidade beneditina.

Um êxito progressivo

Contudo, a regra de S. Bento não se impôs de repente à tota-


lidade dos mosteiros do Ocidente. No século vii, era com frequên-
cia utilizada em concorrência com outras regras, procedendo a
comunidade a uma matização mais ou menos harmoniosa entre
as diversas observâncias: foi o que aconteceu nas abadias fun-
dadas por S. Columbano em Luxeuil (Alto Sona) e em Bobbio,
na I .ombardia, a partir da década de 630. Na rea-lidade, só no
termo de um longo desvio é que a regra beneditina acabou por
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 25

abrir uma passagem decisiva no seio do monaquismo europeu.


A superioridade que ela alcançou está ligada à cristianização da
Inglaterra. Este país foi convertido no século vn pelos enviados
do papa Gregório Magno, que é do conhecimento geral ter sido
um admirador de S. Bento. Após a destruição do Monte Cassino,
por volta de 580, os monges desta abadia tinham encontrado
refúgio em Roma, o que permitiu à Cúria apreciar devidamente o
texto que regia a sua vida. De qualquer das formas, foi este texto
que os missionários difundiram nos reinos anglo-saxões, onde
conheceu de imediato um vivo êxito. Desde cedo ali foram
fundadas abadias votadas a um brilhante futuro como Lindisfarne,
Malmesbury, Wearmouth ou Yarrow. Levados por razões ao
mesmo tempo étnicas e políticas a distanciar-se dos Irlandeses,
os monges ingleses adoptaram os costumes "romanos", isto é, o
estilo de vida beneditino, cuja moderação contrastava com a
procura excessiva da austeridade e a instabilidade crónica que
caracterizavam o monaquismo céltico.
Como a conversão da Germânia foi, em larga medida, obra
dos monges anglo-saxões, não é de estranhar que a regra de
S. Bento tenha logo adquirido nessa zona uma situação de
monopólio. S. Bonifácio fê-la adoptar pela grande abadia que
fundou em Fulda e, em 742, o primeiro sínodo dos bispos ger-
mânicos prescreveu a todos os monges que a seguissem. A
partir daí o movimento alastrou e estendeu-se, sob o impulso
dos soberanos carolíngios, à totalidade do Ocidente. A difusão
das observâncias beneditinas foi facilitada pela colaboração
estreita que se havia instaurado desde o reinado de Pepino
entre os reis francos e o papado, abandonado por Bizâncio e
ameaçado pelos Lombardos, bem como pelo renascimento do
Monte Cassino, reconstruído a partir das suas ruínas em 718
pelo abade Petronax. Carlos Magno mandou ali recopiar o texto
da regra beneditina e este exemplar "autêntico", conservado
no palácio imperial, serviu de referência para todos os mostei-
ros. Conhecemos o seu teor graças a uma cópia efectuada, sob
o reinado de Carlos, o Calvo, pelos monges de Saint-Gall, na
22 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Suíça, onde o manuscrito se encontra ainda actualmente con-


servado.
A extensão da regra beneditina a todos os mosteiros do Im-
pério foi obra de Carlos Magno e do seu sucessor Luís, o Pie-
doso. Tomados do espírito românico e desejosos de fazer reinar
a ordem e a uniformidade, reuniram vários concílios, em parti-
cular os de Mogúncia (Mayence) em 813 e Aquisgrano (Aix-la-
-Chapelle) em 817, no decurso dos quais ficou decidido que a
"Santa Regra" seria desde então a única admitida. Aí se procedeu
a uma revisão do texto, de onde foram eliminadas as prescrições
que se haviam tornado inaplicáveis, enquanto se fazia o possível
por preencher as lacunas relativas ao emprego do tempo e às
formas da oração litúrgica. Estas medidas tinham sido preconi-
zadas por um abade beneditino do Languedoc, Bento de Aniane,
que desfrutava do apoio do poder imperial. Foram promulgadas
sob a forma de um "Capitulário monástico" que viria a ter força
de lei e visava restabelecer em todo o seu rigor a observância da
vida regular. Um dos principais objectivos da reforma consistia
efectivamente em reagir contra a tendência para a secularização
dos mosteiros. Estes foram convidados a abandonar as suas ac-
tividades anexas, sobretudo o ensino que era prestado em escolas
destinadas em princípio aos noviços, mas onde crianças prove-
nientes da aristocracia que não prosseguiam necessariamente
na vida religiosa podiam aprender a ler e a escrever. Esta
injunção, no seu conjunto, foi pouco seguida e, em bastantes
regiões, as abadias continuaram a ser até ao século xn os
principais, se não mesmo os únicos lugares de elaboração e de
transmissão da cultura erudita, tanto profana como sagrada.
Os Carolíngios tinham finalmente em vista um outro objec-
tivo: o de reunir no seio de uma única ordem, da qual Bento de
Aniane devia ser o abade geral, todos os mosteiros beneditinos
do Império. Mas o rápido enfraquecimento do poder imperial,
no decurso do século ix, impediu este último de dar sequência a
estas veleidades centralizadoras, tão contrárias ao espírito do
monaquisino antigo. A tentativa foi retomada mais tarde sob
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 27

outras formas, quando certos mosteiros procuraram constituir


"fraternidades" que reuniam diversas abadias e priorados sob a
direcção de um deles. O mais célebre e o mais importante destes
"impérios monásticos" foi o de Cluníaco, que, entre o início do
século x e o início do século xii, reuniu centenas de casas religio-
sas que tinham aceitado a sua reforma e os seus costumes.
Mas o êxito permaneceu sempre parcial. Mesmo na época do
maior esplendor de Cluníaco, muitos mosteiros, particularmente
na Alemanha e em Itália, souberam conservar a sua autonomia e
permanecer fiéis às suas tradições, antigas ou recentes.
A preponderância de Cluníaco e a sua organização de tipo monár-
quico em breve foram contestadas pelos cistercienses, que se do-
taram de estruturas centralizadas mas mais democráticas; as
fundações de S. Bernardo e dos seus sucessores formavam uma
ordem dotada de uma constituição, a "Carta de amor" (Carta
caritatis), em que o poder supremo pertencia ao cabido geral que
reunia os abades de todas as casas. Assim, sem entrar nas minúcias
de uma história institucional infinitamente complexa, podemos
afirmar que os mosteiros beneditinos nunca constituíram uma
ordem unificada, o que lhes permitiu, no decorrer dos séculos,
adaptar-se às condições particulares de cada país e de cada época.
Da Idade Média até aos nossos dias, eles sentiram contudo a
necessidade de se reagrupar em congregações, cada uma com a
sua orientação e as suas finalidades, e até de criar outras novas
para responder às exigências de reforma que periodicamente vêm
a lume no seio do monaquismo.
As aparências, a este respeito, não devem iludir-nos: desde
que Leão xiii, em 1880, convidou as diversas observâncias bene-
ditinas a reagrupar-se sob a autoridade de um abade primaz, a
ordo monasticus encontra-se, no plano das estruturas canóni-
cas, muito próxima das outras ordens religiosas. Mas trata-se
de uma simples fachada e pode dizer-se que os monges do Oci-
dente — que, exceptuando apenas os cartuxos, seguem todos a
regra de S. Bento — souberam conservar por um lado uma
unidade fundada na adesão comum a este texto normativo e,
28 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

por outro lado, uma diversidade real. Esta conjunção rara deve-se
ao génio do seu autor que, ao definir a vida monástica como
uma progressão para a união com Deus, se preocupou menos
em estabelecer um código jurídico do que em traçar um itinerário
espiritual, deixando assim a cada comunidade e a cada indivíduo
uma margem considerável de interpretação e de liberdade.

Notas
1
J. Dubois, Les Ordres Monastiques, Paris, PUF, 1985, e id., Sous
la Règle de Saint Benoit, Genebra, Droz, 1982.
2
A. de Vogüé, La Commimauté et 1'Abbé selon la Règle de Saint
Benoit, Paris, Desclée de Brouwer, 1961, p. 17.
3
Segundo a feliz expressão do historiador italiano G. Arnaldi, no
seu estudo "S. Benedetto guadagnato alia storia (in margine a una nuo-
va edizione delia regola)", publicado em La Cultura, 12, 1974, pp.
80-99.
4
Gregório Magno, Diálogos, II, 36: "Ele escreveu uma regra para
os monges, notável pela sua discrição e pela precisão do estilo."
5
Sobre os Padres do deserto e a sua concepção do monaquismo, ver
J.-C. Guy. Paroles des Anciens. Apophtègmes des Pères du Désert,
Paris, Éd. du Seuil, 1976, 186 pp.
6
A. de Vogüé, La Règle de Saint Benoit, t.l, Introdução, Paris, Le
Cerf, 1964, p.530.
7
RB, 48,5.
8
RB, 64, 1.

Orientação bibliográfica

1. Textos e documentos:

* La Règle de Saint Benoit, editada e comentada por A. de Vogüé e J.


Neufville, 6 vols. de texto e 1 vol. de introdução, Paris-Lyon, Le Cerf,
"Sourceschrétiennes",t. 181-186 bis, 1964-1972. Trata-se de uma edição
científica, munida de imponente aparato crítico. Na mesma colecção, o
Pe. A. de Vogüé publicou La Règle du Maitre (Paris, 3 vols., 1964-1965,
t. 105-107) e empreendeu a edição dos Diálogos de S. Gregório Magno.
S. BENTO E A REVOLUÇÃO DOS MOSTEIROS 25

* Os documentos antigos referentes a S. Bento (isto é, o Livro II


dos Diálogos de S. Gregório e a Regra) foram publicados na íntegra
em tradução francesa num pequeno volume cómodo, I a Vie et la Règle
de Saint Benoit, por E. de Solms, Paris, Desclée de Brouwer, 1977,320
pp.

2. Aspectos biográficos e contexto histórico:

* Boa visão de conjunto na pequena obra de Dom Claude-Jean


Nesmy, Saint Benoit et la Vie Monastique, Paris, Éd. du Seuil, "MaT-
tres spirituels", 1977, 192 pp.
* Dois historiadores italianos, S. Boesch Gajano e G. Cracco, propu-
seram-se renovar o conhecimento que podemos ter de S. Bento e da
sua experiencia monástica situando-os no contexto social e cultural do
seu tempo. Encontra-se um eco dos seus trabalhos no volume colec-
tivo: Hagiographie, Culture et Sociétés (IVe-XIIe sièclesj, Paris, Etudes
Augustiniennes, 1981, pp. 263-297, sob a direcção de E. Patlagean e
P. Riché.
* Sobre a iconografía dos milagres de S. Bento na arte românica
francesa, ver P. Verdier, "La vie et les miracles de saint Benoit d'aprés
les sculptures de Saint-Benoit-sur-Loire", in Mélanges de 1'Ecole
Françoise de Rome (Moyen Age-Temps Modernes), 89, 1977, pp.
117-187 (difusão De Boccard).

3. História do monaquismo:

* P. Cousin, Précis d'Histoire Monastique, Paris, Bloud et Gay,


1956, 594 pp.
* P. Schmitz, Histoire de 1'Ordre de Saint Benoit, 7 vols., Ma-
redsous, 1948-1956.
* Para o monaquismo medieval, ver os volumes colectivos seguin-
tes (numerosos contributos em francês): II Monachesimo nell'Alto
Medio Evo e la Formazione delia Civiltà Occidentale, Spoleto, 1957;
II Monachesimo e la Riforma Ecclesiastica (1044-1122), Milão, Ed.
Vita e Pensiero, 1871, 541 pp., e M. Pacaut, Les Ordres Monastiques
cl Religieux au Moyen Age, Paris, Nathan, 2.a ed., 1993.
30 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

4. Espiritualidade monástica ontem e hoje:

* Apresentação de conjunto em A. Vauchez, La Spiritualité du


MoyenAge Occidental, VIJ/e-Xl/Iesiècles. Paris. Éd. du Seuil. "Points
histoire", 1994.
* Ver também J. Leclercq, Aux Sources de la Spiritualité Occi-
dentale, Paris, Éd. du Cerf, 1964, 317 pp.
* Os objectivos permanentes do monaquisino foram estudados por
Dom P. Miquel, La Vie Monastique selon saint Benoit, Paris.
Beauchesne. 1980,334 pp. Os seus problemas actuais foram evocados
por J.-C. Guy, "Saint Benoit, 480-1980. Des moines parmi nous", na
revista Études, Março 1980 (t. 352-353), pp. 365-378.
Robert d'Arbrissel
e a salvação das mulheres
Jacques Dalarun

Como todos os períodos da história, este talvez mais do que


outros, a Idade Média é o espelho dos nossos estados de alma:
tempo da barbárie ou da cortesia, lenda negra ou lenda
cor-de-rosa... Em vez das idades sombrias de pesadelo, há quem
prefira ver hoje uma Idade Média de sonho, bela demais para
ser verdadeira, onde o nosso século projecta os seus desejos da
mesma forma que as gerações passadas projectaram nas brumas
góticas as suas repulsas e os seus medos. "No âmago desta
inversão, detenhamo-nos na mulher e no seu lugar na sociedade
medieval: ontem, julgava-se ter sido desprezada, espezinhada;
ei-la agora de súbito mulher, num pináculo.
Que se passou realmente, nesse tempo, em relação à mulher
e ao seu destino? Questão demasiado vasta, à qual não temos a
ambição de responder. Aqui, estudaremos o caso único, mas
exemplar, de Robert d'Arbrissel, o fundador de Fontevraud. Mais
que um caso, uma aposta. Este eremita da zona oeste de França,
pregador itinerante nos últimos anos do século xi, é objecto da
crónica pela sua postura, pelos seus excessos verbais, mas so-
bretudo pelo estranho comércio que mantém com o sexo oposto.
Na turba que se avoluma seguindo-o, homens e mulheres
32 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

andam misturados e misturados se estendem, à noite, no meio


dos bosques. O próprio mestre não diz que não a partilhar o
leito das suas companheiras, o que lhe traz a condenação das
autoridades eclesiásticas. Robert fixa-se em Fontevraud, onde
funda uma ordem monástica. Nova audácia sua, confia a sua
direcção às mulheres, submetendo-lhes os irmãos e submeten-
do-se-lhes ele próprio também.
Michelet, antes de qualquer outro, apropria-se da personagem
de Robert, eleva-o a pioneiro da promoção da mulher neste alvor
do século xi. Na brecha aberta pelo historiador romântico,
precipitamo-nos sem hesitar. A fundação de Fontevraud torna-se
gesto de cortesia para com as nobres damas. Quanto ao fundador,
embora ostente, como os seus discípulos, uma vestimenta "digna
dos hippies do nosso tempo", "não deixa de levar no meio desta
multidão heterogénea uma vida de perfeita castidade" — afirma
Régine Pernoud. Não ficaremos a saber aqui se Robert dormia
no meio dos seus discípulos com a melhor das intenções já que
isso, pura e simplesmente, não vem escrito em nenhum lado.
Ora, é no âmbito das fontes que nos convém atermo-nos se
queremos escutar essa gente de uma outra época bem como o
que ela diz, para aprendermos desse tempo passado algo que não
o mero eco dos nossos sonhos.
Robert nasce provavelmente em 1045. O seu hagiógrafo,
Baudri de Bourgueil, bispo de Dol, não se dá ao trabalho de
tomar nota de uma data que, nessa época, tem pouca importân-
cia1. Em contrapartida, indica que o seu herói é natural de uma
aldeia de Arbrissel, situada na Bretanha, na região de Rennes, e
precisa a sua proveniência: "filho de sacerdote, procedente de
gerações de sacerdotes". Nada mais normal neste meio do século
xi. Se os monges estão então obrigados ao seu voto de casti-
dade, a Igreja não procurou de modo algum impor aos seus sacer-
dotes seculares — os padres de paróquia — que vivessem em
celibato. Empregados pelo senhor local, seu patrono, vivendo
numa penúria material e espiritual próxima da das suas ovelhas,
transmitem entre si de geração em geração o seu pequeno
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 33

benefício eclesiástico. Robert seguiu por algum tempo estudos


medíocres para adquirir o pouco que deve saber um sacerdote
do campo. Por morte do seu pai, toma a seu cargo a guarda de
Arbrissel.

A alma fendida

E de supor que, de maneira igualmente natural, constitua


família. O seu hagiógrafo, que escreve uns quarenta anos mais
tarde, num momento em que o celibato passa a estar ligado ao
sacerdócio, não pode dizê-lo claramente; mas emite curiosas
reservas em relação à sua castidade. Na Bretanha, a proibição
imposta aos sacerdotes de transmitir os seus benefícios aos fi lhos
é reiterada em 1127 e há uma passagem da Vida do Bem-
-Aventurado Bernard de Thiron que atesta que, na província
vizinha, o casamento dos clérigos é, nas últimas décadas do
século XI, prática corrente: "Era um hábito nesse tempo em
toda a Normandia que os sacerdotes tomassem mulher publica-
mente, celebrassem as suas bodas, procriassem filhos e filhas a
quem, por direito de sucessão, deixavam as suas igrejas após a
sua morte. Casavam as filhas e, se não possuíam outros bens,
dotavam-nas frequentemente de uma igreja. Quando tomavam
mulher, e antes de se unir a ela, juravam em presença dos pais
dela que nunca a abandonariam." Se é verdade que Robert te-
nha prestado este juramento, não o cumpriu de maneira algu-
ma. Por volta de 1078, comprometido nas irregularidades que
rodearam a eleição de um novo bispo de Rennes, foge da Breta-
nha e vai para Paris onde recomeça os seus estudos.
Vai aí cair no meio de debates inflamados: está-se no auge
da reforma gregoriana, da recuperação do poder do clero, ope-
rado pelo papado e por uma parte do episcopado, que culmina
sob o pontificado de Gregório vn, de 1073 a 1085. Subitamente,
Robert descobre-se culpado dos dois piores males denunciados
pelos reformadores: a simonia, isto é, o tráfico dos cargos
34 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

eclesiásticos, e o nicolaísmo, o não cumprimento da castidade


pelos clérigos. O sentimento de culpa que nasce neste estudante
tardio deve ser muito vivo, tanto mais que eclodiu serodiamente
— Robert ultrapassou já os trinta anos — e resulta de uma falta
até então insuspeitada. Para lá de uma crise de consciência in-
dividual, confrontam-se neste caso duas culturas, duas maneiras
de ser: uma de gerações de padres de paróquia e outra, a que a
Igreja tenta impor neste último quartel do século xi. Deste choque
de universos mentais, a alma do sacerdote bretão conservará
sempre a fenda: "Nele havia uma espécie de conflito interior,
um bramido do espírito, um estertor das entranhas que se pode
julgar inumano e ímpio." Convertido à moral nova, Robert
acha-se animado por dois impulsos: tirar os outros da lama, onde
crê agora ter-se atolado, e castigar-se — castigar essa carne que
acabam de lhe ensinar a odiar.
Ora eis que o bispo de Rennes, Sylvestre de La Guerche,
velho soldado e conduzido ao episcopado mas também ele con-
quistado pelas teses reformadoras, procura clérigos capazes de
o apoiar na sua empresa de reparação. Apela a Robert que,
ostentando o título de arcipreste, tente durante quatro anos "li-
bertar as igrejas da infame sujeição aos leigos e reprimir as copu-
lações incestuosas dos sacerdotes e dos leigos." Vasto progra-
ma, que se presta a criar-lhe inúmeros inimigos! Quando da
morte de Sylvestre, o arcipreste tem de fugir a toda a pressa,
exposto à vindicta dos seus confrades. Refugia-se em Angers,
onde retoma os estudos. Em segredo, Robert mortifica a sua
carne por meio de uma couraça oculta debaixo das suas vestes
preciosas. É demasiada "discrição" para o tormento que o agi-
ta. Dois anos mais tarde, "renunciando ao mundo, vai para o
deserto há tanto tempo por ele desejado".
Do início do século xi em diante, o eremitismo conhece no
Ocidente um espantoso recrudescimento. Um por um, Romualdo,
Jean Gualbert, Pierre Damien vão para o deserto afrontar a ten-
tação para merecer a sua salvação: é o espaço do tudo ou nada,
a queda ou o triunfo. Nas florestas do oeste da França, os eremi-
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 35

tas pululam neste final do século xi: Guillaume Firmat, Bernard


de Thiron, Vital de Savigny... Nunca houve deserto tão povoado!
A séculos de distância, estes atletas de Deus aceitam o desafio
lançado pelos Loucos do Egipto (cf. o quadro "Os Padres do
Deserto "). E-nos difícil imaginar a influência que os Padres do
deserto tiveram sobre a espiritualidade ocidental. As suas Vidas,
incessantemente aprofundadas pela reflexão, são outros tantos
desafios para quem é pela Porta Estreita que de facto quer chegar
ao Reino.
Na floresta de Craon, no limite da Bretanha e de Anjou,
Robert castiga a sua carne por meio das privações e das seví-
cias. Mas a sua austeridade suscita a admiração: vêm multidões
para o ver e escutar. De facto, ele prega, apelando à renúncia e
à conversão. Os discípulos multiplicam-se; acabou-se o deserto.
Para alimentar esta turba errante e dar-lhe um estatuto, Robert
funda uma abadia de cónegos regulares, em La Roe, na região
de Mogúncia. Vivendo como monges, estes clérigos, ansiosos
por recuperar a tradição dos Apóstolos, mantêm-se, mais do
que os beneditinos, abertos ao mundo: servem de boa vontade
as paróquias em redor. As doações afluem à comunidade cujo
superior recebe a consagração mais alta: de passagem por
Anviers em Fevereiro de 1096, o papa Urbano n confia oficial-
mente a Robert uma missão de pregação, a qual lhe assenta como
uma luva. Nesta vida regular, no meio de convertidos, ele
reprimia-se; em breve se aproveita da licença de pregação
concedida pelo Papa para levantar de novo voo. A gente que
segue o pregador itinerante torna-se numa multidão e as
mulheres, de entre todos, são quem se apressa a rodeá-lo.
36 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Os Padres do Deserto: um horizonte medieval


A partir do século IV, um número crescente de homens retira-se
para os desertos do Egipto (em particular para os arredores de
Tebas: a Tebaida) e, mais tarde, para os desertos da Síria e da
Palestina. Os mais célebres são Antão, Paulo de Tebas, Pacómio e
os dois Macários. Irão eles procurar nesses lugares impossíveis o
martírio que lhes é doravante recusado no Império cristianizado?
A verdade é que se vão dilacerando sob os golpes que infligem a
si próprios. A princípio eremitas, em breve se reagrupam em comu-
nidades: é a origem do monaquisino. As suas Vidas e as suas
Sentenças, traduzidas em latim, circulam por todo o Ocidente. Esta
literatura exerce uma influência considerável em toda a Idade
Média e depois dela, por todo o período que vai da época de
S. Martinho de Tours até á época dos Senhores de Port-Royal.

Eis chegado o tempo em que Robert começa a surgir na cróni-


ca e entra a direito na historiografia. Será ele o "cavaleiro er-
rante do monaquisino", votado ao serviço das damas como os
heróis da literatura cortês?
Sobre este ponto delicado, o seu hagiógrafo, Baudri de Bour-
gueil, pouco desejoso de revolver os aspectos sulfurosos de Ro-
bert, priva-nos do seu testemunho. Porquê esse encontro do as-
ceta inspirado com as mulheres do seu tempo? E antes do mais,
quem são elas, as que o seguem assim pelos caminhos errantes?
Como sempre, sabemos muito pouco delas. E preciso esperar
que a turba mista dos dicípulos se fixe em Fontevraud para que
alguns nomes surjam da massa opaca das mulheres. Como sem-
pre também, a história não guardou traço algum a não ser das
mais eminentes; as humildes mantêm-se para sempre ocultas.
Dos casos individuais identificados no meio da aristocracia, há
um denominador comum que se destaca: a irregularidade,
segundo as normas actuais, da sua situação matrimonial.
Petronilha de Chemillé, que em breve tomará a direcção da
ordem de Fontevraud, foi casada e teve pelo menos dois filhos.
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 37

Deixa a casa do pai para se juntar ao grupo de Robert. Trata-se


então de uma viúva? De uma mulher repudiada? De uma mulher
fugindo ao marido? Não sabemos. Filha de Fulco IV, conde de
Anjou, Hermengarda tinha sido rejeitada pelo seu primeiro
marido, Guilherme IV da Aquitânia, voltando depois a casar-se
com Alain Fergent, conde da Bretanha. Por volta de 1106,
animada de igual repulsa pelo seu marido e pela Bretanha, foge
para Fontevraud e tenta fazer anular o seu casamento; debalde:
tem de regressar ao domicílio conjugal. Aí, consegue convencer
o marido a entrar para a abadia de Redon enquanto ela regressa
a Fontevraud. Alain deixa-se enfraquecer e morre no convento,
ao passo que Hermengarda repudia o véu logo que Robert morre.
Filipa, segunda esposa de Guilherme IX da Aquitânia, sucedeu
a Hermengarda neste posto perigoso. Tem pois marido quando,
cansada da companhia das concubinas de Guilherme, se refugia
em Fontevraud. Finalmente, Bertrade d'Anjou, mulher de Fulco
IV, "raptada" por Filipe I, rei de França, é perseguida pela cólera
da Igreja pois o seu companheiro real é primo em sétimo grau
do seu primeiro marido: incesto flagrante! Só a morte a separa
de Filipe e ela retira-se então para Fontevraud.
Todas estas mulheres se situam pois no âmago da crise
matrimonial que abala então a cristandade, essa crise que Geor-
ges Duby nos deu a descobrir2. Ele situa precisamente em 1100
o ponto culminante do conflito que opõe duas visões do casa-
mento. Para os guerreiros, convém antes do mais assegurar a
sua linhagem, tornar firme o seu poderio, afirmar a sua catego-
ria; daí o repúdio das esposas estéreis, as uniões com parentas
próximas que evitam a dispersão do património, a presença, em
torno do senhor e amo, de mulheres de segunda categoria. Para
os clérigos, o casamento deve ser indissolúvel, monogâmico e
isento de qualquer elo de parentesco. Desta crise, as recrutas de
Robert são duplamente vítimas: vítimas do casamento segundo
os príncipes, repudiadas ou humilhadas pela presença de con-
cubinas; vítimas da nova moral do casamento segundo os cléri-
gos, descobrem-se de súbito incestuosas ou adúlteras em laços
38 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

que lhes pareciam até então legítimos. Da sorte das mulheres de


elevado nascimento, há que deduzir a das mais modestas: espo-
sas de segunda categoria, companheiras de sacerdotes tocados
pelas prescrições gregorianas, "donzelas" fáceis, prostitutas. Sem
dúvida que lhes vem também o desejo de tratamentos mais doces
de que finalmente se lhes dirija uma palavra. Aquelas que são
rejeitadas, condenadas ou que fogem, Robert abre os braços. O
sacerdote concubinário, reprovado, e as mulheres desampara-
das encontram-se. O êxito de Fontevraud é fruto deste acaso
necessário, da associação extravagante das vítimas da confusão
moral. Que quer ele delas? Robert não se explicou no que se
refere à força que o atrai para o sexo oposto. Mas podemos
cercá-la com a ajuda de exemplos vizinhos e das críticas que
ele suscitou na lógica do seu tormento.
Pouco antes de 1100, Marbode, bispo de Rennes, escreve a
Robert para denunciar o escândalo que ele provoca3: o asceta
compraz-se na companhia das mulheres. De noite, o extrava-
gante bando dos dois sexos estende-se a trouxe-mouxe. O mes-
tre pernoita no meio e fixa as vigílias e o sono. Marbode não
acusa abertamente Robert de ter sucumbido; ele sabe que, por
meio desta estranha prática, o asceta tenta expiar uma falta an-
tiga. O seu pecado é de orgulho: julgar-se mais forte do que o
desejo que o assombra.
Pela mesma época, dois companheiros de Robert, Guillaume
Firmat e Giraud de Salles, entregam-se a gestos insensatos que
esclarecem o seu. Para provar às mulheres que querem seduzi-los
o império que têm sobre os seus sentidos, um queima o braço
com um tição, o outro deita-se num leito em brasa e convida a
sua sedutora a reunir-se-lhe. Nesta idade feudal, a prova judi-
cial suprema é o ordálio, o juízo de Deus, e Dominique Iogna-
-Prat demonstrou justamente que, fiéis a uma tradição que re-
monta também ela aos Padres do Deserto, Firmat e Giraud se
submetem à provação do fogo4. Depois do tempo de treino no
deserto em que o atleta doma os seus sentidos, vem o tempo da
pergunta: expiei o bastante? Sou de gelo? Por meio do ordálio,
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 39

o atleta intima Deus a que lhe responda. Mas Robert é mais


audaz do que os outros; não é o fogo, substituto da carne, que
ele defronta, mas a mulher em si, corpo a corpo.
Alguns anos mais tarde, em 1106-1107, Geoffroy, abade do
mosteiro da Trindade de Vendóme, dirige por sua vez uma epís-
tola a Robert5. Nela denuncia a mesma prática, essa coabitação
ilícita em que se brinca com o fogo; desvenda-lhe o sentido,
sacrílego: "Crucificas-te no leito delas por um novo martírio."
Transmutar a paixão da carne na Paixão de Cristo, tal é a alquimia
desta ascese. Que, na coabitação, Robert descubra pouco a pouco
as mulheres, que aprenda a olhá-las, a conhecê-las, para final-
mente as reconhecer sem dúvida. Mas, sobre o motor desta bus-
ca que o impele para o sexo oposto e sobre a imagem original
que ele forma dela, o contra-senso não é permitido. Devorado
pelo seu sentimento de culpa, Robert vê a mulher como ela se
afigura ao seu detractor Marbode: "Uma cabeça de leão, uma
cauda de dragão, todo o resto do seu corpo não é outra coisa
que não seja um fogo ardente." Uma criatura infernal... É por
isso que ele a defronta, como o pior dos suplícios.
Em 1101, Robert fixa o seu bando em Fontevraud, a algu-
mas léguas a leste de Saumur, onde funda um impressionante
mosteiro. As críticas têm efeito? Continuando a conservar os
dois sexos sob o seu báculo, Robert toma muito cuidado em
separá-los um do outro. A regra que preconiza é, neste ponto,
draconiana. O êxito da ordem não tarda. Os discípulos afluem,
as doações também; os priorados multiplicam-se: perto de uma
vintena em vida do fundador e breve trecho mais de cem. Eis o
nosso eremita à cabeça de uma poderosa e pesada máquina. Em
Setembro de 1115, sente que a morte o espreita. Chama para
junto dele os homens da ordem. Um deles, o irmão André, que
narra os últimos momentos de Robert, relata assim as suas pala-
vras6: "Perguntai a vós mesmos, enquanto tenho vida, se que-
reis perseverar no vosso desígnio, a saber, obedecer às servas
de Deus para salvação das vossas almas. Pois sabeis que tudo o
que eu edifiquei em todos os lugares, com a ajuda de Deus,
40 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

submeti-o ao seu poder e ao seu domínio." As mulheres detêm


pois o poder na ordem. Alguns dias mais tarde, Robert
interroga-se: vale mais confiar o comando supremo a uma ma-
trona vinda do mundo ou a uma virgem criada no convento? A
primeira solução parece-lhe a mais sábia para proveito do
património e, em fins de Outubro, escolhe Petronilhade Chemillé
para abadessa geral, tendo autoridade sobre os irmãos e as irmãs
e sobre todas as casas da ordem.
Não fica assim a mulher colocada num pináculo e o homem,
seu cavaleiro servo, como João Evangelista ao serviço de Maria?
Fazendo exactamente referência a esse casal célebre, o irmão An-
dré precisa: "Não digo isso para comparar o nosso serviço ao de
S. João, pois está para mim fora de dúvida que essa Virgem exce-
lente, colocada junto do seu filho no Paraíso, não tem réplica."
Curiosa restrição, como se o servidor julgasse indigna aquela a
quem se devota... Sem dúvida há que reler mais de perto as
instruções de Robert: "Obedecer às servas de Deus para salvação
das vossas almas." O confronto destas duas citações desvenda o
segredo da ordem de Fontevraud. Renunciando, sob o dilúvio
das críticas, a expor-se à grelha do desejo, o fundador encontrou
um requinte novo na sua ascese. A Regra de S. Bento não incita
os monges desejosos de se elevar nos degraus da humildade a
suportar valorosamente, silenciosamente, tudo o que a obediência
pode conter de penoso e de injusto? E o que haverá de mais penoso
do que ter um superior indigno? Não há na eleição de Petronilha
de Chemillé qualquer exaltação da mulher; ela é aqui, uma vez
mais, um meio de remissão para os homens.
A alguns anos de distância, na mesma vontade de humi-
lhação, Etienne de Muret submete os sacerdotes e os letrados
da sua ordem aos conversos acabados de sair da sua gleba. No
mesmo espírito, Robert não quer ser inumado nem na igreja de
Fontevraud nem no convento, mas em pleno lodo. Por estas si-
tuações de excepção, esboçam-se sem dúvida deslocações ín-
fimas. Mas não vejamos na submissão dos irmãos de Fonte-
vraud às suas irmãs em religião uma grande revolução mental.
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 41

Robert d'Arbrissel, porém, é um pioneiro do espírito e a sal-


vação das mulheres é para ele importante, como testemunham
os dois episódios que se seguem.
Um dia, Robert entra num lupanar de Ruão para aquecer
os pés 7 . Julgando ter nele um cliente, as pensionistas
apressam-se a atendê-lo mas ele dirige-lhes palavras de vida e
promete-lhes a misericórdia de Cristo. A dona da espelunca
invectiva-o: "Quem és tu para falar dessa maneira? Podes ter a
certeza de que, em vinte cinco anos desde que entrei para esta
casa para perpetrar crimes, nunca ninguém veio a este lugar
para falar de Deus ou para nos fazer esperar a sua misericór-
dia." Robert encoraja-a: "Tem confiança (...) e terás também,
sem dúvida alguma, a misericórdia de Deus." As prostitutas
caem então aos seus pés e, no meio de grande alegria, ele
leva-as para o deserto.
Cena espantosa de audácia e de vida, mas deveremos fazer
fé neste testemunho que, sob alguns aspectos, se assemelha a
uma montagem literária? Robert, quando penetra no lupanar, é
a réplica de Pafnuce tentando salvar a cortesã Taís. Quando pro-
mete a misericórdia às mulheres caídas a seus pés, é à imagem
de Cristo anunciando a redenção à pecadora que, em casa de
Simão, banhou com as suas lágrimas os pés do Salvador e a
quem chamamos Madalena. Tenho porém para mim que toda
esta fonte é autêntica. A Idade Média quer precisamente que a
Escritura dite a realidade, que seja palavra de vida. E é isso
mesmo o que se passa aqui. Qual é o maior espanto destas mu-
lheres? Que se lhes fale de Deus no fundo da sua abjecção ou,
muito simplesmente, que uma palavra dirigida a elas seja pro-
ferida? Atentemos antes de mais nas palavras. O termo-chave
de Robert é a misericórdia; quatro vezes a palavra surge na sua
boca e na boca delas. São também as mulheres perdidas que
falam de penitência. E não é para um lugar cheio de coacções e
de sevícias que ele as leva, mas sim para o espaço da sua liberda-
de e do arrebatamento, com alegria; é o deserto da Santa Gruta
de onde, sete vezes por dia, Madalena eremita é arrebatada para
42 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

o céu. Desdenhando qualquer outra fonte, Michelet, no seu


Moyen Age, centrou o seu estudo de Robert neste único
testemunho onde sentia despontar um novo mundo sob a ordem
antiga8.
Um segundo texto—de que Michelet não teve conhecimento
— permite situar o que o fundador de Fontevraud traz de novo
ao seu tempo9. Um belo dia, Robert chega à Auvérnia (Airvergne),
à aldeia de Menat, acompanhado por monjas da sua ordem. Quer
pregar na abadia da localidade, mas os habitantes explicam-lhe
que toda a mulher que penetrasse na igreja morreria imedia-
tamente. Robert, contudo, faz entrar as monjas, de entre as quais
nenhuma morre... Os porteiros, monges sem dúvida encarregados
de fazer respeitar a interdição, reclamam então vingança ao santo
do sítio, S. Menelau. Encontra-se o rasto desse curioso tabu em
diferentes localidades da Auvérnia e até do Maine. Parece re-
montar ao período merovíngio e deve ter mantido vestígios da
primeira vez em que a clausura monástica foi estabelecida nessas
regiões. Confrontada com esta interdição, a comunidade aldeã
não compreende que haja homens que tenham um compor-
tamento contrário à lei natural, que requer que homens e
mulheres coabitem e procriem. Apercebe-se ao mesmo tempo
da suspeita de culpabilidade que a cultura monástica lança sobre
aquele que toca a carne. Os homens defendem-se então à sua
maneira: integram o novo dado, mas para desviar à partida para
a mulher o peso de toda a falta. Há uma lenda que conta que
uma impúdica que tinha querido desafiar a interdição deu con-
sigo com "a cabeça entre as coxas, horrivelmente deformada,
obrigada a beijar as partes vergonhosas do seu corpo.'" 0
Face à crença enraizada nos cérebros há seis ou sete séculos,
a palavra de Robert soa clara: "Ai, gente simples, não façais em
vão rezas tão tolas! Mas ficai a saber que os santos não são
inimigos das esposas de Jesus Cristo. Que o que dizeis é uma
coisa absurda e a pureza da fé católica conhece bem o con-
trário; como se diz no Evangelho dessa beata pecadora que beijou
os pés do Redentor tanto com as suas lágrimas purificadas como
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 43

com os seus cabelos e que espalhou o unguento sobre o seu


digníssimo chefe." Contra a tradição local, Robert recorre à
tradição mais alta, a do Evangelho, e é ainda Madalena que ele
invoca em socorro das mulheres humilhadas.
"Quem é aquele que ousará dizer que haja uma igreja
qualquer na qual não será lícito entrar mulher, se pelas suas
faltas e culpas não lhe fosse proibido?" Ao reconhecer a res-
ponsabilidade pessoal face ao pecado, Robert pulveriza a ideia
da feminilidade, no sentido de uma essência maligna da mu-
lher. Colocando-a sob o patronato de Madalena, salva-a dupla-
mente do pecado: só é pecadora quando peca e, nesse caso,
beneficia da misericórdia de Cristo vindo para salvar os pe-
cadores.
A mulher é reconhecida enquanto consciência. Todavia,
Robert sente que o obstáculo mais pesado está por levantar, a
imagem desse corpo sobre o qual se encarniçou a velha lenda.
"O que é maior, o templo material de Deus ou o templo espiri-
tual no qual Deus habita? Se a mulher toma e come o corpo e o
sangue de Jesus Cristo, pensai na loucura que é crer que não
deve entrar na igreja!" O tabu é afastado com uma bofetada
com as costas da mão: templo do Espírito, tabernáculo da Eu-
caristia, o corpo da mulher é sagrado. Coerência profunda, de
Betânia à Ceia: a mulher que "toma e come o corpo e o sangue
de Jesus Cristo" está, como Madalena, destinada à redenção. A
Eucaristia celebra a União ao corpo de Cristo em Betânia. As
barreiras vacilam entre consciência e carne, entre homem e
mulher. Eis que um sentimento novo acaba de despontar, já cheio
de segurança na sua audácia juvenil: uma certa ideia do indi-
víduo e da sua dignidade. Robert renova à sua maneira a antiga
ideia: a salvação veio ao mundo através da mulher; nela, tomou
corpo.
O fundador de Fontevraud toma decididamente o partido das
auroras, mas o que ele antecipa de novo para as mulheres não
tem relação com os curiosos suplícios a que se dedica ou com a
eleição de uma abadessa à cabeça da sua ordem. Por essas mes-
44 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mas tiradas, ele acha-se, pelo contrário, ainda envolvido por


inteiro no discurso maior e na imagética do seu tempo: uma
mulher-Eva, que a reforma gregoriana pintou das cores mais
negras para melhor dela afastar os clérigos seculares e que ele
mesmo aprendeu a odiar e a temer. Mas não será prestar ho-
menagem à sua real audácia medi-la com a medida das suas
reticências?
Uma tímida aurora; pois, para as mulheres desse tempo, a
realidade é ainda bem sombria. Uma última tirada vem
lembrar-no-lo. Petronilha de Chemillé compreendeu perfeita-
mente o espírito no qual Robert d'Arbrissel a colocou à cabeça
da comunidade. Por ser de alta linhagem, por ser orgulhosa
talvez, esforça-se por fazer desaparecer tudo o que poderia re-
cordar a vontade de humilhação que animou o fundador. Deste
modo recusa ao santo corpo o lodo tão desejado e sepulta-o
com todas as honras, junto ao altar-mor de Fontevraud, ao abri-
go de um culto popular espontâneo. Não pode evitar mandar
redigir uma biografia de Robert. Deseja-a lenificante, dulcifi-
cada de tudo o que despertasse o eco dos escândalos passados
ou lançasse uma luz demasiado viva sobre o sentido da sua
própria promoção.
Para escrever esta biografia, teve de recorrer a clérigos, pois
só eles detêm a ciência das palavras, só eles sobretudo conhe-
cem as leis do sapientíssimo bordado que é uma Vida de Santo.
Baudri de Bourgueil, o irmão André, cada um por seu turno,
vão ao encontro dos desejos de Petronilha. Não há nada no ar-
quivo hagiográfico de Robert que nos dê a ouvir a voz das mu-
lheres. A autoritária abadessa não encontra por sua vez uma
pena que nos deixe o seu testemunho. O manuscrito de André,
que atestava com a maior fidelidade a estranha espiritualidade
do mestre, foi na altura despojado de todos os elementos que o
tornavam incómodo". Acto de violência irrisório, que presta uma
homenagem arrebatada à omnipotência do Verbo e dos que o
detêm, entre os homens.
ROBERT D'ARBRISSEL E A SALVAÇÃO DAS MULHERES 45

Notas
1
Baudri de Bourgueil, "Vita B. Roberti de Arbrissello", em Patrolo-
gie latine, t. 162. col.1043-1058. Não existe tradução em língua fran-
cesa desta Vida latina sobre a qual se apoia a primeira parte deste estudo.
2
Georges Duby, Le Chavalier, la Femme et le Prêtre, Paris, Hachette,
1981. Aí se encontrará o relato pormenorizado dos casamentos referidos
do rei Filipe I.
3
Marbode de Rennes, Epistola 6 em Patrologie Latine, t. 171, col.
1480-1492.
4
Dominique Iogna-Prat, "La femme dans la perspective péniten-
cielle des ermites du Bas-Maine", em Revue d'Histoire de la Spiritua-
lité, t. 53, 1977, pp. 47-64.
5
Geoffroy de Vendóme, Epístola 47 do livro IV, em Patrologie Lati-
ne, t. 157, col. 181-184.
6
"Vita altera B. Roberti de Arbrissello", em Patrologie Latine, t.
162, col. 1058-1078.
7
Este texto é reeditado por J. Dalarun em L 'Impossible Sainteté. La
Vie Retrouvée de Robert d'Arbrissel, Paris, Le Cerf, "Cerf Histoire",
1985, p.349.
8
Jules Michelet, Le Moyen Age, em Oeuvres Completes, Paris,
Flammarion, t. 4, 1974, pp. 459-460.
9
Texto editado por Jacques Dalarun em L'Impossible Sainteté (...),
pp. 207-298.
10
Sobre as ramificações deste tabu, ver J. Dalarun, "Eve, Marie ou
Madeleine: la dignité du corps féminin dans l'hagiographie médié-
vale", em Médiévales, n.° 8,1985, pp. 18-32.
" Ver L 'Impossible Sainteté (...).

Orientação bibliográfica

Sobre Robert d'Arbrissel:


* J. Dalarun, L 'Impossible Sainteté. La Vie Retrouvée de Robert
d'Arbrissel (v. 1045-1116), Paris, Le Cerf, "Cerf-Histoire", J985.
* J.-M- Bienvenu, L 'Etonnant Fondateur de Fontevraud, Robert
d'Arbrissel, Paris, Nouvelles Éditions latines, 1981.
* J. Dalarun, Robert d'Arbrissel, Fondateur de Fontevraud, Paris,
Albin Michel, 1986, prefácio de G. Duby.
46 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Sobre o universo mental do período:


* G. Duby, Le Chevalier, la Femme et le Prêtre. Le mariage dans
la France féodale, Paris, Hachette 1981.
* A. Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age Occidental, Vll/e-XIJIe
siècle, Paris, Éd. du Seuil, 1934.

As fontes sobre Robert d'Arbrissel encontram-se quase exclusiva-


mente em latim, editadas por J.-P. Migne na Patrologie Latine. É porém
possível encontrar a Vida atribuída ao irmão André e a Regra de Fon-
tevraud numa versão em francês arcaico, em L 'lmpossible Sainteté (...).
S. Bernardo, o soldado de Deus
Jacques Berlioz

Até ao século XII, os monges são os pilares do cristianismo


ocidental. Vivendo na sua grande maioria sob a regra de S. Bento
(morto em 547), formam, no seio da Igreja Católica, uma ver-
dadeira milícia de Cristo. Os seus mosteiros, providos de imensas
bibliotecas, são além disso os conservatórios do saber e da cultura
antigos.
Face à hierarquia secular, muitas vezes enfeudada às potên-
cias laicas, os monges defendem a sua autonomia. Tentam
converter as populações rurais ao cristianisino e reformar a Igreja
inteira. S. Bernardo de Claraval (Clairvaux), 1090-1153) surge
como a figura emblemática deste espírito de conquista. Assina-
la igualmente o seu final.
Proveniente da ordem de Cister, criada em 1098 por Robert
de Molesme (que queria restaurar o sentido evangélico da regra
beneditina), convencido da superioridade do estado monástico,
S. Bernardo partiu cheio de paixão ao assalto da sociedade
cristã para a modelar segundo o seu ideal. Foi igualmente o
pregador inflamado da segunda cruzada, empurrando os homens
para as estradas, para o desastre. A sua reputação de intolerância
é inegável: ele representa, para muitos, o ayatollah da fé católica.
O general de Gaulle (enquanto vizinho, já que Colombey-
-les-Deux-Églises [a sua terra] se encontra a alguns quilómetros
de Claraval) interrogou-se um diana presença de André Malraux:
48 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

"S. Bernardo era de certeza um colosso; mas era também um


homem de coração?'"
Bernardo nasceu em 1090 em Fontaine-lès-Dijon. O seu pai
é um cavaleiro de categoria modesta. Bernardo é enviado nos
primórdios da sua mocidade para a escola dos cónegos de
Saint-Vorles, situada em Châtillon-sur-Seine, onde adquire uma
formação sólida (latim, cultura bíblica e retórica). Por volta de
1110, projecta entrar em Cister (Citeaux) onde se pratica a as-
cese mais rude, longe das agitações do mundo.
Em Abril de 1112 (ou em Maio de 1113, a cronologia não é
certa), Bernardo chega a Cisterem companhia de cerca de trinta
companheiros. São acolhidos com alegria pelo abade Etienne
Harding: com eles abrem-se novas perspectivas de expansão
do mosteiro. Elemento dinâmico e seguro, Bernardo é enviado
para Champanha em 1115, para aí fundar, com alguns monges,
a abadia de Claraval. Aí se conservará toda a sua vida um
simples abade, recusando energicamente qualquer outra
dignidade na Igreja (foi-lhe proposto uma quantidade de vezes
que se tornasse bispo). Não ficou a dever a sua influência re-
ligiosa e política — fora da sua ordem (e sem ser ainda o seu
superior) — senão ao seu carisma, ao seu prestígio pessoal, ao
seu poder de convencer e à sua habilidade retórica.
Mas por que razão Bernardo, entrado numa ordem que pre-
ga o afastamento do mundo, se intromete assim nas questões do
seu tempo a ponto de passar um terço da sua actividade fora da
sua abadia? É ele mesmo quem responde: "Nenhum dos assun-
tos de Deus me é estranho" (Carta 20). O ideal monástico é para
ele um ideal de combate. Sentindo-se investido de um espírito
de missão, obriga-se, contra o seu desejo de solidão, a intervir
no mundo que o rodeia. "Todo poderoso a contragosto e conde-
nado a governar a Europa" — diz Michelet. Contradição que o
abade de Claraval formula deste modo: "Sou a quimera do meu
século, nem clérigo nem leigo. Abandonei já a vida do monge,
mas continuo a usar o hábito" (Carta 250). Dois princípios o
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 45

regem: a defesa da ordem cisterciense e a da reforma da Igreja,


levada a cabo desde um século antes.
Até 1130, Bernardo consagra-se ao desenvolvimento do
Claraval, acção que assumirá até ao fim da sua vida, procuran-
do estender o mais possível a influência da ordem cistercience
(quando da sua morte, em 1153, esta comporta 345 conventos,
167 dos quais se encontram dependentes de Claraval). A partir
de então (já com mais de quarenta anos), Bernardo está em todas
as frentes. E a primeira é a da reforma monástica: considerando
que Claraval está em posição de exercer um magistério moral,
Bernardo censura a ordem de Cluníaco por uma falta de
ascetismo na sua conduta, na arte e na liturgia. Se Bernardo
aceita de boa vontade receber na sua ordem monges que deixa-
ram Cluníaco (ou cabidos de cónegos), recusa o passo inverso.
Citemos a carta que escreveu por volta de 1119 ao seu primo
co-irmão Robert de Châtillon, que passara dos cistercienses para
Cluníaco (Bernardo reagiu como um senhor cujo parente des-
leal tivesse traído a linhagem): " Ó criança insensata, o que foi
que te fascinou, o que foi que te fez infringir os votos pronun-
ciados pela tua própria boca? (...) Por que deixaste tu a tua Or-
dem, os teus irmãos, a tua casa, por que me deixaste a mim, teu
parente chegado pelo nascimento, mais chegado ainda pelo es-
pírito?" (Carta 1). Notemos que o envio de cartas (destinadas
na realidade a um vasto público) é um meio privilegiado de
pressão. Bernardo distingue-se neste exercício: encontraram-se
550 cartas suas! O abade de Cluníaco, Pedro, o Venerável
(1092-1156), dá provas de paciência, evita zangar-se irremedia-
velmente com Bernardo, conservando com ele uma amizade, se
não sincera, pelo menos diplomática.
Bernardo intervém no funcionamento da Igreja secular, por
sua própria iniciativa ou por solicitação. Toma a defesa de
prelados vítimas da intrusão de príncipes laicos, apoiando assim
em 1129-1130 o bispo de Paris, depois arcebispo de Sens contra
o rei de França. Aguarda as férias e as eleições episcopais (os
cistercienses estão submetidos à autoridade do bispo) e apoia o
50 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

candidato que lhe parece ser de melhor nível moral. Contam-se


dezassete intervenções deste tipo. Aconselha os prelados,
incita-os a cumprir as suas obrigações ou critica, acerbo, a vida
que levam.
Chega a tomar posição quando da eleição do Papa: por morte
do papa Honório 11, dois papas rivais, Inocêncio II e Anacleto
II, são eleitos sucessivamente — é o cisma dito de Anacleto
(1130). O Ocidente divide-se. Bernardo escolhe Inocêncio, que
acha mais apto a dirigir a Igreja: durante oito anos, luta para o
impor, levando os príncipes (Luís VI, Lotário) e as cidades
(Milão) a admitir as virtudes do seu protegido, a custo de inces-
santes viagens, de inúmeras intervenções. A morte de Anacleto,
em Janeiro de 1138, põe fim ao cisma e Bernardo ganha em
autoridade por toda a cristandade.
Paralelamente, a campanha que conduz contra a violência
exercida pelos nobres culmina com o Elogio da Milícia Nova,
livro dirigido aos Templários e que propõe aos homens de guerra
um rigoroso itinerário espiritual.
Torna-se então teólogo para impor a todos a ortodoxia da fé.
O movimento das escolas urbanas, onde os professores aplicam
a dialéctica às verdades da fé, inquieta-o. Quando se dirige aos
estudantes parisienses, em 1140, é para os desviar para Claraval
(uns vinte, entre os quais o seu futuro biógrafo, Geoffroy
d'Auxerre, seguem-no então). Faz condenar o teólogo e filóso-
fo francês Pedro Abelardo (1079-1142) e o seu discípulo, o refor-
mador político e religioso italiano Arnaldo de Brescia2. Tendo
descoberto os progressos da heresia maniqueísta propagada no
Languedoc por um certo Henrique, monge beneditino, desloca-se
aí em Maio e Junho de 1145. Se o acolhimento é entusiástico
em Tolosa, Bernardo tem depois alguns dissabores: em Verfeuil,
burgo fortificado a uma vintena de quilómetros de Tolosa, os
heréticos, conduzidos pela aristocracia da localidade, atacam-no
fazendo tal barulho que ele não consegue fazer-se ouvir.
O fim da vida de S. Bernardo é assinalado pelo alistamento
na cruzada. A 31 de Março de 1146, dirige um vibrante apelo
47
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS

aos clérigos e aos nobres reunidos em Vézelay. Durante o Outono


e o Inverno seguintes, percorre o nordeste da França e o Império
para pregar a cruzada e pôr fim aos massacres de judeus alemães.
O desentendimento entre os cruzados e os Francos do Oriente
conduz ao fracasso do empreendimento: o cerco de Damasco é
abandonado em Julho de 1148. Afectado pelas críticas que lhe
são dirigidas, tenta justificar-se, ao mesmo tempo que o seu
estado de saúde piora. A morte do papa Eugénio III, seu
discípulo, desfere-lhe um golpe de que não voltará a refazer-se.
Morre a 20 de Agosto de 1153, com sessenta e três anos de
idade.
Este empenhamento no serviço da Igreja é mantido por uma
energia indefectível (não obstante uma saúde frágil, pois que
desde a sua juventude que enfraqueceu o seu corpo por meio de
macerações rigorosas) e por um carácter veemente e autoritário.
Para cada uma das sua missões, uma vez fixado o objectivo,
Bernardo identifica a sua causa com a de Deus e só deixa de
combater uma vez atingida a meta. E isto sem recuar perante a
astúcia, a má fé, as invectivas ou as injúrias que lhe são dirigidas
para o desqualificarem3. Quando um monge de Cluníaco é eleito
em 1137 bispo de Langres (diocese na qual se encontra Claraval),
Bernardo dirige-se de imediato a Roma: o seu parecer não foi
solicitado! As suas cartas são ultrajantes: "Que espécie de
monstro e não de esposo escolheste tu para a tua filha! Não te
reconhecemos nisso como mãe, mas como madrasta"—escreve
ele ao arcebispo de Lião (carta 165). Numa carta ao Papa,
torna-se pérfido: "O pudor impede-me de repetir c que o rumor
público diz dele" (Carta 167). Noutra, acusa o arcebispo de Lião
e Pedro, o Venerável, de estarem corrompidos pelo dinheiro (Car-
ta 168).
Bernardo obtém a deposição do do monge de Cluníaco: as
vozes dirigem-se para ele mesmo; recusa e é o seu primo,
Geoffroy de la Roche-Vanneau, que é eleito: Bernardo alcançou
os seus fins. Sanado o conflito, Bernardo acalma-se. Em termos
médicos, a crer em Dom Jean Leclercq, o abade é "um
52 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ciclotímico que passa por fases de depressão que alternam com


fases de hipomania"4. Esta paixão pode igualmente ler-se nos
escritos místicos do santo. A intensidade dessas experiências
explica o carácter fervoroso, por vezes mesmo desmesurado da
expressão: "O amor não procura fora de si a sua razão de ser
nem o seu fruto: o fruto do amor é o exercício do amor; amo
porque amo, amo para amar" — escreve num dos seus Sermões
sobre o Cântico dos Cânticos, sua obra principal5.
Evitemos o anacronismo: enquadrada nas exigências monás-
ticas da reforma da Igreja e nos comportamentos aristocráticos
do século XII, a personalidade de Bernardo, não obstante o seu
poder e os seus excessos, está em uníssono com a dos seus con-
temporâneos. É isso que explica que ele tenha podido ter tanta
influência sobre eles: ele responde a uma expectativa geral,
mesmo nos seus exageros, neste período de viva "emotividade"
em que mudar bruscamente de atitude, passar das lágrimas ao
riso ou à violência eram habituais 6 . Difícil igualmente é
destrinçar em Bernardo as tradições literárias (como a arte da
sátira) da agressividade instintiva. Sem esquecer que, como que
para baralhar as cartas, o abade de Claraval mostra uma com-
plexa ironia a propósito dele mesmo, tratando-se a si mesmo
por jogral de Deus, por humilhação. Além do mais, passando
das causas aos seres, esta personagem violenta consegue ser
terna. Recomenda a doçura à condessa de Blois, que o interroga
sobre a educação do seu filho. A caridade leva-o a tomar atenção
aos indivíduos: "A solicitude de Bernardo"—escreverá no início
do século XIII o dominicano Jean de Mailly — "pela salvação
de cada um em particular era tão grande que parecia amar todos
os homens com uma verdadeira afeição materna."7 Mas não sem
paradoxo, é em termos de uma rara autoridade que ele ordena à
duquesa da Lorena que preste assistência a uma prostituta
arrependida. E este homem de paixão teve também adversários
apaixonados.
Quando, encolerizado, o abade expulsa o seu irmão Bar-
thélemy de Claraval, este expõe as suas condições para regres-
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 53

sar. Os irmãos são-lhe favoráveis, contra Bernardo (Carta 70).


A sua ingerência nos assuntos da Igreja deixa os bispos
descontentes: "O que deve um monge ter de comum com as
cortes e os concílios?" —• escreve o cardeal Aimeri.
Em quase todos os casos que defende, encontra violentos
detractores. Como um tal Béranger de Poitiers que defende desde
1140 o seu mestre Abelardo num fogoso libelo (a ponto de ser
obrigado a exilar-se nas Cevenas): "Tomaste Abelardo como
alvo das tuas secas, para vomitar contra ele o veneno do teu
azedume, para o riscar da terra dos vivos, para o pôr na categoria
dos mortos (...) Enquanto lhe fechas as portas da clemência, os
teus hediondos furores traem-te, o teu ódio cego é reconhe-
cido."8
Os ataques visam também o fazedor de milagres. Em vida
de Bernardo, um discípulo de Gilbert de la Porrée — teólogo
cuja condenação a abadia de Claraval procura obter debalde —
conta que o santo não conseguiu, em Auxerre, ressuscitar um
homem, não obstante as suas orações, e depois de ter anunciado
à multidão que era capaz de tal!9 Mais tarde, o galês Gautier
Map (morto em 1210), adido à corte do rei de Inglaterra Henrique
II compraz-se em narrar nas suas Balivernes des Courtisans,
após um violento requisitorio contra Bernardo e os cisterciens-
es, conversas à mesa relatando três tentativas malogradas do
santo no sentido de produzir um milagre.10 E são cistercienses
quem disto fala!
Um exemplo: «Dois abades brancos falavam de [Bernardo]
na presença de Gilbert Folliot, bispo de Londres [1163-1187], e
louvavam-no pelo valor dos seus milagres; depois de ter expos-
to grande número deles, um dos dois disse: "Se bem que aquilo
que dizemos de Bernardo seja verdade, vi todavia uma vez a
graça dos milagres faltar-lhe: um marquês da Borgonha pediu-lhe
um dia que lhe fosse curar o filho; fomos lá e encontrámos a
criança morta; então, Bernardo mandou transportar o corpo para
um quarto retirado e, depois de ter mandado sair toda gente,
deitou-se sobre a criança (I Reis XVII, 21) e orou; depois
54 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ergueu-se; mas a criança não se ergueu, pois jazia morta." En-


tão repliquei: "Foi o mais malfadado dos monges; pois nunca
ouvi dizer que um monge se deitasse sobre uma criança sem
que a criança se levantasse logo a seguir a ele." O abade ficou
vermelho e houve muita gente que saiu para se rir.»
Esta história—onde se notará a alusão à homossexualidade,
que provoca a hilaridade geral — é por certo suspeita. Não se
conhece, no século XII, nenhum "marquês de Borgonha". Mas
a anedota é reveladora da suspeição que recaía, pelo menos na
corte do rei de Inglaterra, sobre a personagem. Esta lenda negra
não deve todavia ser subestimada.
0 carácter intratável de Bernardo, os seus malogros, fizeram
dele um homem de acção frequentemente condenado. O juízo
de Achille Luchaire, no começo deste século, mantém-se céle-
bre: "Que foi então a obra de S. Bernardo? A oposição de um
homem de génio às correntes que arrastavam o seu século. (...)
A tentativa isolada desse admirável sonhador estava condenada,
à partida." Tentativa apaixonada e desmesurada de um homem
que queria fazer pender a sociedade inteira para o universo
monástico.

Notas
1
André Malraux, Les Chênes qu'on abat (...), Paris, Gallimard,
1971, p. 81; e cf. J. Berlioz, "De Gaulleet saint Bernard. Larencontre
de deux géants", em Cité, n.° 25, 1991, pp. 47-50.
2
Cf. Arsênio Frugoni, Arnaud de Brescia dans les Sources du XIle
Siècle, trad. francesa. A Boureau, Paris, Les Belles Lettres, 1993.
3
Cf. Anselme Dimier, "Outrances et roueries de saint Bernard", em
P ierre Abélard-Pierre le Vénérable, Paris, CNRS, 1975, pp. 655-670.
4
Dom Jean Leclercq, Nouveau Visage de Bernard de Clairvaux.
Approches psycho-historiques, Paris, Le Cerf, "Essais", 1976, p.47.
5
Sermón 83 (trad. francesa R. Aigran, Paris, Flammarion, 1929, p.
286).
6
Cf. Jacques Verger e Jean Jolivet, Bernard-Abélard (...), Paris,
Fayard-Mame, 1982, p.133; Paul Rousset, "Recherches sur Pémotivité
S. BERNARDO, O SOLDADO DE DEUS 51

à l'époque romane", em Cahiers de Civilisation Médiévale, 1959, pp.


53-63.
7
Abrégé des Gestes et Miracles des Saints, trad. francesa A. Dondai-
ne, Paris, 1947, p.351. C, Caroline W. Bynum, Jesus as Mother: Stu-
dies in the Spirituality of the High Middle Age, Londres, Berkeley, Los
Angeles, University of California Press, 1982.
8
Tradução francesa deste tratado em Zoé Oldenbourg, Saint Ber-
nard, Paris, Albin Michel, 1970, pp. 303-336.
9
Héminand de Froidmond, Chronique (Patrología Latina, 212,
1038).
10
Trad. francesa M. Pérez, Lille, Centre d'études médiévales et dia-
lectales, 1988, pp. 51-54; cf. também J. Berlioz, "Saint Bernard dans
la littérature satirique, de / ' Ysengri mus aux Balivernes des Courtisans",
em Vies or Légendes de Saint Bernard. Création, diffusion, réception
(Xlle-XXe siècles), CTteaux, Commentarü Cistercienses, 1993, pp.
211-228.
11
Histoire de France..., s/d, E. Lavisse, M/2, Paris, 1901, p. 282.

Orientação bibliográfica
O IX centenário (1990) do nascimento de S. Bernardo foi motivo
para a realização de numerosos colóquios, em França e no estrangeiro,
que permitiram avançar de novo com as pesquisas sobre o abade de
Claraval, caídas um pouco no esquecimento (aliás continua a não existir
nenhuma biografia crítica do santo).

Sobre S. Bernardo:
* J. Berlioz, Saint Bernard en Bourgogne. Lieux et mémoire, Dijon,
Le Bien Public, 1990.
* Bernard de Clairvaux. Histoire, mentalités, spiritualité. Colóquio
de Liâo-CTteaux, Dijon, Paris, "Sources Chrétiennes", 380, Le Cerf, 1992.
* M.-M. Davy, Bernard de Clairvaux, Paris, Éditions du Félin, 1990.
Trata-se da edição revista do prefácio de S. Bernardo, Oeuvres, Paris,
Aubier, 1945.
* Dom J. Leclerq, Bernard de Clairvaux, Paris, Desclée de Brou-
wer, 1989.
* L. Pressouyre e T.N. Kinder, s/d, Saint Bernard et le Monde Cister-
cien, Paris, Caisse Nationale des Monuments Historiques et des Sites/
56 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

/Sand, 2.a ed., revista e corrigida, 1992. (1.a ed., 1990). Importante obra
realizada por ocasião da exposição "S. Bernardo e a ordem cisterciense"
na Conciergerie de Paris (Dezembro 1990-Fevereiro 1991).
* L. Pressouyre,Le Rêve Cistercien, Paris, Gallimard, "Découvertes",
n.°95, 1990.
* E. Vacandard, Vie de Saint Bernard, Abbé de Clairvaux, 2 vols .,
4.a ed., Paris, 1910.
* J. Verger e J. Jolivet, Bernard-Abélard ou le Cloitre et 1'école,
Paris, Fayard-Mame, 1982.

Sobre a posteridade lendária de S. Bernardo:

* Brian P. McGuire, The Difficu/t Saint Bernard of Clairvaiix and


his Tradition, Kalamazoo, Michigan, Cistercian Publications, "Cister-
cien Studies series", 136, 1991.
* Vies et Légendes de Saint Bernard. Création, diffusion, réception
(Xlle-XXe siècles). Actas dos encontros de Dijon, 7-8 Junho 1991,
publicadas por P. Arabeyre, J. Berlioz e P. Poirrier, Cíteaux, Commen-
tarii Cistercienses, "Textes et Documents ", 5,19-3. Com várias comu-
nicações sobre a "lenda negra".

Obras de S. Bernardo:

* Edição crítica (em latim) por Dom J. Leclercq e H. Rocháis, Roma,


9 vols., 1957-1977.
* Concordances Verbales. Thesaurus sancti Barnardi Claraeval-
lensis, Turnhout, Brepols, 1988, em microfichas.
* Saint Bernard, Sermons pour 1'Année. Tradução francesa, in-
trodução, notas e índice analítico por P.-Y. Emery, Turnhout, Brepols,
Taizé, Les Presses de Taizé, 1990.
* Saint Bernard de Clairvaux, Textes Politiques, selecção e trad.
francesa de P. Zumthor, Paris, 10/18, 1986 (1.a ed. 1944).
* Saint Bernard, Oeuvres Mystiques, Paris, Ed. du Seuil, 1953.
* Saint Bernard de Clairvaux, Les Combats de Dieu. Textos esco-
lhidos e trad. por H. Rocháis, Paris, Stock, 1981.
* As obras de S. Bernardo estão a ser traduzidas para o francês para
a colecção "Sources Chrétiennes" (Paris, Le Cerf).
Abelardo. Escolas no claustro
Jacques Verger

"Havia então em Paris uma jovem chamada Heloísa, sobri-


nha de um certo cónego Fulberto (...)" e um brilhante filósofo,
chamado Pedro Abelardo, que ensinava teologia na escola da
catedral de Notre-Dame. Abelardo hospedou-se em casa do
cónego, que lhe confiou imprudentemente a educação da sua
sobrinha. Em breve uma paixão irresistível nasceu entre o pre-
ceptor e a sua aluna e Heloísa deu à luz um filho. Embora com
algumas reticências, os dois amantes consentiram num casa-
mento secreto. Mas este procedimento clandestino não lavava
de maneira alguma a honra de Fulberto e dos seus. No seu furor,
para punir Abelardo, mandaram-no castrar por serviçais. Este
drama levou à separação definitiva dos esposos. Cada um por
seu lado tomou o hábito monástico, ela em Argenteuil, ele na
grande abadia real de Saint-Denis.
Ter-se-á Abelardo comportado como um sedutor cínico,
como dará a entender mais tarde na sua Histoire de mes Ma-
Iheurs, confissão escrita em que a narrativa da falta devia ne-
cessariamente preceder a da expiação e da conversão ulterior?
Ou estaremos em vez disso, muito antes do tempo dos romances
corteses, perante um exemplo comovente de uma autêntica e
profunda paixão amorosa em que o ardor do desejo em nada
exclui a gravidade dos sentimentos? Na verdade, como o
58 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

demonstra este episódio famoso, no que se refere a Abelardo,


à sua personalidade, ao que move no íntimo o seu pensamen-
to, a incerteza surge e o historiador hesita entre interpretações
divergentes.
Contudo, até 1972, a biografia de Abelardo (1079-1142) pare-
cia bastante clara e em perfeita concordância com o conteúdo
teórico da sua obra filosófica e teológica. Esta clareza aparente
provinha essencialmente da qualidade excepcional da nossa prin-
cipal fonte no que se refere à sua vida e à sua personalidade.
Trata-se desse escrito autobiográfico já mencionado, a Histoire
de mes Malheurs: Abelardo relata nele a sua existência, desde o
início dos seus estudos pouco antes de 1100 até à sua permanên-
cia como abade no mosteiro de Saint-Gildas-de-Rhuys na Breta-
nha, na década de 1130. O tema central deste texto é o contraste
permanente entre a glória intelectual de Abelardo e os "in-
fortúnios" que a malevolência dos "invejosos" desencadeou con-
tra ele e que o conduziram a esse exílio bretão. De todas as
autobiografias do século XII, mais ou menos inspiradas nas Con-
fissões de Santo Agostinho, a de Abelardo parece a mais lím-
pida, a mais pessoal, a mais sincera.
As coisas complicaram-se um pouco quando, em 1972, o
historiador americano J. F. Benton apresentou no colóquio de
Cluníaco uma comunicação que fez sensação: ele afirmava que
a Histoire de mes Malheurs era uma falsificação composta no
século XIII. Para dizer a verdade, já desde o século XIX dúvi-
das mais ou menos fundadas sobre a autenticidade deste texto
tinham surgido a alguns eruditos mas nenhum ousara expres-
sá-las de maneira tão definida. A argumentação de J. F. Benton
não estava todavia isenta de falhas e raros foram os que aceitaram
segui-lo até ao final. Desde então, o próprio Benton renunciou
à sua tese radical e admite hoje em dia a autenticidade global da
Histoire de mes Malheurs e da correspondência entre Abelardo
e Heloísa.
O seu gesto iconoclasta de 1972 teve porém um efeito salu-
tar nos estudos abelardianos. Desde então, ainda que se admita
59

que esses textos são no essencial obra de Abelardo, não é pos


sível excluir manipulações ou modificações importantes nem,
sobretudo, lê-los, de maneira insuficientemente crítica, à ma-
neira de textos autobiográficos modernos, desejosos acima de
tudo de introspecção e de veracidade psicológica. Tanto como a
narrativa complacente dos seus infortúnios, parece que Abelar-
do quis relatar a sua conversão monástica e a de Heloísa, sua
mulher, sua "irmã bem-amada em Cristo". Mais do que dos seus
infortúnios, é pois da transposição deles em Deus que aqui se
trata. E é em relação a esta intenção mística, no fim de contas
bastante tradicional, e que é de edificação mais que de autojus-
tificação, que devemos interpretar os episódios narrados na
Histoire des mes Malheurs.
Por outro lado, graças a edições críticas modernas, o conheci-
mento renovado da obra filosófica e teológica de Abelardo mos-
tra que, sem serem falsas, as etiquetas que outrora lhe eram apli-
cadas — nominalismo, racionalismo — estão longe de explicar
a complexidade de um pensamento muitas vezes pioneiro e, por
consequência, matizado, hesitante, por vezes inacabado.
Finalmente, graças á preocupação actual de não separar já a
história das ideias da dos indivíduos e das instituições que
possibilitaram a sua difusão, Abelardo deixa de surgir hoje como
uma figura solitária no limiar do século XII, precursor genial,
isolado e incompreendido por parte dos grandes mestres da es-
colástica1 que virão a impor-se nas universidades do século XIII.
Conhecem-se já os nomes e por vezes as obras dos seus alunos,
dos seus confrades, dos seus protectores ou dos seus adversários.
É possível descrever com uma certa precisão os meios concre-
tos onde ele viveu e um melhor conhecimento da história social,
religiosa e intelectual do início do século XII permite reintegrá-
-lo com alguma verosimilhança no contexto do seu tempo, no
seio de uma sociedade em mutação, em progresso, atraves-
sada por correntes múltiplas, por vezes contraditórias, face às
quais lhe foi forçoso situar-se, não sem hesitações ou falta de
perícia.
60 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Assim, de maneira paradoxal, à luz destas publicações e tra-


balhos recentes, o perfil de Abelardo turva-se em vez de se cla-
rificar. Mas aquilo que perde em nitidez aparente, ganha-se
incontestavelmente em profundidade histórica.

A formação escolar

O universo de Abelardo foi à partida e sempre o das escolas.


Neste aspecto, Abelardo aparece num momento decisivo da
história intelectual da Idade Média. Numa altura em que já não
existia senão uma débil rede de escolas monásticas ou catedrais,
com um raio de açcão local e de nível geralmente assaz modes-
to, alguns centros surgiram no final do século XI, os quais asse-
guraram desde então um ensino mais profundo e susceptível de
atrair estudantes de origem longínqua. Esta renovação escolar,
indissociável do progresso geral do Ocidente nesta época,
aproveitou sobretudo às escolas urbanas, ligadas a capítulos das
catedrais ou dos colégios.
Contudo, a vocação imperiosa de Abelardo para os estudos
decorre essencialmente das suas inclinações pessoais e de uma
escolha voluntária. Teria sido mais natural que, filho mais ve-
lho de um cavaleiro bretão, nascido no burgo de Pallet, perto de
Nantes, em 1079, tivesse seguido o seu pai na carreira das ar-
mas. O pai, que por seu turno sabia ler, o que era bastante raro
no meio, proveu a que o seu filho recebesse a instrução inicial.
Por outro lado, o condado de Nantes mantinha relações de grande
abertura com a região do Loire, com o Chartrain e com a região
parisiense, centro do renovamento escolar. Pouco antes de 1100,
Abelardo pôde pois decidir, sem uma ruptura brutal, abandonar
aos seus irmãos mais novos os seus direitos hereditários, e deixar
a sua região e os seus para "ir para as escolas".
As primeiras páginas da Histoire de mes Malheurs contam
com uma pressa conquistadora a sua vagabundagem escolar entre
Angers, Loches, Tours e, mais tarde, Melun, Corbeuil e Laon.
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO (>l

Mas a sua meta essencial era Paris e as escolas da catedral de


Notre-Dame que atraiam já numerosos alunos. Abelardo foi aí
um estudante brilhante, combativo e indócil que, a crer nele,
superava os seus condiscípulos e contestava os seus mestres,
multiplicando os seus êxitos sem se preocupar com as invejas
que suscitava. Em breve quis ser ele a ensinar. O seu humor
batalhador — traço de mental idade herdado da sua origem cava-
lheiresca — trouxe-lhe então dificuldades. Foi-lhe difícil ven-
cer as reticências das autoridades eclesiásticas e dos mestres.
Depois de várias tentativas frustadas e de uma estada em Laon,
em 1113, onde se iniciou na exegese bíblica, conseguiu ser
admitido na escola de Notre-Dame em Paris.
Aí ensinou ao mesmo tempo as "artes liberais" — gramática
(entenda-se: o latim), retórica e sobretudo dialéctica, seu domínio
de predilecção — e teologia. A sua fama era considerável e
atraía de longe alunos brilhantes. Muitas personagens im-
portantes do século XII, que virão por sua vez a ser mestres das
escolas parisienses, bispos ou cardeais, encontraram-se, então
ou mais tarde, entre os seus ouvintes. Vivia em boa parte do
dinheiro que estes lhe pagavam para seguir os seus cursos, o
que lhe garantia uma certa independência face às autoridades
do cabido de Notre-Dame, se bem que estivesse teoricamente
agregado à sua escola. Foi deste modo possível apresentar Abe-
lardo como o primeiro exemplo acabado de intelectual medie-
val, de professor vivendo essencialmente de e para o seu traba-
lho de ensino.
É então, em 1117, que intervém o episódio dramático dos
seus amores com Heloísa, o qual rompe brutalmente o curso do
seu destino. É certo que continuará a ensinar e os seus tratados
filosóficos e teológicos são praticamente todos posteriores a esta
data. Podemos todavia deter-nos nesta curva da vida de Abelar-
do para tentar apreciar o que representou para ele a experiência
dos estudos e da escola.
Esta experiência foi, antes do mais, intelectual. A disciplina
favorita de Abelardo era a dialéctica — hoje em dia chamar-
62 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

-lhe-íamos a lógica — a arte do raciocínio justo que permite


discernir, unicamente pelos recursos da linguagem, o verdadei-
ro e o falso. Abelardo não inventou nem sequer redescobriu
esta disciplina cujos textos fundamentais, os da "velha lógica"
de Aristóteles, traduzidos em latim desde o século VI, eram já
comentados pelos seus mestres parisienses. Mas ele aperfeiçoou-
-a com uma mestria axtraordinária e, sobretudo, demonstrou
que ela podia ser um instrumento de uso universal em todos os
ramos do saber, em particular em teologia. Parece pois que
Abelardo foi o primeiro na Idade Média a dar à palavra "teolo-
gia" o seu sentido moderno de esforço de exposição racional e
sistemática do conteúdo das Escrituras e das verdades da fé.
Exposição e não explicação, pese embora aquilo que lhe cen-
surarão, sem nenhuma razão, os seus adversários. Cristão sin-
cero, Abelardo não ignorava nem os mistérios nem a trans-
cendência divina. Mas pensava que, graças à dialéctica, se podia,
de maneira evidentemente aproximativa, analógica, apresentar
as verdades reveladas (como o dogma da Trindade) de maneira
tal que ao menos parecesse que não estavam em contradição
com as exigências da razão.
Esta perspectiva achava-se no extremo oposto da perspectiva
da cultura monástica tradicional, que S. Bernardo conduzia então
ao seu apogeu e que se exprimia acima de tudo pelo comentário
alegórico e místico do texto sagrado, preparado na meditação,
na oração e na humildade. Existiam, face ao mistério da Reve-
lação, duas atitudes, duas concepções da relação do homem e
de Deus verdadeiramente incompatíveis. Sobre este ponto,
Abelardo não variará e as condenações que, mais tarde, recairão
sobre a sua obra nos concílios de Soissons (1121) e de Sens
(1140 ou, segundo alguns estudiosos, 1141), para além dos
mal-entendidos que tenham podido acarretá-las (falta de
habilidade de Abelardo, má fé dos seus adversários), mani-
festarão claramente a existência deste fosso.
O primado da dialéctica tinha para Abelardo uma outra con-
sequência prática muito importante. Significava que a discussão,
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO (>l

a "questão disputada", se tornava doravante o exercício escolar


fundamental que a leitura magistral mais não fazia que preparai'.
E isso modificava as próprias condições do trabalho intelectual,
a atmosfera das escolas, e as relações dos estudantes entre si e
com o seu mestre.
Até 1117, Abelardo conheceu apenas as escolas urbanas e
sobretudo parisienses. A afinidade profunda entre Abelardo e
Paris é um leitmotiv das primeiras páginas da Histoire de mes
Malheurs: "Cheguei finalmente a Paris", "Voltei a Paris", "De
regresso a Paris, aí ocupei as escolas que há muito me estavam
destinadas", etc. Ora a Paris do rei Luís VI (1108-1137) era
uma verdadeira cidade nova, em pleno progresso demográfico
e em plena mutação económica e política, afirmando-se o seu
papel novo de grande mercado, de centro cultural e de residência
régia. E as escolas, tal como Abelardo no-las descreve, partici-
pavam da atmosfera deste "estaleiro urbano" em pleno traba-
lho. Oficialmente, estavam sob o controlo da Igreja mas a maior
parte parece ter sido bastante autónoma, vigiadas quando muito
de maneira irregular e infomal; só mais tarde as coisas se en-
durecerão. Com frequência pago pelos seus alunos, o mestre
achava-se bastante livre nos seus movimentos, e no seu ensino,
aliás tal como os seus estudantes.
Esta liberdade era a garantia de mudanças intelectuais inten-
sas, estimuladas pelo êxito da dialéctica e da disputa, instru-
mentos de um verdadeiro progresso do conhecimento. O res-
gate desta atmosfera de emulação permanente e de curiosidade
intelectual sempre desperta era a frequência das querelas e a
aspereza das invejas entre alunos da mesma escola ou entre
mestres rivais que disputavam entre si os auditórios de estu-
dantes. Abelardo estava sempre pronto para estas polémicas e
os seus adversários recrutar-se-ão entre os outros mestres "in-
vejosos" das escolas laonesas ou parisienses bem como entre os
monges ou clérigos tradicionalistas.
Estes dados incontestáveis inspiraram a imagem, avançada
por Michelet, no século XIX, de um Abelardo "progressista".
64 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

laicizante e propagador de uma racionalidade "burguesa" que


certamente se opunha à cultura "feudal" e eclesiástica ainda
dominante. "Os prodigiosos êxitos de Abelardo [sic] explicam-se
facilmente. Parecia que pela primeira vez se escutava uma voz
livre, uma voz humana. Tudo o que se havia produzido na forma
pesada e dogmática do ensino clerical, sob o rude invólucro da
Idade Média, apareceu na elegância antiga que Abelardo tinha
reencontrado. O arrojado jovem simplificava, explicava, po-
pularizava, humanizava. Quase não deixava nada de obscuro
ou de divino nos mistérios mais transcendentes. Parecia que até
então a Igreja tinha balbuciado e que Abelardo falava. Tudo se
tornava doce e fácil; ele tratava delicadamente a religião,
manejava-a docemente, e ela fundia-se-lhe na mão. Ele restituía
a religião à filosofia, à moral, à humanidade (...) Esta filosofia
circulou livremente: atravessou num instante o mar e os Alpes;
desceu a todas as categorias. Os leigos puseram-se a falar das
coisas santas. Por toda a parte, já não apenas nas escolas, mas
nas praças, nos cruzamentos, grandes e pequenos, homens e
mulheres discorriam sobre os mistérios. O tabernáculo via-se
violado; o santo dos santos era arrastado pelas ruas. Os simples
eram sacudidos, os santos vacilavam, a Igreja calava-se.'"
Esta figura de um Abelardo libertador da razão contra todas
as "autoridades", repisada até aos nossos dias, nomeadamente
na historiografia marxista, confronta-se porém com múltiplas
dificuldades, nascidas de uma leitura mais minuciosa das obras
de Abelardo ou de um exame mais atento da sua biografia.
Em primeiro lugar, mesmo durante o período em que estava
directamente ligado às escolas urbanas, Abelardo não parece
ter estado grandemente em contacto directo com os meios pro-
priamente burgueses, os dos ofícios e do negócio. Os proble-
mas da troca e do trabalho não aparecem de modo algum na sua
obra e, se ele reconhece na Histoire de mes Malheurs ter ganho
dinheiro a ensinar, não se trata da reivindicação de um novo
estatuto social do trabalho intelectual mas antes a confissão de
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO (>l

uma falta da qual se arrependeu, de um pecado resgatado pela


sua conversão ulterior.
Aliás, Abelardo não manifesta qualquer interesse pelas
necessidades religiosas novas dos leigos, a evangelização das
multidões urbanas. Nesse aspecto, os cónegos de Saint-Victor,
comunidade fundada nos arrabaldes de Paris, por volta de 1108,
por Guillaume de Champeaux, antigo professor e adversário de
Abelardo, eram muito mais "modernos", pois procuravam
combinar ensino filosófico e teológico de alto nível na sua es-
cola conventual e serviço pastoral do povo urbano. Abelardo,
que criticou violentamente os cónegos regulares, era totalmente
insensível a este ideal novo no qual apenas via hipocrisia ou
inconsequência.
As suas reacções espontâneas mantinham-se pois as do cléri-
go ambicioso e do filho de cavaleiro que ele era profundamente.
Aliás, foi ainda nos meios eclesiásticos e aristocráticos que pro-
curou acolhimento e protecção. Paris era para ele a Cidade, a
ilha do rei e dos clérigos, não a margem direita, e ele consegue
tornar-se o protegido da família de Garlande, a linhagem mais
poderosa do séquito de Luís VI. Os estabelecimentos eclesiás-
ticos aos quais se ligará, o cabido de Notre-Dame, mais tarde
Saint-Denis, eram igualmente de recrutamento aristocrático;
entre os seus alunos, encontram-se vários filhos da nobreza
romana que virão a ser cardeais. A própria Heloísa era certamente
nobre, ainda que a sua família não tenha podido ser identificada
com segurança. Mais tarde, já como abade de Saint-Gildas, Abe-
lardo frequentará a corte do duque da Bretanha, antes de se retirar
para Cluníaco, o mais aristocrático dos mosteiros.
Abelardo procura pois o seu lugar da banda das elites so-
ciais tradicionais. Procura-a também na Igreja. Nunca sonhou
suscitar uma cultura e um ensino propriamente laicos. Quali-
fica-se prontamente como filósofo, mas esse vocábulo antigo
não abrange nele nenhuma reivindicação de autonomia para a
filosofia; neste aspecto, as suas diversas Teologías e o seu
66 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

célebre Sic et Non são claros3. Também se não verifica nenhuma


reivindicação de um estatuto social laico. Abelardo, "filósofo",
mas filósofo cristão, mantém-se um clérigo. E essa uma das
razões da sua repugnância pelo casamento com Heloísa (casa-
mento canonicamente possível pois que apenas recebera então
as ordens menores) numa época em que, ao sacralizar esse rito,
a Igreja dele faz precisamente um dos elementos mais nítidos
de discriminação entre clérigos e leigos4. Na realidade, com o
titulo de filósofo, Abelardo reivindica o reconhecimento, pela
Igreja e na Igreja, da sua vocação própria de teólogo e de docente,
vocação nova tornada indispensável pelo movimento do saber e
os progressos da "procura escolar" dos jovens clérigos. Ele gos-
taria que se constituísse na Igreja uma nova "ordem" de magis-
tri: professores encarregados de uma verdadeira função docente
e a quem seria reconhecida a autonomia necessária para desen-
volver essa actividade.
A carreira de Abelardo, que se inscreve no contexto do movi-
mento generalizado do Ocidente no século XII, o qual significa
afrouxamento das limitações antigas, renascimento das cidades
e dos intercâmbios, progresso do saber, libertação do indivíduo
e despertar da consciência, deve igualmente ser reintegrada no
seio da Igreja no grande movimento concomitante de reforma
que é assinalado pela diversificação das instâncias eclesiásti-
cas, numa preocupação de melhor adaptação aos tempos novos,
e pelo reforço do enquadramento clerical na sociedade.
Abelardo foi duas vezes condenado, objectar-se-á. Mas es-
sas condenações, pronunciadas por concílios locais sob a pressão
de alguns clérigos tradicionalistas, especialmente S. Bernardo
em 1140, não exprimem o juízo unânime de toda a Igreja desse
tempo: de ambas as vezes, prelados de elevada categoria e de
elevada cultura defenderam-no e acolheram-no após as suas
condenações, que aliás não tiveram senão um efeito limitado na
difusão das suas ideias, das suas obras e do seu método. Longe
de se achar isolado, Abelardo criou, graças aos seus alunos e
aos alunos dos seus alunos, uma verdadeira "escola"5 filosófica
(>l
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 63

e teológica à qual se ligam, directa ou indirectamente, a maioria


dos mestres parisienses do século XII e séculos posteriores.
Resta um último ponto, essencial. Abelardo entrou como
monge para Saint-Denis em 1117 e morrerá em 1142, no priora-
do cluniacense de Saint-Marcel perto de Chalón. Logo, são vinte
cinco anos de uma carreira monástica tão tumultuosa como a
sua carreira professoral. São muitas as biografias de Abelardo
que se detêm em 1117 e em nada tratam do último período da
sua vida, ou pelo menos não atendem à sua especificidade.
Devemos tomar a sério, porém, esses episódios monásticos, ricos
de ensinamentos sobre a personalidade de Abelardo e sobre o
seu verdadeiro lugar na sociedade e na história cultural e religiosa
do seu tempo.

A impossível tebaida

O drama de 1117 não introduz na vida de Abelardo uma


ruptura total. Ele continuou, pelo menos episodicamente, a en-
sinar nos diversos mosteiros, priorados e eremitérios em que
residiu. "Logo que tiveram conhecimento do meu retiro, os alu-
nos começaram a acorrer de toda os lados. Abandonando cidades
e burgos, vinham viver comigo no deserto" — escreve. Já em
Saint-Denis o mesmo fenómeno se havia produzido: "Mal me
encontrei restabelecido do meu ferimento, os clérigos, acorren-
do de toda a parte, puseram-se a importunar o nosso abade e a
mim mesmo com as suas súplicas: como o tinha feito até ao
presente pela glória e o lucro, diziam eles, que me consagrasse
agora ao estudo pelo amor de Deus (...) Retirei-me para uma
dependência para aí retomar o meu ensino segundo a minha
maneira habitual. A multidão dos alunos que aí acorria era tal,
que essa casa não chegava para os albergar nem a sua terra para
os alimentar. Como convinha ao meu estado religioso, tinha a
intenção de me consagrar sobretudo à teologia; não rejeitava
contudo completamente as artes liberais que me eram mais fa
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

miliares e que eram o que mais me era pedido; servia-me pois


delas como de um isco para atrair os meus auditores, dando-lhes
o gosto da filosofia para os conduzir ao estudo da verdadeira
filosofia."6 Em 1136, regressou mesmo a Paris; teve de reabrir
aí uma escola particular e por lá ficou talvez até à sua com-
parência perante o concílio de Sens. Sobretudo, parece que o
ensino do seu período monástico, do qual data a redacção de-
finitiva de quase todos os seus tratados, seguiu a sequência do
anterior a 1117: o mesmo gosto pela dialéctica, o mesmo es-
forço para tratar de maneira tão racional e matemática quanto
possível certos pontos fundamentais da Revelação. A única
originalidade deste período é um interesse marcado pela teolo-
gia moral que se exprime num tratado, Ethique ou Connais-toi
Toi-même, redigido por volta de 1136-1140.
Esta constância num ensino pouco conforme com as tradições
da cultura monástica bastará para encarar Abelardo como "monge
sem regra, abade sem disciplina, não tendo de religioso senão o
nome e o hábito", como fez S. Bernardo? O próprio Abelardo diz
ter sido à partida um monge sem vocação, entrando para
Saint-Denis por desespero e por necessidade, e a sua carreira
monástica foi marcada por peripécias pouco compatíveis com o
voto tradicional de estabilidade: após uma curta estada em
Saint-Denis, onde depressa entra em disputa com os seus con-
frades, reside em diversos priorados e mosteiros champanheses
filiados ou aliados a Saint-Denis. Em 1122, tentado pelo retiro
"no deserto", funda um pequeno eremitério; três anos mais tarde,
parece voltar à norma ao aceitar o cargo de abade do mosteiro de
Saint-Gildas-de-Rhuys perto do golfo de Morbihan. Mas,
perseguido pelos seus próprios monges, foge para regressar a Paris
em 1136. Finalmente, após a sua condenação de Sens, retira-se
para o mosteiro de Cluníaco, a convite do abade Pedro, o
Venerável. Muitos outros monges dos séculos XI e XII, contudo,
darão exemplos análogos de instabilidade.
Importa, isso sim, reter tudo o que faz de Abelardo um
monge autêntico: o aparecimento, entre os seus escritos, de textos
ABELARDO. ESCOLAS N O CLAUSTRO 65

que provêm de géneros conformes com a tradição literária


monástica: sermões, diálogos e poemas litúrgicos, a adesão
explicita aos valores mais profundos do monaquismo que são
a fuga do mundo, a contemplação e a oração, o serviço exclu-
sivo de Deus. Abelardo tornou seu e viveu este ideal. O re-
morso dos seus erros passados, o traumatismo dos "infortúni-
os" sucessivos, a sua fé sincera e a sua sede de salvação,
expressas com fervor na sua bela Confissão de Fé de 1140,
são as componentes desta conversão de cuja autenticidade nada
permite suspeitar. Ela apoiava-se, graças às suas vastas lei-
turas patrísticas7, num excelente conhecimento das tradições
do monaquismo primitivo. Deixando de lado o episódio pari-
siense de 1136, Abelardo abandonou desde então, como um
verdadeiro monge, a cidade, trocando-a pelo deserto, floresta
champanhesa ou costas bretãs.
Que género de monge foi Abelardo? O século XII é um tem-
po de desenvolvimento mas também de diversificação, de ex-
plosão da vida regular. Ao lado da velha ordem de Cluníaco
aparecem ramos mais jovens, impelidos simultaneamente pelas
exigências da reforma da Igreja e as aspirações novas dos fiéis,
Nas cidades, os cónegos que combinam observância regular e
serviço pastoral multiplicam-se. Eremitas povoam os ermos e aí
fundam pequenas comunidades originais e ascéticas.
Com Cister e Claraval aparece nos primeiros anos do sé-
culo XII o segundo grande ramo da árvore beneditina. Sob o
impulso de S. Bernardo, os cistercienses fazem triunfar o seu
ideal de respeito literal da Regra, de ruptura completa com o
mundo, de retorno rigoroso à obediência, à ascese e à vida co-
mum. As casas cistercienses multiplicam-se e esta ordem em
breve desempenha um papel de primeiro plano na vida da Igre-
ja. S. Bernardo é chamado a toda a parte para arbitrar querelas
de toda a espécie; viajante infatigável, institui-se como guardião
vigilante e influente da doutrina tradicional contra o erro e contra
a novidade, que para ele são uma só coisa. É a este título que em
1140, informado apressadamente dos escritos de Abelardo,
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

faz condenar em Sens aquele em quem não vê senão um monge


fugitivo e um dialéctico pernicioso "que quer compreender pela
razão humana tudo o que é de Deus".
Nesta constelação, onde situar Abelardo? Esta personagem,
cuja modernidade é habitualmente elogiada, desconfia global-
mente das ordens novas. Critica os cónegos regulares cuja vo-
cação pastoral não entende. Critica também os cistercienses,
pelo menos a avaliar por um panfleto recentemente descoberto,
do qual terá sido o autor, onde os cisterciences são caracterizados
como hipócritas sequiosos de poder8. Inversamente, mantém com
frequência boas relações com os representantes das formas tradi-
cionais de vida religiosa: os cónegos não reformados de
Notre-Dame ou de Sainte-Geneviève em Paris, os monges de
Saint-Denis e sobretudo os de Cluníaco, enseada de paz onde
termina a sua vida tumultuosa.
Devemos então colocar Abelardo entre os tradicionalistas?
Ou terá ele sido um "Herodes sob as aparências de João Baptis-
ta", como o acusava S. Bernardo, um hipócrita que demandou
as comunidades laxistas cujo relaxamento cobriria o seu mau
procedimento e os seus erros? Ainda neste ponto, a situação de
Abelardo parece sobretudo situar-se sob o signo da ambigui-
dade. Professor fascinado pela cidade, não ousou inscrever-se
verdadeiramente nas correntes novas e específicas da realidade
urbana. Monge fascinado por um ideal ao qual se converteu
sinceramente, não consegue escolher a sua forma concreta. Não
é certamente um defensor dos abusos; denuncia-os em
Saint-Denis e por pouco não é assassinado pelos seus monges
em Saint-Gildas por ter querido combatê-los. Qual o clérigo
sincero e culto da época que não teria aliás aderido às palavras
de ordem da reforma da Igreja, ao regresso à vida verdadeira-
mente apostólica? Nesta data, esse ideal já não é muito contes-
tado. Mas a Abelardo repugnava realizar esta aspiração num
quadro rígido; este moralista da intenção não se vergava de boa
vontade ao respeito literal da Regra; esta personalidade descon-
fiada acomodava-se mal à vida comunitária permanente e à estrita
obediência.
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 71

A vida monástica com que ele sonhava inscrevia-se antes no


registo da utopia, da santidade impossível. Ele gostaria que ela
tornasse compatível o que se excluía muitas vezes brutalmente
na prática quotidiana das instituições concretas: a vida comu-
nitária com o retiro eremítico, a contemplação com o estudo, a
liturgia com a filosofia, a força e a sabedoria masculinas com a
fragilidade e a espiritualidade femininas. Os episódios mais
salientes da carreira monástica de Abelardo podem interpretar-se
como tentativas para realizar esta aspiração.
O lugar por excelência destas experiências foi o Paráclito,
esse retiro champanhês que ele colocou sob a invocação da
Santíssima Trindade. Aí tentou a aventura eremítica até que o
afluxo excessivo dos estudantes constituísse em torno dele uma
comunidade que ele não conseguiu gerir. Depois, feito abade de
Saint-Gildas, aí instalou Heloísa e as suas religiosas; para esse
novo mosteiro do Paráclito, que visitava de tempos a tempos,
concebeu uma regra que teria feito dele um mosteiro misto,
colocado sob a dupla autoridade de uma abadessa, Heloísa, e do
fundador, pai espiritual das monjas, ele mesmo. Este sistema subtil,
reconstituição quase mística do casal separado em 1117, caiu num
completo malogro e o Paráclito depressa se tornou, sob a firme
autoridade de Heloísa, num mosteiro feminino assaz clássico.

Artesão de paz

Este itinerário monástico complexo, que lembra o do seu


contemporâneo Roberto d'Arbrissel9, exprime o jogo de uma
personalidade a um tempo lúcida e irresoluta, numa encruzilhada
de influências múltiplas mas inábil em fazer escolhas claras,
susceptíveis de uma realização concreta. Abelardo só encon-
trou a sua serenidade quando a escolha lhe foi imposta, tanto
pelos golpes de S. Bernardo como pela solicitude paternal de
Pedro, o Venerável, a do retiro em Cluníaco. Não serão sem
dúvida nem o poderio da ordem nem a sumptuosidade das litur-
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

gias que o terão retido, mas a regularidade de uma vida sem


austeridades formalistas, a liberdade que lhe deixavam para se
preparar em paz, na oração e no estudo, para a morte que a sua
idade e a má saúde o levavam a pressentir.
E pelo menos assim que o descreve Pedro, o Venerável, em
carta na qual anunciou a sua morte a Heloísa: «Não me lembro
de ter visto ninguém que tenha tido e demonstrado uma tal hu-
mildade (...) Lia continuamente, orava com frequência, não que-
brava o silêncio senão para conversar familiarmente com os
irmãos ou quando tinha de falar publicamente das coisas divi-
nas na assembleia. Frequentava tanto quanto podia os santos
sacramentos, oferecendo a Deus o sacrifício do Cordeiro imor-
tal (...) Pelo espírito, pela boca, pelo trabalho, não cessava de
meditar, de ensinar, de professar, tanto sobre as coisas de Deus
como sobre os assuntos filosóficos e os outros domínios do sa-
ber (...) Foi assim que Mestre Pedro consumiu os seus derradei-
ros dias, na doçura e na humildade, como discípulo daquele que
disse: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração"
(Mateus, XI, 29), ele que tinha sido conhecido quase no mundo
inteiro, e célebre em toda a parte, como um mestre de uma ciên-
cia singular.»10
Podíamos apresentar de Abelardo um retrato ainda mais ma-
tizado, de tal forma os textos que com ele se prendem — quer
os seus, quer os dos seus contemporâneos — são ricos mas
muitas vezes incertos, e até contraditórios. Mesmo no seu tempo,
circulavam já várias imagens de Abelardo. No entanto, há dois
traços que ressaltam, no meio das incertezas.
Em primeiro lugar, a constância do projecto intelectual. Com
os meios de que dispunha, isto é, a colecção de escritos tradi-
cionais (a "velha lógica", a Bíblia e os Doutores da Igreja) que
não tinha ainda sido enriquecida por todos os textos filosóficos
que virão a ser traduzidos do árabe, muito cedo ele definiu a sua
ambição e a ela se ateve sem desfalecimentos: combinar fé e
razão, conciliar um sentimento cristão autêntico, alimentado ao
mesmo tempo de tradição (Santo Agostinho) e de modernidade
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 73

(a "reforma da Igreja"), com as exigências filosóficas incon-


tornáveis nascidas de um domínio consumado da dialéctia e de
uma atenção minuciosa centrada nas estruturas da linguagem.
Abelardo nunca duvidou de que essa conciliação fosse possível
e até mesmo, no futuro, necessária.
A estas certezas intelectuais opõe-se a incerteza de um destino
mal dominado. Fascinado pelas correntes novas de uma socie-
dade em pleno desenvolvimento sem ousar romper todos os laços
com a ordem antiga, perdendo-se nos espaços abertos pelo
afrouxamento das velhas constrições sociais e morais, hesita
sem cessar entre a cidade e o mosteiro, entre a escola e o claustro.
Sentir-nos-íamos tentados a falar de individualismo em relação
a este autor que, na sua Etica, como critério do juízo moral,
coloca o colóquio da consciência consigo mesma e com Deus
em vez da objectividade brutal das velhas listas tabeladas de
pecados da alta Idade Média.
Mas, ainda neste ponto, Abelardo furta-se e refugia-se no
sonho e na utopia. Com toda a probabilidade, a sua última obra,
iniciada em Cluníaco após 1140 e inacabada, o Dialogue entre
un Philosophe, un juif et un Chrétien, espécie de apologia do
cristianismo que, num espírito muito aberto, procura mostrar
que a religião cristã consuma uma Revelação da qual certos
elementos se achavam já presentes entre os pagãos e entre os
judeus. Mas notemos que, neste espantoso "sonho nocturno", o
papel que Abelardo reserva para si não é o do cristão mas o de
árbitro do debate. Houve quem sorrisse desta auto-exaltação,
por vezes qualificada como quase paranóica.
Prefiro pensar que, na sua última obra, Abelardo, esse comba-
tente, essa personagem infeliz, atormentada, muitas vezes mal-
tratada, preferiu descrever-se como artesão de paz, conciliador.
Nostalgia de uma vocação impossível neste homem que, colo-
cado no cerne de um dos centros do progresso do Ocidente,
viveu intensamente, sem conseguir dominá-las, as tensões que
transformavam esse mundo. Mas podemos crer que foi nesta
esperança de conciliação que, como diz Pedro, o Venerável, "o
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

encontrou a vinda do Visitador evangélico, não adormecido


como tantos outros, mas desperto (...) com a lâmpada acesa".

Notas

' Escolástica: forma de ensino tido em apreço na Idade Média, princi-


palmente em teologia, e cuja característica principal consiste em as-
sentar no uso sistemático da dialéctica como método universal de ex-
plicação dos textos e de exposição das questões.
2
Histoire de France, livro IV, cap. IV, texto de 1869, em J. Miche-
let, Oeuvres Completes, ed. por P. Viallaneix, t. 4, Paris, 1974, pp.
453-454.
3
Terminado por volta de 1136-1140, o Sic et Non (Sim e Não) é
uma vasta recolha de citações dos Doutores da Igreja sobre pontos
essenciais da fé, parecem sustentar opiniões contraditórias; o prólogo
explica claramente que o propósito deste livro não é de forma alguma
incitar ao cepticismo mas, pelo contrário, propor um método para re-
solver essas contradições aparentes e melhor estabelecer assim a ver-
dade cristã.
4
Cf. o artigo de Michel Sot, "La genèse du mariage chrétien", L 'His-
toire, n.° 63, pp. 60-65.
5
Tal como ficou perfeitamente demonstrado por D. E. Luscombe,
The School of Peter Abelard, The Influence of Abelard's Thought in
the Early Scholastic Period, Cambridge, 1969.
6
Abelardo, Historia Calamitatum, ed. J. Monfrin, Paris, Vrin, últi-
ma ed., 1978, pp. 81-82.
7
Patrístico: relativo aos Santos Padres.
8
Este texto foi recuperado e publicado por L. J. Engels, "Adtendite
a falsis prophetis (Ms. Colmar 128, f. 152v/153v). Un texte de Pierre
Abelard contre les cisterciens retrouvé?", em Corona Gratiarum (Mé-
langes E. Dekkers), t. 2, Bruges-s' Gravenhage, 1973, pp. 195-228.
9
Cf. o artigo de Jacques Dalarun, "Robert d'Arbrissel, l'homme
qui aimait les femmes", L'Histoire, n.° 82, pp. 38-46, reatado neste
volume, pp. 45.
10
Carta 115 em The Letters of Peter the Venerable, ed. G. Consta-
ble, vol.l, Cambridge, Mass., 1987.
ABELARDO. ESCOLAS NO CLAUSTRO 75

Orientação bibliográfica

A vida e a obra de Abelardo foram objecto, nestes últimos anos, de


trabalhos e de colóquios importantes que renovaram a nossa concepção
da sua situação histórica — renovação essa de que o presente artigo
tenta, pelo menos sobre certos pontos, fazer o balanço —, ao mesmo
tempo que permitem percorrer comodamente a abundante bibliografia
abelardiana. São de reter:
* O magnífico ensaio (ignorando embora qualquer dúvida sobre a
autenticidade da Histoire de mes Malheurs) de É. Gilson, lleloise et
Abelard, 2.° ed., Paris, Vrin, 1964.
* Os numerosos trabalhos de J. Jolivet, especialmente: Arts du Langa-
ge et Théologie cher Abelard, Paris, Vrin, 1969; Abelard ou la Phi-
losophie dans le Langage, Paris, Seghers, 1969, reed. em 1994 por Éd.
Univ. de Friburgo e Le Cerf, Paris. "Abélard entre chien et loup", em
Cahiers de Civilisation Médiévale, 20, 1977, pp. 307-322.
* Várias monografias recentes: A. Crocco, Abelardo. L"'altro versan-
te" de! Medioevo, Nápoles, Liguori, 1979; J. Verger e J. Jolivet, Ber-
nard/Abelard le Cloitre et 1'École, Paris, Fayard-Mame, 1982; M. Fu-
magalli Beonio Brocchieri, Eloisae Abelardo, Milão, Mondadori, 1984.
* Vários colóquios onde se encontrarão numerosos artigos (em di-
versas línguas) associando um balanço dos resultados adquiridos e
perspectivas de investigação: Peter Abelard, Lovaina-Haia, Leuven Univ.
Press e M. Mijhoff, 1974; Pierre Abélard. Pierre le Vénérabie. Les
courants philosophiques, littéraires et artistiques en Occident au milieu
du Xlle siècle, Paris, Éd. du CNRS, 1975; Petrus Abaelardus
(1079-1142). Person, Werk und Wirkung, Tréveros (Trier), Pauli-
nus-Verlag, 1980\ Abélard en son temps, Paris, Les Belles Lettres, 1981.
* Traduções em francês: a Histoire de mes Malheurs e as quatro
primeiras cartas trocadas entre Heloísa e Abelardo foram traduzidas
por P. Zumthor sob o título: Abélard et Hélo'ise, Correspondance, Pa-
ris, UGE-col. 10/18, 1979; ver também Pierre Abélard, Conférences
(Dialogue d'un Philosophe avec unJuifet un Chrétien) — Connais-toi
Toi-même (Éthique), intr. e trad. de M. de Gandillac, Paris, Le Cerf,
1993 (de notar que, nesta nova tradução, M. de Gandillac se opõe à
datação tradicional do Diálogo, aquela que nós atrás utilizámos (1141),
e propõe remontar a sua composição a 1125; nesse caso, teríamos
evidentemente, que renunciar a ver nela o "testamento" de Abelardo).
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* Sobre o problema da autenticidade das cartas, cf. J. Verger, "HéloTse


et Abélard: leurs lettres d'amour sont-elles des faux?", L'Histoire, n.°
165, pp. 68-70.
Os Cavaleiros Teutónicos,
monges-soldados do germanismo
Philippe Dollinger

Exaltados pelo regime nacional-socialista como pioneiros da


"arremetida para Leste" do germanismo, os Cavaleiros Teutóni-
cos, devido a isso, são ainda bastante mal vistos. Censurados pela
brutalidade na conquista e colonização da Prússia Oriental, é com
base nesse aspecto que o Grande Dicionário de Meyer, editado
em Leipzig, na curta notícia que lhe consagra, fala da ordem
"macula-da de sangue" e estigmatiza a "tradição clérico-militarista"
que os seus membros ainda mantêm nos nossos dias.
É incontestável que os Teutónicos derramaram sangue, por
terem sido criados para combater os inimigos da fé, mas a censura
poderia igualmente ser dirigida aos Templários e aos Mandianos.
E haverá necessidade de recordar o carácter inexpiável das
guerras religiosas da Idade Média, e até em épocas menos anti-
gas? Será necessário evocar as atrocidades da cruzada contra os
Albigenses, o banho de sangue derramado pelos Cruzados, aquan-
do da conquista da Jerusalém (1099), o massacre de quatro mil
prisioneiros em represália de uma sublevação dos saxões pagãos,
por ordem de Carlos Magno, cuja glória em nada foi manchada
por essa crueldade? Poíamos multiplicar este tipo de exemplos:
os Teutónicos não foram nem piores nem melhores do que os
guerreiros do seu tempo.
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Em França, um preconceito desfavorável particular liga-se


por vezes aos Teutónicos. Em parte por causa do próprio nome,
que evoca a investida em Itália dos Teutões bárbaros no século
II antes da nossa era. Mas nesse caso trata-se de uma assimila-
ção totalmente errónea. A palavra deutsch, no velho alto alemão
diutisc, foi traduzida para latim, a partir do século VIII, por
theodiscus, depois por teudiscus e, finalmente, por interven-
ção de eruditos entusiasmados com a Antiguidade clássica, por
teutonicus, etimologia evidentemente fantasista. Com efeito, os
cavaleiros ditos "teutónicos" não passam de cavaleiros alemães.
Como as suas predecessoras, a Ordem Teutónica deve a sua
origem a um hospital fundado em Jerusalém na primeira metade
do século XII para albergar e tratar os peregrinos alemães. Não
sabemos quase nada deste estabelecimento, que desapareceu
quando da reconquista de Jerusalém por Saladino (1187). Mas,
três anos mais tarde, burgueses de Brema e de Lubeque fundavam,
em frente a São João de Acre sitiada pelos cristãos, um novo
hospital, cedo confirmado pelo Papa. Entretanto, em 1198, no-
bres e príncipes alemães, entre os quais o duque da Suábia, filho
de Frederico Barba Roxa, decidiram transformar o estabe-
lecimento numa ordem monástica e militar dotada da regra dos
Templários, mais tarde completada por "costumes" particulares.
Os cavaleiros tomaram o nome — que mantiveram sempre
oficialmente depois — de "Irmãos da Casa do Hospital dos Ale-
mães de Nossa Senhora em Jerusalém", recordando a sua origem
e a sua missão hospitalária. O nome assinalava também o seu
carácter estritamente nacional: face aos Hospitalários e aos Tem-
plários dominados pelos Franceses, a sua ordem era a dos Ale-
mães (Teutonicorum). A bem dizer, a regra, se exigia a origem
nobre do cavaleiro, nada especificava quanto à sua nacionalidade.
É pois possível que tenha havido alguns estrangeiros admitidos
de pleno direito na ordem, nomeadamente polacos na época da
instalação dos cavaleiros na Prússia. Mas esses casos foram ex-
tremamente raros e não estão confirmados com segurança.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 79

A nova ordem, promulgada por Inocêncio III logo em 1199,


beneficiou de privilégios e de doações consideráveis em quase
toda a Europa e na Palestina. Os Teutónicos puderam assim
construir vários castelos, dos quais os mais importantes foram
os de Montfort, a nordeste de São João de Acre, e de Torum,
mais longe, na estrada de Damasco. Todavia confrontavam-se
com as contestações e a hostilidade dos Mandianos.
Foi o que incitou o quarto grão-mestre, I lermano de Salza,
umadas cabeças políticas mais sagazes do século XI11, a procurar
um estabelecimento na Europa oriental, onde o paganismo esta-
va ainda largamente difundido (1210-1239). Uma primeira tenta-
tiva de instalação na Transilvânia gorou-se na sequência da
oposição do rei da Hungria. Mas então chegou um pedido de
ajuda do duque polaco de Masóvia. A situação do cristianismo
no sector do baixo Vístula era, com efeito, alarmante. Os Prus-
sianos, ramo do povo lituano, cujas múltiplas tribos se achavam
repartidas entre o Niémen, o Báltico e o Vístula, eram ferozmente
pagãos e travavam contra os seus inimigos uma luta ao mesmo
tempo nacionalista e religiosa. A evangelização empreendida por
missionários polacos e alemães tinha alcançado algum êxito no
início do século X, mas uma reacção pagã acabava de arruinar a
obra começada. Mais: os Prussianos efectuavam incursões de-
vastadoras em terras cristãs, e daí o apelo aos Teutónicos.
Hermano de Salza aceitou a oferta. Conselheiro íntimo de
Frederico II, obteve do imperador, em Rimini (1226), um di-
ploma selado por uma bula de ouro atribuindo à ordem a região
de Culm, na margem direita do Vístula (cf. mapa, p. 85), bem
como todos os territórios que fossem conquistados aos
Prussianos. A ordem ficava por meio deste diploma investida
dos atributos de plena soberania sobre todos os habitantes, de
independência completa em relação a todo o poder exterior,
eclesiástico ou laico. Era o reconhecimento de um Estado
soberano, colocado, é certo, "sob a monarquia do Império",
mas esta restrição era puramente platónica e nunca teve efeito
prático.
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Foram precisos ainda quatro anos de negociações penosas,


primeiro na sequência de um conflito ardente entre o Imperador
Frederico í l e o papa Gregório IX, cujo acordo era necessário,
no seguimento das hesitações de Conrado de Masóvia, inquie-
to, justificadamente, com a amplitude do privilégio imperial.
Mas deu o seu assentimento em 1230 e Gregório IX lançou um
apelo à cruzada contra os Prussianos.
A conquista, sob o estímulo do provincial Hermann Balk,
foi conduzida metodicamente e, a princípio, com êxito. Tendo
atravessado o Vístula, os Cruzados edificaram o seu primeiro
castelo em Torun; este em breve se viu rodeado de uma po-
voação. O nome provinha do castelo de Torum na Palestina,
que os Teutónicos acabavam de edificar: para eles, a luta contra
os Infiéis era em toda a parte o mesmo combate e qualificavam
prontamente os seus inimigos de Turcos ou de Sarracenos. No
ano seguinte (1232), um segundo castelo foi construído em
Culm, a cidade foi dotada de um estatuto, o qual foi depois
aplicado a todas as cidades prussianas e que se caracterizava
sobretudo pela obrigação de um serviço militar muito pesado.
A progressão fez-se igualmente por mar, com navios forneci-
dos principalmente por Lubeque, o que permitiu a fundação das
cidades de Elbing (1237), de Braunsberg, e finalmente de
Conisberga (1255), nome escolhido em honra de Otocar, rei da
Boémia, que viera prestar auxílio aos Cruzados.
A penetração no interior foi mais rude. Os cavaleiros eram
pouco numerosos — no total, talvez um milhar, contrariamente
a valores exagerados outrora avançados — e o seu papel era
sobretudo o de enquadrar os contingentes de Cruzados vindos
da Alemanha, da Polónia e da Boémia, em geral pelo período
de um ano, após o qual eram substituídos por outros. A cada
campanha edificavam um castelo, ponto de apoio para a seguinte.
Em cada etapa dispunham as tendas em círculo, no meio do
qual eram colocados o material e os cavalos. Muitas vezes as
expedições eram feitas no Inverno, sendo a marcha facilitada
pelos pântanos e pelos lagos gelados.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 81

Uma peripécia imprevista veio ainda pesar sobre a tarefa


dos Teutónicos, ao mesmo tempo que lhes assegurava uma ex-
tensão territorial inesperada. Os Países Bálticos tinham começa-
do a ser evangelizados a partir do final do século XII. A fundação
de Riga (1201), sede de um bispado, a criação da ordem dos
Cavaleiros Porta-Gládio permitiram a princípio uma ocupação
bastante fácil da região. Mas em 1236, os lituanos pagãos infli-
giram na Curlândia uma derrota esmagadora aos Porta-Gládios
e toda a obra de cristianização voltou a ser posta em causa. Balk,
aprovado por Hermano de Salza, interveio à pressa. Incorporou
os Porta-Gládios -— não sem alguma resistência - nos Teutó-
nicos e conseguiu restabelecer a situação. Durante os anos que
se seguiram, aliada aos Suecos, a ordem dominou toda a Livó-
nia. Chegou a ter esperanças de conquistar uma parte da Rússia
e de aí eliminar a religião ortodoxa em proveito do catolicismo.
Mas Alexandre Nevski, príncipe de Novgorod, cedo cortou estas
ambições. Depois de ter vencido os Suecos nas margens do Neva,
o que lhe valeu o seu cognome, infligiu uma pesada derrota aos
Teutónicos sobre os gelos do Iago Peipus (5 Abril 1242). Foi o
primeiro grande confronto da história entre Russos e Alemães.
O resultado foi que o lago passou a formar o limite oriental das
possessões teutónicas, enquanto os Dinamarqueses se instala-
vam na Estónia nas costas do golfo da Finlândia, que só foram
cedidas à ordem um século mais tarde (1346). Para o sul, todos
os esforços despendidos para trinchar a Samogícia pagã foram
vãos, de tal maneira que o Estado teutónico continuará dividido
em dois blocos mal ligados entre si (cf. mapa, p. 85).
Entretanto, na Prússia, uma primeira revolta, em 1240, veio
mostrar que os indígenas não se resignavam ao domínio dos
Alemães. A segunda revolta, em 1260, reuniu quase todas as
tribos prussianas contra o invasor. A região foi saqueada, os
castelos do interior recuperados as cidades incendiadas. Mas
logo os Cruzados vindos da Alemanha permitiram à ordem levar
a cabo uma guerra vitoriosa e inexpiável. Não será exacto,
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

certamente, ao contrário do que se disse, que os habitantes


tenham sido exterminados ou expulsos na sua quase totalidade.
Algumas tribos, que não haviam participado na sublevação,
beneficiaram de um estatuto relativamente favorável, bastante
próximo do dos Alemães, e alguns dos seus chefes foram depois
admitidos na nobreza. Mas os revoltosos escapados aos mas-
sacres foram submetidos a uma dura servidão.
No final do século XIII, todos os territórios do Estado teutó-
nico estavam pacificados e convertidos ao cristianismo, tanto
na Livónia como na Prússia. Restava a Samogícia, que não pare-
cia poder resistir por muito tempo. Foi, no entanto, preciso um
século para que tal se efectuasse. Periodicamente, foram em-
preendidas cruzadas nesse sector, sob a forma tanto de esplen-
dorosas cavalgadas como de guerras locais, mas sem resultado.
Finalmente, foi apenas por volta da década de 1400, na sequên-
cia da conversão de Jagelão, grande príncipe dos Lituanos, e
dos esforços de missionários vindos dc Leste, que caiu o último
bastião do paganismo na Europa.
O século XIV assinala o apogeu da Ordem Teutónica. O
prestígio da obra realizada na Prússia recebeu a sua coroação
quando a sede suprema da ordem, localizada em São João de
Acre até à queda da cidade (1291), a seguir retirada para Ve-
neza, foi transferida para o castelo de Mariemburgo no braço
oriental do delta do Vístula (1309). Aí permaneceria durante
século e meio.
Além das possessões orientais, a Ordem Teutónica
desenvolveu-se numa grande parte da Europa, graças ao afluxo
de doações e ao prestígio da cruzada. Na Alemanha, cerca de
duzentas comendadorias tinham sido fundadas no século XIII,
sem falar dos hospitais. Foram agrupadas regionalmente em treze
bailiados (Balleien) cada uma sob a autoridade de um co-
mendador regional (Landkomtur), dependendo a totalidade do
mestre da Alemanha(Deutschmeister). Em Itália, graças ao apoio
do imperador Frederico II, seis comendadorias tinham sido
criadas na Sicília, seis na Apúlia, quatro em Veneza e nos arre-
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 83

dores. Na Grécia, as possessões formavam o bailiado de


România. A Ordem dos Cavaleiros Teutónicos chegou mesmo
a implantar-se em Espanha e em França, onde a sua regra foi
introduzida em meados do século XIV. Distinguem-se comen-
dadoras no Mosa perto de Bas-sur-Aube, perto de Tannay na
região de Nièvre, mais dois hospitais, um cm Montpellier e outro
perto de Aries. Mas os débeis traços deixados por estes estabe-
lecimentos provam que não se desenvolveram de maneira
alguma. O meio não era evidentemente favorável c, em 1501, a
ordem vendeu à abadia de Claraval todas as suas possessões de
França.

Um Estado dentro do Estado

O Estado teutónico da Prússia foi, no século XIV, um dos


mais coerentes e mais bem administrados da Europa. O seu ter-
ritório era de um só mantenedor, contrariamente aos principa-
dos alemães de senhorios enredados. Sem dúvida, os quatro bis-
pos da Prússia possuíam domínios alargados. Mas em toda a
parte a ordem conservava a preponderância militar, o levanta-
mento das armas e a manutenção das fortificações, de modo
que estes abades não se achavam em posição de manifestar ve-
leidades de independência.
A instância suprema, como entre os Templários, era o cabi-
do geral. Ele nomeava ou depunha o grão-mestre, fiscalizava a
sua gestão, controlava as admissões na ordem, alienava os bens
e modificava eventualmente a regra. Os cabidos mais frequentes
eram os que procediam à eleição do grão-mestre. Eram convo-
cados com vários meses de avanço, a fim de que, se possível,
todos os bailiados pudessem enviar delegados. Era instituída
uma comissão eleitoral de treze membros, composta por oito
irmãos cavaleiros, quatro irmãos serventes e um único padre.
Os membros do cabido juravam ratificar a escolha deste colégio
e o eleito proclamado recebia diante do altar o anel e o selo da
ordem. Parece que este procedimento é que assegurava geral-
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mente a eleição do mais digno, não tendo a categoria social um


papel determinante. Entre os grão-mestres, encontram-se com
efeito, ao lado de príncipes como o landegrave de Turíngia ou o
duque de Brunsvique, homens provenientes da pequena nobre-
za ou do ministrado, como Hermano de Salza.
O grão-mestre não dispunha em princípio do poder absolu-
to. Era assistido por cinco grandes dignitários, igualmente no-
meados pelo cabido: o grande comendador — seu substituto , o
marechal, o hospitalário, o dispenseiro e o tesoureiro (Tresler)
que podiam até certo ponto limitar a sua acção, e até depô-lo,
como se viu no século XV.
Na segunda metade do século XIV, o grão-mestre dos Teu-
tónicos surgia como um dos soberanos mais poderosos e mais
ricos da Europa, à cabeça de urna milícia que tinha estendido os
limites do cristianismo, de um Estado bem administrado, de uma
frota que singrava os mares setentrionais e lhe trazia, da Ingla-
terra e da Flandres sobretudo, os produtos mais procurados do
mundo ocidental e mediterrânico, rodeava-se de uma corte faus-
tosa no seu castelo de Mariemburgo, recebendo com magnificên-
cia embaixadas vindas dos principados alemães e eslavos. As
prescrições de austeridade impostas aos cavaleiros pela regra
não eram aplicáveis a ele. As suas vestes e as do seu séquito
eram de bom corte, feitas dos tecidos mais finos, importados de
Londres, de Bruges e da Itália. No Inverno, era protegido do
frio por uma profusão de peles, de qualidades variadas que iam
da simples raposa à marta e à zibelina.
A mesa, coberta de "toalhas francesas" vindas de Paris, ofere-
cia em abundância a caça das florestas vizinhas, os peixes dos
rios e do Báltico. Os vinhos mais diversos, da Grécia, da
Península Ibérica, de França e do Reno eram servidos em
recipientes pró-prios para cada espécie, de estanho, de prata, de
cobre ou de alabastro; certas taças eram esculpidas e engastadas
de âmbar. As refeições eram acompanhadas de festividades,
animadas por poetas, malabaristas, músicos em número de uma
trintena, aos quais por vezes se juntavam os enviados por altos
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

senhores. O grão-mestre tinha também o seu bobo.


Depois de um deles ter sido emprestado ao grande príncipe da
Lituânia, este achou graça a armá-lo cavaleiro, com a condição
porém de só arvorar a sua armadura e o seu gibão de manhã: de
tarde, devia retomar o seu traje e o seu chapéu de bobo.
O jardim comportava uma reserva de animais, onde se en-
contravam não apenas veados e cabritos-monteses, mas tam-
bém auroques — presente do grande príncipe da Lituânia —,
macacos, ursos e até um leão. Particularmente afamada era a
escola de falcoaria, que permitia ao grão-mestre espalhar por
toda a Europa presentes muito apreciados. Finalmente, a caça
— interdita aos cavaleiros — dispunha de matilhas numerosas,
que provocavam com frequência sérios estragos nas culturas e
nos rebanhos.
A ordem compreendia várias categorias de "irmãos". Só os
cavaleiros e os padres eram membros de pleno direito, só eles
usavam o manto branco ornado de uma cruz negra. Os irmãos
padres, pelo menos na Prússia, eram os menos numerosos.
Dedicavam-se ao serviço divino, ao ensino, ao cuidado dos
doentes. Para eles, a única condição de admissão era a de não
serem servos. Quase nunca exerciam altas funções.
Os cavaleiros, monges-soldados, deviam pronunciar quan-
do da sua entrada na ordem os votos de probreza, de obediência
e de castidade. Os postulantes, admitidos a partir dos catorze
anos de idade, tinham de provar, por meio do juramento de teste-
munhas, que eram nascidos de pais nobres. Tinham igualmente
de afirmar não serem nem servos, nem casados, nem se encon-
trarem endividados, nem ligados por outros votos. Depois de se
terem comprometido a servir a ordem com todas as suas forças
e segundo as suas aptidões, eram cingidos com a espada, o que
lhes conferia a dignidade de cavaleiros, Na sua maior parte,
eram originários da Alemanha central, da Turíngia, do Hesse,
do Médio Reno; tinham sido preparados para a sua missão nas
comendadorias da sua região. Pouco numerosos eram os que
provinham da nobreza local alemã, o que contribuiu no século
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 87

XV para avivar a hostilidade da nobreza prussiana contra os


Teutónicos. Devido a esta origem, a língua utilizada na chance-
laria da ordem era o alto alemão e não o baixo alemão falado
em todas as regiões da costa do Báltico: outro motivo para serem
considerados estrangeiros.
Abaixo dos cavaleiros havia os irmãos serventes (Sariant-
brüder), não nobres, que não usavam o manto branco com a
cruz negra; eram menos fortemente armados e formavam uma
cavalaria ligeira de apoio. Encontravam-se também, pelo menos
no castelo de Mariemburgo, "familiares", de origem diversa,
nobres ou eclesiásticos, por vezes de categoria elevada
(salientam-se teólogos e um abade de Prüm), vindos por de-
voção agregar-se à ordem. Finalmente, no escalão inferior, a
massa dos criados era de condição variada, livres ou servos,
homens e mulheres casados ou solteiros, assalariados ou não;
também eles prometiam ser rigorosamente obedientes e levar
uma vida cristã, evitar o pecado, as actividades interditas, não
realizar ganhos ilícitos. Por sua morte, a ordem herdava os seus
bens.
A regra da ordem insiste minuciosamente nos deveres mo-
rais e na aplicação dos votos pronunciados. Os irmãos devem
dar provas de humildade, de solidariedade, de sacrifício pelo
próximo. Estão sujeitos à vida em comum, ao refeitório, ao dor-
mitório sem que uma fechadura proteja os seus objectos de uso
pessoal. Nada possuem de seu; todos os bens, terras, imóveis e
servos pertencem à ordem. São flagelados todas as sextas-fei-
ras e três vezes por semana durante a Quaresma. Se o cavaleiro
comete uma falta, deve ser acusado por duas testemunhas pelo
menos, as quais sofrerão o castigo em vez dele se prestarem
falso testemunho. Os três crimes maiores são a fuga do campo
de batalha, o facto de ir viver com os pagãos, mesmo sem rene-
gar a sua fé, e a sodomia. Os dois primeiros crimes são punidos
com a exclusão da ordem, o terceiro com a reclusão por toda a
vida. As faltas menos graves, sancionadas por uma penitência
de um ano, obrigam o culpado a viver com os servos, a comer e
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

a dormir com eles, a ficar a pão e água três vezes por semana, a
receber a sua flagelação ao domingo, na igreja, pelas mãos do
sacerdote.
A aplicação do voto de castidade provoca prescrições cheias
de desconfiança. As mulheres não são admitidas de pleno direi-
to na ordem, "pois sucede muitas vezes que a valentia masculi-
na fica enfraquecida pelo convívio com as mulheres". Todavia,
é possível recebê-las a título de meias-irmãs por "diversos cui-
dados prestados aos doentes e ao gado serem mais bem
assegurados pelas mulheres do que pelos homens". Mas devem
alojar-se num edifício separado, pois, em caso de coabitação,
"a castidade poderia eventualmente ser preservada, mas isso não
é seguro e, com o tempo, existe o risco de tal não terminar sem
escândalo". Os irmãos são aliás convidados a abster-se de falar
às mulheres, sobretudo às jovens, mesmo que sejam as irmãs ou
a mãe, pois isso é um sinal evidente de amor profano. Reco-
menda-se-lhes que não frequentem as cerimónias de casamen-
to, os torneios, os espectáculos, a não ser para desagravo ou
para conquistar almas. Finalmente, uma notação bizarra nos "cos-
tumes" da ordem enumera, "segundo os doutores de Paris e os
astrólogos", os trinta e dois dias nefastos do ano, de um a seis
segundo o mês, durante os quais se não deve empreender coisa
nenhuma: o ferido morreria, o recém-nascido não viveria por
muito tempo, o casamento malograr-se-ia.
A obra realizada pelos Teutónicos na Prússia durante dois
séculos foi considerável em todos os domínios. A actividade
primordial foi evidentemente a construção de castelos, primei-
ro em terra batida, protegidos por paliçadas e ramaria, depois
substituídos por um edifício de tijolos, uma vez que a pedra
escasseava na planície do Norte. O castelo teutónico era em
suma um mosteiro fortificado. Em volta de um pátio central
quadrado elevavam-se os edifícios de habitação, com as vastas
salas abobadadas do cabido, dos refeitórios e dos dormitórios.
A igreja, por vezes situada no primeiro andar, era encimada por
um campanário quadrado que fazia também as vezes de torre de
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 89

menagem. As caves eram espaçosas para poderem armazenar


material, cereais e vinho, na eventualidade de um cerco
prolongado. À volta do mosteiro, para lá de um pátio de entra-
da, uma cintura de muralha flanqueada por torres constituía os
aprestos militares propriamente ditos; comportava um castelo
avançado, centro da defesa, ligado aos edifícios por uma galeria,
igualmente de tijolos. Esta galeria alta, assente em arcadas
descobertas, é uma das originalidades marcantes da arquitectu-
ra dos Teutónicos.
O mais vasto destes castelos era evidentemente o de
Mariemburgo, restaurado no século XIX, destruído em 1945 e
reedificado depois pelos Polacos. A uma primeira construção
quadrada do final do século XIII foi acrescentada uma segunda,
mais ampla e rectangular, em meados do século XIV. Compreen-
dia o palácio do grão-mestre, três refeitórios e múltiplas salas
destinadas aos grandes oficiais e aos hóspedes. De um e de ou-
tro lado deste conjunto foi edificada uma muralha que protegia
as igrejas e os edifícios.
A grande obra da Ordem Teutónica foi contudo a coloni-
zação da região. A revolta de 1260 mostrara que só o
povoamento da Prússia por alemães poderia assegurar a
segurança e a paz. A ordem apelou a colonos do Norte da
Alemanha e dos Países Baixos e prosseguiu metodicamente o
arroteamento e o cultivo de terras novas. Dezenas de cidades,
centenas de aldeias foram fundadas, muitas vezes ao lado de
antigas aldeias e lugarejos prussianos. Gradualmente, os ele-
mentos indígenas fundiram-se na massa dos recém-chegados;
a sua língua declinou, para desaparecer completamente no
século XVII — só a dos Sorábios eslavos se tendo mantido até
aos nossos dias a sul de Berlim.

Comércio e cultura

A agricultura desenvolveu-se notavelmente, a ponto de o


centeio se ter tornado um dos principais artigos de exportação
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

da Prússia. A grande riqueza do país era o âmbar, recolhido nas


costas de Samland e procurado em toda a Europa e no Oriente:
a ordem passou a deter o monopólio da venda. O comércio tam-
bém prosperou. Mercadores das seis cidades principais da Prús-
sia, desde a sua fundação, participaram nos privilégios hanseáti-
cos da Inglaterra e dos Países Baixos. Como estas cidades
estavam estritamente dependentes da ordem, o próprio grão-
-mestre foi reconhecido como membro da Hansa, caso único
para um príncipe territorial. Mais: os Teutónicos constituíram
uma poderosa sociedade de comércio, dirigida pelos grandes
ecónomos (Grosschaeffer) de Mariemburgo e de Conisberga,
com os seus navios, os seus mercadores, os seus cobradores, os
seus depositários próprios.
O economato de Conisberga exportava sobretudo o âmbar
— para Lemberga (Lvov) ou Kosice, na Eslováquia, de onde
era encaminhado para Constantinopla ou para a Flandres —,
mas também peles e cera. O de Mariemburgo expedia cereais,
madeira, cinza, provavelmente cobre eslovaco vindo pelo
Vístula. Importava essencialmente panos flamengos mas tam-
bém especiarias e arenque da Escânia. Contrariamente aos Tem-
plários, os Teutónicos não praticaram quaisquer operações
financeiras, mas a sua actividade comercial, favorecida na
Prússia por franquias especiais, suscitou o descontentamento
crescente das cidades.
Ao lado da obra militar e económica, refira-se as preo-
cupações culturais, a bem dizer, bastante modestas. O grão-mes-
tre Lutero de Brunsvique (1330-1335), que também foi poeta,
rodeou-se de letrados. Na corte de Mariemburgo, apreciavam-se
particularmente os romances da Távola Redonda e os feitos de
cavalaria do rei Artur. Três crónicas, inspiradas pela ordem,
expunham a sua história desde as origens.
O Estado teutónico, entretanto, alargou-se notavelmente no
decurso do século XIV. A partir de 1310, aproveitando-se de
uma querela de sucessão, deitou a mão à Pomerélia, o que lhe
assegurava o controlo exclusivo da navegação no Vístula inferior.
Em 1302, adquiriu a Nova Marca de Brandeburgo, a leste do
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 91

Oder (Neumark), marco para o futuro reino da Prússia 110 século


XVIII. Pouco antes (1384), a soberania pelo menos teórica dos
Teutónicos sobre a Samogícia tinha sido reconhecida pelo grande
príncipe dos Lituanos.
No início do século XV, a ordem parecia omnipotente. To-
davia, o seu poder era frágil. Com a conversão dos últimos
pagãos lituanos, perdera o prestígio e os apoios numerosos de
que durante tanto tempo beneficiara. No interior, os seus súbdi-
tos, sobretudo os citadinos e os nobres, achavam-se irritados
com a sua dominação considerada tirânica e aspiravam a sa-
cudir a sua tutela. Em 1397, a nobreza da região de Culm uniu-se
numa liga prussiana, que em breve se revelou hostil aos Teu-
tónicos. No exterior, a união, ainda que precária, entre a Li-
tuânia e a Polônia sob a autoridade do rei Vladislav Jagelão
(1386-1434) era uma ameaça directa para a ordem. Dos dois
lados faziam-se preparativos para a guerra, que eclodiu em 1410
por iniciativa do grão-mestre Ulrique de Jungingen. Os dois
exércitos encontraram-se perto de Tanneberg e Grünwald a 15
de Julho. Apesar da sua inferioridade numérica, Ulrique decidiu
travar batalha e enviou ao seu adversário, em sinal de desafio,
duas espadas desembainhadas. Os Teutónicos obtiveram a
princípio alguns êxitos. Mas tendo-se Ulrique lançado à carga
no centro com o grosso das suas forças, no momento em que os
nobres da região de Culm se punham prematuramente em fuga,
foi cercado pelos inimigos e sucumbiu sob o seu número. O
grão-mestre, a maior parte dos grandes oficiais, onze
comendadores e mais de duzentos cavaleiros encontraram a
morte. Imediatamente a nobreza e as cidades prussianas
prestaram fidelidade a Vladislav.
Todavia, o desastre não pareceu a princípio irremediável. O
chefe de uma modesta comendadoria, Henrique de Plauen, con-
seguiu reunir os fugitivos e defender o castelo de Mariembur-
go. Os Polacos não puderam apoderar-se dele e levantaram o
cerco ao cabo de dois meses. Eleito grão-mestre, Henrique de
Plauen pôde concluir, no ano seguinte, a paz de Torum, uma
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

paz que não era desfavorável à ordem. Cedia apenas a Samogícia,


mas tinha de pagar pesados resgates pelos prisioneiros, o que o
obrigou a estabelecer um imposto novo. O seu irmão, comen-
dador do castelo de Danzig, cometeu o erro de mandar executar
os dois burgomestres da cidade, que tinham vindo negociar.
Henrique de Plauen compreendeu a necessidade de consolidar
o Estado associando mais intimamente a nobreza e as cidades
ao seu governo. Mas deparou com a incompreensão do seu
séquito e quando quis reatar a guerra, foi preso e destituído; o
cabido, reunido à pressa, confirmou a sua deposição.
Os anos que se seguiram foram marcados por uma guerra
endémica, que pôs a saque a região e arruinou as finanças da
ordem. Continuando esta a recusar-se a associar os seus súbdi-
tos ao governo, cidades e nobres formaram uma nova "liga prus-
siana", aliada à Polónia, o que provocou uma longa guerra de
treze anos (1454-1466). O grão-mestre teve de recorrer a mer-
cenários, mas, não podendo pagar-lhes, hipotecou vários caste-
los, de entre os quais Mariemburgo, que foram imediatamente
vendidos ao rei da Polónia. Finalmante, a segunda paz de Torum
(1466) consagrou a derrota da ordem, que perdia assim metade
do seu território: toda a Pomerélia, a margem direita do Vístula
à excepção de Marienwerder e os vastos domínios dos bispos
eram cedidos em plena soberania ao rei da Polónia, sendo o
resto deixado ao grão-mestre a título de feudo. A sede da ordem
foi transferida para Conisberga.
Mas os Cavaleiros Teutónicos não perderam a esperança de
reconquistar o seu território e a sua independência. Tal era a
intenção de Alberto de Brandeburgo quando foi eleito grão-
-mestre com vinte anos de idade (1510). Recusou-se a prestar
homenagem ao rei da Polónia a procurou aliados para reatar a
guerra. Como não os encontrou, os seus projectos tomaram outro
rumo. Muito devoto, foi progressivamente, após 1520,
conquistado pela Reforma e deixou o luteranismo espalhar-se
nos seus Estados. Empreendeu uma longa viagem à Alemanha,
no decurso da qual se deslocou secretamente a Vitemberga para
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 93

aí consultar Lutero, que o aconselhou a abolir a regra, a tornar-


-se secular e a casar. Lutero lançou análogo apelo aos Cavaleiros
Teutónicos da Prússia, exortando-os a "renunciar à falsa
castidade e a entregar-se à verdadeira castidade no matrimónio",
e também a assumir funções seculares no Estado "com uma
compreensão cristã e a aprovação dos súbditos". Alberto
submeteu-se ao seu parecer. Foi à Cracóvia, prestou-se à ceri-
mónia de vassalagem, despiu o seu manto branco com a cruz
negra e recebeu em troca, do rei, um estandarte, símbolo do
feudo principesco laico. O Estado teutónico tornou-se então o
ducado da Prússia. De regresso a Conisberga, Alberto fez reco-
nhecer esta mudança por parte dos Estados da Prússia, sem en-
contrar resistência, ao que parece, e proclamou depois oficial-
mente a sua adesão à Reforma protestante (1525). Casou-se no
ano seguinte e reinou na Prússia, não sem dificuldades, até à
sua morte (1568).
A secularização, porém, não dizia respeito apenas à Prússia.
Nos Países Bálticos a ordem conseguiu manter-se sob a direcção
do provincial da Livónia, mas por pouco tempo. Foi incapaz de
resistir aos ataques do czar Ivan IV, o Terrível, e o último pro-
vincial, Gotthard Ketteler, submeteu-se em 1561, imitando Al-
berto de Brandeburgo. Foi-lhe deixado o ducado secularizado
da Curlândia, a oeste de Riga, ao passo que a Livónia foi cedida
à Polónia e a Estónia à Suécia. Os Cavaleiros Teutónicos não
conseguiram permanecer aí.
A secularização do Estado prussiano também aboliu a ordem
na Alemanha, onde os fiéis continuaram a ser numerosos. Um
cabido geral reuniu-se em Mergentheim, junto do Tauber, na
Francónia, e elegeu um novo grão-mestre em 1526, que aí fixou
a sua sede. A sua autoridade limitou-se praticamente às regiões
que se mantinham católicas: a Renânia, a Alemanha do Sul e a
Áustria, ou seja, cinco bailiados.
A partir do século XIV, a história da Ordem Teutónica é assina-
lada por uma longa série de reveses, sempre seguidos de esforços
de renovação e de adaptação. A guerra dos Trinta Anos pôs dura-
mente à prova os bailiados da Alemanha; a conquista turca pôs à
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

prova os da Áustria. Após um descanso no século XVIII, a


anexação da margem esquerda do Reno, sob a Revolução Fran-
cesa, trouxe a nacionalização dos bens nesse sector. Napoleão
pronunciou a dissolução da ordem nos Estados da Confederação
do Reno (1809), isto é, sobretudo os da Vestefália e os do Sul
da Alemanha. Após a sua queda, a decisão foi revogada, mas
quase todos os Estados alemães se recusaram a restituir os bens
confiscados. Na Áustria, a ordem reconstituiu-se lentamente. A
sua regra, remodelada em 1839, admitia agora comunidades de
mulheres ao lado das de homens, votadas, como elas, a tarefas
caritativas e educativas. Os papas confirmaram a regra e Pio XI
modificou-a para fazer dos Teutónicos uma ordem puramente
monástica (1929).
Uma nova provação a aguardava com o advento do
nacional-socialismo. Hitler, por decreto, suprimiu a ordem, pri-
meiro na Alemanha, depois na Áustria e na Checoslováquia. A
medida foi anulada em 1945 e, mais uma vez, a ordem pôde
reconstituir-se, graças a donativos, no Sul da Alemanha e na
Áustria. O grão-mestre e os seus quatro altos dignitários, elei-
tos por seis anos pelo cabido, estabeleceram a sua sede em Viena,
muito próximo de Saint-Etienne. A ordem conta uma dezena de
cavaleiros, distinção evidentemente honorífica, concedida em
1958 ao chanceler Adenauer e a Franz Josef Strauss.
Depois de tantos percalços, a Ordem dos Cavaleiros Teu-
tónicos subsiste ainda assim nos nossos dias, tal como a de Malta,
unindo-se a sua actividade hospitalária à sua vocação original.
Mas a sua grande obra histórica, a saber, a expansão do
germanismo no Leste europeu mantida durante setecentos anos,
foi definitivamente aniquilada pela derrota de Hitler e a
transferência maciça para o oeste das populações alemãs da
Prússia. Sic transit...

Orientação bibliográfica
* Não existe um estudo global em francês sobre o assunto desde a
Histoire de l'Ordre Teutonique par un Chevalier de 1'Ordre, por
Wilhelm von Wal (um alemão), 3 vols., Paris e Reims, 1784.
OS CAVALEIROS TEUTÓNICOS 95

* As obras gerais recentes consagram apenas desenvolvimentos


reduzidos, fragmentados em diversos capítulos. A exposição menos
sumária de Pierre Gaxotte, Histoire de l'Allemagne, Paris, Flamma-
rion,1963, t.l, pp. 243-263, 458-459.
* Em alemão, a obra mais completa é a de Tumber, Der
deutsche Orden im Wesen, Wachsen tind Wirken bis 1400 (com um
capítulo resumindo os factos principais até aos nossos dias), Viena,
Panorama, 1955.
* Mais condensado e sugestivo é E. Maschke, Der Ordensstaat.
Gestaitenseinergrossen Meister, Hamburgo, Uanscatische Verlagsans-
talt, 1942. Detém-se em 1525.
* O livro de E. Hering, Der deutsche Ritterorden, Leipzig, 1943,
ressente-se da época em que foi concebido.
2. ESPAÇO E VIDA MONÁSTICOS
A paisagem arquitectónica do ano Mil
Xavier Barrai i Altet

Qual o historiador que acredita ainda, hoje em dia, nos terro-


res do ano Mil? Essa lenda forjada pelos nossos antepassados e
as considerações pessimistas que a acompanhavam sobre o es-
tado do Ocidente no século X há muito que são postas em cau-
sa. Fala-se mesmo hoje de um certo renascimento da civiliza-
ção ocidental durante este período. Mas os mitos são tenazes e
há muitos manuais escolares que continuam inquebrantavel-
mente a propagar a sedutora teoria romântica que associava o
fim do mundo à chegada do ano Mil. Do monge Mabillon, no
século XVII, a Michelet, no século XIX, a imagem de uma Alta
Idade Média (séculos V-X) sem esperança e povoada de ruína
propaga-se.
Os que sustentam esta teoria apoiaram-se com frequência
num texto do monge Raoul Glaber, que completava em Cluníaco,
por volta de 1084, cinco livros de "histórias", para provar que a
França do século X tinha conhecido devastações tais, ou pelo
menos que tinham produzido monumentos tão medíocres, que
se tinha sido obrigado a reconstruir tudo a seguir. Este religioso
escrevia com efeito pouco depois do ano Mil: "Estando o ter-
ceiro ano após o ano Mil prestes a começar, por toda a terra, e
particularmente nas Gálias e em Itália, puseram-se a renovar as
naves das igrejas, ainda que na maior parte estivessem estabe-
lecidas com sumptuosidade suficiente para passar bem sem tal
100 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

operação. Mas todas as nações cristãs rivalizavam no grau de


notabilidade dos seus templos. Dir-se-ia que o mundo desperta-
va para se despojar da sua velhice e vestir uma veste branca de
igrejas. Enfim, quase todos os edifícios religiosos, catedrais,
mosteiros dos santos, capelas de aldeia, foram convertidos pelos
fiéis em qualquer coisa de melhor."
Ora, desde meados do século XIX, este mesmo texto de Raoul
Glaber é interpretado de maneira tovalmente diversa. Deixou
de ser entendido como um testemunho retrospectivo sobre as
catástrofes do ano Mil para ser simplesmente a prova de que a
geração do começo do século XI possuía o meio de fazer "me-
lhor" ou, pelo menos, diferente em relação às gerações ante-
riores. Constata-se pois um "progresso na arte". Mas este pro-
gresso não implica que não tivesse existido arte antes.
Voltemos atrás. Em 987, o rei Luís V morre, deixando como
herdeiro o seu tio Carlos da Lorena. No entanto, é Hugo Capeto
que o arcebispo de Reims, Adalberão, sagra rei dos Franceses a
3 de Julho de 987 em Noyon. Apesar de algumas dificuldades,
Hugo Capeto conseguiu associar à coroa o seu filho, Roberto,
que reinará sozinho sob o nome de Roberto I a partir da morte
de Hugo, em Outubro de 996. O domínio real encontra-se então
essencialmente limitado à Ilha de França, entre Compiègne e
Orleães, com Senlis, Paris e Saint-Denis. Mas a realidade da
França do ano Mil é bem mais variada do que a que se limitaria
a este território. A França encontra-se então fragmentada e a
diversidade dos dados geográficos, étnicos, culturais e políti-
cos continua a ser muito grande. Reinando nos seus principa-
dos, os senhores estão pouco submetidos à autoridade do rei e,
tanto na Borgonha como na Aquitânia, na Gasconha, em Tolosa
ou na Auvergne, estes príncipes edificam uma história paralela
à da unidade real.

****
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 101

A imbricação entre poder civil e poder eclesiástico coloca a


Igreja à cabeça da sociedade e do seu saber cultural. As inter-
venções do poder laico no dominio sagrado e as do clero no
dominio temporal contribuem para impor a imagem de uma Igre-
ja do século X que dispõe de um verdadeiro poder feudal.
Impõe-se uma reforma religiosa. Ela virá da instituição monás-
tica e do papado. A abadia de Cluníaco, f undada ein 910, estende
a sua rede e torna-se de facto uma potência independente, si-
multaneamente do Papa e do Imperador do Sacro-Império
Romano- -Germânico. O desenvolvimento dos estudos literários
e das ciências que resulta desta nova autonomia permite então
falar de um verdadeiro renascimento cultural. Nas bibliotecas
cultiva-se o saber antigo e nos scriptoria, as salas de cópia dos
mosteiros, procede-se a uma actividade criativa. Mesmo que
esta cultura não atinja senão uma pequena minoria, ela
desempenha um papel essencial na eclosão de uma arquitectura
de importância maior durante a segunda metade do século X.
Entre os grandes monumentos religiosos edificados na vi-
ragem desse século, são de notar, a norte, a reconstrução da
catedral de Reims por Adalberão, por volta de 976, e as fun-
dações de Roberto, o Piedoso, em Orleães, relatadas pelo monge
de Fleury, Halgaud, no começo do século XI. "Mesmo na ci-
dade de Orleães, ele construiu o mosteiro dedicado a Santo
Aignan (...) e também um outro em honra de Santa Maria (...)
Aí elevou o mosteiro de S. Vicente (...) o mosteiro de S. Paulo
na aldeia de Chanteuses, o mosteiro de S. Medardo no burgo de
Vitry, o mosteiro de S. Léger na floresta de Yvelines, o mosteiro
de Santa Maria no burgo de Melun, assim como outra igreja, o
mosteiro de S. Pedro e S. Rieul na cidade de Senliz, o mosteiro
de Santa Maria no burgo de Étampe e também, no mesmo burgo,
uma igreja no palácio, na cidade de Paris, uma igreja em honra
de S. Nicolau, bispo, no palácio, o mosteiro de S. Germano de
Auxerre e a igreja de S. Miguel na floresta dita de Bière, e
também o mosteiro de S. Germano de Paris, assim como a igreja
S. Vicente na floresta de Laye e, na aldeia de Gometz, uma
102 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ábside principal

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v transepto

E V O L U Ç Ã O DA PLANTA DA IGREJA ABACIAL DE S . M I G U E L DE C U X A .


1) A igreja no final do século X.
ábside principal/transepto/nave
2) Estado do edificio depois das ampliações empreendidas no final do
primeiro terço do século XI. De notar o invólucro que encerra a parte centra!
da capela-morprimitiva e a nova construção dedicada à Trindade, organizada
em torno de uma cripta e de um edificio de planta centrada.

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da Trindade

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101
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL

igreja dedicada a Santo Aignan, e na aldeia de Faida também


uma igreja dedicada a Santo Aignan, o mosteiro de Santa Maria
em Poissy, o mosteiro de S. Cassiano em Autun."
Este impulso arquitectónico não é então completamente novo,
como testemunha o mesmo Helgaud a propósito de Hugo Ca-
peto e do seu pai, Hugo, o Grande, conde de Paris e duque de
França: "Hugo, cognominado «o Grande», (...) construiu com o
seu filho o esplêndido mosteiro de S. Magloire na cidade de
Paris (...) A mãe do rei, Adelaide (...) fundou na cidade de Sen-
lis o mosteiro de S. Framburgo (...) Esta construiu também em
Paris, no lugar a que chamam Argenteuil, um mosteiro onde
reuniu um número considerável de servos do Senhor, vivendo
segundo a regra de S. Bento."
Estas grandes construções situam-se muitas vezes em meios
urbanos, em cidades que, como a paisagem em geral, recordam
o passado antigo. Mas depois, por volta do ano Mil, que é feito
do fórum, dos monumentos públicos ou de espectáculo, da cin-
tura de muralha ou ainda das basílicas da Antiguidade tardia?
De facto, as fortificações de Béziers, Carcassona, Die, Autun,
Soissons, Tours ou Angers continuam a ser testemunhos da
presença antiga. E, no interior das paredes, as construções anti-
gas continuam a modelar o espaço urbano medieval, ainda que
a sua reutilização mascare por vezes a sua origem. Ibrahim ben
Ya'qüb, judeu de Espanha que por razões comerciais ou reli-
giosas empreende em 965 uma longa viagem através da Europa,
não se enganou quando, ao descrever Bordéus, observa que "a
cidade tem edifícios muito elevados suportados por enormes
colunas". Em NTmes, uma aglomeração desenvolve-se em tor-
no do anfiteatro romano que conhece uma nova vida durante a
Idade Média.
Estas reaplicações arquitectónicas, tão numerosas no Meio-
-Dia como no Norte da França, provêm de um gosto pela Antigui-
dade ou representam simplesmente uma solução pouco cara para
o problema da falta de materiais de construção? O facto de em
S. Framburgo da Sanlis, por exemplo, a ábside da igreja ter
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

sido instalada numa torre romana deixa uma dúvida quanto ao


papel simbólico do monumento antigo. Na região do Lingua-
doque-Rossilhão, Nimes oferece um inventário completo de
reaplicações e de reutilizações de materiais antigos, e até de
monumentos inteiros: o anfiteatro, a Casa Quadrada, o templo
de Diana ou o Pont du Gard são disso testemunhas. A norte, na
zona do Sacro Império, a igreja de Saint-Pierre-aux-Nonnains
instala-se em Metz numa basílica antiga. A residência angevina
de Doué-la-Fontaine utiliza uma antiga carreira de sarcófagos.
A Basse-Oeuvre de Beauvais foi quase inteiramente edificada
com a ajuda de materiais reempregados.
A cidade é uma das componentes prestigiosas da paisagem
da França por volta do ano Mil, com a sua cintura de muralha,
os castelos urbanos, as fortificações elevadas às suas portas junto
dos santuários, tanto no interior como no exterior dos muros.
Aberta ou fechada, centro de protecção e de morada dos prín-
cipes, a cidade pequena é igualmente um lugar de habitação
que se confunde por vezes com o campo graças aos bairros pe-
riféricos. Sede do poder religioso, vê aparecer um bairro prote-
gido, o da catedral ou de um mosteiro, bairro por vezes fortifi-
cado e que pode ocupar uma parte importante do espaço urbano.
Na região oeste da França, as cidades pequenas recuperam
muito depressa das dificuldades que conheceram quando das
invasões escandinavas reparando as suas muralhas danificadas.
As pesquisas arqueológicas do bairro da República em Angers
permitiram provar a existência de uma segunda muralha, que
foi possível situar no final do século X ou no início do século
XI. Noutra parte, no sul provençal, as cidades formam por elas
mesmas redes fortificadas. Em geral, a continuidade na ocupação
das localidades encontra-se atestada. A muralha antiga é muitas
vezes conservada, mesmo que não seja sempre utilizada na sua
totalidade, e os monumentos já existentes servem para reforçar
a protecção. Grupos episcopais e santuários suburbanos
tornam-se elementos fixos da paisagem.
101
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL

Entre os trabalhos empreendidos no século X nas cidades da


Gália, muitos referem-se à forticação de mosteiros ou de zonas
episcopais situadas nos arrabaldes. Em Tours, a cidade da An-
tiguidade tardia faz frente, desde o primeiro quartel do século
X, ao castrum Saint-Martin, o qual, cercado por uma zona su-
burbana e dotado de uma cintura de muralha, se torna tão au-
tónomo como a cidade. Descrevendo os cercos da cidade de
Verdun por volta de 985, o monge de Saint-Rémi de Reims,
Richer, autor de quatro livros de "histórias" de França que en-
globam um período comprendido entre 888 e 995, menciona
um bairro suburbano abrigado por muralhas e reservado aos
mercadores. Estes centros protegidos multiplicam-se a partir do
começo do século XI. Os monumentos civis e as casas parti-
culares das cidades pequenas não são tão bem conhecidos. As
menções de cessões de terrenos comprados para lá construir
casas são numerosas, mas só a arqueologia nos pode dar conta
do aspecto destas. As pesquisas de Tours mostraram que a pe-
dra, a madeira e a terra eram os materiais de base da sua cons-
trução. Em Barcelona, sabe-se que pouco depois do ano Mil as
casas possuíam um primeiro andar.
A cidade constitui pois o elemento fortificado por excelên-
cia da paisagem do ano Mil, como testemunha Dudon —
veterano da direcção colegial de Saint-Quentin-en-Vermandois,
o qual redigiu por volta de 1015-1026 uma Histoire des
Normands seguida até ao momento da morte de Ricardo I, em
996 — a propósito de fortalezas da Normadia, falando
concretamente, das cidades episcopais de Bayeux e de Évreux,
assim bem como da metrópole de Ruão. Esta é a mais bem
protegida, com bairros suburbanos abertos rodeando um núcleo
fortificado de muros poderosos, por sua vez guarnecidos de ele-
mentos em sacada. Em paralelo, os castra, termo cujo sentido
se mantém fluido e que designa uma construção intermédia entre
a cidade fortificada e o castelo, completam a paisagem. Para lá
da cidade, os castelos organizam a rede das fortificações. Trata-se
de fortalezas de terra ou de construções de pedra. A motte é a
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fortificação típica do ano Mil. Trata-se de um outeiro artificial


cercado de um fosso, muitas vezes acompanhado de uma cintu-
ra de muralha. As cinturas de muralha, com ou sem motte, for-
tificam um espaço com a ajuda de um fosso e de um talude de
pedras. Situam-se na linha das fortificações da Antiguidade. As
cinturas de muralha de grandes dimensões correspondem a ha-
bitats ou cercam explorações. As de pequenas dimensões, cir-
culares ou ovais e que o arquéologo assinala mais facilmente,
acham-se muitas vezes agrupadas sob a forma de uma cintura
de muralha propriamente dita e de um pátio de criação. A edifi-
cação destas cinturas de muralha parece remontar à segunda
metade do século X, mas datam mais frequentemente da pri-
meira metade do século seguinte.
Enquanto por volta do ano Mil a construção religiosa é ge-
ralmente de pedra, sejam quais forem a alvenaria e o apare-
lhamento utilizados, a realidade do castelo é mais complexa.
Na Catalunha, onde se pôde provar a existência de castelos de
madeira na época carolíngia (século IX), estes foram substituí-
dos quase por todo o lado por fortificações de pedra, fenómeno
que parece estender-se a uma boa parte do Meio-Dia francês. A
norte de França, em contrapartida, a madeira subsiste prova-
velmente mais tempo. O atraso revelado neste domínio pelos
castelos em relação às construções religiosas tem sido explica-
do invocando as fracas disponibilidades financeiras das linha-
gens senhoriais, inferiores às do clero. Mas nem sempre se trata
de uma simples questão de meios. É igualmente possível ex-
plicar este atraso por razões complexas que se prendem simul-
taneamente com os problemas económicos, técnicos, militares
e climáticos.
Nas regiões meridionais, temos que distinguir a planície da
montanha e a palavra castrum, que nem sempre designa uma
fortificação privada, de villa, que permanece ligada à ideia de
um território. Quando, em 960, o conde Borrell de Barcelona
descreve o seu castelo de La Roqueta como "uma roka (cume
rochoso) com as suas muralhas e as suas superestruturas", define
um tipo de fortificação que tira vantagem dos locais elevados
101
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL

compensando as imperfeições do terreno por meio de muros e de


muralhas. Nas zonas pirenaicas ou nos vales profundos, uma densa
rede de grandes e pequenos castelos povoam a paisagem evocada
pelo Livre des Miracles de Sainte Foy de Conques, recolha que
abrange um período entre 1012 e 1050 aproximadamente.
Alcandorados em locais escarpados, como verdadeiros ninhos de
águia, estas fortificações ou as torres que as ligam proporcionam
uma panorama magnífico sobre os as mediações. O castelo pro-
priamente dito é constituído por um pequeno conjunto de salas
em alvenaria, construídas em pedra local, agrupadas no cimo do
rochedo e protegidas por alguns muros. O que mais impressiona
continua a ser a inacessibilidade da maior parte destes locais. O
seu abastecimento parece difícil e a sua ligação às zonas de cultura
e às terreólas habitadas pouco cómoda.
Salientam-se, logo em meados do século X, referências a
fortificações obtidas através da construção de uma torre rodeada
por fossos e por paliçadas. Todavia, o termo turris nem sempre
corresponde à torre propriamente dita e pode designar
igualmente uma fortificação ou uma parte de um conjunto. As
informações recolhidas quando das escavações da localidade
de Doué-la-Fontaine esclareceram as etapas da transformação
de uma construção residencial por meio da elevação do edifício
e da sua disposição em torre sobre um escuro piso térreo: o
problema do torreão residencial fortificado é deste modo abor-
dado. Entre as fortalezas de Foulques Nerra em Anjou, as novi-
dades arquitectónicas mais notáveis são as grossas torres-torreões
quadrangulares destinadas a conhecer um êxito seguro no
decorrer da Idade Média. Em Langeais, o domicilium pro-
priamente dito tinha, por cima de um piso térreo muito baixo,
uma grande sala iluminada a leste por um vão de janela e aberta
a norte por uma porta. A sala era por sua vez encimada por uma
divisão amplamente iluminada: bela combinação de residência
e de fortificação.
Fora das cidades, das residências e das fortalezas, é certo
que os homens habitam em aldeias que se discernem com maior
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

precisão nos períodos posteriores. Robert Fossier descreve esses


"magotes de homens reunidos em aldeias, nuns lados junto de
uma paliçada no sopé de uma motte de terra onde domina a
morada do senhor, noutros lados encerrados num "castro" onde
a torre do amo domina as casas de pedra; por toda a parte uma
construção de culto onde se reúnem camponeses e familiares
do senhor'". O habitat rural muito móvel das regiões seten-
trionais contrasta com uma forte estabilidade no Meio-Dia, onde
o seu reagrupamento se efectua em torno da igreja e do cemitério.
Na região do Biterrois, por exemplo, o habitat em nada parece
ter evoluído até à época carolíngia e é no século X que começa
a formar-se a textura de aldeias em breve fortificadas que ten-
dem para o encastelamento, termo que designa um agrupamen-
to de casas situadadas umas acima das outras.
A arqueologia informa-nos sobre as diversas formas adopta-
das pela aldeia no seio do século XI. Na Catalunha, é desde mui-
to cedo sobrelevada, com uma rua principal ladeada de casas,
uma capela e uma torre em cada extremidade. NoNorte de França,
por exemplo em La Grande-Paroisse (Sena e Marna), pode
observar-se uma ampla aglomeração rural com fundações de caba-
nas, silos, fossos e construções de uso variado. Foi possível re-
constituir a estrutura das casas, cobertas de um vigamento com
quatro vertentes e divididas interiormente por paredes de estaca-
ria. Na Bretanha, a casa rural do ano Mil é feita para durar, com
paredes largas assentes em alicerces e uma cobertura vegetal que
se prolongava até ao chão, mascarando assim a base externa de
uma parede que não possui mais de 40 a 50 centímetros de altura.
As descobertas de bens móveis feitas na maior parte destas aldeias
matizam a impressão muito divulgada de uma miséria da vida
comunitária. Do mesmo modo, a observação de um sítio
arqueológico como o de Andone (Charente) permite medir melhor
a separação entre a vida camponesa e a vida militar ou aristo-
crática. As habitações principais são aí solidamente construídas
em pedra e, tal como nas aldeias da região do Morbihan, não
possuem chaminé.
101
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL

Felizmente, os nossos conhecimentos no domínio da arqui


tectura religiosa são mais bem fornecidos, pois o número de
monumentos conservados é importante. A organização das
comunidades eclesiásticas está na origem destas construções.
Richer, monge de Saint-Rémi de Reims, recorda que, no último
terço do século X, o arcebispo de Reims, Adalbéron, pede aos
cónegos que vivam em comunidade — deixando de viver, como
antes, em casas particulares, onde se ocupavam unicamente dos
seus assuntos pessoais. Este requerimento obriga a definir um
lugar de vida comum e uma regra. A fundação da abadia de
Cluníaco em 910 por Guilherme II da Aquitânia, em terras
borgonhesas que são propriedade sua, é uma das manifestações
mais significativas desta renovação monástica. Cluníaco será
um grande centro renovador na observância da antiga regra
beneditina e o mosteiro libertar-se-á de toda a ingerência secular
ou episcopal com homens como Mayeul ou Odilão, que
exercerão uma influência considerável no Ocidente. A abadia
tecerá uma rede de dependências monásticas através de toda a
França e o seu exemplo propagar-se-á rapidamente.
As reconstruções medievais ou modernas fizeram desapare-
cer, pelo menos parcialmente, um bom número de igrejas maiores
do século X, como a catedral de Chartres de Fulbert, a de Orleães,
a abadia de Saint-Aignan igualmente em Orleães ou, no Meio-
-Dia, Saint-Victor de Marselha ou ainda as grandes abadias do
Sudoeste. No plano arquitectónico, na maior parte dos casos, as
torres e as criptas são os únicos vestígios deste período. Com
efeito, um dos elementos de maior importância da arquitectura
no Ocidente a partir do século IX é a introdução da cripta, se-
gundo santuário subterrâneo ou meio-enterrado que reproduz
geralmente o plano da ábside superior. Destina-se a receber
relíquias e um culto particular.
O tipo de cripta mais corrente apresenta uma sala única de
paredes arredondadas que traduzem a curva da ábside e que é
compartimentada em três naves com colunas e capitéis em que
assentam abóbadas de arestas. A generalização das criptas res
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ponde igualmente à preocupação de valorizar o edifício religio-


so. Na Borgonha, os modelos sobrepostos de criptas inferiores
e superiores vão resultar na Rotunda de Saint-Bénigne de Dijon.
Por vezes, acrescenta-se-lhe uma confissão, como em Saint-
-Aignan de Orleães, que pode tomar a forma de uma segunda
sala como em Saint-Avit de Orleães. Em Clermont-Ferrand
encontramos ábsides ou pequenas capelas que evocam a ideia
do deambulatório com capelas irradiantes. A expansão deste
sistema em Saint-Martin de Tours constituirá o grande grito da
grande arquitectura do final do século XI e XII nas igrejas de
peregrinação. O cuidado de que é alvo toma formas diferentes
segundo as regiões, como testemunha a série de ábsides de Saint-
-Michel-de-Cuxa (situado na zona oriental dos Pirenéus). As
naves da igreja são separadas por grandes arcadas e geralmente
cobertas em madeira; só recebem uma abóbada no final do nosso
período.
Infelizmente, a maior parte das vezes não conhecemos a ar-
quitectura religiosa do século X através de edifícios menores
cuja nave e ábside são rectangulares, sendo esta de dimensão
menor que a nave. Restam mesmo assim alguns edifícios maiores
elevados nesta época, de entre as quais a igreja abacial de
Cluníaco II, construída por volta de 963-981 e que apresenta
uma das ábsides escalonadas, um transepto bastante estreito,
bem como uma nave central com naves laterais. Esta igreja
obedece a um tipo de planta que foi retomado por outros monu-
mentos religiosos no século XI. A igreja de Saint-Vorles de
Châtillon-sur-Seine, com a sua elevação por andares, responde
admiravelmente ao modelo de Cluníaco. Com outras proporções,
a Basse-Oeuvre de Beauvais, que está a ser reconstituída
lentamente graças a pesquisas recentes, possuía três naves e três
ábsides. Apresentava uma elevação bastante simples de paredes
dotadas de grandes janelas que iluminavam a nave e as naves
laterais e correspondia a certas características das igrejas
carolíngias. A Ilha de França capetiana possui algumas
construções interessantes edificadas por volta do ano Mil, sen-
101
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL

do uma delas a igreja abacial de Saint-Germais-des-Prés, que


teve um papel importante na difusão da primeira escultura
românica e das formas arquitectónicas do campanário-pórtico.
Todas estas experiências e estas realizações definem reali-
dades regionais que padecem de demasiadas lacunas para que
se possa apresentar o quadro completo. Todavia, conduzem à
arquitectura românica propriamente dita que aparece durante a
primeira metade do século XI. A escultura de Saint-
-Germain-des-Prés ou dos edifícios de Orleães, a arquitectura
normanda, os primeiros ensaios de construção de abóbadas (subs-
tituindo as antigas basílicas de cobertura de madeira), os con-
trafortes e o aparelho que vemos já plenamente elaborados em
Saint-Jean-Baptiste de Argenteuil são outros tantos marcos que
permitem já considerar alguns destes edifícios como români-
cos. Ao norte, nomeadamente nas regiões em contacto com o
mundo germânico, os monumentos mantêm-se com sólido
madeiramento, apresentam tribunas maiores e recebem uma ilu-
minação abundante de tipo "paleocristão". Ao sul, pelo con-
trário, os pedreiros dotam os edifícios de abóbadas, fechando-os
e decorando-os com arcaturas exteriores: a primeira arte români-
ca meridional foi igualmente preparada pela arquitectura do
século X.
Em termos económicos e financeiros, se as esmolas con-
tribuem para o relançamento da arquitecura religiosa, da mesma
forma que o progresso das técnicas agrícolas que permite guardar
o excedente das colheitas sob a forma de moedas e depois investir
esse ganho, o mecenato dos príncipes fornece o essencial do
tesouro das abadias e das igrejas. Favorece assim o finan-
ciamento das construções. Todo o senhor sente a necessidade
de se afirmar por meio de um apoio material e público às igrejas.
E o caso dos príncipes capetianos, muito generosos para com
Chartres, ou dos senhores normandos. Os elogios fúnebres
propagam estes favores. Por vezes o contributo é pontual, mas
no Mont-Saint-Michel, por exemplo, é regular. Em geral, os
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

edifícios construídos graças ao mecenato são santuários de


grande reputação ou locais de peregrinação particularmente fre-
quentados, como a catedral de Chartres, Saint-Denis ou Clu-
níaco. Oportunidade política, devoção sincera ou investimento
interessado: é difícil apreender o sentido real do mecenato.
Os bispos detêm também um papel primordial no impulso
da reconstrução. É o que acontece em Reims com Adalberão,
que "nos primeiros tempos da sua promoção se ocupou muito
das construções da sua igreja. Abateu inteiramente as arcadas
que, estendendo-se desde a entrada quase até um quarto da basíli-
ca, a cortavam até ao cimo, de maneira que toda a igreja, embe-
lezada, adquire maior extensão e uma forma mais conveniente.
Ele colocou, com as honras que lhe eram devidas, o corpo de S.
Calisto, papa e mártir, mesmo à entrada da igreja, isto é, num
lugar mais aparente, e aí elevou um altar com um oratório muito
bem disposto para aqueles que aí viessem orar. Decorou o
altar-mor de cruz de ouro e envolveu-o com uma grade esplen-
dorosa [...] Iluminou esta mesma igreja por meio de janelas onde
estavam representadas diversas histórias e dotou-a de sinos bra-
mantes à semelhança do trovão." Na sequência de tais traba-
lhos, as cerimónias de consagração eram faustosas, pelo menos
nos grandes edifícios.
Este texto de Richer sobre Adalberão ilustra a febre de
construção que se apodera das altas esferas da sociedade em
torno do ano Mil. Assim, o século X e o primeiro quartel do
século XI aparecem doravante claramente como um período de
prosperidade cultural e rico de experiências, no decurso do qual
são estabelecidas as estruturas políticas, religiosas e sociais que
preparam a Idade Média feudal. Se a Antiguidade continua pre-
sente na cultura desta época, literária ou artística, a paisagem
monumental está então em vias de mudar. As fontes dão disso
testemunho, mas, mais ainda, as descobertas da arqueologia e
da história da arte fornecem novos métodos de interpretação.
Estes definem a existência, no decorrer do século X, de uma
arte pré-românica, claramente diferenciada da arte carolíngia e
A PAISAGEM ARQUITECTÓNICA DO ANO MIL 101

da arte românica propriamente dita. O desabrochar desta última


faz-se graças ao desenvolvimento das experiências arquitectóni
cas de que o Ocidente se enriqueceu por volta do ano Mil.

Nota
1
R. Fossier, Enfance de l'Europe, Xe-XIle Siècle, t. 1, "Nouvelle
Clio", 17, PUF, 1982, p. 288.

Orientação bibliográfica

* Xavier Barral í Altet, s/d, Le Paysage Monumental de la France


autour de I 'An Mil, com a participação de mais de urna centena de
historiadores, arqueólogos e historiadores da arte, Paris, Picard, 1987.
Ver igualmente as actas do coloquio internacional "Hugo Capeto, 987-
-1937. A França do ano Mil".
* Robert Delort, s/d, La France de l'An Mil, Paris, Éd. du Seuil,
"Points Histoire", 1990.
* Sobre os "terrores" do ano Mil: Jacques Berlioz, "Les terreurs de
l'an Mil ont-elles vraiment existé?", L 'Histoire n.° 138, pp. 16-18.
As abadias da Catalunha
Michel Zimmermann

Conhece Serrabone? Sant Pere de Rodes? Saint-Mar-


tin-du-Canigou? Da passagem de Salses ao delta do Ebro, não
há um catalão que responda negativamente. A familiaridade de
um rico património cultural foi suficiente para conservar entre
catalães de França e de Espanha o sentimento de comunidade
que as vicissitudes da história recente não conseguiram en-
fraquecer. O viajante capaz de fugir às praias sobrepovoadas da
Costa Brava trará da região uma imagem onde pululam abadias
e colegiadas. Poucas regiões conservaram uma tal densidade de
construções ou vestígios monásticos. Só no período de 800 a
1300, numa região de 36 500 quilómetros quadrados, mais de
300 abadias ou priorados foram fundados, metade dos quais
antes do ano Mil.
Alguns tiveram apenas uma existência efémera, como foi o
caso da abadia de Eixalada, no Haut-Conflent, que foi arrastada
em 878 por uma enchente do Têt; quinze monges morreram
com ela. De abadias prestigiosas só restam por vezes vestígios
ameaçados e irrisórios. Às portas de Andorra esconde-se num
pomar, a ábside de Sant Sadurni de Tavernoles, que foi no século
VIII um dos raros centros de resistência cristã ao Islão e manteve
de maneira duradoura a tradição visigótica. Da imensa cartuxa
da Scala Dei, subsiste apenas o arco da porta de entrada que
abre para três hectares de ruínas. Em Barcelona mesmo, algu-
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mas colunas do coro constituem os últimos vestígios do antigo


mosteiro feminino de Sant Pere de les Puelles.
Outros edifícios bem vivos mantiveram-se em bom estado
ou foram restaurados ou reconstruídos com um zelo por vezes
excessivo; perpetuam no mundo actual o espírito dos fundadores.
Fundada por volta de 1025 nos postos avançados da Reconquista
cristã, Montserrat foi, nas últimas décadas do franquismo, o
centro de um protesto permanente contra a ditadura. No coração
de Barcelona, num bairro pobre e barulhento, a pequena igreja
de Sant Pau del Camp, oásis de paz ignorado do mundo mer-
cantil que o cerca, recorda a época em que, entre a colina de
Montjuic e a torrente do Rambla, se estendia uma vasta planície
deserta.
Também intactas, as duas irmãs cistercienses de Poblet e
Santes Creus constituem conjuntos consideráveis: a primeira,
imensa massa de construções compósitas no coração de uma
paisagem austera e luminosa, verdadeira fortaleza cercada por
uma cintura de muralha de dois quilómetros; a segunda, aberta
numa perspectiva de acolhimento, estende a sua tutela recon-
fortante sobre a aglomeração que nasceu dela.
Para viver o seu ideal de solidão e de oração, os monges
instalam-se longe dos homens; é a "fuga ao mundo", a fuga
mundi. Para se aproximarem de Deus. Para reencontrarem a
natureza também: os locais escolhidos para as abadias são ao
mesmo tempo grandiosos e imprevisíveis. Alguns acham-se
entregues à invasão turística estival, mas, ainda hoje, alguns só
são acessíveis depois de um longo percurso solitário.

Grutas e ninhos de águia

O primeiro contacto pode ser decepcionante: a natureza


mediterrânica é muitas vezes austera e a riqueza de uma abadia é,
antes do mais, interior. Em 1835, Prosper Mérimée, inspector-geral
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

dos monumentos históricos, dá uma imagem rebarbativa do prio-


rado de Serrabone no relatório da sua prospecção metódica
através das províncias francesas. Perdido no meio de uma antiga
clareira de arroteamento, "o local é triste e selvagem. As cons-
truções que dependiam da antiga abadia elevam-se a meia encos-
ta sobre uma montanha árida acima de um vale estreito e profun-
do que a rodeia de três lados. Sobre qualquer ponto em que a
vista se detenha, não encontra senão rochas xistosas, de cor escu-
ra e esverdeada, entre as quais alguns arbustos mirrados crescem
a custo." Nada deixa presentir que o rude edifício de xisto azulado
abriga um espaço interior iluminado por uma tribuna de mármore
cor-de-rosa a qual parece que é erguida da terra pelos animais
que se confrontam, se perseguem e se desafiam sobre os capitéis.
Abadias de montanha, abadias de planície, abadias visíveis
numa vasta região, abadias escondidas pela orla da floresta ou
numa gruta. Ainda ninguém destacou uma tipologia da vida
monástica fundada na variedade das localizações. Conten-
temo-nos em olhar. Indestrutíveis, alguns mosteiros coroam há
um milhar de anos o cume de montanhas: Sant Pere de Rodes
domina a mais de 600 metros o cabo Creus, onde os Pirenéus
vêm morrer no Mediterrâneo; Sant Llorenç del Munt verga sob
o seu próprio peso no cimo do Mola, a perto de 1100 metros, e
dissimula-se de Inverno atrás de um véu de neblina. Construídas
na planície, outras abadias surgem, pelo seu lado, na curva de
um caminho: às portas de Perpignan, os vinhedos cercam as
paredes de Santa Maria del Camp; o campanário de
Saint-Michel-de-Cuxa eleva-se pesadamente acima dos pomares
em flor, dominado pela alvura insolente do Canigou. Outras
ainda, edificadas sobre uma encosta, não parecem aguardar visi-
tantes a não ser do céu: Sant Pere de Casserres, suspensa num
declive instável acima de um ponto do Ter; Saint-Martin-
-du-Canigou, assente num estreito promontório imerso na
lloresta, defronte de uma imensa parede rochosa que reflecte os
raios do sol. Alguns monges estavam tão desejosos de fugir do
mundo que construíram a sua abadia no interior de uma gruta
As abadías da Catalunha
FRANÇA
inhão;
-St-Michet-
doCi»o»
St-Martin-
ANDORRA du Caolgou
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5» Sjdurrti ___ "•Arl«-sür-Tech«
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Stp Cecilia L Seu d'UrgeII Sí Llorenç X
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St Julià del Mont

Gerona

Montserrat

MLDMRRÂNEO
Poüfei iSSiííISsl

FRANÇA
, Corunha

^ Mosteiros béneditin
MADRID
jfc Mosteiros cistercier
ESPANHA
¿> Colegiadas
^ Cartuxas
^ Limite da Catalunha
Fronteira de Estado
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

natural: em Sant Miquel de Fay, a água que ressuma da abobada


reveste os arredores da igreja de uma espessa camada de musgo.
Cinco nomes, cinco abadias — Ripoll, Cuxa, Sant Pere de
Rodes, Santes Creus e Montserrat — resumem os grandes mo-
mentos da historia catalã. À entrada de Ripoll, aldeola indus-
trial sem atractivos, de casas besuntadas de poeira de tijolo, um
painel lembra que a vila é o berço da Catalunha. Desenvolveu-se
em redor da abadia de Santa Maria, elevada em 880 pelo conde
Guifredo, o Peludo, fundador da dinastia dos condes de Barce-
lona. Panteão condal de 897 a 1162, a abadia foi, nos séculos X
e XI, uma espécie de capital espiritual comum aos diferentes
condados, onde foram redigidas as crónicas locais mais antigas,
primeiros esboços de uma história "nacional". A igreja "români-
ca", inteiramente reconstruída entre 1886 e 1893 pelo arquitec-
to Elie Rogent, é um edifício solene e frio. Os restauradores
pouparam o magnífico portal esculpido em meados do século
XII. Desdobrando em seis frisos sobrepostos uma vasta com-
posição glorificando a gesta dos reis de Israel e, através dela, a
reconquista cristã que os condes catalães acabavam de levar a
bom termo, este "arco do triunfo da cristandade" acha-se, infe-
lizmente, atingido de uma lepra da pedra que torna as figuras
pouco a pouco irreconhecíveis, mas inspirou vários portais da
rota de Compostela e o portal dos Ourives da catedral de
Santiago.
Fundada em 878, Saint-Michel-de-Cuxa é um testemunho
vivo dos primórdios do monaquismo e da primeira arte cristã na
Catalunha. Com os seus altos muros cegos, a sua imensa cober-
tura de telhas e a sua torre maciça, a abadia assemelha-se exte-
riormente a uma gorda herdade catalã. A entrada na igreja
reserva-nos um choque; num imenso espaço nu, sombrio, ver-
dadeira caverna de pedra, pilares enormes sustentam arcos em
ferradura que separam a nave principal das naves laterais; as
arcadas são tão rudes, os pilares tão pouco afastados que dão a
impressão de uma parede ininterrupta, apenas perfurada por al-
gumas passagens. Datada do terceiro quartel do século X, este
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

edifício puramente arquitectónico é um testemunho impressio-


nante de uma arte pré-românica, fortemente tributária da tradição
visigótica. No século XI, o abade Oliba mandou acrescentar a
oeste da igreja construções das quais subsiste apenas a parte
baixa, a igreja da Virgem do Presépio. Este edifício circular,
cuja abóbada em arco parece girar em torno de um enorme pilar
central em forma de palmeira, parece inacabado; o traço das
ripas da armação de madeira continua visível na abóbada. Os
capitéis do claustro românico são esculpidos num mármore
cor-de-rosa, com veios e quase transparente, proveniente das
pedreiras de Villefranche que alimentaram os principais estalei-
ros românicos do Rossilhão. Do claustro subsistem apenas as
alas sul e oeste: o resto foi disperso, vendido e reconstruído em
Nova Iorque, no museu dos Claustros!
Em Sant Pere de Rodes, voltamos a encontrar as origens
lendárias da Catalunha cristã: a abadia teria sido fundada sobre
as relíquias de S. Pedro — a cabeça e um braço —, trazidas de
Roma e escondidas na montanha a fim de escaparem à fúria dos
Lombardos que ameaçavam a Cidade Eterna (século VI). A
referência mais antiga de um priorado data em 880. Isolada,
exposta à pirataria sarracena, a abadia rodeou-se de muralhas.
Das duas torres que defendem o acesso a oeste desta fortaleza,
uma é um magnífico campanário com três andares de janelas
duplas, a outra uma simples torre de defesa sem aberturas. A
igreja é um edifício abobadado com três naves às quais a
sobreposição de duas ordens de colunas e de capitéis confere
uma elevação excepcional.
É preciso passar à Catalunha ocidental e meridional para
encontrar abadias cistercienses, já que a densidade dos mosteiros
já instalados a norte não deixou qualquer lugar para os apaixo-
nados pelo deserto como eram os cistercienses. Em contrapar-
tida, as terras recentemente reconquistadas da Catalunha "nova",
libertadas e recristianizadas na primeira metade do século XII,
abriam-se amplamente à colonização monástica. Santes Creus
reconstitui admiravelmente a realidade do mosteiro medieval,
AS ABADIAS DA CATALUNHA I 'I

menos refugio protector do que lugar de vida comunitária. Ali


se penetra como numa cidade; uma vez franqueado o portal bar
roco, chega-se a uma comprida praça rectangular, ladeada de
construções iluminadas de pinturas de trompe-l'oeil. Diante da
fachada ameada da abadia que fecha a praça, uma fonte de água
cristalina convida a meditar sobre a duração e a fidelidade. No
claustro, magnífico edificio flamejante do início do século XIV,
os onze fios de água que alimentam o lavatorio dos monges e o
cor-de-rosa velho da pedra conferem ao local uma paz de qual-
idade excepcional. Na cave dos monges, continua a pairar o
odor do vinho... Construída quando estava a terminar a formação
territorial da Catalunha, Santes Creus afirma certezas com uma
ventura tranquila.
Mas é em Montserrat que bate o coração da Catalunha, é aí
que a sua alma encontra refúgio quando a história se torna ad-
versidade. Surgindo sobre a margem direita do Llobregat, im-
penetrável, de uma alvura inquietante ao luar, a montanha cuja
forma faz pensar nos dentes de uma serra guarnece a floresta
vertiginosa com as suas torres e os seus picos. "Nem o pincel
nem a pena podem descrever as perspectivas que ela oferece a
quem aí se aventure. Alinhamentos de cilindros e de cones de
dimensões variadas, mais ou menos aproximados, deixando o
lugar suficiente somente para que a natureza os decore e os
debrue de finas grinaldas verdes..." — extasiava-se em 1806 o
padre Jaime Villanueva1. Muitas vezes dissimulado no nevoeiro,
do qual emerge para nele desaparecer de novo, o maciço de
Montserrat é um mundo estranho e fantástico. Richard Wagner
aí foi buscar o modelo de Montsalvat onde os cavaleiros da
Távola Redonda, no termo das suas aventuras, celebram o
serviço do Santo Graal.
Na parte oriental do maciço, há muito povoado de ermidas,
na proximidade da "santa gruta" onde alguns pastores desco-
briram uma estátua da virgem negra, Ripoll construiu em 1025
um priorado. Passando à forma de abadia em 1409, tornou-se,
no final da Idade Média, um local de peregrinação internado-
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nal e um centro cultural de primeira ordem. Aí foi instalada


uma tipografia em 1499; o futuro papa Júlio II, protector das
artes, foi o seu abade durante o seu exílio nos últimos anos do
século XV e, no final do século XVIII, a biblioteca da abadia
possuía 8500 volumes e 322 manuscritos. Montserrat encarna
sobretudo a vontade de viver de um povo muitas vezes maltra-
tado pela história recente. Destruída pelas tropas de Napoleão
em 1811, restaurada em 1844, a abadia é hoje o santuário na-
cional dos Catalães, que falam com ternura da sua Moreneta,
uma estátua de madeira polícroma do século XII. Durante os
anos sombrios do franquismo, Montserrat esteve à frente no
combate pela defesa dos valores culturais e das liberdades cívi-
cas; quando a polícia de Franco bloqueava as vias de acesso à
abadia onde se achava reunida a clandestina Assembleia da Cata-
lunha, Montserrat estava realmente isolada do mundo. Hoje, aí
se continua a ouvir a Escolania, um dos mais antigos e mais
belos corais infantis que existem.
Se nos interrogarmos sobre o momento e os motivos de um
florescimento monástico cujos traços se mantêm tão vivos, so-
mos reconduzidos às próprias origens da Catalunha. Logo a se-
guir à "libertação" pelos exércitos de Carlos Magno da região
compreendida entre Pirenéus e Barcelona (785-803), a futura
Catalunha é uma terra despovoada e de novo bravia. Os docu-
mentos da época evocam extensões "desertas", reino do "terror
e da solidão imensa", precisamente boas para a pastagem de
"rebanhos de onagros, de cervos e de outros herbívoros". Os
monges foram dos primeiros a aventurar-se nessa região. A
fundação de abadias acompanha a lenta descida para as regiões
baixas das populações até então amontoadas nos altos vales dos
Pirenéus; ela encoraja e enquadra a empresa de arroteamento
que os textos designam pelo nome evocativo de "ruptura".
A progressão da frente de colonização para oeste e para sul
é em cada etapa assinalada por novas fundações. A primeira
abadia conhecida é a de Arles-sur-Tech em 778; a partir de 812,
o movimento alcança o Sul dos Pirenéus, com a fundação de
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

Sant Esteve de Banyoles, no condado de Besalu. O apogeu da


vaga de construções situa-se entre 880 e 980, no momento em
que ganham raízes as dinastias condais a caminho da soberania.
Depois do ano 930, dois rosários contínuos de abadias desfiam-se
ao longo do litoral e acompanhando o curso do Llobregat, du-
rante muito tempo fronteira da cristandade catalã. Entretanto, a
zona intercalar é por sua vez semeada de abadias, depois de o
conde Guifredo, o Peludo, ter empreendido a repovoaçâo do
condado de Ausona-Vic, vasto deserto em pleno coração das
suas possessões. O movimento de fundações começa a en-
fraquecer no século XI e algumas abadias desaparecem, dema-
siado frágeis economicamente ou por falta de vocações em
número suficiente. Em 914, cinco abadias do condado de Urgell
não têm "nem abade nem monge para assegurar o serviço de
Deus, nem para trabalhar as terras e os vinhedos, nem para
reparar as casas em ruínas".

Povoamento e defesa

No final do século XI, os condes servem-se do seu direito de


patronagem — direito da família do fundador — para obrigar
as grandes abadias a submeterem-se a abadias exteriores que se
propõem reformá-las. Durante mais de um século, de 1070 a
1131, Ripoll e quinze outras abadias são reduzidas ao estado de
priorados de Saint-Victor de Marselha; outras tornam-se filiais
de Moissac, Lagrasse ou Saint-Pons-de-Thomières. Após 1130,
põe-se em marcha a expansão do novo monaquismo —
cistercienses e cartuxos — na Catalunha "nova", reconquistada
por Ramon Berenguer IV entre 1137 e 1149.
A escolha dos locais novos manifesta uma vontade evidente
de continuidade em relação aos primeiros séculos do cristianis-
mo: por toda a parte onde tal é possível, a abadia é construída
no local de uma antiga igreja visigótica arruinada pela invasão
muçulmana. Em Banyoles, os monges instalam-se onde "outro-
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ra tinha sido fundada uma igreja". Em Arles-sur-Tech, é no in-


terior de antigas termas romanas que se inscreve esta vontade
de restauração. A iniciativa da fundação cabe a simples particu-
lares, muitas vezes trânsfrugas hispcmique fugiram à dominação
muçulmana. O fundador de Arles é um certo Castella, "vindo
da região de Espanha". Na origem de Saint-Michel-de-Cuxa,
sete sacerdotes e vários leigos vindos de Urgell. Nos condados
de Pallars e Ribagorça, os bispos tomaram directamente a seu
cargo as fundações, segundo uma tradição visigótica que reserva-
va às abadias o serviço pastoral dos fiéis. Em 807, o sacerdote
Espanell reuniu em seu redor cinco clérigos e transforma numa
abadia a sua pequena igreja de Gerri.
A partir de 880, porém, no momento em que ganham raízes
as dinastias condais (dinastias de condes indígenas), a erecção
de abadias torna-se um elemento essencial da política de re-
povoamento e de defesa fronteiriça dos condes hereditários e a
escolha dos locais responde doravante a preocupações políticas
ou militares. Todavia, as abadias condais continuam a ser antes
de mais fundações familiares: lugar de sepultura dinástica e de
oração permanente pelos antepassados. Quando funda sucessi-
vamente Ripoll (880) e Sant Joan de les Abadesses (885), Gui-
fredo cede às novas abadias o seu filho Radulfo e a sua filha
Emma; apenas Emma se tornará abadessa. Finalmente, a abadia,
fundação familiar, pode tornar-se o local de uma conversão pes-
soal: em 1035, o conde Guifredo de Cerdagne retira-se para a
inacessível abadia de Saint-Martin-du-Canigou que tinha fun-
dado em 1007; ali viveu catorze anos antes de ser sepultado
num túmulo escavado pelas suas próprias mãos na rocha.
Durante algumas décadas, o fundamento da vida comunitária
continua a ser o pacto monástico tirado da regra de S. Frutuoso
de Braga, em uso em toda a Espanha antes da conquista muçul-
mana. O acto constitutivo é um contrato escrito entre o abade e
os monges: o abade abandona o seu património à comunidade e
os seus companheiros prometem-lhe obediência. O pacto é reno-
vado em cada eleição abacial e todo o novo monge deve
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

subscrevê-lo. Mas a regra de S. Bento impõe-se em breve a partir


das abadias mediterrânicas; atestada no ano 812 em Sant Cli-
ment de Codinet, preside desde meados do século X à vida de
todas as abadias.
A influência directa de Cluníaco parece ter sido insignificante
na Catalunha; a abadia borgonhesa nunca aí possuiu senão dois
modestos priorados. O espírito reformador conquistou a região
por intermédio das abadias languedócias já reformadas por
Cluníaco, em particular Moissac. Em 965, o abade de Lézat,
Gari, foi chamado a dirigir Cuxa e fundou uma pequena
congregação de cinco abadias não-pirenaicas que se desfizeram
quando da sua morte em 998. No século XI, Oliba, abade de
Ripoll e de Cuxa, conseguiu reagrupar a quase totalidade das
abadias da Catalunha sob a sua autoridade, mas, desprovido de
qualquer elo institucional e baseado unicamente no prestígio de
Oliba, este agrupamento não lhe sobreviveu. Foi de uma
enxameação a partir de Fontfroide e Grandselve que nasceram
as abadias cistercienses da Catalunha nova, Poblet em 1149 e
Santes Creus em 1153.
Entre 850 e 10502, o monaquismo exerceu uma influência
considerável sobre a Catalunha em formação. A reorganização
da vida religiosa foi confiada às abadias, tendo várias delas fun-
dado filiais, destinadas a assegurar o serviço paroquial. Os bis-
pos não devem ter apreciado esta situação paradoxal; a partir de
1050, por várias ocasiões transformaram uma abadia recente-
mente fundada numa colegiada de cónegos, mais adaptada à
"cura das almas", cura animarum.
As abadias desempenharam um papel de pioneiras no re-
povoamento e na valorização das terras libertadas. Em 812, um
certo Bonito, "homem devoto", consegue que lhe seja cedida,
pelo conde de Gerona e Besalu Odilo, uma terra deserta próxi-
ma do lago de Banyoles. Depois de a ter desbravado "com o
suor do seu rosto" ali edifica uma igreja, dedicada a Santo Es-
têvão, e algumas dependências; a seguir reuniu uma comuni-
dade de monges da qual se tornou o primeiro abade. Em 822, o
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

imperador Luís, o Piedoso, concede o seu diploma de imuni-


dade à nova abadia e coloca sob a sua protecção um património
que foram os próprios monges a arrancar ao deserto. A abadia
de Sant Julià del Munt "trouxe ao cultivo uma terra inculta e
deserta" e as religiosas de Santa Cecília d'Elins "puseram em
cultivo uma terra inculta". Como os terrenos incultos pertencem
ao fisco, os monges têm de pedir ao conde autorização para aí
se instalarem.
No fim do século IX, os condes hereditários chamam a si as
coisas. Guifredo, o Peludo, funda as abadias irmãs de Ripoll e
Sant Joan; ao apoiar-se nelas, aspira a repovoar os vastos ter-
ritórios desabitados no coração das suas possessões. Em menos
de trinta anos, a abadia de Sant Joan, sob o abadado de Emma,
filha do conde, assegura o repovoamento do vale: 17 lugares
habitados são fundados entre 887 e 913 e mais de um milhar de
pessoas instalam-se neles.
Hoje em dia, os historiadores têm tendência a reduzir a impor-
tancia da colonização monástica; os monges, nos preâmbulos
dos diplomas régios que redigiam eles mesmos com frequên-
cia, exageraram sem dúvida o seu papel e a documentação es-
crita não dá notícia de numerosos desbravadores anónimos. Nem
por isso deixa de ser verdade que os monges contribuíram para
a revalorização da região: no século XII, os cistercienses orga-
nizam a trasnsumância ovina das planícies do Ebro para as mon-
tanhas pirenaicas e é revelador que os cartuxos do Scala Dei
tenham deixado o seu nome ao vinhedo do Priorado.
As abadias são importantes centros de cultura, instituindo-
-se mesmo como dos principais da Cristandade. Com 246
manuscritos em 1057, a biblioteca de Ripoll é uma das primeiras
da Europa. Fora os textos litúrgicos e ligados à Escritura Sagrada,
contém gramáticas, glossários (latim-grego-hebreu), clássicos
latinos, obras de história, tratados de cômputo (cálculo das festas
móveis, como a Páscoa), medicina, geometria e música. A origi-
nalidade da sua situação geográfica predispõe a Catalunha a ser
uma terra de encontro. Separada politicamente do resto da
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

península depois da sua "libertação" pelos Francos, continua


todavia fiel à herança cultural visigótica; as obras de Isidoro de
Sevilha (aproximadamente 560-636) constituem a base das
bibliotecas e do ensino prestado nas escolas monásticas: exercícios
gramaticais de base etimológica. A influência franca afirma-se
com a adopção da letra minúscula e, no final do século IX, com a
substituição da liturgia de Toledo pela liturgia franco-romana; é
nos scriptoria que são copiados os novos saltérios e homiliários.
Finalmente, a Catalunha encontra-se em contacto com o Is-
lão. A estada em Ripoll, entre 967 e 970, do jovem monge Ger-
bert d'Aurillac, o futuro papa Silvestre II, atesta o papel de in-
termediário desempenhado pelas abadias catalãs na difusão da
ciência árabe na Europa. O seu biógrafo, Richer, diz-nos que
ele estudou ali "duma maneira aprofundada e com êxito as
matemáticas" e, na realidade, o conjunto das ciências exactas:
aritmética, geometria, astronomia e música, então ignoradas no
resto da Europa. Vários manuscritos da biblioteca de Ripoll são
traduções de tratados científicos árabes e a presença de glosas à
margem prova que certos leitores — talvez monges refugiados
da Andaluzia — utilizavam o árabe como língua quotidiana.
As abadias também são lugares de criação artística. Do
scriptorium de Ripoll provêm duas Bíblias ilustradas que são
sem dúvida os dois manuscritos mais ricamente decorados do
século X. Os desenhos à pena que as ilustram são um documen-
to excepcional sobre a civilização contemporânea: soldados em
combate, pedreiros e canteiros, convivas em plenos festejos, é
um fresco da sociedade catalã o que propõem. Pode mesmo aí
ver-se beber regaladamente pelo purro (garrafa com um longo
bico)! Ripoll deu igualmente nascimento a uma importante
produção literária, tanto poética como historiográfica: a Brève
llistoire du Monastère de Ripoll é o primeiro esboço de história
narrativa na Catalunha! Pelo seu lado, o monge Gotmar de Sant
< 'ugat dei Valles escreveu por volta de 940 uma história dos reis
francos; depois de se tornar bispo de Gerona, dedicou-a ao ca-
11 lá de Córdova.
100
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A irradiação das abadias estende-se muito para além da


Catalunha e até mesmo da França meridional. Em 978, Cuxa
acolhe Romualdo, futuro fundador da ordem dos Camáldulos, e
o doge Pietro Orseolo, que veio expiar as circunstâncias con-
testáveis da sua elevação. Ripoll mantém relações continuadas
com Fleury-sur-Loire e os rolos mortuários3 de abades ou de
condes catalães chegam até Liège.
Finalmente, as abadias tiveram um papel essencial na for-
mação da própria Catalunha e do sentimento nacional catalão.
Algumas encontram-se muito ligadas às famílias condais. Ri-
poll é o local de sepultura das dinastias de Barcelona e Besalu;
após 1150, Poblet torna-se o local de retiro e o panteão dos
condes-reis de Aragão. Os abades são frequentemente aparen-
tados com as famílias reinantes: Oliba era conde antes de pro-
fessar em Ripoll. Abades e monges são encarregados de mis-
sões diplomáticas e vários abades, promovidos ao episcopado,
criam a instituição tipicamente catalã do bispo-abade, que se
mantém até meados do século XI1.
As primeiras formas de reagrupamentos monásticos que igno-
ram os limites dos condados prefiguram os reagrupamentos
políticos que irão surgir. Oliba apareceu como o pai da maior
parte das abadias catalãs e Ripoll é um viveiro de abades e de
bispos para o resto da Catalunha. Reciprocamente, vários bis-
pos renunciam ao seu cargo para irem acabar os seus dias em
Ripoll. Nesta abadia nasceu a historiografia catalã. A partir dos
finais do século XI, ali são redigidas curtas crónicas que apre-
sentam a história sob uma luz local: os acontecimentos são
ordenados por referência a 801, ano da libertação de Barcelona,
e 985, data da destruição da cidade por lbn Abi Amin al-Mansur,
o senhor de Córdova e o terror dos cristãos ibéricos. Entre 1154
e 1162, a versão primitiva das Gesta Comitum Barcinonensium,
primeira história nacional catalã, é elaborada. No momento de
celebrar a dinastia, ela une claramente a sua origem à mani-
festação de uma hostilidade entre dois povos. A Catalunha,
dizem os monges, nasceu contra os Francos! Eles falam de uma
I 'I
AS ABADIAS DA CATALUNHA

dinastia soberana cujos feitos, o portal da abadia perpetua, ao


mesmo tempo, através da narrativa dos triunfos do povo eleito.
A Catalunha já não é hoje em dia a que as abadias ajudaram
a nascer há um milhar de anos. Mas ainda é para essas abadias
que se viram os Catalães de Espanha e de França, tão apaixo-
nadamente ávidos de conhecer as suas origens e de viver a sua
diferença. Por isso nunca estiveram tão vivas como hoje. Não
sendo nem museus nem refúgios, estão à escuta de um mundo
que tem necessidade delas. A biblioteca mais completa referente
à última guerra de Espanha encontra-se em Montserrat, que por
outro lado acolhe os mais importantes agrupamentos de jovens.
E há uma vintena de anos, depois de alguns monges de Mont-
serrat se instalarem em Cuxa, centenas de barceloneses vinham
à missa em França e manifestavam a sua fé no futuro.

Notas

1
Sacerdote espanhol que, no decurso do primeiro terço do século
XIX, visitou as principais igrejas de Espanha e fez, em cartas dirigidas
ao seu irmão, a descrição simultaneamente precisa e crítica dos ar-
quivos, tesouros e bibliotecas.
2
No decurso destes dois séculos, os condados catalães libertam-se
progressivamente da dependência do reino franco. O advento de Hugo
Capeto marca o termo desta marcha para a soberania, ao mesmo tempo
que os condados até então independentes começavam a agrupar-se em
torno do conde de Barcelona.
3
Elogio fúnebre enrolado num rolo de madeira, enviado às abadias
com as quais o defunto se achava em comunidade de orações.

Orientação bibliográfica

A melhor abordagem monumental das abadias catalãs em língua


francesa é fornecida pelas obras das Éditions du Zodiaque, La
Pierre-qui-vire:
* E. Junyent, La Catalogne Romane, 2 vols., 1960.
102
MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

* M. Durliat, Le Roussillon Roman, 1958.


Em catalão:
* A. Pladevall, Eis Monestirs Calalans, Barcelona, Edicions
Destino, 1974.
O contexto geral pode ser então abordado a partir de:
* P. Bonnassie, La Catalogne du Milieti du Xe à la fin du Xle
Siècle. Croissance el mutations d 'une sociéié. 2 vols., Toulouse, Privat,
1974-1975.
* Historia deis Calalans, t. 2, La Pre-Catalunya (séculos VIII-XI),
s/d, Barcelona, F. Soldevilla, 1964-1965.
* Historia de Catalunya, s/d, Pierre Vilar, vol.II, "El procés de feu-
dalització (segles II1-XII)", Barcelona, J.M. Salrach, 1987.
* E. Junyent, Catalunya Românica. L 'arquitectura del segle XI,
Montserrat, 1975.
* M. Zimmermann, En eis Origens de Catalunya. Emancipado
politica i afirmado cultural. Barcelona, Edicions 62, 1989.

O nascimento e o desenvolvimento da historiografia catalã foram tra-


tados por:
* M. Zimmermann, "La prise de Barcelone par Al-Mansur et la
naissance de 1'liistoriographie catalane", Annales de Bretagne et des
Pays de l'Ouest, 1980.
* M. Zimmermann, "Origines et formation d'un Etat catalan
(801-1137)", em Histoire de la Catalogne, s/d, J. Nadal Farreras e P.
Wolff, Toulouse, Privat, 1982.

O papel cultural da abadia de Ripoll é evocado em numerosas obras,


em particular:
* A.M. Albareda, L'Abat Oliba, Fundador de Montserrat
(9717-1046), Publicacions de l'Abadia de Montserrat, 1972.

Finalmente, a história do monaquismo catalão foi objecto de um apanha-


do por:
* A.M. Mundó, "Moissac, Cluny et les mouvements monastiques à
l'est des Pyrénées du Xe au XHe siècle", Annales du Midi, 1963.
Os construtores de Cluníaco (Cluny)
Carol Heitz

Cluny! O nome, na sua brevidade melodiosa, evoca bem o


pacífico vale do Grosne, que as carruagens do TGV hoje em dia
sulcam. Ao longe, o viajante vê aparecer os contornos ainda
nitidamente desenhados da antiga cidade monástica. Uma bela
torre octogonal eleva-se aí, encimada por uma cúpula de formas
geométricas, lisas e elegantes. Alguns instantes mais tarde, o
comboio penetra nas colinas de Mâcon, passando no sopé de
Berzé-la-Ville, que foi, no seu tempo, o Castelgandolfo do
homem da Igreja mais poderoso do mundo.
Por que razão o fenómeno cluniacence é tantas vezes
privilegiado? É que em Cluny, melhor que em qualquer outra
parte, pode compreender-se como funcionava uma formidável
instituição de oração e liturgia. As buscas arqueológicas pa-
cientemente levadas a cabo entre 1928 e 1968 pelo arquitecto
americano Kenneth John Conant informam-nos com precisão
acerca desta abadia beneditina, da sua irresistível ascensão, do
seu breve apogeu e, depois, do seu implacável declínio, o qual
evoluiu a seguir à Revolução, precisamente entre 1802 e 1816,
para uma destruição quase total.
O zénite deste mosteiro, que o legado do papa Pedro Damião
qualificava em 1063 como "incomparável", coincide com a
realização do mais extraordinário projecto arquitectónico
realizado até então: a construção da sua terceira — e última —
102
125 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

abacial, Cluníaco III. Foi em 1088 que os Cluniacences começa-


ram a construir esta igreja cujas dimensões só serão ultrapassa-
das cinco séculos mais tarde: para tal ter-se-á de aguardar pela
catedral de S. Pedro de Roma, nascida do génio dos grandes
arquitectos italianos do século XVI. A rainha das igrejas
românicas tem pois exactamente novecentos anos.
Os começos, porém, haviam sido bastante modestos. Em 910,
Bernão, abade dos mosteiros jurassianos de Baume e de Gigny,
instalou-se aí com seis monges vindos dessas duas abadias para
uma villa que lhe tinha sido oferecida por Guilherme, o Pie-
doso, conde da Aquitânia. Desde a sua chegada, Bernão
propôs-se construir um novo santuário Cluníaco I — uma igre-
ja de dimensões reduzidas (35 metros de comprimento), se a
compararmos às vastas abaciais do século anterior, como Cen-
íw/â/Saint-Riquier, na Picardia, ou Fulda, na Alemanha central,
construídas por Carlos Magno.
O sucessor de Bernão, Odão (924-942), teve um papel
determinante na história do mosteiro: fundador da espirituali-
dade cluniacense, não cessou de desenvolver — como prova o
seu livro Occupatio — o paralelo entre os apóstolos e os
monges: a vida do monge deve atingir, por sete etapas sucessivas,
a felicidade angélica (vita angélica) e uma perfeita e eterna in-
timidade com Cristo. Segundo Odão, os monges cluniacenses
celebram a Páscoa dia após dia numa igreja que é "a sua Jeru-
salém descida dos Céus".
O segundo abade de Cluníaco deixou, além disso, à jovem
abadia um legado de uma importância considerável: a dispensa
que, ligando-a directamente, sem nenhum intermediário, a Roma,
lhe assegurava uma independência perfeita tanto em relação ao
poder laico como ao do bispo de Mâcon, tentado a impor a sua
autoridade ao novo mosteiro. Seis anos após a morte de Odon,
cento e trinta e dois monges pertencentes ao mosteiro e, sem
dúvida, aos priorados vizinhos, apuseram a sua assinatura à con-
firmação desta dispensa papal. O ano 948 foi também o primei-
ro de um longo e glorioso abaciado: o de Mayeul, organizador
OS CONSTRUTORES DE CLUNY 133

eficaz, grande construtor. Foi o mestre obreiro inspirado da


segunda igreja construída no local — Cluníaco II.
A planta de Cluníaco II, nivelada desde o início do século
XII para permitir a extensão do claustro, chegou até nós graças
à minuciosa descrição conservada na costumagem do mosteiro
italiano de Farfa1. A igreja, de tamanho médio (cerca de 63
metros de comprimento), e as construções conventuais tinham
sido concebidas a partir do modelo ideal da planta de Saint-Gall2.
O sucessor de Mayeul, Odilâo (994-1048), levou a bom êxi-
to uma política de expansão da ordem, que se espalhou primei-
ro pela França e depois por toda a Europa. Em 1010, Saint-Jean
d'Angély é ligada à Congregação por um verdadeiro acto da
força, contra a vontade de uma parte dos monges. Em 1016,
chamados pelo bispo Meinwerk de Paderborn, treze monges de
Cluníaco reformam a antiga abadia carolíngia de Abdinghof. É
a primeira fundação cluniacense de Além-Reno. Outras surgirão
no decurso do século XI, nomeadamente no Sudoeste da Ger-
mânia (a actual região de Bade-Wurtemburg, abadias de Hirsau
c de Alpirsbach), assim como ao sul do Harz (Hamersleben) e
na Turíngia (abadia de Paulinzella), regiões anexadas pouco
tempo antes à civilização cristã do Ocidente. Finalmente, em
1033, a ordem instala-se em Espanha: os bispos e o rei de Castela
restabelecem a vida regular em San Salvador d'Ona, sob a di-
recção de Garcia, um monge formado na disciplina cluniacense.
Odilão morreu em Souvigny na noite de S. Silvestre de 1048-
-1049. Tinha oitenta e sete anos de idade. Tinham bastado dois
abadiados (Mayeul: 948-994; Odilão: 994-1048) para assegurar
ao mosteiro cem anos de vida e de expansão. Era Hugo de Semur
(1049-1109) que ia levar Cluníaco a franquear o limiar do século
XII. Recebeu o mais notável auxílio que a ordem podia esperar:
Afonso VI, rei de Leão e de Castela, decidiu entregar-lhe uma
renda anual, que permitiu à abadia renovar o seu quadro de vida
e sobretudo dotar-se de uma nova abacial, mais rica e mais bela
do que todas as outras. Esta última igreja, habitualmente
134 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

designada como Cluníaco III, apareceu aos contemporâneos


como a realização na terra da Jerusalém celeste.
Sem dúvida que o seu plano e a sua elevação terão sido lon-
gamente amadurecidos por Hugo, assistido pelos monges Héze-
lon e Gauzon. Encontra-se em La Vie de 1'Abbé Hugues, da
autoria de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e de Tours
(1055-1133), a narrativa do milagre que esteve na origem do
empreendimento. S. Pedro apareceu uma noite a Gauzon, que
estava semi-paralisado, e ordenou-lhe que fosse à procura do
abade Hugo: tinha de o persuadir a construir uma nova igreja
abacial. Gauzon seria recompensado com uma cura total e sete
anos de vida suplementares. O monge viu mesmo S. Pedro medir,
com a ajuda de cordae (cadeias de agrimensor), o comprimento
e a largura da nova igreja. Hugo, tocado pelo restabelecimento
de Gauzon, acedeu ao seu voto e, "durante vinte anos, ajudado
por Deus, erigiu uma basílica em que não se sabia o que mais
admirar, se o seu tamanho se a arte dos seus ornamentos".
Cluníaco III oferecia daí em diante aos monges um vasto
espaço, que lhes evitava misturar as ordens (monges, conversos
ou servos que se consagravam aos trabalhos manuais) e garan-
tia uma perfeita evolução das procissões, sem confusão das es-
tações exigidas pela oração litúrgica. O coro, em meia-rotunda,
como o que subsiste em Paray-le-Monial, era rodeado de um
deambulatório majestoso que valeu ao edifício o seu sobrenome
de deambulatorium angelorum ("deambulatório dos anjos").
Dava por sua vez para capelas resplandecentes. Dezassete absi-
díolos guarneciam a capela-mor, entrecortados por dois tran-
septos dispostos à maneira de uma cruz da Lorena. Quatro pos-
santes torres dominavam a parte oriental do edifício. Na direcção
oeste, uma nave central imensa estendia as suas cinco naves
laterais, quíntupla avenida herdada das maiores basílicas ro-
manas.
Com a sua galilé ocidental, a igreja abacial media mais de
187 metros de comprido. Este grandiosos habitáculo, construí-
OS CONSTRUTORES DE CLUNY 135

do com extremo rigor, era de urna solidez tal que o braço sul do
transepto, única parte poupada pela destruição do século XIX,
se mantém ainda de pé sem se ter movido uma polegada, nove-
centos anos após a sua construção.
Dois outros traços de arquitectura impressionaram, de um
ponto de vista mais profano, os contemporâneos: a claridade e
o asseio. Os mosteiros cluniacenses abrem-se amplamente ao
ar e à luz. Encontram-se aí duas canalizações, uma para a água
limpa, a outra para as águas usadas. Foram instalados, com a
mesma preocupação de higiene, latrinas e banho de estufa. A
enfermaria dispõe de uma sala para a limpeza da louça, de uma
outra para a lavagem dos pés, de uma terceira para o arranjo dos
defuntos... Este humanismo de todos os dias equilibra o que a
liturgia podia ter de grandioso. Na sua Vita Odilonis, o
monge-poeta Jotsaud, ao descrever, por volta de 1050, as
construções de Cluníaco II, usa com efeito frequentemente as
palavras "glória", "ornamento", "nobreza", "decoração". Isso
mesmo se aplica ainda mais à nova abacial e ao seu claustro,
ampliado pelo abade Pons de Melgueil (1109-1123). As
indicações dos costumes indicam tudo o que, num dia de festa
se pode acrescentar ao esplendor da igreja e do seu mobiliário:
cortinados, tapetes, círios, candeeiros, relicários e outros objectos
de arte. Tudo era feito para elevar a alma e mantê-la num estado
de satisfação e de quietude propícia à meditação: Cluníaco
tornara-se o centro de uma vida monástica irradiante, que ia
modelar em profundidade a vida espiritual do século.
Em 910, a abadia contava apenas doze monges. São
quatrocentos e cinquenta em 1156, no fim do quarto grande
reinado abacial, o de Pedro, o Venerável: a progressão do efectivo
foi constante até meados do século XII. Esta comunidade impõe
asi mesma um fervor litúrgico sem igual, pois a mais alta função
de um monge beneditino consiste em glorificar Deus por meio
da oração. A regra de S. Bento3, elaborada pelo fundador da
ordem por volta do 535 no Monte Cassino, ordena-lhe ainda
que se entregue ao trabalho e à lectio divina. Esta leitura das
coisas divinas duravacercade quatro horas, seis horas eram consa-
136 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

gradas ao trabalho manual, ao passo que a liturgia se estendia


por mais de três horas.
Mas esta sábia repartição, este feliz equilíbrio pregado pelo
fundador da ordem e consolidado por séculos de uso monástico
acabaram por ser progressivamente alterados. Já S. Bento de
Aniane, o austero reformador carolíngio (concílio de Aix-
-la-Chapelle, 816-817), tinha alongado o ofício divino, au-
mentando o tempo reservado à salmodia. Mas Cluníaco irá muito
mais longe: por volta de 1100, a duração total do ofício atingia
seis horas e meia. Esta liturgia era essencialmente sálmica: em
certos dias, a comunidade chegava a recitar 215 salmos!
Cantava-se todos os dias o ofício de todos os santos; celebrava-se
longamente a memória dos mortos. Com as duas missas con-
ventuais cantadas, a celebração do ritual acabava por ocupar a
maior parte do dia dos monges4. Não haveria nisso um risco
para a vida interior do religioso cluniacense? Não seria ele pre-
sa do perigo do formalismo? Não faltam testemunhos acerca da
lassidão que provocava a multiplicidade dos ofícios. O próprio
Pedro, o Venerável, deplora esta sobrecarga que confessa ser
"odiosa a muitos" (odiosa pliiribus). Em nenhuma outra parte
se leu o Evangelho com este "grau heróico" (a expressão é de
Dom Philibert Schmitz, na Histoire del'Ordre de Saint Benoit,
Maredsous, 1942).
Este movimento colectivo que, no dizer do cronista Udalrico
de Zell, o autor da obra Três Anciennes Coutumes de Cluny,
redigida em 1077, pesava a alguns como uma chapa de chumbo,
duplicava-se por uma espiritualidade individual: as missas pri-
vadas, celebradas no fim das matinas, mais não fizeram que
aumentar de número com o correr dos anos, de tal maneira que
em 1120 cada monge celebrava uma missa privada por semana.
Esta prática explica em parte o grande número de altares que se
encontram nas igrejas da ordem e, no plano arquitectónico, a
quantidade de absidíolos que rodeiam a capela-mor.
Fosse ou não contestada do interior, a espiritualidade
cluniacense difundiu-se, a partir do século X, por toda a Europa.
OS CONSTRUTORES DE CLUNY 137

Vários mosteiros estrangeiros aderiram a este movimento de


reforma. Tomou corpo uma congregação, cada vez mais rami-
ficada, cada vez mais poderosa. Nos séculos XI e XII, esta rede
estendeu-se à Alemanha (do Sul e do Centro principalmente),
aos Países Baixos, à Inglaterra (Thetford, Bermondsey, Lewes),
à Itália e ao nordeste e noroeste da Península Ibérica, até aos
limites da reconquista cristã desta zona ainda parcialmente ocu-
pada pelos árabes. Na Itália, comunidades prestigiosas como a
de Pontida junto do lago de Como e de S. Pedro do Céu de
Ouro, em Pavia, tornaram-se priorados de Cluníaco. Até em
Roma S. Lourenço, S. Pedro fora de Portas e Santa Maria no
Aventino sofreram a influência cluniacense.
No seu apogeu, a ordem cluniacense contava entre 1100 e
1200 dependências. Esta nebulosa que se astendia à Europa oci-
dental inteira compunha-se de priorados muito numerosos, con-
ventuais ou não, estabelecimentos estreitamente sujeitos à
casa-mãe. Existiam mais de mil em França, uns quarenta na
Itália e em Inglaterra, uns trinta na Península Ibéricas. Cinco
deles tiveram uma importância particular: La Charité-sur-Loire,
Souvigny, Sauxillanges, Saint-Martin-des-Champs, em Paris, e
Lewes, em Inglaterra. Quanto às abadias (quinze em França),
algumas viam o seu abade designado por Cluníaco, outras, ditas
"ordenadas", elegiam o seu abade mas deviam em seguida obter
a sua confirmação, como era o caso de Vézelay. A ordem dis-
punha finalmente de alguns mosteiros de mulheres, muitas vezes
também com uma casa de homens.
Estas dependências obtinham para a casa-mãe substanciais
rendimentos, tanto em géneros como em numerário. Um regis-
to de 1321 informa-nos de que a província que pagava mais
impostos era a do reino de França, que pagava 8956 libras. A
seguir vinham Poitu (844 libras) e a cidade de Lião, ainda não
integrados no reino (776 libras), e, no estrangeiro, os mosteiros
ingleses (629 libras), ibéricos (201 libras), alemães (66 libras) e
lombardos (7 libras). A disparidade dos valores revela uma carên-
138 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

cia administrativa certa: "A ordem não produz na proporção da


sua importância."
Durante o abaciado de Hugo de Semur (1049-1109),
Cluníaco tinha todavia vivido na opulência: da Provença, de
Itália, da Península Ibérica sobretudo, o ouro e a prata afluíam
para os cofres. Mas esta riqueza não fora capitalizada. "Mais
vale" — dizia o abade Hugo — "despender o ouro e a prata do
que guardá-los intactos e todos fulgurantes." Ele esperava
vivificar esses recursos destinando-os a obras de caridade —
centenas de pobres tinham eleito para seu domicílio as redon-
dezas de Cluny —, mas também ao conforto dos seus monges,
que, desligados das preocupações materiais, podiam entregar-se
sem reservas á prática litúrgica e à meditação.
Georges Duby tira desta política a mais esclarecedora das
conclusões: "Como se estava bem provido de numerário,
ganhou-se o hábito de comprar regularmente no exterior, não
apenas, como outrora, o vestuário e alguns víveres, mas o pão e
o vinho quotidianos [...] Revolução completa: numa geração, a
comunidade cluniacense substituiu a economia dominial pela
economia monetária [...] Esta mudança produziu-se no final do
século XI e no início do século XII [...] O remédio mais seguro
teria sido regressar à frugalidade de outrora, renunciar às belas
vestes, à alimentação abundante e variada dos refeitórios, fe-
char mesmo a estância de obras da basílica ainda inacabada.
Mas era impossível romper brutalmente com hábitos que os san-
tos abades do século XI tinham favorecido e quando Pedro, o
Venerável — confrontado com uma primeira crise a partir de
1125 —, quis reprimir muito moderadamente um luxo supérfluo,
muitos dos irmãos puseram-se a murmurar6.
O luxo das igrejas e dos conventos cluniacenses acabou por
provocar a ironia, e depois a vingança, das outras ordens.
Bernardo de Claraval, chefe da ordem cisterciense, foi o adversário
mais determinado dos monges de Cluníaco: dotado de uma força
de convicção inaudita, baseada numa retórica fervorosa mas
também na arte da sátira, Bernardo reprovava a decoração das
OS CONSTRUTORES DE CLUNY 139

igrejas e o novo estado de espírito que revelava essa ostentação


de riquezas. O seu planfeto Apologia ad Guillelmum (Apologia
dirigida em 1124 a Guilherme, abade de Saint-Thierry perto de
Reims) é directamente dirigida contra a arte cluniacense "As
paredes da igreja resplandecem, mas os pobres sofrem! (...) As
suas pedras estão recobertas de ouro, mas as suas crianças estão
nuas! (...) Que fazem todos esses monstros nos claustros, esses
macacos impuros, esses leões selvagens? Se todas estas inép-
cias não provocam a vergonha, ao menos que se recuasse pe-
rante os gastos!"
A arte cluniacense, carregada de toda uma significação inte-
lectual, era concebida para contribuir para a edificação das almas.
Houve quem preferisse considerá-la como uma fonte de dis-
tracção, e até de escândalo. A influência da instituição sobre o
mundo religioso começou a declinar a pouco e pouco, até se re-
duzir a nada. Resta dizer que o mosteiro, através da personalidade
notável de alguns dos seus abades, havia marcado o seu tempo
até no desenvolvimento dos assuntos políticos. Quando da
querela das Investiduras 7 , foi o abade Hugo, presente em
Canossa, que soube aplacar o Papa Gregório VII, antigo clunia-
cense, e levá-lo a conceder o seu perdão ao soberano penitente,
de que era padrinho. A irradiação de Cluníaco estendera-se mais
longe ainda: Hugo de Semur tinha vivido na Hungria, na qua-
lidade de legado do Papa junto do rei André I. Este fundou em
1055 o mosteiro de Tihany: beneditinos de inspiração clunia-
cense coabitavam aí com monges de obediência bizantina. E,
quando em 1091-1092, Ladislau, o Santo, concluiu uma aliança
com Henrique IV, foi severamente chamado à ordem por uma
carta do Papa Urbano II, que fora monge de Cluníaco. O sucessor
de Ladislau, Kolornan, vergou-se às exigências papais, nomea-
damente no que se referia ao celibato dos sacerdotes, revigora-
do pela reforma gregoriana. Nada atesta melhor a influência
cluniacense sobre essas regiões longínquas da bacia dos Cárpa-
tos do que a piedosa lenda de Emérico e de Mauro — um, filho
de rei, o outro, monge, que se tornará mais tarde bispo de Pécs:
140 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

levavam ambos uma vida ascética e respeitavam a regra do ce-


libato.
Foi assim que o espírito de Cluníaco, não obstante as diatribes
e os requisitórios dos seus adversários, penetrou em mundos
longínquos. Também modelou as manifestações religiosas da
sua época. É que a abadia borgonhesa se havia tornado um
mundo único, uma totalidade viva: tal como o seu modo de vida,
a sua arte dava testemunho de uma espiritualidade nova e
exigente.
Notas
1
Este documento pertence à Biblioteca Vaticana (ms. latino 6880).
Foi redigido na sequência da visita a Cluny, em 1031, do abade de
Farfa, Hugo.
2
A planta de Saint-Gall elaborada, após o concílio de Aachen
(Aix-la-ChapelIe 816-817), na abadia de Reichenau perto de Constança,
representa um mosteiro ideal, com a sua igreja abacial única (com 103
metros de comprimento), as suas officinae (edifícios conventuais), os
seus jardins e as suas construções económicas. Durante séculos, a dis-
posição dos edifícios claustrais será decalcada dos conceitos elabora-
dos pouco antes em Aachen sob a direcção de Bento de Aniane e de
Heito, bispo de Basileia e abade do mosteiro de Reichenau.
3
Esta regra, que define o desenrolar da vida comunitária e reduz as
exigências ascéticas ao mínimo dos mínimos, regeu a vida monacal
ocidental durante longos séculos. Em França, ela opõe-se, desde o sé-
culo VIII, à regra bem mais ascética, logo mais difícil de suportar, do
missionário irlandês Columbano.
4
Pedro, o Venerável, acrescentou em 1132 a obrigação de celebrar
uma terceira missa quotidiana em honra da Virgem.
5
Cf. a obra de P.-R. Gaussin, L'Europe des Ordres et des
Congrégations, Saint-Étienne, CERCOM, 1984, p. 82.
6
Georges Duby, "Économie domaniale et économie monétaire. Le
budget de 1'abbaye de Cluny entre 1085 et 1155", Annales ESC, VII,
1952, pp. 161-162.
7
Querela das Investiduras: conflito que opôs o Papa ao imperador
germânico, nos séculos XI e XII, a propósito da investidura dos abades
e dos bispos. Desde os Carolíngios, a investidura era conferida pelo
OS CONSTRUTORES DE CLUNY 141

príncipe laico e era acompanhada as mais das vezes por um beneficio


ou um feudo que acarretava de ¡mediato um elo de vassalagem. A
oposição romana a este género de nomeação atingiu o seu paroxismo
sob Gregorio Vil, que conseguiu isolar politicamente o Imperador
Henrique IV. Para levantar a excomunhão que o Papa lhe lançara, Hen-
rique foi em penitência em Janeiro de 1077 a Canossa (o que não o
impediu de reatar as hostilidades depois).

Orientação Bibliográfica
Sobre o monaquismo cluniacense:
* A.H. Bredero, Cluny et Citeaux au Xlle Siècle. L 'histoire d'une
controverse, Amesterdão-Lille, APA Holland University Press, dif.
Presses universitaires de Lille, 1985.
* G. Charvin, Alias des Monastères de 1'Ordre de Cluny au Moyen
Age, anexo aos estatutos, cabidos gerais e visitas da Ordem de Cluny
Paris, 1977.
* G. Duby, Adolescence de la Chrétienté Occidentale, Paris-Genebra,
Skira, 1966.
* J.-P. Migne, Patrologie Latine (sobre Odão, t. 133, Mayeul, t.
137, Odilon, t. 142, Hugues, t. 159, e Pedro, o Venerável, t. 189).
* M. Pacaut, L 'Ordre de Cluny, 909-1789, Paris, Fayard, 1986.
* J.-P. Torell, D. Bouthillier, Pierre le Vénérable, Abbé de Cluny.
Le courage et la mesure, Paris CLD, 1988.
* Le Gouvernement d'Hugo de Semur à Cluny. Actas do colóquio
científico internacional, Cluny, Setembro 1988.
* D. Jogna-Prat, B. Rosenwein, X. Barral i Altet, G. Barruol, Saint
Maieiil, Cluny et la Provence, expansión d'une abbaye à 1'aube du
Moyen Age, "Les Alpes de Lumières", 115, Mane, 1994.

Sobre a arquitectura:
* K. Conant, Cluny, les Eglises et la Maison du Chef d'Ordre (The
Medieval Academy of America, n.° 77), Màcon, 170 pp. 121 pl. (276
fig.).
* C. Heitz, "'Réflexions sur 1'architecture clunisienne", em Revue
de 1'Art, n.° 15, 1972, pp. 81-94.
* F. Salet, "Cluny III", em Bulletin Monumental, t. 126 (1968), pp.
235-292.
* P. Piva, Da Cluny a Polirone, un recupero essenziale del româ-
nico europeo, San Benedetto Po, 1980.
Claraval (Clairvaux), de abadia a prisão
Jean-François Leroux-Dhuys

Ao pé de Colombey-les-Deux-Églises, o trecho de velha


floresta gaulesa que Charles de Gaulle costumava contemplar
permanece uma terra de silêncio. O Aube escavou os contrafortes
champanheses do planalto de Langres. A catorze quilómetros
de Bas-sur-Aube, o Val d'Absinthe continua a abrigar uma
cidade fechada, atrás dos muros muito altos, em fiadas suces-
sivas que impedem a vista de alcançar os vestígios da abadia de
Claraval e o centro penitenciário reconstruído depois, quase ao
lado das construções históricas preservadas.
Todos os sábados, de Maio a Outubro, o Ministério da Justiça
autoriza a visita à localidade: o viveiro do primeiro mosteiro
(Claraval 1), o grande edifício dos conversos — despensa e
dormitório — do século XII (Claraval II), o grande claustro
imenso, as nobres cavalariças e a sala-de-jantar desmesurada
cio século XVIII (Claraval III). Visita-se também a prisão do
século XIX, os seus dormitórios e os seus "galinheiros", tes-
temunhos de uma história social que entrou, desde 1834, na
literatura com o Claude Gueivc de Victor Hugo.
Tudo remonta ao século XII. Para assegurar o seu desen-
volvimento, a Ordem de Cister (Citeawc), fundada em 1098 pelo
beneditino Roberto de Molesme, tinha decidido engendrar qua-
tro "filhas": La Ferté-sur-Grosne nasceu em 1113, Pontigny em
1114, Morimond e Claraval em 1115.
144 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

O padre abade, Estevão Harding, tinha designado um certo


Bernardo (1090-1153), filho de um pequeno senhor de Fontaine
perto de Dijon, para dirigir a nova comunidade de Claraval.
Embora contasse apenas vinte cinco anos de idade, este tinha já
uma séria reputação de condutor de homens. Quando da sua
chegada a Cister, em 1112, levara consigo trinta companheiros,
parentes e amigos, trazendo assim à ordem novo vigor e
entusiasmo.
A escolha da localidade de Claraval deve-se a uma oportu-
nidade ligada à posse de terras: um primo de Bernardo, vis-
conde de La Ferté-sur-Aube, possuía uma terra livre de qualquer
ocupação em Val d'Absinthe. Era uma clareira com dois
quilómetros de comprimento e trezentos metros de largura. O
local era isolado, soalheiro e a terra, rica em aluviões, facil-
mente cultivável pela nova comunidade.
A água corria com abundância. Permitia o estabelecimento
de redes hidráulicas subterrâneas, alimentava numerosos tanques
onde os monges criavam carpas e, sobretudo, accionava as mós,
os martelos e os foles das forjas e dos moinhos de trigo da comu-
nidade laboriosa sonhada por Bernardo, o qual, como reacção à
vida senhorial dos monges de Cluníaco, entendia regressar es-
tritamente à ordem de S. Bento.
Durante muito tempo pensou-se que as construções em ma-
deira do primeiro mosteiro (Claraval I) tinham sido realizadas
em plena floresta, no lugar hoje chamado "Fontaine Saint-Ber-
nard". Mas a análise dos raros documentos antigos em nossa
posse mostra que o "velho mosteiro" ocupava, desde a origem,
o espaço denominado Petit Clairvaux, a duzentos metros da
porta de entrada do mosteiro definitivo.
Graças às admiráveis plantas da abadia desenhadas em 1708
por Dom Milley e que comportam a traça dos vestígios do Mo-
nasterium vetus, podemos esboçar uma descrição do mosteiro
inicial de Claraval. Uma pequena capela quadrada, com uma
nave lateral sobre o recinto e encimada por uma cobertura em
coruchéu, estava ligada a uma pequena construção destinada ao
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 145

dormitório dos monges e ao seu refeitório. Estas relíquias


monumentais foram demolidas por volta de 1750, mas é provável
que haja paredes e abóbodas de Claraval I que subsistam ainda
numa construção abandonada que se pode ver ao centro do Petit
Clairvaux. Só uma longa campanha de buscas permitiria
conhecer a composição exacta de Claraval I.
Ao cabo de vinte anos de existência, a abadia alcançou logo
grande reputação. Os começos não deixaram de ser difíceis,
porém. Muitos tinham sido desencorajados pelo extremo
ascetismo daquele a quem se passara a chamar Bernardo
(.Bernard de Clairvaux).
Durante estes primeiros anos, Claraval desenvolve-se de uma
forma singular. Única abadia champanhesa entre as cinco
grandes abadias cistercienses, usufrui da benevolência de uma
nobreza local esclarecida para a qual um grande mosteiro era
por definição uma potência aliada. Na confluência dos três
principados territoriais que eram o condado da Champanha, o
ducado da Alta Lorena e o condado de Borgonha, Claraval saberá
contudo guardar sempre a sua independência em relação aos
grandes senhores feudais.
O local privilegiado da abadia, a dois quilómetros da grande
estrada que ligava Reims a Langres, explica igualmente o desen-
volvimento da abadia. Esta via de comunicação, muito frequen-
tada, perfeitamente protegida, era então o maior eixo itinerário
do Ocidente, verdadeiro traço de união entre as feiras da
Champanha, da Flandres e da Lombardia. Claraval encon-
trava-se assim no coração de uma das mais importantes zonas
de intercâmbios económicos e intelectuais da época.
Mas é sobretudo após 1135 que o renome da abadia se torna
considerável. A população da Ordem de Cister aumenta então e
a morte de Estevão Harding, em 1133, deu a Bernardo maior
liberdade de acção para intervir em nome da ordem. Acha-se
este doravante presente em todas as frentes da Igreja do seu
tempo e é escutado pelos bispos, pelos reis e pelo Papa. No
próprio seio da abadia, um dos seus primos, Godofredo de la
146 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Roche-Vanneau, tornou-se prior em 1127. Tornar-se-á a pouco


e pouco o verdadeiro organizador de Claraval.
Enquanto Bernardo de Claraval prossegue nas suas missões1,
Godofredo decide mandar construir uma nova abadia que res-
ponda melhor ao papel de chefe de ordem que Claraval se está a
tomar. Os planos foram elaborados pelos ecónomos do mosteiro,
Godofredo d'Aignai et Achard, dois antigos arquitectos que se
haviam tornado monges. O conde Thibaud da Champanha pro-
meteu apoiar o empreendimento. A construção de Claraval II
começa em Dezembro de 1135 e vai durar uma dezena de anos.
Desta segunda abadia, hoje em dia só subsiste um edifício,
um dos mais belos da arquitectura cisterciense, o dos conver-
sos, composto por uma despensa no rés-do-chão e por um dor-
mitório no primeiro andar. Este único vestígio precioso, a plan-
ta de 1708, algumas gravuras antigas e a narrativa de viajantes
dos séculos XVI e XVII permitem-nos reconstituir a grande
abadia que Bernardo de Claraval conheceu.
Este Alto Claraval faz pensar numa verdadeira cidade me-
dieval. Por detás da muralha, em redor da abacial, comprimiam-
-se mais de cinquenta construções: hospedaria, cavalariças, edi-
fício dos monges, edifício dos conversos, cozinha e refeitório,
sala dos arquivos, sala dos copistas, claustro e sala capitular,
habitação do abade, enfermaria, lavadouro, padaria, etc.
A estrutura da abadia correspondia a uma planta-tipo que se
encontra em quase todos os mosteiros cistercienses. O edifício
dos monges era construído perpendicularmente à abacial ao nível
do coro, com o fim de facilitar o acesso aos ofícios, tanto de
noite como de dia. O edifício dos conversos, também ele
perpendicular à abacial, encontrava-se ao nível da entrada para
marcar bem a separação entre monges e conversos camponeses.
O claustro estava situado na ala norte para escapar à sombra da
abacial que comportava sem dúvida três naves e essa famosa
capela-mor chã característica das "igrejas bernardinas". Mas
não se sabe mais, pois a actual prisão não permite fazer buscas
nesse local.
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 147

A arquitectura da nova abadia, característica da arte cister-


ciense, bania o mínimo ornamento susceptível de desviar o es-
pirito do pensamento de Deus. Nada de tímpanos gloriosos, nem
de capitéis com imagens, nem de vitrais coloridos, nem de li-
vros santos iluminados, nada senão o traçado funcional que faz
a abóbada mais simples e paredes despidas de toda a decoracão.
Bernardo não tinha palavras suficientemente duras para fustigar
o gosto de Cluníaco
pela decoração. Exclamara, aliás, a esse propósito: "Que
vêm fazer nos vossos claustros, onde os religiosos se entregam
às santas leituras, esses monstros grotescos, essas extraordiná-
rias beldades disformes e essas belas defor-midades?"2
Quando Bernardo morre a 20 de Agosto de 1153, a ordem
cisterciense, com a força dos seus 350 mosteiros — dos quais
164 dependentes de Claraval —, domina o conjunto das ordens
religiosas. Em 1174, por ocasião da canonização de Bernardo,
são celebrados festejos numa nova abacial acabada de terminar.
Desde a morte do padre abade, tinha sido decidida a ampliação
da igreja de Claraval. A nave é alterada com novas abóbadas
com janelas de ogivas, o coro ampliado por uma ábside de
deambulatório, com nove capelas irradiantes, e o transepto é
modificado.
Mas a ortodoxia e o rigor arquitectónicos do criador de
Claraval são abandonados. Os construtores cistercienses pas-
sam a ser influenciados pela nova arquitectura gótica admirada
nas cidades da Picardia e da Ilha de França.
Nessa mesma época, uma outra parte da doutrina de S. Ber-
nardo é novamente posta em causa: até então, a actividade
económica da abadia estava limitada à satisfação das necessi-
dades monásticas. Ora, no próprio ano da morte de Bernardo, a
abadia adquire novas terras para ampliar o seu património. No
século XIII, os monges de Claraval transformam-se em grandes
proprietários de terras desejosos de inovações técnicas. Prati-
cam o afolhamento trienal, adoptam a charrua puxada por ca-
valos. Dominando perfeitamente a irrigação e a drenagem,
procuram também melhorar o gado praticando o cruzamento de
148 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

raças, nomeadamente com búfalos vindos de Itália. A vinha pros-


pera e a totalidade do domínio florestal é objecto de uma gestão
racional. Grandes forjas são criadas a partir de 1157.
A espiritualidade cisterciense não resiste por muito tempo
ao contágio do século. Ainda em vida, Bernardo opusera-se ao
filósofo Abelardo. O ideal cisterciense fundava-se na oração e
no trabalho manual, e a primeira biblioteca de Claraval
comportava apenas alguns livros religiosos. Ora, em meados do
século XIII, o prestígio das ordens mendicantes obriga os
sucessores de Bernardo a situar-se por seu turno no terreno das
ideias. Em 1224, a abadia compra uma casa em Paris a fim de
dar um ensino universitário a alguns monges. Em 1244, é cria-
do o colégio S. Bernardo onde os estudantes cistercienses pre-
pararão a sua licenciatura em teologia.
Do século XIV ao século XVI, a história da abadia é mais
obscura. Claraval sofre das perturbações causadas pela Guerra
dos Cem Anos e, depois, pelas Guerras Religiosas. A partir de
1380, o declínio demográfico da região da Champanha acarreta
uma baixa dos rendimentos provenientes das terras da abadia.
Apesar disso, a abadia toma medidas de defesa e fortifica com
grande despesa a cintura de muralha. O Alto Claraval é mesmo
isolado por uma ponte levadiça. Os religiosos têm todavia de se
refugiar, por várias ocasiões, em Bas-sur-Aube, quando o perigo
se torna demasiado. Em 1587, por exemplo, o anúncio da
chegada iminente de tropas calvinistas provoca a partida da maior
parte dos religiosos. Apenas um punhado ds monges e de
conversos assegura a defesa da abadia sitiada. Miraculosamente,
o chefe protestante morre na véspera do assalto, enquanto uma
violenta tempestade impede as suas tropas de atacar!
O século XVII é sem dúvida o segundo século de ouro de
Claraval. Quase deserta de monges, a abadia está mais rica do
que nunca. Em 1768 só já restam cinquenta e quatro religiosos
em Claraval; vinte cinco monges e dez conversos em 1790. As
suas propriedades representam 15 a 16 000 hectares de florestas
e mais de 4000 hectares de terras de lavoura. Dirigem uma
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 149

vasta bacia industrial compreendendo minas, altos fornos, forjas,


havendo ainda a acrescentar inúmeras casas em Bas-sur-Aube,
Troyes e Dijon.
Uma das principais actividades destes monges, doravante, é
a de enriquecer a biblioteca da abadia. Em 1782, o abade
François Le Blois compra a imensa biblioteca do conde d'Avaux:
31 652 volumes, 2010 manuscritos entram em Claraval, que
possui assim um fundo único de manuscritos raros3.
O embelezamento da abadia continua a ser a outra preo-
cupação importante dos religiosos. Durante a primeira metade
do século, contentam-se em adaptar ao gosto da época 35 cava-
lariças, 3 portarias e a hospedaria. Mas depois de 1740, sob o
abaciado de Pierre Mayeur, começam transformações de grande
vulto. O essencial de Claraval II é destruído, a não ser a abacial
e o edifício dos conversos. O novo Claraval III é edificado, em
torno de um claustro de cinquenta metros de lado, como um
vasto castelo cássico provido de uma fachada de cento e trinta
metros. No interior, constroem-se apartamentos espaçosos e uma
sala de jantar grandiosa. Os grandes órgãos instalados am 1736
são restaurados em 1788 por François Henri Clicquot, fabricante
de órgãos do rei. O instrumento, notável, não chega a ser utili-
zado senão alguns meses, pois a Revolução vem interromper
brutalmente os fastos desse palácio monástico em que Claraval
se tornara.
Como as outras propriedades eclesiásticas, os edifícios da
abadia são confiscados e declarados bens nacionais a 2 de No-
vembro de 1789. São vendidos em 1792 a um empreiteiro que
aí instala as suas oficinas, depois vários proprietários se suce-
dem em pouco tempo. Claraval transforma-se em fábrica de
papel, depois em fábrica de cerveja, para acabar em fábrica de
vidro onde se fabricam vidraças. Os fornos ocupam a nave prin-
cipal da igreja, as naves laterais servem de local de trabalho.
Graças a estas actividades industriais, os edifícios foram sal-
vos da destruição: Claraval estava demasiado afastado de uma
grande cidade para servir de pedreira. Mas quanto ao resto, to-
150 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

dos os bens móveis da abadia se encontram dispersos. Uma parte


das cadeiras de coro e os grandes órgãos são transportados para
a catedral de Troyes; o púlpito encontra-se na igreja de
Vendeuvre-sur-Barse; o altar-mor em Saint-Pierre de Bas-
-sur-Aube. A grande grade em ferro forjado do coro pensa-se
que está nos Estados Unidos. A biblioteca da abadia, verdadei-
ra "catedral de livros", assim como os arquivos, ainda pouco
explorados, encontram-se actualmente na biblioteca municipal
e nos arquivos departamentais de Troyes. Os túmulos de S.
Bernardo e das personagens ilustres enterradas na abadia, como
Margarida de Navarra, não foram poupados. Única relíquia, o
crânio de S. Bernardo pôde contudo ser salvo. Repousa hoje no
tesouro da catedral de Troyes. A igreja vizinha de Ville-
-sous-la-Ferté possui, por fim, o sudário de seda em que o corpo
de S. Bernardo foi depositado quando da sua canonização em
1174.
Mas é a chegada da ordem imperial que modifica de manei-
ra decisiva a sorte de Claraval. O ministro do Interior, Emmanuel
Cretet, procura colocação para uma rede de casas centrais de
detenção para os condenados criminais e correccionais (decreto
de 16 Junho 1808). Sob o Império, com efeito, o encarceramen-
to dos criminosos de direito comum torna-se sistemático e na
detenção, a única resposta do poder à delinquência e à margina-
lidade.
Os imensos edifícios monásticos desertos atraíram a atenção
do ministério. Claraval e oito outras abadias são transformadas
em estabelecimentos prisionais. O Estado compra a abadia a 27
de Agosto de 1808. Aí são efectuadas obras importantes para
criar oficinas. A abacial, que tinha atravessado a tormenta revo-
lucionária sem demasiados danos, é quase totalmente demolida
em 1812 e desaparece depois, em 1819. O famoso edifício dos
conversos de Claraval II e os edifícios de Claraval III são
transformados. As habitações do abade e do prior passam a servir
para alojamento dos directores e para os escritórios do Centro
Penitenciário. O grande claustro é fraccionado em dormitórios,
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 151

a sala de jantar do abade torna-se uma capela que pode chegar a


conter 1500 detidos de pé!
Em 1813, os primeiros prisioneiros, insubmissos do Grande
Exército, chegam a Claraval. Durante todo o século XIX, a antiga
abadia tem o triste privilégio de reunir uma população penal
considerável. A partir de 1819 contam-se 1456 detidos (num
total de 9392 detidos nas catorze casas centrais francesas). Em
1858, há em Claraval 1650 homens, 489 mulheres e 555 crianças,
ou seja, perto de 2700 condenados. Na mesma data, a guarda do
estababelecimento comporta 67 guardas, 16 religiosas, 1 direc-
tor, 2 inspectores, 3 capelães, 2 médicos, pessoal administrativo
e 220 soldados. Um pequeno número de guardas assegura uma
organização interior miníma. Fora das paredes, um regimento
impede as evasões. Um "empresário" concessionário (um
industrial dos têxteis) dispõe da força de trabalho dos detidos
em troca da gestão da sua vida quotidiana, alimentação,
vestuário, dormida, cuidados... De dia, nas oficinas, o empresário
é senhor. À noite, os detidos, amontoados em dormitórios onde
dispõem de uma cama má para dois, estão entregues a eles
mesmos, isto é, aos chefes de bandos.
Sob a monarquia de Julho, a prisão de Claraval volta a encon-
trar-se no centro da actualidade. Primeio, graças a Victor Hugo,
que empreende uma campanha contra a pena de morte na se-
quência do caso Claude Gueux (1834): um detido injustamente
castigado tinha morto um chefe dos guardas antes de ser
condenado ao cadafalso. Depois, em fins de 1847, uma verda-
deira campanha de imprensa é lançada por jornalistas escanda-
lizados com a mortalidade que reina então em Claraval: só nos
meses de Abril e Maio de 1847, foram registados 117 óbitos
para um total de 1968 detidos. O inquérito judicial revelará que
no decurso dos trinta últimos meses anteriores tinha havido mais
de 700 óbitos.
A alimentação estragada e insuficiente, a falta generalizada
de higiene, o vestuário em farrapos transformam os detidos em
espectros incapazes de trabalhar. Os mais débeis de entre eles
morrem de fome e de frio, no abandono mais absoluto. Os juízes
152 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

encarreguados do inquériro sobre as condições de vida em


Claraval defrontam-se com a conivência existente entre os três
empresários e os representantes da administração dependente
do Ministério do Interior.
O governo consegue diferir o processo até 1849 e confia o
caso ao tribunal de Bas-sur-Aube para evitar a repercussão de-
masiado considerável de um processo parisiense. Declarados
culpados de homicídio involuntário, os empresários acabam por
ser condenados somente a penas leves e continuarão ainda em
função vários anos.
O caso colocou mesmo assim perante a opinião pública o
problema da empreitada geral nas centrais. Ele virá a contribuir
para a introdução gradual do sistema de trabalho por conta do
Estado, limitando o empresário a sua intervenção ao forneci-
mento de trabalho e conservando a administração penitenciária
a gestão da vida dos detidos.
O abrandamento relativo das condições de detenção no iní-
cio da III República não suprime todavia a vocação carcerária
de Claraval e a antiga abadia torna-se prisão política. Em 1871,
várias centenas de partidários da Comuna aí são encarcerados.
São ainda 152 em 1874 e conta-se que Louise Michel, antes da
sua partida para a Caledónia, passou por Claraval antes de chegar
à prisão de Auberive, outra abadia cisterciense transformada
em centro de detenção.
Auguste Blanqui fica sete anos em Claraval, de Setembro
de 1872 a Junho de i 879. Os seus oito primeiros meses, passa-os
numa cela de 2,5 por 1,5 metros, sem outra janela além de uma
fenda na parede. Só consegue escapar a este "enterramento vivo"
graças à sua grande disciplina física e à sua extraordinária re-
sistência moral adquirida durante os vinte anos de detenção pre-
cedentes. Depois de 1875, teme-se que a sua morte venha a
fazer dele um mártir; o eterno encarcerado é então transferido
para uma grande cela situada no "claustro pequeno", antiga en-
fermaria do século XVII. Entre os outros prisioneiros célebres
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 153

ile Claraval, enconta-se também o príncipe Pedro Kropotkine,


niilista russo, internado em Claraval de Março de 1883 a Janei-
ro de 1886 por ter estado envolvido nas conspirações dos
anarquistas de Lião. Em 1890, Filipe de Orleães fará uma curta
estada em Claraval antes de ser exilado.
Depois dos motins de 1917, Claraval recolhe alguns conde-
nados do Tribunal Militar, e depois, até 1923, André Marty, o
"rebelde do Mar Negro". Vinte cinco anos mais tarde, é Pierre
Daix e numerosos resistentes parisienses que aí são encarcera-
dos. Todos são encerrados no Grande Claustro de Claraval III.
Sob o duplo controlo das autoridades de ocupação e das de Vi-
chy, a prisão tornou-se uma mola indispensável do aparelho de
repressão como o testemunha a execução de 21 detidos comu-
nistas fuzilados numa pedreira, ao fundo de Val d'Absinthe.
Quando da Libertação, os senhores de ontem encontram-se
nas celas daqueles que haviam condenado. Claraval recebe
apoiantes da Colaboração, milicianos, antigos voluntários da
divisão Charlemagne antes de albergar antigos ministros de Vi-
chy como Xavier Vallat e Benoist-Méchin, bem como os almi-
rantes Esteva e La Borde, responsáveis pelo rombo na frota em
Toulon. Finalmente, Charles Maurras faz a sua estada no Peque-
no Claustro de 1947 a 1951.
Mas a longa carreira de prisão política de Claraval não termi-
nou. Durante a guerra da Argélia, responsáveis da FLN, três
dos generais do putsch de Argel, alguns oficiais que os tinham
seguido, tais como Hélie de Saint-Marc, são por sua vez
internados na velha central. Alguns responsáveis por actos ter-
roristas como o iraniano Anis Naccache são os mais recentes
detidos de "longas penas" desta prisão carregada de história.
Desde 1971, a administração penitenciária ocupa edifícios mo-
dernos, com celas individuais, locais comuns e oficinas, sempre
situadas no recinto da abadia, mas fora dos edifícios históricos
que já não utiliza (a não ser o pequeno claustro do século XVII).
Salvou, ao conservá-la, a herança monumental da abadia.
154 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

De há vinte anos para cá, a degradação de Claraval III acele-


rou-se. Mas os créditos importantíssimos que seria preciso em-
pregar para salvar a enorme abadia do século XVIII só se po-
dem justificar se as construções encontrarem uma aplicação.
Ora, longe dos grandes centros urbanos e fora dos eixos de pas-
sagem do turismo, o local tem poucas probabilidades de a en-
contrar. E assim o Grande Claustro não passará de uma esplêndida
ruína para os amadores de arte dos séculos vindouros.
Em contrapartida, o edifício dos conversos de Claraval II
(despensa e dormitório) será salvo, pois o Ministério da Cultura
e a região Champanha-Ardenas empreenderam uma restauração
onerosa, de grande qualidade, justificada pelo facto de se tratar
da mais vasta construção cisterciense de França, e de uma das
mais belas.
Claraval-prisão (perto de quatrocentos presos) deve ficar nos
seus novos edifícios. A sua existência é importante para a econo-
mia local (mais de duzentos empregos) numa região que co-
nhece dificuldades para sobreviver. Não obstante, é preciso que
Claraval-abadia possa libertar-se das limitações carcerárias e
encontrar de novo uma vida autónoma, mediante algumas
modificações progressivas.

Notas
1
Sobre as polémicas e os "combates" de Bernardo de Claraval, cf.
L'Histoire, n.° 35, pp. 16-21, versados neste volume.
2
L'Apologie (Apologia) (redigida entre 1123 e 1127), de onde
provém este trecho, é uma crítica de tudo o que não é o monaquismo
tal como o concebe Bernardo, quer se trate do primeiro Cister, de Saint-
-Denis ou de Cluny. Cf. Léon Pressouyre, Le Rêve Cistercien, Paris,
Gallimard, 1990.
3
Cf. André Vernet, La Bibliothèque de Clairvaux du Xlle aa XVIlIe
Siècle, t.l, catalogues et répertoirs, Paris, CNRS, 1979.
CLARAVAL, DE ABADIA A PRISÃO 155

Orientação bibliográfica

Sobre S. Bernardo e os cistercienses:


* J. Berlioz, Saint Bernard en Bourgogne. Lieiix et mémoire, Di-
jon, Le Bien Public, 1930.
* Don J. Leclercq, Bernard de Clairvaux, Paris, Desclée de Brou-
wer, 1989 .
* L. Pressouyre e T.N. Kinder, s/d, Saint Bernard et le Monde Cister-
cien, Paris, Caisse Nationale des Monuments Historiques et des Sites,
Sand, 2.a ed., 1992.
* L. Pressouyre, Le Rêve Cistercien, Paris Gallimard, "Découvertes",
95, 1990.

* M. Pacaut, Les Moines Blancs, Paris, Fayard, 1992.

Sobre Claraval:
* L 'Abbaye de Clairvaux, número especial de Vie en Champagne,
1986.
* Histoire de Clairvaux. Actas do colóquio de Bar-sur-Aube/Clair-
vaux, 22-23 Junho 1990, Bar-sur-Aube, Association Renaissance de
PAbbaye de Clairvaux, 1991.
Sobre as prisões no século XIX:
* J.-G. Petit, Ces Peines obscures. La prison pénale en
France, 1780-1875, Paris, Fayard, 1990.

Para visitar os vestígios da abadia:


* A Associação "Renaissance de 1'Abbaye de Clairvaux"
organiza três visitas (13 h 45, 15 h 45 e 16 h 45) todos os sába-
dos de Maio a Outubro (munir-se de bilhete de identidade).

L'histoire publicou:
* "Saint Bernard, un prédicateur irrésistible", por André
Vauchez, n.° 47, pp. 26-29.
* "Saint Bernard, le soldat de Dieu", por Jacques Berlioz,
n.° 135, pp. 16-21, publicado neste volume.
A razão dos gestos:
por que se reza de joelhos
Jacques Berlioz

Orar de joelhos, eis uma atitude que parece natural, eterna


mesmo. Uma atitude que parece escapar ao empreendimento da
história. Em certas línguas semitas, como o hebreu, a raiz
brk não significa em primeiro lugar ajoelhar-se, e depois orar,
louvar, bendizer? E no entanto este gesto simples teve na Idade
Média interpretações diversas, como demonstrou Jean-Claude
Schmitt1.
A posição de pé, com os braços levantados (na posição dita
do suplicante) ou com os braços em cruz, imitando o gesto do
Redentor é, desde a Antiguidade até à Alta Idade Média, uma
das atitudes mais frequentes da oração; ela provém da tradição
bíblica. Mas existem outras: a prostração, a inclinação da ca-
beça ou do busto e a posição de joelhos que exprime a adoração,
a humildade e a penitência.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, o uso da oração
de joelhos é regulamentada: os cristãos reunidos solenemente
mantêm-se de pé para rezar ao domingo e da Páscoa ao Pente-
costes — sendo a genuflexão interdita durante este período. Este
costume litúrgico é imposto pelo concílio de Niceia, em 325.
Porquê? S. Jerónimo (c. 347-420) explica-o: "É um tempo de
alegria e de vitória em que não flectimos os joelhos e não nos
158 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

inclinamos para a terra, mas em que, ressuscitando com Cristo,


somos elevados ate às alturas do céu."2 O resto do tempo, é
permitido ajoelhar livremente. E preciso erguer as mãos para
rezar, mas sem gestos excessivos.
Verificou-se, desde os primeiros séculos do cristianismo, uma
reflexão sobre os gestos da oração. Santo Agostinho (354-430)
faz uma primeira síntese. Para ele, o corpo tem um papel impor-
tante na condução da oração: os gestos estimulam a elevação da
alma. Esta ideia fundamental é repetida durante toda a Idade
Média. S. Tomás de Aquino escreve no século XIII: "Os ho-
mens praticam acções sensíveis, tais como as prostações, as
genuflexões, as exclamações vocais e os cânticos, não para des-
pertar Deus, mas para se estimularem a eles mesmos para as
coisas de Deus" (Suma contra os Gentios, III, 119).
Os clérigos carolíngios tinham já abordado a questão depois
de Santo Agostinho. Em meados do século IX, Walafrid Estra-
bão procura os modelos da oração cristã. Conclui que a expressão
física deve ser reduzida ao mínimo; a adoração de joelhos carac-
teriza o "costume" da Igreja, justificado pelos exemplos de Da-
niel, de Cristo e dos Apóstolos. É verdade, tomando apenas dois
exemplos, que o o próprio Jesus orou de joelhos durante a sua
agonia (Lucas 22, 41) e que S. Pedro se ajoelhou para pedir a
ressurreição de Tabita (Actos 9, 40).
Walafrid Estrabão condena aqueles que batem no peito com
os punhos, batem na cabeça ou assumem o tom de voz alto
das mulheres. E toma como modelo o comportamento dos mon-
ges irlandeses que se ajoelham por penitência e por devoção
"um grande número de vezes, uns mais, outros menos". Wala-
frid parece aprovar a genuflexão mas parece também reprovar
os excessos que a acompanham por vezes. Alguns atletas da fé,
com efeito, seguiam o exemplo de S. Tiago Menor (martirizado
em 62) que, à força de orações de joelhos, tinha calos seme-
lhantes aos dos camelos. Não se ajoelhava S. Columbano (540-
-615), pelo que se diz, doze mil vezes por dia?3
A RAZÃO DOS GESTOS: 159

É nos séculos XI e XII que dois gestos de oração se impõem


no Ocidente: as mãos juntas à altura do peito (com os dedos
esticados) e a genuflexão (com os dois joelhos no chão). O pri-
meiro gesto vem do ritual laico da homenagem e permite ins-
taurar com Deus uma relação pessoal hierarquizada, feita de
"afeição mútua". Mas a oração continua a ser um acto de
adoração, de humildade ou de penitência, não uma cerimónia
ritual pela qual um indivíduo se reconheceria como o "homem"
de Deus. As mãos juntas tornam-se assim o símbolo de toda a
oração cristã.
Este gesto, "inventado" pela Idade Média, insere-se na
genuflexão, já bem conhecida mas que se impõe então como a
atitude corrente da oração. E, por uma curiosa inversão de
significado, a posição de pé é doravante interpretada como um
sinal de tibieza religiosa: ela basta aos que ficam à porta da
igreja, sem avançar para o altar. Na mesma época, tem-se cada
vez menos em conta a interdição tradicional da genuflexão nos
tempos de regozijo.
A Igreja preocupa-se então, mais do que no passado, com as
práticas religiosas dos leigos e toma em consideração a sua ati-
tude no ofício divino. Um opúsculo, devido sem dúvida ao teó-
logo Pedro, o Chantre (morto em 1197), distingue sete modos
de oração. Cada modo é descrito, justificado e ilustrado por uma
imagem. O quarto modo é a atitude a partir de então usual no
cristão: de joelhos em terra, as mãos juntas. O autor por-
menoriza-a cuidadosamente: todo o apoio (pedra ou pedaço de
madeira) é interdito; os joelhos devem tocar em terra, assim
como as extremidades dos pés. Senão a oração torna-se uma
fraude!
Esta generalização da genuflexão, "dobragem" do corpo
sobre si mesmo, corresponde à busca de uma devoção indivi-
dual mais interiorizada — devoção que levará à leitura solitária
e silenciosa, no final da Idade Média, dos livros de horas4. Além
disso, os objectos sagrados diante dos quais se ora, e que ins-
tauram um novo espaço da oração, multiplicam-se: altar, cruci-
160 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fixo, hóstia, imagens de devoção. A adoração do Santíssimo


Sacramento (o culto eucarístico está então em pleno desenvolvi-
mento) é acompanhada de genuflexão, bem distinta de dois ges-
tos rituais em que a flexão de um só joelho se encontra prescri-
ta: para um padre durante a missa e para um súbdito conduzido
à presença de um príncipe.
Os autores de manuais práticos de liturgia, como Guillaume
Durand, no final do século XIII, no seu Rationale, não cessam
de prescrever a genuflexão perante a hóstia sagrada. Os opús-
culos que alguns clérigos ingleses destinam à edificação dos
simples leigos pregam também a genuflexão, mas de mãos er-
guidas durante a consagração. Sinal da importância simbólica
deste gesto: na mesma época, os heréticos distinguem-se ao
recusá-lo.
Deste modo, a análise dos gestos permite ao historiador pene-
trar no mais profundo de uma sociedade5. E, no presente caso,
definir as suas hierarquias fundamentais, como a superioridade
de Deus sobre os homens, dos homens sobre as mulheres, do rei
sobre os seus súbditos, dos clérigos sobre os leigos.
De mais a mais, a Idade Média é, pelo menos ate ao século
XIV, uma verdadeira "civilização do gesto". Antes que se cons-
titua uma cultura do escrito, aberta ao mundo laico, os gestos
possuem uma força superior ao pergaminho. Não nos esqueça-
mos de que é o gesto que dá o seu valor a um acto (no caso da
homenagem de um vassalo ao seu senhor, por exemplo): o facto
de tal ser posto por escrito não passa de uma recordação para a
posteridade. Do mesmo modo, na Idade Média, o corpo cristão
é profundamente ambivalente: ocasião de pecado, é também —
os teólogos não cessam de o recordar — meio de salvação, uma
vez que permite gestos de oração, de caridade e de arrependi-
mento.
Seguir os movimentos do corpo nas impressões que deles os
homens puderam deixar (sobretudo nos textos e nas imagens,
mas também por meio da arqueologia), interrogar as interpre-
tações explícitas que a Idade Média deles pôde dar (teologia,
A RAZÃO DOS GESTOS: 161

textos normativos), eis as duas abordagens que permitiram a


Jean-Claude Schmitt construir aquilo a que chama "a razão dos
gestos". A Igreja submete então às regras da sua moral as "ges-
ticulações" dos malabaristas, das mulheres ou dos jovens im-
pulsivos. Condena ou integra, segundo os casos, cânticos,
danças, jogos dramáticos e indo até os movimentos dos possessos
ou dos místicos, ataca os gestos "mágicos".
Mas o corpo, refreado pela "razão teológica", pela moral ou
o ritual, nunca se confessa vencido. Assiste-se então à irrupção
de outras gestualidades, lúdica nos malabaristas, folclórica e
grotesca no Carnaval, mística nos devotos e nos flagelantes do
final da Idade Média.

Notas
1
Jean-Claude Schmitt, La Raison des Gestes dans 1'Occident
Médieval, Paris, Gallimard, "Bibliothèque des histoires", 1990. Cf.
também J. Berlioz, N. Bériou e J. Longuère, s/d, Prier au Moyen Age.
Pratiques e expériences (Ve-XVe siècles), Turnhout, Brepols, "Témoins
de, notre Histoire", 1991; M.G. Briscoe e B.H. Jaye, Artes Praedicandi,
Artes Orandi, Turnhout, Brepols, "Typologie des sources du Moyen
Age occidental, 61", 1992.
2
E. Benaud, art. "Génutlexions et métanies", em Dictionnaire de
Spiritualité, t. 6, Paris, Beauchesne, 1965, col. 219.
3
Henri Leclercq, art. "Génuflexion", em Dictionnaire d'Archéologie
Chrétienne et de Liturgie, t. 6/1, Paris, 1924, col. 1020-21.
4
Paul Saenger, "Manières de lire médiévales", em Histoire de I 'Edi-
tion Françoise. I, Le Livre conquérant. Du Moyen Age au milieu du
XVIlie siècle, Paris, Fayard-Promodis, 2.a ed., 1989, pp. 131-141.
5
Sobre a antropologia histórica do gesto, cf. Jean-Claude Schmitt.
"Gestes", Dictionnaire des Sciences Historiques, Paris, PUF, 1986,
pp. 300-305.
Guiberto de Nogent, o monge jornalista
Michel Parisse

Dois arcediagos de Laon, candidatos à sede episcopal, fo-


ram rejeitados pelo Papa em 1105: um "sempre se tinha com-
portado não como um clérigo mas como um homem de guerra;
quanto ao outro, inclinava-se mais do que é razoável para as
mulheres". Um terceiro cativa o rei mas morre antes de ser en-
tronizado. Finalmente, os clérigos elegem o chanceler do rei de
Inglaterra, um certo Gaudry, cujo episcopado ia ser ma-
gistralmente narrado por um observador atento, Guiberto de No-
gent, abade beneditino de um mosteiro vizinho.
Trata-se de um texto desde há muito célebre, que relata a
revolta da comuna de Laon, a fuga do bispo escondido na ade-
ga, o seu massacre pela populaça. Este extracto da autobiogra-
fia de Guiberto de Nogent fez esquecer o livro de que é tirado,
longa narrativa, feita pelo monge laonês, da sua vida, da sua
família e dos acontecimentos que viu desenroraiarem-se junto
dele, mesmo no início do século XII. E.-R. Labande, ao oferecer
ao público uma tradução integral1, permite seguir passo a passo
o percurso de um homem cuja pena revela grandes qualidades
de observador e de memorialista.
A elevação de Gaudry, que ele relata, é já uma pura
obra-prima: a viagem a Langres até junto do papa Pascoal II
para obter o seu acordo, a interrogação pelo soberano pontífice
dos abades acompanhantes, a influência das somas de dinheiro
164 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

distribuídas aos cardeais, a consagração adquirida lá longe, em


Avinhão. Guiberto seguiu o caso pessoalmente, tomou a palavra,
transportou o dinheiro, interrogou testemunhas; parece-lhe que
o Papa era "um homem menos culto do que seria conveniente
para o seu ofício," coloca-se constantemente em cena, sempre
parecendo ser uma testemunha imparcial. É ainda na qualidade
de jornalista que ele descreve o afrontamento do bispo dos
Laoneses e, ainda antes, a conjura contra Gerardo, protector das
monjas de Saint-Jean, assim como o seu assassinato: «O inten-
dente do bispo (...) disse-lhe: "Eis-te apanhado." Mas Gerardo
virou para ele o olho (era zarolho), considerou-o com o ar altivo
que lhe era habitual e disse: "Fora daqui, porco, adulador." O
intendente, dirigindo-se então a Rorigon, gritou-lhe: "Fere!" Este
fez um desvio pela esquerda e golpeou-o com a espada mesmo
entre a testa e o nariz. Gerardo, que se sentiu atingido disse:
"Levai-me para onde quiserdes." Logo os dois se puseram a crivá-lo
de golpes; sentindo-se esmagado por eles e desesperando nas
suas próprias forças, exclamou: "Santa Maria, acode-me!" A
estas palavras, mergulhou nos sofrimentos supremos.»
Guiberto teve um preceptor quando era ainda pequeno (por
volta dos sete anos) e recebeu muitas vezes açoites quando
aprendia mal. Entrou depois para o mosteiro de Saint-Germer
de Fly e aí adquiriu uma boa formação clerical e monástica.
Uma manobra da sua família para obter para ele um benefício
eclesiástico gorou-se. O seu abade incitou-o a tornar-se monge.
Guiberto não hesitou e vestiu o hábito monástico, continuando
ao mesmo tempo a cultivar-se. Pobre monge! Teve visões, viu
fantasmas, encontrou-se com o diabo, deixou-se tomar de desejos
"pelas concupiscências e a cupidez". A ambição do que poderia
ter-se tornado no século importunava-o. Há que dizer que a regra
e o claustro o tinham definitivamente aniquilado. A própria
Virgem interveio para lhe fazer compreender que não podia dei-
xar Saint-Germer. Mas o nosso monge também rima, rivaliza
com Ovídio, faz o elogio do amor, deixa no seu espírito que as
doces palavras derramem um gosto lascivo. "Permitia-me usar
GUIBERTO DE NOGENT, O MONGE JORNALISTA 165

um vocabulário um tanto obsceno; compunha pequenos poe-


mas que eram tudo o que há de menos ponderado e comedido,
os quais, antes pelo contrário, devo dizê-lo, ignoravam a mais
elementar decência."
Noutras partes, o autor leva-nos a reviver o clima das conver-
sões de um Thibaud de Provins, de um Simão de Valois, de um
S. Bruno. Conta, com muita inspiração, o movimento monásti-
co do seu tempo; pelo facto de haver muitos monges, "não se
encontrava em parte alguma forma de os alojar, a não ser nal-
guns mosteiros muito antigos; começou-se então em todo o lu-
gar a construir outros novos, assim como a consagrar abundan-
tes rendimentos ao sustento desses homens que acorriam de todo
o lado." Mas a vida dos monges é também a perfídia de um que
não segue a regra, o assassinato de uma abadessa, a visão de um
frade, o medo da heresia, os abusos de um abade, um doente
curado miraculosamete, um falso monge: "Foi outra a sorte de
um monge de Fleury que foi o primeiro, depois de ter prometi-
do dinheiro ao rei de França, a tentar extorquir ao abade
Abão, homem tão profundamente santo como sábio, essa igreja
do glorioso S. Bento. O dito Abão perseguiu-o, com a intenção
de corrigir essa ovelha desgarrada e de a condenar ao degredo;
ora quis o acaso que topasse com o culpado em Orleães. Esse
simoníaco, tendo compreendido que o abade se encontrava ali e
não achando nenhum meio de fugir para onde quer que fosse,
refugiou-se nas latrinas, como se o peso do seu ventre a isso o
instasse. Abão chegou pois, procurou-se o culpado, mas não se
pôde descobrir em parte alguma a sua pessoa, encontrou-se
apenas a sua cogula pendurada num gancho, pois, uma vez
desaparecido o homem, já só ao seu santo hábito era devido
respeito."
Mas o que impressiona o leitor da Autobiographie de Gui-
berto é a devoção que ele teve pela sua mãe, o retrato que dela
nos dá, os traços que narra. Jovem esposa, ficou sete anos sem
ter com o marido relações conjugais e a sua família insistia com
ela para que se divorciasse quando "uma velha mulher pôs ter-
166 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mo a esses maus artifícios". Depois de ter tido vários filhos


(não se saberá quantos), ficou viúva depois do nascimento de
Guiberto, recusa-se a voltar a casar, ocupa-se da educação dos
seus rapazes, defende os seus direitos perante alguns barões ávi-
dos, leva uma vida de orações e de privações: "Com os meus
próprios olhos vi, com as minhas mãos toquei, um cilício muito
severo que ela usava directamente sobre a pele, ao mesmo tempo
que, exteriomente, o seu trajar era muitas vezes bastante apri-
morado; não o usava unicamente de dia, mas dormia também
revestida deste cilício de noite, o que era tratar bem duramente
um corpo tão delicado." Fez-se religiosa junto do mosteiro de
homens de Saint-Germer, como era então prática frequente;
"mandou construir uma pequena casa perto da igreja", aí se colo-
cou sob a autoridade de uma velha mulher, cortou os cabelos,
vestiu-se de feios hábitos remendados, adoptou um bébé, que a
impedia de repousar de noite porque chorava. Morreu após ter
tomado o véu das monjas: "Nessa mesma noite, à hora em que
se celebra e canta o envio do anjo Gabriel à Virgem por Deus,
foi ela ao encontro dessa Senhora que ela dizia ser a sua, e a
quem notei que sempre desejara com um amor sem fim."
Que ímpeto e que estilo! São vinte as situações que se pode-
riam extrair do texto de Guiberto para reviver a vida quotidiana
do século XII, a fé e o terror, a sua bondade e as suas violências.
Não se trata de um romance, não se trata de uma história. Como
um jornal, pode-se, à vontade, percorrer em desordem as suas
colunas a partir do fim ou do princípio.

Nota
1
GuibertdeNogent, Autobiographie. Introdução, edição e tradução
de Edmond-René Labande, Paris, Les Belles-Letres "Les Classiques
de 1'histoire de France au Moyen Age", 1981, 496 pp.
3. AS M U L H E R E S DE DEUS
Mulheres no deserto?
Pierre-Louis Gatier

No decurso da Antiguidade tardia (séculos IV-VII), numa


sociedade mediterrânica oriental conquistada pelo cristianismo
mas largamente dominada pelos homens, o lugar da mulher na
Igreja mantém-se restringido. A exemplo do sacerdócio, a vida
de eremita (do grego eremos: "vazio", "solidão", "deserto")
é-lhe interdita. Não se consegue imaginá-la entregue a si mes-
ma, só e sem tutor masculino: pai, irmão ou marido. Os santos
homens, esses podiam subtrair-se ao mundo para se aproximarem
de Deus partindo para irem viver no deserto — numa caverna,
numa cisterna fora de uso, no fundo de um túmulo, sobre uma
coluna de pedra (os estilitas*) ou nas árvores (os dendritas*).
E certo que desde as suas origens as comunidades cristãs
das cidades praticaram um ascetismo tradicional, depressa carac-
terizado pela abstinência sexual, virgindade para os jovens dos
dois sexos, continência parcial ou total para os cristãos casa-
dos. A viúva, a virgem e o cristão continente são figuras respei-
tadas da Igreja primitiva. Desde a sua Primeira Epístola aos
Coríntios (cerca de 55-57), S. Paulo sublinha aliás a eminente
virtude da abstinência: " Digo todavia aos solteiros e às viúvas
que lhes é conveniente conservarem-se assim como eu (não casa-
do). Mas se não puderem viver continentes, que se casem: mais
vale casarem do que arderem de volúpia."
170 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Mas o monaquismo difere fundamentalmente desse ascetis-


mo acompanhado de jejuns e de práticas caridosas. Ele só
aparece no final do século III, no momento em que se inter-
rompem as perseguições aos cristãos no Império Romano e em
que as comunidades cristãs se alargam, passando da dimensão
da seita à da sociedade inteira. O monaquismo começa por ser
uma reacção a esta última evolução: mostra a vontade de con-
servar um ideal religioso, nascido nas perseguições, não con-
vertendo lentamente a sociedade greco-romana como a Igreja
se aplica a fazer, mas isolando-se dessa sociedade e rejeitando
os compromissos a que ela obriga os cristãos.
Um dos primeiros, segundo parece, o egípcio Antão (cf. "Bio-
grafias ", p. 180) teve também a ideia de fugir, não somente das
cidades, mas também da terra cultivada — a chôra —, zona
povoada na orla do Nilo. Retirando-se para o deserto, por volta
do ano 270, aí desenvolve a vida eremítica, a seguir agrupa dis-
cípulos que vivem em celas separadas, mas exercem algumas
actividades em comum sob a direcção do seu mestre e pai. Estes
grupos, chamados "lauras", são uma das primeiras formas que
se conhecem do monaquismo. Pouco depois, igualmente no
Egipto, Pacómio (cf. "Biografias") institui um outro monaquis-
mo, o cenobitismo (de koinobion: "vida em comum").
Eremita ou cenobita, o monge (de monachos: simultanea-
mente "solitário" e "unido") começa por ser um ser que renun-
cia à sociedade para levar uma existência toda consagrada a
Deus. Deixa assim a sua família, a sua cidade e a civilização,
apesar de cristianizadas, e substitui-as pela solidão ou por uma
comunidade restrita inteiramente virada para a perfeição. Numa
época em que as perseguições terminaram, o ideal monástico
faz pois as vezes do martírio. Já não se dá testemunho da sua fé
vertendo o próprio sangue, mas deixando secar lentamente os
ossos no fundo do deserto.
Nascido no final do século III, na Síria do Norte e na Alta
Mesopotâmia ao mesmo tempo que no Egipto, o monaquismo
expande-se em seguida na Palestina, na totalidade da Síria e na
MULHERES NO DESERTO? 171

Ásia Menor — regiões submetidas, no essencial, ao Império


Romano, mas com algumas zonas dominadas pelos Persas. Atin-
ge o seu apogeu no Oriente entre os séculos IV e VII. No Medi-
terrâneo ocidental, o monaquismo inspira-se fortemente nos
modelos importados do Oriente, antes de dar início ao seu im-
pulso próprio.
No seio deste vasto movimento, a vida monástica feminina
só lentamente emerge do ascetismo tradicional. As mulheres
que escolhem o monaquismo são de resto muitas vezes denomi-
nadas "virgens" e muito mais raramente "monjas". A Igreja
propõe-lhes o modelo de uma pequena comunidade de mulheres
pertencentes à mesma família, com algumas servas. As saídas
são muito raras; a oração e os trabalhos têxteis ocupam o essen-
cial do tempo. Não se está muito longe do ideal da leiga virtuo-
sa, mulher discreta e reservada mas que privilegia a virgindade
ou, para as viúvas, a recusa de segundas núpcias. Progressiva-
mente, são acrescentadas algumas regras. "Que o tecido das tuas
vestes não seja precioso. O teu vestido será negro, não tingido,
mas da cor natural. (...) Se encontrares um homem, vela o teu
rosto e baixa os olhos. (...) Quando estás de pé para a oração,
que os teus pés estejam ocultos em calçado. Tal deve ser a pos-
tura de uma pessoa consagrada. (...) Se estás de boa saúde, não
vás ao banho senão em caso do grande necessidade. (...) Quan-
do lavas o rosto, não o faças com as duas mãos, não esfregues
as faces, não empregues nem erva, nem lixívia, nem produtos
semelhantes: isso fazem as mundanas. Usa unicamente água
pura"—ordena o pseudo-Atanásio' no seu Discurso às Virgens.
Alguns anos antes, o egípcio Antão recomenda a sua jovem
irmã "a virgens conhecidas e fiéis" e deixa-a a elas confiada
para que seja "educada na virgindade". Numa altura em que o
monaquismo se desenvolve e que a partida para o deserto se
torna a sua característica, a ascese familiar na cidade (as mais
das vezes de uma mãe com a sua filha) continua a ser, para as
mulheres, o modelo da vida santa. O eremitismo feminino não
existe pois, praticamente. Um Antigo parece incapaz de imaginar
172 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ou de permitir que uma mulher viva sozinha num lugar selvagem.


Várias histórias contam o encontro de um santo eremita com
uma mulher solitária no fundo de um deserto. Aba* Elias, o
"herbívoro" (que se alimenta de ervas selvagens), recebe a visita
de uma mulher que habita uma gruta próxima da sua no deserto
da Judeia; ela pede-lhe água. Após a sua partida, Elias, "vencido
e não podendo mais suportar o ardor da paixão", sai da sua
gruta: "Tendo o calor tornado mesmo as pedras escaldantes,
dirige-se para ela para satisfazer o seu desejo." Uma aparição
providencial detém-no a tempo. As narrativas deste tipo são
sinais de cautela, destinados a recordar ao monge que em parte
alguma ele se encontra ao abrigo das tentações.
Não existem mulheres eremitas, nem mulheres que levem a
vida excepcional dos dendritas, instalados nas árvores, ou dos
estilitas, empoleirados no cimo de uma coluna em pleno vento.
As grutas, as montanhas selvagens e os desertos infestados de
demónios são a morada dos solitários barbudos. S. Jerónimo
(cf. "Biografias") proíbe o eremitismo às mulheres pois "o seu
pensamento mutável e flutuante desliza facilmente para o pior".
A reclusão é a forma de vida feminina mais próxima do
eremitismo, mas ela não passa de uma variante do ascetismo
urbano antigo. Na Síria do Norte, região caracterizada pelas
tendências extremistas das suas devoções, Marana e Cira, duas
irmãs de uma grande família de Bereia-Alepo (na Síria),
encerram-se à entrada da sua cidade num recinto cuja porta é
encerrada. Constroem um alojamento vizinho para as suas ser-
vas "e ordenam-lhes que lá se mantenham. (...) Vigiam por uma
pequena lucarna o que elas fazem, incitam-nas muitas vezes à
oração e inflamam-nas no amor divino". Marana e Cyra cobrem
o corpo de pesadas cadeias de ferro, segundo um costume que
não é raro na Síria.
Na espantosa história do monaquismo oriental dos primeiros
séculos do cristianismo, muitos dos nossos contemporâneos re-
tiveram apenas dois nomes: a Thais de Anatole France e a Marie
d'Egypte de Jacques Lacarrière, que fascinam pela sua existência
MULHERES NO DESERTO? 173

partilhada entre as profundezas da libertinagem e os cumes da


ascese. Elas passam a sua juventude em Alexandria na prosti-
tuição, convertem-se subitamente e lançam-se no fundo dos
desertos do Egipto e da Palestina, nas mais terríveis macerações
da vida solitária, antes de morrerem em estado de santidade.
Mas estas belas lendas, redigidas desde a Antiguidade, muito
apreciadas na Idade Média e que os romancistas modernos se
comprazem em remodelar, não passam de puras ficções! Temos
de nos abstrair destas vidas imaginárias para discernir naliteratura
cristã do século IV ao VII o rosto das mulheres que, do Egipto à
Síria do Norte, adoptaram o modo de vida monástico erivaliza-
ram assim com os gandes homens do seu tempo: os monges Antão,
Pacómio, Simeão Estilita e Sabas (cf. "Biografias").
A figura da prostituta convertida é forjada pelo modelo da
pecadora anónima que, segundo o Evangelho de S. Lucas, verteu
um vaso de perfume sobre os pés de Cristo e que, por confusão,
será denominada mais tarde Maria Madalena. A documentação
de que dispomos, feita de narrativas hagiográficas* ou históri-
cas, redigidas quase unicamente por homens, inventa ou recom-
põe as vidas das santas mulheres ao sabor dos fantasmas mas-
culinos e das exigências do ensinamento cristão.
Houve dois tipos de lendas que encontraram um imenso êxi-
to, imposto por uma imagem estereotipada da ascese feminina.
A "cortesã arrependida" acha-se bem representada por Thais
ou Maria, a Egípcia; chegar-se-ia a escrever que Porfiria-Pelágia
dirige um convento inteiro de antigas prostitutas em Tiro. A
"mulher disfarçada de monge", como é o caso de Marina, Anas-
tásia ou Hilária, é uma jovem que vive num mosteiro de ho-
mens fazendo-se passar por um eunuco; a verdade surge, seja
no momento em que se enterra o cadáver do pseudo-monge,
seja na sequência de um reconhecimento romanesco. A história
de Pelágia, a penitente, reúne os dois temas: Pelágia, actriz e
dançarina, ou seja, para os Antigos, dançarina de strip-tease e
prostituta, torna-se asceta, disfarçada de homem, numa cela
murada do monte das Oliveiras em Jerusalém.
174 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A realidade é bem diferente do teor destas narrativas, que


apesar de tudo difundem um ensinamento: o ideal da vida
angélica é acessível a todos e a todas. Trata-se, à força de renún-
cia, de se desapegar da condição humana e de estar já nos céus,
semelhante aos anjos, liberto não só de toda a vida sexual mas
sobretudo de toda a distinção sexual. João Crisóstomo, prega-
dor do final do século IV, escreve: "Aqueles que eram os mais
ardentes no mal, mais arrebatados e mais voluptuosos do que os
outros, rivalizam agora com os anjos pela sua temperança e pela
sua impassibilidade."
Não só a prestigiosa vida eremítica, que confere a alguns
seres excepcionais irradiação e poderes miraculosos está reser-
vada aos homens, como ainda o ascetismo e a vida cenobítica
das mulheres são estreitamente vigiadas. A religiosa, "que está
unida ao Esposo celeste, cumpre pois a vontade do seu esposo";
em consequência, deve preservar o seu tesouro, conservar para
Cristo essa virgindade tão valorizada nas sociedades mediter-
rânicas. As monjas, mulheres fracas, não podem governar por
si mesmas a sua existência. É certo que se encontram submeti-
das à direcção de uma anciã, a que chamam mãe, Amma, mas é
a maior parte das vezes um capelão, de preferência um velho
monge, quem as comanda — só ele tendo o direito de as visitar.
A direcção masculina traduz-se frequentemente, em parti-
cular no Egipto, pela constituição de mosteiros duplos: o supe-
rior de um mosteiro de homens torna-se igualmente responsá-
vel pelo convento vizinho de monjas. Por vezes, um fundador
constrói imediatamente um mosteiro duplo. Assim, um prínci-
pe arménio do século VI instala a sua mulher Maria, a sua família,
os seus escravos e o seu séquito em construções gémeas mas
separando bem as mulheres dos homens. No Egipto, os mostei-
ros de mulheres são mantidos com o supérfluo dos conventos
de homens; por vezes um grupo de monjas é separado dos mon-
ges pelo Nilo, e só o cemitério é comum.
Todos estes intercâmbios engendram tentações. Mesmo con-
duzidas por um pulso viril, as mulheres são por natureza de tal
MULHERES NO DESERTO? 175

maneira "perigosas" que o monge deve viver continuamente


em guarda. Citam-se os exemplos dos monges que, sem consi-
deração por nada, soçobraram no pecado em companhia de uma
religiosa "caída". S. Jerónimo pretende que se devem afastar as
religiosas mesmo dos eunucos e Moisés, o Egípcio, escreve às
virgens: "Não deixeis as crianças do sexo masculino entrar no
vosso convento a fim de que não sejam um escândalo para vós".
As ocasiões de contacto entre os monges e as irmãs, nomeada-
mente o ritual dos enterros, são regulamentadas e limitadas com
precisão.
Na Histoire Lausiaque de Paládio (princípios do século V),
o asceta Elias, o Egípcio, é chamado philoparthenos, amigo
das virgens: construiu um grande mosteiro na cidade de Athribis
e aí reúne mulheres errantes. Põe-lhes ao dispor jardins e, para
estabelecer a paz entre as trezentas virgens, que discutem entre
si, passa dois anos no meio delas. No entanto, Elias, "atra-
vessando a idade da mocidade, é tentado pela volúpia" e tem de
fugir para o deserto. Adormece e aparecem-lhe três anjos que
lhe propõem desembaraçá-lo da paixão, depois emasculam-no
com uma navalha, "não na realidade mas em sentido figurado".
Elias regressa ao seu mosteiro e, "desde então, mantém-se numa
cela de lado, donde, estando mais próximo, faz continuamente
a correcção" às irmãs.
Os regulamentos eclesiásticos e a legislação imperial que
condenam toda a intrusão de homens nos mosteiros de mu-
lheres conseguem em breve interditar os mosteiros duplos que,
em consequência, desaparecem nos séculos VI e VII. Para os
monges, é demasiado forte a contradição entre a necessidade de
vigiar e guiar as virgens e os riscos de pecado e de escândalo
que isso acarreta. Anterior e depois contemporânea da vida ce-
nobítica, a vida ascética suscita as mesmas dificuldades. Os gru-
pos de virgens mais ou menos reclusas, que vivem na cidade
num enquadramento familiar, recebem visitas de monges, de
ascetas ou de sacerdotes dos quais se encontram dependentes.
Por vezes, monges e virgens têm o mesmo domicílio. Estes
176 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

amigos masculinos são indispensáveis, uma vez que asseguram


o contacto com o mundo exterior, que é em grande parte reser-
vado aos homens nas sociedades mediterrânicas: eles "vão às
compras", informam e ocupam-se da gestão dos bens materiais
da gente da casa.
Estes directores espirituais fazem murmurar judeus e
pagãos. Na Antioquia (Síria) do final do século IV, em que
cristianismo e paganismo coexistem e por vezes se confrontam,
desencadeiam-se querelas a propósito destas "coabitações sus-
peitas" que João Crisóstomo combate com arrebatamento. O
futuro bispo de Constantinopla, antigo monge de regresso a
Antioquia e grande pregador, luta contra esta vida em comum,
na castidade mas no equívoco, de religiosos e de virgens
"subintroduzidas", como são designadas. Ele adivinha tudo o
que têm de suspeito e de tentador estas relações aparentemente
fraternas, sem perceber a que ponto é difícil às mulheres es-
capar a esta protecção masculina. Não será de espantar tam-
bém que se encontrem casos extremos. Na sua Apologia pela
sua fuga, Atanásio (século IV) evoca um sacerdote, Leôncio,
que "em presença da acusação e da proibição de coabitar com
uma mulher, ainda jovem, de nome Eutólion, castrou-se a fim
de poder viver impunemente com ela"!
A vocação ascética ou monástica das mulheres, no Oriente
mediterrânico dos primórdios do cristianismo, revela-se pois ex-
tremamente perigosa. Embora a virgindade seja vivamente enco-
rajada pela Igreja, é praticamente impossível conciliar as duas
exigências opostas: vigiar as mulheres e neutralizar as tentações
de que elas são responsáveis e vítimas. Assim, o monaquismo
feminino não pode verdadeiramente desenvolver-se; é ocultado
pela radiação do eremitismo masculino ou das grandes
comunidades monásticas de homens. Pouco numerosos, os con-
ventos de monjas enclausuradas situam-se sobretudo nas cidades
importantes ou nos lugares de peregrinação: Jerusalém, o san-
tuário de Santa Tecla em Isáuria (cf. "Biografias"), Edessa,
Antioquia e Alexandria.
MULHERES NO DESERTO? 177

Os mosteiros de mulheres são pouco conhecidos. Os autores


antigos assinalam com uma certa complacência as perpétuas
querelas que agitam esses mundos fechados. As monjas não
têm actividades agrícolas e as suas casas não servem nem de
albergue nem de escola. Das raras obras de caridade, a parti-
cipação em enterros parecia ser das suas únicas actividades
sociais. As religiosas subsistem graças às doações.
Parece também que as famílias não procuram separar-se das
filhas: vale mais casá-las, sobretudo com parentes chegados, e
receber em troca uma doação do que pô-las num convento e
correr o risco de as ver partir com os seus bens ou a sua parte da
herança. A vocação monástica de uma mulher deve assim ser
precedida da renúncia dos seus pais. O sírio Rabula confia a sua
esposa e os filhos a mosteiros quando escolhe para si mesmo a
vida monástica. Pacómio e Antão são órfãos que decidem votar
as suas irmãs à virgindade. Sinclético tem de esperar pela morte
dos pais para poder partir com a sua irmã cega e ir instalar-se
num túmulo às portas de Alexandria.
Diversas mulheres—judias convertidas, escravas, membros
da família de um imperador assassinado, servas de sacerdotes
escandalosos — são enviadas para conventos. Grandes damas
da aristocracia romana, viúvas ricas ou esposas que conseguiram
convencer os maridos, deixam o Ocidente e instalam-se em con-
ventos na Palestina; elas representam uma elite muito influente
e as suas possibilidades de escolha são asseguradas pela sua
fortuna, mas não são suficientemente numerosas para encher os
mosteiros de mulheres.
Uma comunidade de monjas, que devia ser o lugar de um
desabrochar religioso, pode igualmente permitir escapar a cer-
tas coacções sofridas pela generalidade das mulheres:
casamentos forçados ou partos repetidos. Seria erróneo crer que
a Igreja se desinteressa da vida religiosa das mulheres ou reserva
a santidade à casta masculina. Repete-se a palavra do apóstolo
Paulo: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem homem
livre, não há homem nem mulher, pois que todos vós sois um
178 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

em Cristo Jesus." Assim se podem apagar, na vida espiritual, as


hierarquias da vida social. Na História Lausíaca, o autor de
uma série de narrativas relativas à santidade monástica refere as
mulheres: "Mas é necessário fazer também menção, neste livro,
às mulheres viris, a quem Deus concedeu pelas suas lutas os
mesmos favores que aos homens; e isto para que não se possa
argumentar que elas são demasiado fracas para a prática regular
da virtude." Ao multiplicar os esforços, a mulher pode pois
alçar-se acima da sua condição; ela pode dar provas de virilidade
e ultrapassar em mortificações e em santidade os ascetas mais
encarniçados. Ao esquecer a sua fraqueza "natural", a mulher
atinge a virilidade, isto é, a força e pode tornar-se um modelo
de santidade. Melânia, grande dama de Roma, visita os monges
do Egipto: "Os santíssimos padres lá de baixo recebem a bem-
-aventurada como se de um homem se tratasse; verdade se diga
que ela tinha ultrapassado a medida do seu sexo e adquirido
uma mentalidade viril, ou antes, celeste." Ela é uma das grandes
organizadoras do monaquismo na Palestina e vive já a vida
angélica.
Amma Sarra mantém-se perto de sessenta anos à beira do
Nilo e não se debruça nunca para o ver. Um dia, dois velhos,
grandes anacoretas*, vão visitá-la: "Ao dirigir-se para lá, iam
dizendo um ao outro: "Vamos humilhar essa velha". Dis-
seram-lhe: "Guarda-te de te orgulhares dizendo: eis que os ana-
coretas vêm a mim, que sou uma mulher."
A amma Sarra respondeu-lhes: "Por natureza, sim, sou uma
mulher, mas não no espírito." E disse-lhes ainda: "Eu sou um
homem; vós é que sois mulheres."
Susana, outra mulher forte, nasceu numa grande família da
região do Alto Tigre que se encontrava na época nas mãos dos
Persas. Parte sozinha com a idade de oito anos para Jerusalém,
apesar da oposição dos pais, e alcança a Palestina com um grupo
de peregrinos a que se junta. Depois apresenta-se num mosteiro
de mulheres e não consegue ser admitida senão depois de ter
ficado sete dias a chorar diante da porta. Obriga-se então a se-
MULHERES NO DESERTO? 179

veras privações, não obstante a sua pouca idade. Forçada pelas


querelas doutrinais da época a abandonar a Palestina, Susana
foi para o Egipto com algumas irmãs, monofisitas* como ela.
Esforça-se por viver como eremita numa caverna, mas sem o
conseguir totalmente — irmãs, bem como monges que acor-
rem, impedem-na de se isolar por completo.
No entanto, Susana luta contra os demónios poderosos "que
mostram o poder da sua malignidade mais particularmente nos
desertos". Esta "mulher divina" atrai auditores a quem prodi-
galiza ensinamentos.
Cura os doentes pela imposição das mãos e chega mesmo a
triunfar, numa espécie de duelo de santidade, sobre um eremita
vizinho que, aterrorizado pelos demónios, lhe vai pedir conse-
lho. Todavia, durante vinte cinco anos, Susana não vê um rosto
de homem nem mostra o seu rosto a homem nenhum. É um dos
raríssimos casos de Grande Mulher Santa, à imagem dos Grandes
Santos Homens de Deus; estes monges ilustres tiram o seu po-
der da relação privilegiada que mantêm com Deus e atraem as
multidões em busca de conselhos, de curas e de protecção. As
perseguições desencadeadas contra os monofisitas forneceram
as circunstâncias excepcionais desta vida excepcional.
No final da Antiguidade, a santidade é uma coisa demasiado
séria para ser entregue às mulheres. Nesta época, uma expe-
riência religiosa fora do comum permite, por caminhos escu-
sos, o acesso ao poder político e social. O santo homem atrai as
multidões, resolve os diferendos, cura uns, aconselha outros,
admoesta os funcionários ou os imperadores, serve de inter-
mediário entre comunidades aldeãs e as forças que as contro-
lam. É impossível às mulheres exercer durante muito tempo e
fortemente este poder. Elas apenas podem apoderar-se de
parcelas dele e as que o conseguem, aproveitando-se de crises
doutrinais como a dos monofisitas ou de uma situação social
favorável como as aristocratas italianas, dão provas de quali-
dades admiráveis que lhes permitem forçar as portas de um cír-
culo muito fechado, mas não ocupam nunca os lugares de honra.
180 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

O deserto mantém-se como domínio do homens. Retenhamos


contudo o belo cumprimento dos monges do Egipto a Susana:
"Uma cidade, Mãe, se tu lá vives, para ti é um deserto."

Nota

' Autor anónimo de uma narrativa atribuída erroneamente a Ataná-


sio, bispo de Alexandria, o biógrafo de Santo Antão.

Biografias

ANTÃO: conhecemo-lo pela biografia que lhe dedicou Atanásio,


bispo de Alexandria. E, se não o único, pelo menos um dos primeiros
fundadores do monaquismo e o mais ilustre. Nasceu no Egipto, numa
família que passava por abastada, no final do século III. Órfão, dis-
tribui, por volta dos vinte anos, todos os seus bens pelos pobres e
entrega-se à ascese e à oração, primeiro no exterior da sua aldeia, se-
guindo os conselhos de um velho asceta vizinho, e, depois, num túmu-
lo de uma montanha próxima. Parte finalmente para o deserto e a re-
cusa do velho em segui-lo assinala a ruptura entre a ascese "civilizada"
e o monaquismo "selvagem". As lutas, simultaneamente físicas e es-
pirituais, de Antão contra os demónios tornaram-se célebres sob o nome
de "tentações de Santo Antão".

PACÓMIO: egípcio, como Antão, e seu contemporâneo, organiza


em comunidade, segundo uma regra, monges que viviam anteriormente
em celas separadas. Cria igualmente um mosteiro de mulheres que
confia a sua irmã.

JERÓNIMO (ap. 347-420): nascido na Dalmácia, pertence à parte


ocidental do Império Romano, onde se fala latim, mas conhece o gre-
go e aprende o hebreu no Oriente, onde vive durante muito tempo.
Vive a vida monástica no deserto de Chalcis, na Síria, e acaba por se
instalar em Belém. Erudito e tradutor, teólogo violento, não é sem razão
que S. Jerónimo é o protector dos sábios. Atrai a Belém algumas grandes
damas da aristocracia romana, entre as quais Paula e a sua filha
MULHERES NO DESERTO? 181

Eustochium, que ali fundam um mosteiro. Contudo, parece ter estado


em desacordo com Melania, uma outra romana rica que tinha instalado
um convento em Jerusalém.

SIMEÃO ESTILITA: Há duas ilustres personagens que têm sido


frequentemente confundidas pela tradição. S. Simeão Estilita, o Velho,
inventa no século V o modo de vida estilita, isto é, a instalação no alto
de uma coluna, ao vento, sobre uma montanha, por sobre o burgo de
Telanissos, hoje Qalaat Seman, entre Antioquia e Bereia (Alepo). Com
o correr dos anos, Simeão manda construir colunas cada vez mais al-
tas. Teodoreto, bispo de Ciros, é um dos hagiógrafos que relataram a
sua vida. S. Simeão Estilita, o Jovem, filho de Santa Marta, leva
igualmenete uma vida de estilita, um pouco mais tarde, nas pro-
ximidades de Antioquia, numa montanha chamada Monte Admirável.
Ambos conheceram um êxito considerável e produziram grande número
de milagres. Simeão, o Velho, presta justiça, luta contra pagãos, judeus
e hereges, corresponde-se com o imperador Teodósio II, com os ma-
gistrados e com os bispos. Simeão, o Jovem, corresponde-se igualmente
com o imperador e conversa com Cristo e os anjos.

SANTA TECLA é uma "heroína de romance cristão". Os Actos


apócrifos de Paulo e Tecla contam que o apóstolo Paulo convertera a
bela Tecla. Esta foge aos ardores do seu noivo e conhece então uma
vida errante. Por toda a parte onde passa, tem de escapar ao desejo dos
homens e ao suplício dos perseguidores; é assim que é lançada a leões,
touros e até focas (!), mas é sempre poupada. Acontece-lhe disfarçar-se
de homem para encontrar a tranquilidade. Finalmente, retira-se para
uma região montanhosa e acaba por desaparecer para sempre numa
fenda do solo. O principal santuário de Tecla encontra-se ao lado de
Selêucia de Isáuria, na Ásia Menor; é hoje a localidade arqueológica
de Meriamlik, com várias igrejas, uma das quais está construída sobre
uma gruta. A popularidade de Tecla é tal que numerosos santuários a
reivindicam em todo o Oriente.

Léxico
ABBA (aba): pai, termo geral de respeito empregue em relação a
numerosos monges e que não significa forçosamente "superior de um
mosteiro".
182 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

ANACORETA: a anachoresis, acção conjunta de se retirar e de se


refugiar, é, na origem, a fuga dos camponeses egípcios que, para
escaparem aos encargos, em particular fiscais, que os esmagavam, se
refugiam em lugares desérticos ou nos pântanos do Delta. A anacorese,
esse abandono, virá a tornar-se o esforço constante do monge, o
anacoreta, para se desapegar do mundo que deixou.

APÓCRIFOS: obras que a Igreja não aceitou no Antigo ou no Novo


Testamento. Existem assim Evangelhos apócrifos, Actos apócrifos dos
Apóstolos, etc.

DENDRITA: de dendrion, árvore, em grego; os dendritas habita-


vam em árvores, levando uma vida solitária; é uma forma de existên-
cia vizinha da do estilita, mas não tem nem o seu êxito nem a sua aura.
A Síria é o lugar privilegiado para as práticas ascéticas extravagantes e
por vezes ostentatórias.

HAGIOGRAFIA: literatura consagrada a descrever os altos feitos,


nomeadamente os milagres, das santas personagens do cristianismo.

MONOFISISMO: as principais querelas teológicas dos primeiros


séculos referem-se à natureza de Cristo e da sua encarnação. As corren-
tes monofisitas não querem reconhecer em Jesus senão urna só na-
tureza (mono-physis), isto é, insistem na divindade de Cristo em detri-
mento da sua humanidade. Por oposição, as correntes nestorianas (de
Nestório, patriarca de Constantinopla, deposto), ao separarem as duas
naturezas, humana e divina, parecem deter-se no Cristo-homem. Os
Calcedonianos (de Calcedonia, onde teve lugar o Concílio de 461)
condenavam as duas atitudes e defendiam a união da humanidade de
Cristo com a sua divindade. São as suas teses que vêm a triunfar em
Roma e em Constantinopla.

ESTILITA: destylos, coluna, em grego. Monge instalado sobre uma


pequena plataforma no alto de uma coluna ao ar livre.
MULHERES NO DESERTO? 183

Orientação bibliográfica

Estudos:
P. Brown, La Société et le Sacré dans l 'Antiquité Tardive, Paris, Éd.
du Seuil, 1985 (recolha de artigos traduzidos).
P. Canivet, Le Monachisme Syrien selon Théodoret de Cyr, Paris,
Beauchesne, 1977.
D.J. Chitty, Et le Désert devint une Cité, Abadia de Bellefontaine,
1980 (tradução francesa).
A.-M. Vérilhac, éd., La Femme dans le Monde Méditérranéen, t. 1,
Antiquité, Lião, TMO, dif. De Boccard, 1985.

Textos:
R. Arnauld d'Andille, tradução (do século XVII) de Sofrónio, Vie
de Sainte Marie Egyptienne Pénitente, reed. Paris, J. Millón, 1985.
P. Canivet, tradução de Teodoreto de Ciro, Histoire des Moines de
Syrie, 2 ts., Paris, Le Cerf, 1977-1979.
A.-J. Festugière, Les Moines d'Orient (numerosos textos traduzi-
dos em francês), 4 ts. (7 vols.), Paris, Le Cerf, 1960-1965.

Romances:
A. France, Thais, Paris, 1890.
J. Lacarrière, Marie d'Égypte, Paris, Lattès, 1983.
As freiras
Michel Parisse

A religiosa da Idade Média é-nos menos bem conhecida do


que o monge; os historiadores deram-lhe um lugar muito peque-
no e, no folclore medieval, a irmãzinha dos romances em verso
presta-se a sorrisos, ao passo que as histórias r e f e r e n t e s à atracção
que exercem em todos os tempos as abadias de mulheres, tanto
sobre os leigos como sobre os eclesiásticos, não faltam. Porém,
apresentar esse mundo das religiosas em algumas frases, sob o
pretexto de que os arquivos dos mosteiros femininos são muitas
vezes falhos, sobretudo no que se refere à época alta, seria fazer
pouco caso de um grupo social rico e variado.
Quando se fala do lugar e do papel das mulheres na Igreja,
regular ou secular, dever-se-ia dizer muito singelamente as "re-
ligiosas", pois o termo traduz o latim sanctimoniales. Diz-se
todavia mais prontamente as "freiras" (em francês: "normes ") —
foi a palavra que mantive —, embora os especialistas pretendam
reservar o termo para aquelas que optaram pela clausura, isto é,
as monjas ("moniales "), por oposição às piedosas mulheres que
se mantêm em contacto com o mundo. Em todo o caso, a varie-
dade dos seus géneros é grande: virgens consagradas, viúvas res-
peitadas, monjas enclausuradas, cónegas, beguinas, gilbertinas,
fontevristas, irmãs leigas, clarissas, pregadoras e outras.
Uma coisa é certa: as mulheres sempre quiseram, tanto como
os homens, ter na Igreja um lugar que sempre lhes foi parcimo-
186 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

niosamente atribuído. "Que se calem nas assembleias" —


escreve S. Paulo e, no século IX, num outro espírito, Bento de
Aniane, tratando da vida monástica, enumera com humor a lista
dos defeitos femininos onde ocorre por várias vezes a ideia de
loquacidade. Elas não têm o direito de estar em contacto directo
com o sagrado. As suas intenções piedosas são de louvar, mas
não lhes dão os mesmos direitos que aos homens são dados.
Nos primeiros séculos da Igreja, diaconisas intervêm por oca-
sião de sessões de baptismo por imersão, quando se trata de
baptizar mulheres. Exige-se delas uma prática virtuosa e a as-
sistência aos ofícios divinos. Os concílios merovíngios dão ain-
da um grande lugar às viúvas que continuam a viver no século,
em suas casas, impondo a si mesmas um comportamento
rigoroso: estas servas de Deus vestem o hábito de viuvez e fazem
profissão de castidade e de penitências. Inquietam por vezes as
autoridades eclesiásticas, que lhes prescrevem repetidamente
que respeitem os seus compromissos e as encorajam a junta-
rem-se às comunidades monásticas. A estas mulheres maduras,
como às virgens não veladas que impõem a si mesmas os mes-
mos preceitos, S. Jerónimo deixou conselhos seguidos ao longo
de toda a Idade Média: as suas cartas a Marcela, Paula, Princi-
pia, Eustóquio, Demétria informam-nos com precisão a respei-
to de muitos dos problemas de espiritualidade e de vida femi-
ninas, como testemunha este trecho da sua carta a Demétria:
"Fora a série dos salmos e a oração, cujos exercícios de-
verás fazer às horas de terça, sexta, nona, vésperas, à meia-noite
e à alvorada, fixa o número de horas que deverás consagrar ao
estudo da Sagrada Escritura e o tempo que empregarás na leitu-
ra já não laboriosa, mas agradável e instrutiva para a tua alma.
Depois de teres determinado esses momentos e as numerosas
orações de joelhos que os cuidados da tua alma te tiverem ins-
pirado, tem sempre à mão um trabalho de lanifício: ou então,
com a ajuda do polegar, puxa o fio da roca, ou, para tecer a
trama, faz girar o fuso na lançadeira, e, com aquilo que as ou-
tras fiaram, forma novelos ou então junta-o para o tecer; exami-
AS FREIRAS 187

na o que já está tecido, corrige os defeitos, põe ordem no tra-


balho." (Ep. CXXX, 15; trad. francesa de J. Labourt.)
Dualidade da ocupação feminina retomada sem cessar, oração
e trabalho manual.
Rapidamente, as mulheres puderam agrupar-se nos mostei-
ros tal como os homens, mas com menos facilidades. Uma enu-
meração sistemática das suas abadias na Alta Idade Média, antes
do ano mil, dá-nos uma ideia da repartição cronológica e espa-
cial dos seus estabelecimentos.
No século VI, havia em França umas trinta casas, ou seja,
sete ou oito vezes menos que as dos homens. O século VII viu
fundarem-se perto de outras setenta e cinco graças à dupla in-
fluência, por vezes oposta, do santo irlandês Columbano e dos
seus discípulos, bem como da aristocracia merovíngia associada
à dinastia real. E já um facto se destaca: o fraco número de
fundações a sul do rio Loire, uma única a sul do rio Garona,
menos de uma dezena entre estes dois rios. O movimento de
fundação, em contrapartida, desenvolve-se em direcção dos rios
Mosela e Escalda, para leste e norte, com os Carolíngios,
alcançando a Germânia no século VIII. No que virá a ser a
Lotaríngia, vinte e duas criações antes do ano 900. Outro tanto
na Saxónia em pouco mais de um século, um pouco menos nas
outras províncias. Porquê? É que o lugar cedido à mulher na
sociedade é diferente segundo as regiões. Se ao sul ela é consi-
derada maior e dotada de um poder de acção, já a norte é mantida
sob rigorosa vigilância.
Em França, o reinado de Carlos Magno e dos seus suces-
sores representa uma pausa; depois ocorrem as invasões nor-
mandas e húngaras que arruínam, esvaziam ou destroem as aba-
dias do nordeste da região. E não só estas: no ano 919, os
Húngaros vão até Remiremont, a sul dos Vosges, e obrigam as
religiosas a procurar refúgio na montanha próxima. Os seus
mosteiros abandonados são muitas vezes recuperados por
monges ou cónegos. No século seguinte, a retomada é lenta, a
não ser em relação ao Império Germânico, onde se nota um
florescimento de mais de cinquenta abadias, das quais 80% na
188 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Saxónia e na Lorena. É então que se pode constatar este facto


espantoso: na Vestefália, defronte dos monges de Fulda, única
abadia só de homens, importante, é verdade, conta-se uma dezena
de mosteiros femininos; é uma proporção inversa do que existe
no sul de França. Talvez não haja valor numérico mais signi-
ficativo para mostrar a oposição de duas atitudes, de duas civili-
zações, até.
Entre os diferentes estabelecimentos, há dois tipos que so-
bressaem: o mosteiro duplo e o mosteiro familiar; encontram-se
um pouco por todo o lado na Europa de então. Os especialistas
nem sempre concordam quanto à definição do primeiro. O ver-
dadeiro mosteiro duplo seria aquele em que homens e mulheres
coexistem com igualdade de importância sob a autoridade única
de um abade ou de uma abadessa. E o que se encontra em
Córdova, por exemplo: um muro separa os homens das mulheres
e umajanela gradeada permite as comunicações indispensáveis.
Já o mesmo se não passa quando os monges de S. Columbano
fundam uma abadia de mulheres, à qual associam um grupo de
irmãos; são então abadessas que os governam, como em Nivelles,
Chelles ou Remiremont mas há um pai espiritual que tem à
partida um papel activo. Os homens podem nesse caso
encarregar-se de trabalhos manuais pesados; há, sobretudo,
sacerdotes para os ofícios. Estas últimas instituições são, a meu
ver, pseudo-mosteiros duplos.
Muito diferentes são os mosteiros familiares; para simplifi-
car, poder-se-ia dizer que se trata de refúgios e de casas de educa-
ção que acolhem as viúvas e as jovens de uma família ou de um
grupo de famílias aliadas. Estes estabelecimentos são frequentes
entre os moçárabes — cristãos da Península Ibérica —, como
na Saxónia; só agrupam algumas dezenas de pessoas, isto é,
menos do que acontece com os homens.
Santo Agostinho (t 430) tinha dado, numa carta, instruções
para organizar uma comunidade feminina em Hipona; este es-
crito, juntamente com outros, serviu finalmente de base à regra
agostiniana dos homens no século XI. S. Jerónimo (t 420), já o
dissemos, não poupou os seus conselhos às viúvas e às virgens.
AS FREIRAS 189

S. Cesário de Arles (t 543) dedicou-se a compor uma regra


particular para a abadia que a sua irmã Cesária governou e onde
se encontravam reunidas por volta do ano 525 cerca de duzentas
monjas. O irlandês Columbano (t 614) não assinalou qualquer
interesse pelas religiosas, mas os seus discípulos aplicaram-lhes
os preceitos do mestre. Na realidade, a regra de S. Columbano
não organizava nada, mas impunha a obediência, a austeridade,
a oração; o seu penitencial — lista de penitências a que se fica-
va sujeito por cada falta —, pormenorizado em extremo, tinha
nela um lugar preponderante e convinha com efeito apenas a
homens.
Vinda no século VI para as nossas regiões, a regra mais an-
tiga de S. Bento ( t 547), escrita em Itália para homens, recebeu
por toda a parte um acolhimento favorável, pois comportava
um verdadeiro emprego do tempo para os monges e fornecia
muitos pormenores de organização. Impôs-se tanto entre as
mulheres como entre os homens. Todavia, era profundamente
inadaptada a estas, como demonstra bem Heloísa quando pede
a Abelardo que componha uma regra em intenção das irmãs do
Paráclito, no século XII:
"Até hoje, as mulheres e os homens professam igualmente a
regra de S. Bento, embora seja evidente que esta regra foi feita
unicamente para os homens e que só pode ser observada por
eles (...); é a mulheres que se dirigem as prescrições sobre os
capuzes, os calcões e os escapulários? Que têm elas a ver com
essas túnicas e esses calções de lã, cujo movimento periódico
de sangue nelas lhes torna o uso completamente impossível?
Em que lhes toca a elas o artigo que ordena ao abade que seja
ele a ler o Evangelho e que comece o hino depois dessa leitura?
E aquele que estabelece que uma mesa particular seja posta para
os peregrinos e os hóspedes, à qual ele presidirá? Convém aos
nossos votos que uma abadessa dê alguma vez hospitalidade a
homens ou que tome as suas refeições com os que tiver recebido?
Oh, como são fáceis as quedas quando nesta reunião dos homens
e das mulheres debaixo do mesmo tecto, sobretudo à mesa, sede
190 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

da intemperança e da embriaguês, à mesa onde é tão doce chegar


aos lábios a taça que verte a luxúria com o vinho!" (carta VI,
trad. francesa de O. Gréard, s/d, p. 111.)

O rigor das monjas

Finalmente, os princípios da vida quotidiana, os costumes


monásticos parecem mais importantes que a própria regra. A
vontade do fundador, de uma abadessa ou a reticência das re-
ligiosas bastavam sem dúvida quase sempre para aplicar os pre-
ceitos de S. Bento num sentido rigoroso ou, pelo contrário, para
interpretar muito amplamente os seus dados com vista a orga-
nizar a vida das cónegas por oposição às monjas.
Poder-se-ia com efeito, por prudência, como o fez Bento de
Aniane em 816, falar das "religiosas" das abadias; na realidade,
havia com certeza dois grupos nitidamente distintos e a dife-
rença entre eles dizia respeito, antes do mais, a dois pontos: a
propriedade ou a recusa de bens pessoais, o respeito ou a não
observância da clausura monástica. Para conhecer os costumes
seguidos por cada um dos dois grupos, podemos reportar-nos
às narrativas que nos são feitas nas Vidas das Santas, como as
de Gertrudes de Nivelles, Batilde de Chelles ou Cunegundes de
Luxemburgo.
As monjas fazem uma vida comunitária desprovida de fan-
tasia e de conforto. Professam, empenham-se portanto para a
vida inteira, recebem o véu sagrado com bênção do bispo; no
que se refere a Gertrudes de Nivel les, o seu biógrafo fala mesmo
de tonsura e Cunegundes de Luxemburgo corta solenemente os
cabelos quando da sua entrada para o mosteiro. Exceptuando o
voto de castidade e os de obediência, nenhuma outra promesa é
mencionada. Não é certo que a pobreza total, isto é, a não posse
de bens pessoais, seja exigida. Quer isto dizer que certas mon-
jas podiam por vezes recolher bens patrimoniais, receber
doações, possuir roupas mais ricas.
AS FREIRAS 191

Porém, o rigor manifestava-se na maior parte das vezes no


hábito severo, sem fausto nem conforto, de lã. A vida quotidiana
era regulada pela liturgia; as irmãs iam à igreja em grupo, sob a
direcção da abadessa, assim como deviam manter-se juntas no
dormitório, no refeitório e no trabalho. Os contactos com estra-
nhos no mosteiro eram severamente regulamentados e só po-
diam ocorrer na presença de terceiros, na igreja. Mesmo os padres
franqueavam a grade do convento o menos possível.
Por oposição, o género de vida das cónegas surge singular-
mente diferente. Estas religiosas têm celas ou pequenos aparta-
mentos no recinto da abadia, uma ou várias criadas; além da
prebenda — parte dos rendimentos da comunidade — que lhes
é assegurada, detêm o direito de dispor de bens patrimoniais,
que podem gerir directamente ou por intermédio de serviçais;
têm ocasião, embora com permissão, de visitar parentes, de os
receber, de lhes oferecer de comer; podem usar hábitos con-
fortáveis e mesmo luxuosos, alimentam-se de pratos requinta-
dos. Entrevê-se que não professam e nomeadamente parece não
se pôr a questão quanto aos seus propósitos de empenhamento
na castidade.
Estabelecimentos destes encontram-se quase exclusivamente
no Império Germânico; trata-se antes do mais de mosteiros fa-
miliares, isto é, como já foi dito, de casas de educação para
jovens nobres, de asilos para viúvas ricas. Aí se recebe uma
formação intelectual bastante séria, mas limitada à literatura
religiosa e litúrgica, e uma educação manual. Rosvita, religiosa
saxónica que pôs em verso uma biografia de Otão I e compôs
sete peças de teatro à maneira de Terêncio, representa uma
excepção. Inúmeras jovens são aí colocadas pelos pais enquanto
aguardam a idade núbil e um bom partido. São feias, ou menos
dotadas? Têm fortes hipóteses de ficar toda a vida no mosteiro.
São ricas ou belas? Só lá ficam se o desejarem ardentemente,
pois podem sair para se casarem.
Estas abadias eram de acesso bastante fácil aos visitantes do
exterior. É assim que o futuro rei germânico Henrique (919-936)
192 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

penetra sem dificuldade no mosteiro onde se encontra a jovem


Matilde, que ele deseja conhecer; vai até ao oratório, onde a
surpreende a ler o saltério e, loucamente apaixonado, leva-a ime-
diatamente para na Saxónia. Uma recolha de milagres conta
que, em Maubeuge, um nobre cavaleiro tinha por hábito visitar
uma cónega; a intervenção miraculosa da santa patrona
Hunegundes levou-o uma primeira vez a renunciar à sua visita.
Depois, quando reincidiu para agradar à sua amante, foi
fulminado pela santa. De notar que não há nenhuma referência
a qualquer punição para a religiosa.
Monjas e cónegas são todas recrutadas na aristocracia, a qual
funda e dota todos os mosteiros. As plebeias, mesmo de con-
dição livre, só têm como recurso servir-lhes de criadas. Tal
afirmação não figura nos textos, mas a contrario, está escrito
uma quantidade de vezes que as jovens nobres afluíam aos
mosteiros. É possível que a sociedade de certas regiões, onde
os critérios de nobreza e de liberdade eram menos estritos do
que na Germânia, se tenha mostrado igualmente menos rigorosa
nos seus exclusivos. Parece-nos todavia confirmado que as
mulheres piedosas de origem "medíocre", para retomar o vocá-
bulo latino, não podiam viver plenamente a sua religião nas
mesmas condições que as nobres.
Uma vocacão particularmente bem enraizada pode então
levá-las a encerrarem-se durante longos anos numa cela de re-
clusa. Se um eremita pode instalar-se no meio das florestas, numa
gruta ou no fundo de um vale retirado, as mulheres, em contra-
partida, não podem isolar-se da mesma maneira; a Igreja e os
poderes estabelecidos apontá-las-iam como desavergonhadas.
E por isso que se tornam reclusas, refugiando-se numa pequena
cela ou numa casinha ligada a uma igreja. Porta, não há; apenas
uma pequena janela permite comunicar com o exterior; é por aí
que a reclusa recebe as oferendas dos que passam, é por lá que
distribui os seus conselhos e os seus encorajamentos. Em certos
casos, uma segunda abertura dá para a igreja e permite seguir o
serviço religioso.
AS FREIRAS 193

Alguns textos — raros — informam-nos sobre a vida destas


mulheres. Quanto ao século IX, um dos mais notáveis,
apresenta-nos Liutbirga, umasaxãde origem modesta; tinha en-
trado para as monjas de Herford e vivia no meio delas, parece
que ao seu serviço; tinha recebido uma educação bastante alar-
gada, mas, sobretudo, manifestava qualidades tais que ultra-
passava de longe as suas companheiras. Uma nobre dama, de
passagem pelo mosteiro, reparou nela e tomou-a na sua
companhia. A jovem Liutbirga ficou desde então junto da sua
família. Um dia, pediu para se tornar reclusa. O bispo de Miinster
abençoou-a solenemente e ela enterrou-se na sua cela. Aí se
ocupava com a oração, a boa palavra e pequenos trabalhos. Par-
ticularmente dotada, manejava cores para tintas. Fazia uma
alimentação frugal, suavizada por vezes por frutos da época. A
sua cela era frequentada mesmo pelos nobres que tinham
necessidade de conselhos. Liutbirga viveu lá cerca de trinta anos.
Houve mais reclusas que reclusos. A proporção é de vinte
para um nas menções que deles são feitas nos necrológios de
Metz. As reclusas não se achavam ao abrigo das críticas lança-
das contra as monjas ou as cónegas. Assim, o abade cisterciense
inglês Aelred de Rievaux, que escreveu no século XII uma car-
ta muito longa à sua irmã reclusa, antes de lhe fornecer princí-
pios para a organização da vida quotidiana e de lhe fazer um
comentário dos textos sagrados de uma grande elevação, apre-
senta com muito humor os excessos de certas reclusas, cati-
vadas pela tagarelice das velhas, esquecidas dos seus deveres
religiosos, apoquentadas pelas alucinações. Observações
análogas, para dizer a verdade, são feitas noutra parte a propósito
dos reclusos.

"Democratização "...

Até ao século XI, houve uma única ordem monástica, a or-


dem beneditina. Na realidade, as abadias eram independentes;
194 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

só Cluníaco tinha operado um vasto reagrupamento sob a au-


toridade do seu abade e integrado na sua ordem alguns priorados
de mulheres, dos quais o mais célebre foi Marcigny (situado no
departamento administrativo de Sona e Loire). A partir do século
XI, criaram-se mais ordens novas, como a de Cister, as dife-
rentes congregações de cónegos regulares do tipo de Prémontré,
as ordens militares e hospitalares. De uma maneira geral,
mostraram-se reticentes para com as mulheres, mas todos tiveram
de ceder perante os pedidos que lhes foram dirigidos. O mo-
naquisino foi profundamente alterado pelas reformas eclesiásti-
cas do século XI e as condições sociais e económicas novas que
criaram um outro clima de recrutamente e de acção. O
monaquisino feminino pôde finalmente exprimir-se, pois as
mulheres de origem não nobre tiveram acesso mais livre à vida
religiosa. Era uma inversão total de perspectiva.
A atitude dos fundadores foi neste aspecto muito variável.
Cister e S. Bernardo foram durante muito tempo hostis a um
recrutamento feminino; finalmente, a abadia borgonhesa de Tart
foi a primeira a reunir cistercienses mulheres e tornou-se a prin-
cipal de um pequeno grupo de mosteiros femininos desta or-
dem. Pelo contrário, Norbert de Prémontré mostrou-se muito
acolhedor: foram construídos "parténons" perto das abadias de
homens, a escassos metros de distância. Eram quase mosteiros
duplos. As religiosas eram chamadas conversas, mas é preciso
não dar a esta palavra o sentido que tinha entre as beneditinas e
as cistercienses, para as quais designa domésticas mantidas à
parte. Aqui o termo refere-se certamente às religiosas desta con-
gregação, cuja origem podia ser nobre mas era a maior parte
das vezes do nível dos cavaleiros e dos oficiais senhoriais. Co-
nhecem-se algumas das suas limitações: cabelos cortados até às
orelhas, roupas de lã ou de pele de carneiro, vestido de tecido
ordinário, proibição de sair, silêncio. Ter-se-ão verificado dez
mil entradas nesta ordem, como foi escrito? Não seria possível
pretender tal coisa, mas o êxito foi rápido. Contudo, foi preciso
refrear o entusiasmo, infelizmente! As dificuldades e as críticas
AS FREIRAS 195

levariam o cabido geral da ordem a condenar esta fórmula e os


parténons desapareceram a pouco e pouco; só um século mais
tarde foram de novo integradas abadias independentes para as
mulheres na congregação de Prémontré, na qualidade de cónegas
regulares.

... "e reacção nobiliária"

Um acolhimento mais caloroso foi reservado às mulheres


por Roberto d'Arbrissel. Este curioso personagem, clérigo mui-
to instruído, de origem bretã, que se tornou já tarde pregador
errante (1096), teve um êxito prodigioso e foi seguido por
muitíssimas mulheres, ricas, pobres, nobres e não nobres,
mulheres casadas e prostitutas. Foi-lhe indispensável organi-
zar esta comunidade que reuniu em Fontevraud (situado no
departamento de Maine e Loire). Ali agregou os homens e as
mulheres, que colocou sob o governo de uma prioresa e, depois,
de uma abadessa. A complementaridade dos trabalhos de uns
e outros tornava esta fórmula muito desejável. Rendido aos
imperativos sociais, Robert pôs os nobres num grande mosteiro
e repartiu os outros por pequenas casas dos arredores. A atitude
de Roberto foi vigorosamente criticada por alguns; é verdade
que ele provocava os sarcasmos. Não tinha ele o costume de
dormir no meio das mulheres para que as privações fossem
mais vivamente sentidas?
O caso de Fontevraud deu origem à seguinte observação: no
século XII, os novos mosteiros de mulheres foram quase
regularmente "recuperados" pela pequena nobreza, à semelhança
dos mais antigos, que tinham sido controlados pela aristocracia
carolíngia. Os catálogos de abadessas, as menções isoladas de
entradas de noviças no claustro atestam-no e isso coloca uma
vez mais o problema do lugar concedido às mulheres na
sociedade medieval. Só uma elite social entrava normalmente
na hierarquia da Igreja. As rústicas, as pobres, acolhidas oca-
sionalmente, eram mantidas numa posição subalterna.
196 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Se o século XII foi o tempo dos cistercienses e dos cónegos


regulares, o século XIII foi o que viu nascer as ordens mendi-
cantes, votadas a um vasto êxito. Os dominicanos (de branco) e
os franciscanos (de castanho) precederam amplamente os car-
melitas e os agostinhos. Mas, ainda antes de a sua ordem estar
constituída, S. Domingos e S. Francisco tiveram de agrupar em
comunidades as piedosas mulheres vindas na sua esteira. Uma
grande figura emerge, Santa Clara, que queria com algumas com-
panheiras realizar o ideal franciscano e foi a primeira abadessa
das "reclusas" de San Damiano. Com efeito, nem as clarissas
(franciscanas) nem as pregadoras (dominicanas) puderam ver-
dadeiramente levar a vida pregada pelos chefes das suas or-
dens; não se podia pensar em que andassem mendigando o seu
pão e pregando, de aldeia em aldeia. Num primeiro tempo,
bastante longo, elas fizeram no convento uma vida análoga à
das monjas e das cónegas. A dependência de um convento femi-
nino relativamente a uma das ordens mendicantes não surgia a
não ser através do seu chefe espiritual, cuja tarefa era aconse-
lhar as religiosas e mantê-las dentro do ideal do fundador.
O problema da regra a seguir colocou-se para as irmãs com
acuidade; vários textos diferentes foram escritos e difundidos,
com um êxito desigual. A solução só chegou, para as domini-
canas, após 1259 e, para as clarissas, após 1236. A tensão provi-
nha muito da carga que representava um convento de mulheres,
peso morto económico: mantidas na clausura, as religiosas de-
pendiam dos elementos masculinos da ordem. A direcção es-
piritual e temporal só com reticência era aceite pelos irmãos. E
esse facto não era exclusivo das ordens mendicantes; tocava
todas as ordens masculinas nas quais uma comunidade de mulhe-
res se encontrava agregada à dos homens. Para os mendicantes,
como no século XII com Cister e Prémontré, o problema foi
resolvido pelo estabelecimento de casas de mulheres indepen-
dentes. O recrutamento conheceu a mesma evolução que nas
ordens antigas: em inúmeras cidades, clarissas e pregadoras
provinham da elite social, sobretudo nobre, por vezes burguesa;
AS FREIRAS 197

mais uma vez, os grupos sociais de condição humilde forneciam


apenas irmãs leigas e criadas.
Mas nem todas as vocações religiosas conduziam ao claus-
tro ou ao convento, à oração e à contemplação. Houve mu-
lheres que acharam maneira de se manter activas levando ao
mesmo tempo uma vida de religião. Com o desenvolvimento
das cidades (séculos X1I-XIII), as maisons-Dieu tornaram-se
muito numerosas: albergues para os peregrinos e viajantes, asi-
los para os pobres, para os doentes, para os enfermos, hospitais,
leprosarias. As irmãs tiveram aí um lugar importante, ao lado
de alguns irmãos e sob a direcção de um "mestre", reencontran-
do nesta ocasião a ideia de comunidade dupla. A sua tarefa era
muito penosa, mas essencial, pontuada por orações simples ditas
com os doentes na sala grande, marcada pela preparação para a
morte e a vida no Além. Aceitando a pobreza e a obediência
juntamente com a castidade, elas viviam uma vida religiosa e
profana ao mesmo tempo. Não eram freiras no sentido em que o
termo é entendido habitualmente, tal como não o eram as
beguinas que se expandiriam pelo norte da França, Lorena e
Alemanha no século XIII.
Muita gente se tem interrogado sobre a génese das begui-
narias, essas instituições ainda hoje visíveis na Bélgica com as
suas pequenas casas alinhadas em volta de um pátio e de uma
igreja. Poder-se-á dizer que essas mulheres eram religiosas lai-
cas? A expressão é em si contraditória. Seja como for, as mu-
lheres não podem ser clérigos, isto é, não podem ser ordenadas,
logo, mantêm-se laicas em certo sentido; mas, ao professarem,
entram na Igreja regular e são desde logo consideradas a par
dos clérigos e dos monges. Pouco a pouco, as beguinas, cuja
piedade provocava o agrupamento, organizaram-se em
comunidades cada vez mais rigorosas, seguiram uma regra e,
como ficou dito, viveram nessas beguinarias cuja disposição
geral não deixa de recordar certos mosteiros. O seu êxito foi
particularmente grande na antiga Lotaríngia, da Flandres a Be-
sançon. Será sensato compará-las com essas Donzelas
198 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

( "Pucelles ") de Metz, organizadas em comunidades a partir do


século XIII? Tal permitiria, como alguns pensam, explicar o
qualificativo de donzela dado a Joana d'Arc. Ou estarão elas
mais próximas das arrependidas, ou das penitentes, daquelas
que se encontram nas "madalenas", assim chamadas porque a
santa patrona era, a maior parte das vezes, Maria Madalena?
No final da Idade Média, a diversidade das religiosas não pára
de crescer; as regras, os costumes, os preceitos multiplicam-se,
diversificam-se. Pouco importava, sem dúvida; a cor das vestes,
o véu, as restrições de alimentação, a liturgia, o ideal distinguiam
mal todas aquelas que constituíam o mundo das freiras e das re-
ligiosas de todas aquelas que, por vias diferentes, renunciavam a
tudo para servir a Deus; pois é certamente essa a definição funda-
mental da religiosa, da freira: ela é uma serva de Deus (ancilla
Dei), a criada e a familiar de Cristo (famula Christi), a que ama o
seu próximo (soror), a que é piedosa (sanctimonialis).
A mulher é impura; diz-se dela que é a criatura do demónio;
é preciso protegê-la dela mesma e evitar as tentações que ela
suscita. Ela só tem duas "carreiras" possíveis, o casamento ou a
vida religiosa e, a partir do século XII, esta é uma outra forma
de casamento, a união com Cristo; a freira é também a sponsa
Christi, a esposa de Cristo. Na realidade, esta alternativa
elementar é aquela que conhecem as famílias nobres e, depois,
as dos patrícios das cidades e dos cavaleiros; em ambos os casos,
era necessário fornecer um dote, mas a Igreja era com frequência
menos exigente. A um nível social inferior, a jovem não casada
não tinha o mesmo problema, pois podia trabalhar, ajudar os
pais, labutar nos campos ou na oficina, estar ao serviço de uma
família rica; se verdadeiramente o queria, entrava para o conven-
to para aí ocupar as mesmas funções subalternas. Mas, a partir
do século XIII, ela pôde — novidade importante — continuar a
viver no século e participar no ideal de uma ordem tornando-se
terciária, ao entrar para aquilo a que se chamou uma terceira
ordem, a dos leigos (sendo a primeira ordem a dos irmãos, a
segunda a das irmãs).
AS FREIRAS 199

O aparecimento destas "terceiras ordens" acessíveis a todos


e a todas permitiu lutar contra o monopólio aristocrático do
recrutamento das freiras e das irmãs. Ela permite-nos também
compreender melhor o problema fundamental das mulheres re-
ligiosas: enquanto umas, as aristocratas, entravam por vezes na
Igreja regular por necessidade social, outras, de origem humil-
de, viviam intensamente o seu ideal fora do claustro e do
convento, ao serviço dos desafortunados. Poder-se-ia pois es-
perar das primeiras uma vocação que nunca tinham sentido?
Será de espantar ainda que as vejamos prontas a olhar para fora,
que encontremos a mulher debaixo do hábito da freira?
Por difícil que seja a análise do fenómeno religioso femini-
no, por contestáveis que sejam certas definições, há factos que
ressaltam com evidência: as reticências da Igreja face às mu-
lheres, a atitude por vezes desconfiada das ordens masculinas,
o abafamento e — perante e contra todos — o impulso femini-
no permanente, a forte procura de belos êxitos devidos a per-
sonalidades notáveis, santas mulheres, piedosas reclusas, abades-
sas de grande classe. Neste plano como noutros, a Idade Média
é de uma extrema riqueza e, ao reter apenas a irmãzinha dos
romances em verso, tenta-se mascarar uma vasta ignorância.

Orientação bibliográfica

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Medieval Women, Oxford, éd. Derek Baker, 1978.

As obras gerais dão referências precisas a artigos e a estudos que


versam sobre cada ordem em particular. Mas será preciso
acrescentar-lhes a literatura recente relativa às mulheres na Idade Média
e nomeadamente o número especial dos Cahiers de Civilisation
Médiévale (1977) ou o estudo de M. Bernards, Speculum Virginum.
Geistigkeit und Seelenleben der Frau im Hochmittelalter, Colónia,
1955.
A vida quotidiana das reclusas
Paulette L'Hermite-Leclercq

Quem não viu no cinema a Nossa Senhora de París de Victor


Hugo? A acção situa-se no final do século XV. Nessa Paris trans-
bordante de vida, ele põe em cena duas personagens estranhas,
próprias para inspirar, como na tragédia antiga, o horror e a
piedade. A primera é Quasímodo; a outra mantém-se por muito
tempo privada de nome e de rosto: é uma mulher, ou o que dela
resta, "esqueleto vivo", vegetando no fundo de um cubículo da
praça de Grève. Na parede exterior, uma divisa latina: "Tu, ora "
("Tu, reza"), convite ao recolhimento que o bom povo, que não
a compreende, leu como "Trou aux rats" ("Buraco de ratos").
Esta mulher é uma reclusa*, o seu alojamento é uma cela de
recluso. Ao longo das páginas, o romancista conta-nos a sua
história: nos tempos da sua mocidade, Paquette La Chantefleu-
rie tinha poucos recursos e vendia os seus encantos em Reims.
O único sol da sua vida era a sua filhinha, que alguns "egíp-
cios", um dia, lhe haviam roubado. Louca de dor, tinha-se en-
caminhado para Paris e vivia desde então nessa "horrível cela"
sem porta, "espécie de elo intermédio da casa e do túmulo, do
cemitério e da cidade".
Terá esta personagem saído directamente dos fantasmas da
imaginação romântica? A existirem reclusas na Idade Média, o
fenómeno não é excepcional? No século XIX, há muito tempo
202 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

que se não conhecem já reclusos e os reclusorios são já difíceis


de encontrar. Mas Victor Hugo, consciencioso, tinha lido os his-
toriadores da velha Paris. Era aí que se lhe havia deparado a
menção de numerosos reclusos parisienses, alojados, se não na
praça de Grèves, pelo menos perto das igrejas, e em particular
perto do cemitério dos Santos Inocentes (o qual, desaparecido
no século XVIII, fora o maior cemitério da imensa Paris me-
dieval — 200 000 habitantes no século XV —). Ora Paris não
constituía uma excepção mórbida. Um registo dos estabele-
cimentos religiosos de Roma, organizado por volta de 1320,
enumera 260 reclusas — nitidamente distintas das religiosas*:
todas mulheres, notemo-lo. De um extremo ao outro do Oci-
dente cristão, encontravam-se reclusas e muitas vezes em
povoações muito modestas, em Valladolid como em Norwich,
em Colónia como em Lião ou Tolosa. Hugo havia sentido que a
sua Paquette "tinha um ar de verdade" na paisagem urbana me-
dieval. Na época, com efeito, a reclusão não era uma curiosidade,
mas uma instituição.
Se se estudou tão pouco a reclusão foi porque, por defi-
nição, os reclusos eram solitários e indigentes. O historiador
considerou-os durante muito tempo como um conjunto abstrac-
to, um agregado de unidades e não uma sociedade humana. Há
sessenta anos, porém, Dom Gougaud consagrara-lhes um estudo
pioneiro. Mas servira-se apenas das fontes "nobres" da reclusão,
interessara-se apenas pelos santos reclusos, os das hagiografías*;
ora sabe-se que os santos são raros. E Dom Gougaud tinha
estudado essa instituição independentemente do seu contexto
histórico; coisa que o encafuara num beco sem saída, pois como
explicar que um belo dia tivesse passado de moda? Ele tinha-se
deixado iludir sobretudo pela semelhança aparente entre o ere-
mita* e o recluso. O eremita pode viver perfeitamente autónomo,
o recluso é o mais dependente dos homens. A não ser que se
creia nas Vidas de santos que nos contam que ele é miraculosa-
mente alimentado por um corvo, é bom de ver que o recluso
solitário não pode existir: ele deve ser tomado pela comunidade
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 203

a seu cargo, deve existir entre ela e ele acordo tácito sobre a
repartição das tarefas. E pois reunindo a documentação mais
vasta, mais variada, que se poderá apreender o nascimento e a
evolução desta forma de vida religiosa, a sua finalidade, a sua
organização, o seu lugar nas estruturas eclesiásticas e nas so-
ciedades que lhe permitiram desabrochar. Deste modo compreen-
deremos melhor por que razão a reclusão é, em larga medida,
uma especialidade feminina.

Despedir-se do mundo
O recluso surge na mesma época que o monge*. No final do
século III e início do século IV, no Egipto, muitos homens e
algumas mulheres seguiram o exemplo de Santo Antão
(aproximadamente 251-356). Aquele a quem chamaram o Pai
dos eremitas era originário de uma família abastada de Mênfis.
Aos vinte anos, ouviu o chamamento de Cristo (Mat. XIX, 21):
"Se queres ser perfeito (...), vende os teus bens e dá-os aos pobres
(...) depois vem e segue-me." Estes homens queriam estar sós
(em grego, monos, de que resultou a palavra monge em
português e, em francês, moine), com o Unico, romper com o
mundo (é o sentido da palavra anacorese*), instalar-se no de-
serto (eremos, "ermo", que deu o seu nome ao eremita), cons-
truir uma cabana ou encerrar-se numa gruta ou num sepulcro
não utilizado como fizeram os primeiros reclusos. A partir do
século IV, porém, é a vida em comunidade (o cenobitismo) que
leva a melhor. Os grandes fundadores, Pacómio, Basílio e em
breve Bento, o "Pai dos monges do Ocidente", não condena-
vam essas formas primitivas de recusa do mundo que haviam
sido o eremitismo* e a reclusão. Seria o mesmo que condenar o
próprio Santo Antão! Só para falar dela, uma vez que se tornou
"a" regra dos monges do Ocidente, a regra de S. Bento redigida
em meados do século VI, afirma mesmo que a solidão radical é
mais perfeita do que a vida em comunidade; mas é contudo mais
difícil, perigosa e inacessível aos que se iniciam. De facto, depois
204 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de Bento como antes dele, alguns "loucos de Deus" tentaram-no


sem de antemão se terem treinado numa comunidade monásti-
ca. Gregório de Tours, o grande historiador do século VI, assi-
nala vários reclusos: Santo Eparco, que Angolema reivindicará
como patrono e que era confirmadamente monge; o jovem
Anatólio, que se tinha feito encerrar com a idade de doze anos e
enlouquecera, não pertencia, em contrapartida, a nenhuma comu-
nidade.
É apenas no segundo milénio que se observa um desenvolvi-
mento espectacular da reclusão. É uma consequência da for-
midável manifestação repentina de eremitismo que reuniu mi-
lhares de homens e de mulheres atrás de alguns líderes fora do
comum. Entre estes, muitos grandes santos dos séculos XI e
XII. As suas diligências continuam a ser as mesmas: abando-
nam tudo e põem-se a pregar a penitência e a imitação dos Após-
tolos. Atraem multidões e organizam nas clareiras novas comu-
nidades muito pobres que se entregam à oração, à ascese e ao
trabalho manual.
Estas conversões ardentes só se explicariam por um conjun-
to de factores demográficos — sabe-se que o "nascimento da
Europa" coincide com um baby-boom —, políticos, económi-
cos, sociais e psicológicos. Assiste-se por toda a parte às mes-
mas transformações: novas repartições dos poderes, remode-
lação dos terrenos agrícolas, expansão do artesanato, do
comércio e das cidades, reorganização das sociedades. As men-
talidades religiosas transformam-se paralelamente, aguilhoa-
das pela reflexão sobre Cristo, Deus feito homem, tão pobre
que "não tinha onde repousar a cabeça" e convidava os homens
a segui-lo. Aos que eram capazes de abandonar tudo nesta ter-
ra, prometia o Reino. Esses grandes pregadores itinerantes, como
Roberto de Xanten, Vital de Savigny ou Roberto d'Arbrissel,
davam o exemplo desse despojamento voluntário. Mas está fora
de dúvida também que atraíam muitos pobres contra a sua von-
tade — as numerosas vítimas das transformações sociais: esses
destroços da vida encontram-se muitas vezes no reclusorio.
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 205

Perante estas mutações, a hierarquia eclesiástica achava-se


dividida entre a esperança e a inquietação: os fermentos espiri-
tuais eram prometedores na condição de serem vigiados. Ela
temia os excessos, os desvios para a imoralidade ou a heresia.
Encorajava pois o enquadramento, a criação de novas ordens.
Foi nesta época que foram fundados os camáldulos, os cartu-
xos, os cistercienses e novas ordens de cónegos* como os pre-
montrenses. A multiplicação dos reclusorios inscreve-se na
mesma vontade de sedentarizacão: é certo que só ofereciam
asilos individuais, mas eram sumários e era possível lá instalar
muitos. Tudo valia mais que deixar esses homens e sobretudo
essas mulheres percorrer as estradas e os bosques. Encontrar-lhes
um abrigo era um primeiro passo.
A imensa maioria dos reclusos era constituída por simples
leigos que haviam passado sem preparação para esta forma de
vida religiosa. É doravante a Igreja secular, e em primeiro lugar
os bispos e as comunidades dos fiéis, quem vai passar a ocupar-se
deles. Os problemas a resolver são numerosos. E preciso en-
contrar um local para o alojamento, prever os custos da sua cons-
trução, da sua manutenção, depois os da alimentação, do ves-
tuário e do aquecimento do seu locatário. O eremita pode viver
de esmolas, da recolha de alimentos, entrever uma ponta de cla-
reira, entrançar cestos e ir vendê-los ao mercado, como já o
faziam os Padres do deserto do Egipto que se dirigiam de tem-
pos a tempos a Alexandria. Em contrapartida, o recluso depende
inteiramente da caridade pública. Tem necessidade de um servi-
dor habitual que o aprovisione e desembarace o local dos seus
excrementos. Se se esquecem dele, morre.
Mas encontra-se de tudo entre os postulantes à reclusão, até
homens de fortuna que mandam construir o cubículo às suas
custas e possuem uma pensão pessoal e um criado. Se o recluso
é pobre como Job, a colectividade toma-o a seu cargo. Os go-
vernos são com frequência protectores de reclusos. Carlos V
manda instalar em Paris uma reclusa de La Rochelle que tem
uma excelente reputação. Manda-lhe construir um "belo oratório
206 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de madeira". As contas régias inglesas mostram que, de um


reinado para outro, os reis concedem rendas a um certo número
de reclusos. Nas cidades, são muitas vezes as autoridades mu-
nicipais que se ocupam deles. Vêem-se os conselhos da cidade
em Limoges, Nímes ou Saint-Flour proceder a um inquério de
moralidade entre os candidatos à reclusão. Uma vez nomeado,
o recluso pertence à cidade; é ela que o alimenta, o veste, paga
as poções se ele está doente, o sudário e os custos das exéquias.
Noutras partes, são os mosteiros ou os cabidos que têm o patro-
nato do reclusorio. É bem conhecido o recluso de S. Pedro de
Westminster, que é um monge da abadia. Mas há vários mostei-
ros lioneses que têm um recluso laico.
Onde se situam os reclusorios? O recluso foge do mundo,
tal como o eremita que se instala muitas vezes na espessura dos
bosques; Tristão e Isolda vão consultar o eremita Ogrin na
floresta de Morois. Mas o recluso tem necessidade dos seus
semelhantes. Por uma razão prática: morreria de fome sem eles.
Por uma razão espiritual: antes mesmo de ser um exemplo e um
símbolo, ele é um instrumento da penitência e da oração colec-
tiva. Recorda a todos que temos que pensar na morte e no Juízo,
dar a esmola que "extingue o pecado como a água extingue o
fogo". O seu sacrifício pessoal deve servir a comunidade in-
teira. Ele não se exclui; pelo contrário, inclui-se. É nos pontos
vitais do espaço urbano que o recluso é mais útil. É conhecido o
terror experimentado pelas cidades medievais perante a ideia
de serem tomadas pela força ou pela argúcia. Elas protegem-se
pois por meio de cinturas de muralha. O recluso assegura, nes-
sas muralhas, uma vigilância espiritual: ele está particularmente
presente nas articulações da couraça, isto é, às portas. Não obs-
tante as pontes levadiças, os fossos, as torres e todo um estendal
de ferrolhos e de fechaduras, as cidades acham-se muitas vezes
à mercê do assaltante ou do traidor que rouba as chaves. No seu
cubículo, materialmente impotente mas vigilante, o recluso pode
fazer milagres e salvar a cidade. Um cronista do final do século
XV conta-nos que foi graças à reclusa de Bavay (Norte da
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 207

França) que os "ferozes capitães" que queriam queimar a igreja


renunciaram a fazê-lo. "Ela suplicou tanto, em nome de Jesus
Cristo, prometendo-lhes rezar todos os dias por eles, que se fo-
ram embora." Nas localidades fluviais, a municipalidade insta-
la muitas vezes sobre um pegão da ponte um reclusorio que tem
o seu lugar no sistema de fortificação: é o que se passa em
Saint-Flour.
Lugar sagrado, o reclusorio está também associado às igre-
jas, aos cemitérios, aos hospitais e às leprosarias, cuja vocação
se mantém, na Idade Média, religiosa ao mesmo tempo que lai-
ca. O recluso morto para o mundo é muitas vezes alojado perto
de um lugar de culto. Mas a localização do reclusorio próximo
da igreja varia muito. Em Veneza, vários reclusos alojam-se sob
os pórticos que precedem frequentemente a entrada do lugar
santo. Em Saint-Omer, é uma das torres da fachada que os abriga.
Em Inglaterra, numerosos reclusorios são dispostos no interior
da própria igreja, no lugar que corresponde ao das capelarias
onde as famílias ricas guardam a memória dos seus mortos. Mas
o mais frequente é ser no exterior dos muros, contra a parte
centra] do edifício e muitas vezes no flanco norte, do lado da
sombra e do frio, no meio dos túmulos, que se encontra o re-
clusorio, que só por si já é um sepulcro. Nesse caso, o local
possui geralmente uma estreita abertura fendida obliquamente
na espessura da parede da igreja, o hagioscópio, graças ao qual
o recluso poderá seguir os ofícios. Algumas das regras para uso
dos reclusos chegam a prever as dimensões do alojamento: 8
pés por 8 segundo um texto do século XII, ou seja, 2,4 por 2,4
metros. As buscas confirmam a exiguidade destas habitações,
tão modestas que são naturalmente designadas por diminutivos:
cellette, logette, maisonnette...
A característica mais impressionante do reclusorio é que já
não tem porta: foi condenada. Já no século IX, a cerimônia de
reclusão dos monges previa que o bispo selasse a fechadura. O
comprometimento do recluso é irreversível; ele pertence, como
diz um texto, à "ordem dos mortos". A sua única saída é do lado
208 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

do céu. Não de imediato, porém, uma vez que ele é tanto um


vivo-morto como um morto-vivo e que a Igreja proíbe o suicí-
dio. Há pois que prever uma pequena abertura para manter a
comunicação com o mundo: é o postigo. Este é munido de barras,
de uma portada e de cortinas negras. Deve ser intransponível.
Em princípio, pois a infeliz reclusa de Ruão, de quem um texto
literário nos conta a história, conseguiu passar... para ir a correr
lançar-se no forno ardente do padeiro vizinho: deixara de ter
vontade de viver.

O refúgio dos infortúnios humanos

A disposição interioré muito despojada. Várias fontes preci-


sam que é ali escavada uma fossa, aquela onde o recluso tomou
lugar quando foi posto na posse da sua "última morada" e onde
será deitado quando da sua morte. Acrescentemos um pequeno
altar, um crucifixo, por vezes a reserva eucarística. O mobiliário
profano reduz-se a um catre, uma mesa, um escabelo. A
bem-aventurada Juette, de Huy (junto ao Mosa), morreu em
1228; a sua biografia informa-nos que o seu reclusorio tinha
dois níveis: Juette mantinha-se em cima, a sua companheira em
baixo. Os locais para duas ou três pessoas não são excepcionais,
ainda que a solidão estrita seja bem de longe a situação mais
corrente. Antes de ir reformar as clarissas* (donzelas de Santa
Clara e ramo feminino da ordem franciscana), Colette de Corby
tinha sido reclusa perto da igreja; possuía três pequenas divisões:
um quarto, um oratório, um parlatorio para receber os visitantes
— noutros locais, quando existe, este reduz-se com frequência
a um guarda-vento. Os reclusos heróicos recusam-se a
aquecer-se, mas as buscas revelam frequentemente a presença
de uma chaminé. Quem se faz recluir? Primeiro, desconfiemos
dos nossos reflexos: hoje em dia só entendemos a vida
consagrada como uma vocação. Na Idade Média, as coisas não
eram tão simples. Houve voluntários numerosos — e muitas
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 209

vezes decepcionados, por falta de lugar — para este género de


vida austera, mas muitos tinham de a adoptar por razões a que
chamaríamos hoje "negativas". O reclusorio acolheu nomeada-
mente prostitutas arrependidas.
O exemplo, também aqui, vinha de longe. A mais sublime
das pecadoras era Maria Madalena, convertida por Cristo, que
a elegera entre todas para manifestar a sua Ressurreição. Não
era porém o reclusorio que ela escolhera para expiar os seus
pecados, mas o eremitério. A lenda fazia-a desembarcar na Pro-
vença com Lázaro, em Saintes-Maries-de-la-Mer, e os seus pas-
sos levaram-na até à gruta da Sainte-Baume, não longe de
Marselha. Em contrapartida, uma outra ilustre cortesã acabara
como reclusa: Thais, cuja lembrança alimenta a imaginação
desde a época dos Padres do deserto até Anatole France que
dela fez a heroína de um romance do qual Jules Massenet tirou
uma ópera. O santo eremita Pafnuce, seu tio, tinha ido tirá-la do
lupanar, convertera-a à penitência e encerrara-a depois. Uma
gravura do final da Idade Média que ilustra a Lenda Aurea —
célebre compilação de Vidas de santos composta no século XIII
— representa-a no limiar da sua guarita, já nimbada mas ainda
vestida com as vestes do mundo.
A Igreja tentava arrancar as prostitutas à luxúria: construíam
-se aqui e além casas de arrependidas, de disciplina toda ela
monástica, que eram aliás tomadas de assalto, pois não basta-
vam à procura. Os reclusorios puderam desempenhar, mais
modestamente, o mesmo papel. E significativo que uma igreja
de Paris consagrada a uma outra destas pecadoras santificadas
pela penitência, Maria, a Egípcia, possuísse um reclusorio
contíguo: era a igreja a que se chamava na Idade Média «la
Jussienne» — deformação de "«1'égypcienne»". Podemos
apostar sem risco que o reclusorio serviu de porto de abrigo a
muitas outras misérias: Jovens sem dote que não podiam por
essa razão encontrar marido nem entrar para o mosteiro, esposas
de padres impiedosamente expulsas do lar conjugai quando
Roma, em 1139, pela primeira vez na história da Igreja, decretou
210 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

que o casamento dos padres era inválido; mulheres abandonadas


pelo marido e substituídas por uma concubina, viúvas sós e sem
recursos nem apoio, ou que guardam uma recordação tão má do
primeiro casamento que preferem encerrar-se para o resto dos
seus dias.
Juette de Huy, por exemplo, filha única de um pai basta-
mente rico, não queria casar-se. Obrigam-na quando tem treze
anos. Sente tal repugnância pelo dever conjugal que deseja ar-
dentemente a morte do marido. Fica viúva aos dezoito anos,
com três crianças, recusa-se indómitamente a voltar a casar e
ocupa-se dos pobres com tamanha generosidade que a família
se inquieta por vê-la dilapidar a herança. Tiram-lhe as crianças
para a chamar á razão. Em breve se dá a arrancada definitiva:
ela abandona tudo e ninguém a retém — podemos até per-
guntar-nos se não a expulsam. Não vai muito longe, para trás
dos muros da cidade, perto do rio, para o local onde vivem os
leprosos, esses rejeitados pela sociedade, totalmente entregues
à sua miséria. Ela cuida deles para expiar os seus pecados; terá
chegado mesmo a desejar ser contaminada pela horrível doença.
Encerra-se finalmente no meio deles, nesse reclusorio que já
descrevemos.
É possível adivinhar quantos infortúnios físicos e morais,
martírios e desgostos o reclusorio deve ter albergado. E tam-
bém é possível compreender por que razão existe uma tal pro-
porção de mulheres entre os reclusos: a vida de eremita é mais
perigosa para elas do que para os homens, e por várias razões.
Por exemplo, porque é raro que elas tenham uma independên-
cia económica e porque a violação é uma ameaça constante. Os
trabalhos recentes sobre a prostituição medieval demonstraram
a frequência das violações colectivas pelos bandos de jovens
solteiros. As prostitutas pensionárias dos lupanares que fazem
parte — como os reclusorios — da paisagem da cidade são mui-
tas vezes recrutadas entre as raparigas que foram vítimas dessas
violações. As jovens nem sequer se acham tranquilas no
reclusorio! A bem-aventurada Wilbirge, de quem voltaremos a
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 211

falar mais adiante, foi por diversas ocasiões perseguida por um


apaixonado. Um dia, ele apoiou uma escada contra a parede do
cubículo para passar pelo tecto. Felizmente, a Virgem velava;
uma trave parte-se e o homem quebra os ossos. Muitas mu-
lheres são maltratadas e abandonadas nestas sociedades medie-
vais. Como, por outro lado, a sua vocação é a submissão e o seu
lugar é em casa, o reclusorio satisfaz exigências fundamentais:
é um mundo tão fechado, tão "privado", que já não tem porta e
que dele se não sai nunca — um oratório e um asilo. Daí o
estatuto particular que a Igreja deu a este género de vida.
Os reclusos dependem pois da autoridade eclesiástica se-
cular: o bispo e já não o abade. É ela que define o estado do
recluso, que prevê as modalidades de acesso a esse estado e que
regulamenta a sua organização. Uma liturgia nova vem
adaptar-se-lhe. No século XII, as recolhas de que se servem os
bispos para a ordenação das cerimônias — chamam-se os pon-
tificais — vêem aparecer vários rituais novos, nomeadamente
— e ao mesmo tempo, não se trata de um acaso — aquele que
prevê o encerramento solene do recluso e o corte dos leprosos
com a comunidade dos vivos. Estes rituais foram bem conser-
vados em Inglaterra e em França, mas é difícil determinar se
foram utilizados por toda a parte.
Todos os rituais exprimem a mesma solenidade: o
comprometimento é irreversível. Estamos decerto perante aqui-
lo a que os etnólogos chamam um "rito de passagem". Mas de
que passagem se trata? É toda a originalidade do encerramento
do recluso: corresponde a um rito fúnebre. Vários dos rituais
conservados retomam a liturgia dos defuntos. O pontifical de
Exeter, por exemplo, estipula que o candidato seja recebido
solenemente à entrada da igreja por todo o clero paramentado
com ornamentos sacerdotais e conduzido diante do altar onde
assiste, prostrado, à cerimónia: missa de defuntos, absolvição
geral, extrema-unção. No fim do ofício, o recluso volta a
erguer-se e o bispo, seguido por todo o clero e pelo povo em
cortejo cantando salmos, condu-lo ao reclusorio enquanto os
212 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

sinos dobram a finados. O bispo benze as paredes, o recluso


deita-se no seu túmulo e o prelado lança sobre ele um pouco de
terra: "Que os anjos te conduzam ao céu." O bispo sai e mura a
porta.
A reclusão assinala pois a passagem a uma forma de vida
consagrada, mas está em oposição aos votos pronunciados pelo
monge. O voto de religião é assimilado a um segundo baptis-
mo: é um segundo nascimento na graça, enquanto que, no rito
de reclusão, a Igreja exalta a morte para o mundo como nunca
antes o houvera feito. Assistimos a uma verdadeira condenação
à morte simbólica, mas este "como se" da morte é um jogo tur-
vo, para não dizer transgressivo. É que, finalmente, o recluso,
deitado na sua tumba, levanta-se de imediato, reconduzido à
sorte comum: resta-lhe viver a sua vida e a sua morte — a
verdadeira, que está no futuro e não no passado. Observemos
ainda que esta quase-morte convém particularmente à represen-
tação que essas sociedades têm da mulher. Porque ela fabrica a
vida, tem pacto com a morte: é a mulher que se encarrega de
vestir os mortos. Eva é reponsável pela condição mortal da es-
pécie humana, mas foi uma mulher que trouxe em si o Reden-
tor: na matriz obscura de um reclusorio, a mulher pode trans-
mutar a morte em vida, as lágrimas podem brotar em chuva
fecundante.
Qual é então o dever de um recluso, concretamente, no dia-a-
-dia? Vimos que o reclusorio era um dos elementos mais fami-
liares da paisagem urbana medieval; é preciso toda a imaginação
romântica de um Victor Hugo para a transformar em objecto de
horror e de assombro. A documentação de que dispomos
fornece-nos três retratos-robô: o recluso-herói, o anti-herói e,
finalmente, o recluso "mediano", sem dúvida o mais próximo
da realidade.
A hagiografía e as regras destinadas aos reclusos impõem
uma imagem heróica do reclusorio. Também o monge deve "ser
crucificado com Cristo", mas a reclusão, como vimos, é consi-
derada uma forma superior de monaquismo*. O recluso modelo
interiorizou tão bem a metáfora da morte que, no crivo tempo-
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 213

ral entre a morte desempenhada e a morte vivida, não tem outra


vocação que não seja sofrer. O seu tempo de reclusão é uma
Paixão. Espaço fechado, murado: a exiguidade do local é vo-
luntariamente procurada como instrumento de sofrimento. Tam-
bém aqui, a tradição é antiga; numerosos Padres do deserto ti-
nham imposto a si mesmos viver em cavidades de rochedos onde
não podiam nem estar de pé nem deitados. Ainda como eles, os
santos reclusos industriam-se no castigo do corpo; munidos de
todo um arsenal de cadeias, de chapas, de couraças, acrescen-
tam um invólucro suplementar a essa encaixotagem concêntri-
ca no meio da qual arde a alma incorruptível. A carne faminta,
comprimida, rebentada, apodrecida, deve favorecer a libertação
do espírito. Jejuns, vigílias, prostrações, macerações não têm
outro objectivo. "Ave nocturna num buraco de muralha", no
seu reclusório-prisão ou túmulo, vemo-lo comido pelos vermes
e rodeado pelos animais da sombra e da terra — figuras do
demónio que Deus autoriza a pôr à prova a constância do herói.
Não há santo reclusorio sem serpentes e sem sapos. A
bem-aventurada Wilbirge, reclusa da Alta Áustria no século XIII,
cometeu o pecado de sentir vontade de comer carne: trazem-lha,
mas quando ela quer prová-la encontra sapos no prato. Uma
outra vez, uma vizinha má deu-lhe alimentos envenenados: ela
vomitou rãs vivas. Quando se prostra por terra para a oração,
serpentes fervilham de encontro ao seu ventre. E de duvidar
que o recluso ideal triunfe de todas estas provações. O que o
salva é que ele se acha certo de que o seu sofrimento é meritório
e lhe valerá as recompensas celestes.
De repente, os sinais invertem-se: a prisão torna-se um paraí-
so, a porta do céu; o túmulo, um berço onde germina o grão de
imortalidade bem-aventurada. Âncora do navio da Igreja, o re-
clusorio é um acumulador de graças para a colectividade intei-
ra, aqui na Terra e no Além. Esses santos reclusos saídos do
imaginário dos clérigos e dos documentos hagiográficos podem
ter existido. Pouca semelhança têm, porém, com a Paquette de
Victor Hugo, que não é uma atleta da maceração. Ela não vive
214 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nem de fé nem de esperança e não dá sentido aos seus so-


frimentos. Vítima do destino e dos homens, ela remói a oração,
sem Deus para a escutar e converter em flor eterna das Verdes
Pastagens. As fontes medievais oferecem também a imagem
inversa: a crer nas regras destinadas aos reclusos, há preguiçosos
inveterados do reclusorio, falsas vocações que desonram a con-
fraria. O grande abade cisterciense do século XII, Aelred de
Rielvaux, escreve uma Vida de Reclusa para a sua irmã, uma
santa jovem; mas as outras! Têm todos os defeitos. A distância
que separa o bem do mal reduz-se assim ao espaço compreendi-
do entre o oratório e o postigo: pouco mais ou menos metro e
meio. A boa reclusa mantém-se de joelhos, em contemplação
diante do crucifixo; a má passa os seus dias à janela, chama
quem passa, estica os braços e dá-os a tocar, abraça as crianças,
tagarela, informa-se dos últimos mexericos. Pode adivinhar-se
o que se segue.
Um dia, encontra meio de mandar alargar a abertura que dá
para o mundo e introduz um amante. "Ei-la grávida" — diz
Aelred. Se é demasiado velha, serve de alcoviteira. Avarenta,
ocupada em fazer frutificar o seu pecúlio, preguiçosa,
provocante, muito mais ligada às cores com que decorou o seu
alojamento do que às recompensas futuras, hipócrita — de
ouvido à escuta, quando ouve passos na rua, põe-se a resmonear
as suas orações: quer que a admirem e fica decepcionada se os
passos se afastam. Terá esta reclusa "mundana" existido sem
ser na imaginação misógina dos homens da Igreja?
Houve sem dúvida reclusas indignas: em Limoges, a piedo-
sa viúva que se tinha feito encerrar no início do século XVI
logo pede para sair: encontra-se aterrorizada pelas tentações
diabólicas que a assaltam todas as noites. O conselho da cidade,
muito embaraçado, tenta em vão chamá-la à razão. Mas teme
um resultado fatal — suicídio ou loucura. É o patrono do re-
clusorio: abre a porta. Uma outra viúva é instalada, mas morre
pouco tempo depois. E, sabiamente, a primeira retoma o seu
lugar: teria má-consciência? Tê-la-ia a Igreja persuadido da
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 215

gravidade da sua renuncia? Ter-se-ia curado dos seus terrores?


Não sabemos. Em Lião, um recluso dá azo a murmurios. Obteve
maneira de sair de tempos a tempos, mas aproveita para falar a
mulheres: se persistir, será expulso do seu reclusorio, o qual
desonra. Apercebemo-nos aqui daquilo a que chegou a lógica
da instituição: o reclusorio tornou-se um benefício eclesiástico
invejado, com pensão e alojamento de cargo. No total, que ideia
se há-de fazer da imensa maioria dos reclusos na Idade Média,
por exemplo, dessas 260 reclusas romanas de 1320, das quais
nenhuma mereceu as honras da canonização nem forneceu ma-
terial para escândalo, em suma, nem anjos nem demónios?
O que nos parece é que o recluso vulgar não ultrapassava as
qualidades de um bom funcionário municipal encarregado da
oração. Muitos deles só conheciam aliás o Pai Nosso e a Avé
Maria e, quando não sabiam ler como os reclusos sábios o sal-
tério ou os ofícios, repetiam indefinidamente as mesmas orações.
Não se lhes podia exigir mais. E preciso crer que a privação de-
finitiva da liberdade de movimentos em princípio, de todas as
alegrias profanas da vida, era um sacrifício suficiente para obri-
gar ao reconhecimento das populações, na falta da veneração
que suscitavam os grandes reclusos, os que faziam milagres e
profetizavam. O recluso vulgar, se não era suspeito de glutonaria
ou de desejos luxuriosos, podia já prestar bastantes serviços:
distribuir conselhos e consolações, rezar por todos ou por cada
um em particular, aliviar a fome dos enxames de crianças que
se acotovelavam ao postigo, e até — se bem que a regra o proi-
bisse — "ensinar as letras", quando as conhecia!
Se os reclusos se encontram tão bem integrados na socie-
dade, por que razão desaparecem progressivamente no final do
século XV e no início do século XVI? Seria superficial dizer
que a instituição teve o seu tempo e ingénuo supor que bastou
passar da Idade Média ao Renascimento. Podemos avançar várias
explicações: a Igreja nunca aceitara sem reticências esse géne-
ro de vida. Ela conhecia as advertências da Escritura — "Ai do
homem só!" —, bem como a de Aristóteles ou de S. Bento! O
216 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

biógrafo de Juette de Huy assinala-nos incidentalmente que o


bispo de Liège queria deixar de encerrar reclusos: já havia de-
masiados. No século XVII, uma das últimas reclusas de que há
conhecimento, Jeanne de Cambry, teve de esperar pacientemente
durante cinco anos.
Mas as razões não eram só de ordem doutrinal. Os séculos
XIV e XV foram conturbados em todo o Ocidente: guerras —
particularmente a Guerra dos Cem Anos entre a França e a In-
glaterra —, epidemias de peste, marasmo da Igreja provocado
pelo Grande Cisma. Estes "infortúnios dos tempos" conseguiram
pôr em desordem as situações anteriores. Em França, por exem-
plo, as necessidades da guerra obrigaram a maior parte das ci-
dades a arrasar bairros inteiros para melhorar o valor defensivo
das cinturas de muralha: certamente nessa altura desapareceram
reclusorios. Na segunda metade do século XV, com a "Re-
construção", reedificaram-se, alargaram-se as igrejas: de novo,
pode ter sido às custas dos reclusorios. Sabe-se também que,
desde o século XIV em diante, por toda a Europa há queixas em
relação a todos os que não trabalham, "inúteis ao mundo": não
irão os reclusos passar por parasitas? Fosse como fosse,
constata-se com frequência que antigas reclusarias se reconver-
tem em mosteiros, em escolas, em hospitais, em sacristias.
Pode invocar-se uma outra razão, esta de ordem j urídica. Com
efeito, a reclusão, concebida como um castigo, desenvolve-se; a
Inquisição utilizou a prisão peipétua contra os hereges e, no final
do século XV, os governos civis intrometem-se — uma das últi-
mas reclusas do cemitério dos Inocentes de Paris encontra-se aí
por ter assassinado o marido. Reticências da Igreja, redisposição
da paisagem urbana, evolução do direito: todos estes factores
parecem ter-se encaminhado no mesmo sentido.
E surpreendente, em todo o caso, constatar que o encerra-
mento pelas autoridades dos loucos, dos vagabundos e dos
desocupados, que Michel Foucault estudou, coincide com a ex-
tinção do encerramento voluntário e que a palavra reclusão deixa
de pertencer ao campo do religioso para se agregar ao do jurídico.
A VIDA QUOTIDIANA DAS RECLUSAS 217

Para nós, hoje, a reclusão já não é um estado de perfeição, é


uma pena infligida pelo legislador.

Léxico

ANACORESE: do grego anachoreirt, retirar-se, fazer um retiro.


Primeira forma do monaquismo cristão. O anacoreta deixa o mundo
para seguir Cristo. O fenómeno começa por ser egípcio, e é depois
imitado nos desertos da Siria-Palestina. O termo conservou-se no in-
glês arcaico: ancren, anchoress, que designa muitas vezes as reclusas.

CENOBITISMO: do grego coinobios, que vive em comunidade. É


o agrupamento dos voluntários de secessão. Eles acham-se separados
do mundo exterior pela clausura e obedecem ao abade e à regra. A
primeira é a de S. Pacómio, contemporâneo de Santo Antão.

CÓNEGO: do grego canon, regra. Os cónegos (canonici) têm um


estatuto religioso intermédio entre os monges (como eles, seguem uma
regra) e os clérigos (não se separam dos leigos e celebram os ofícios).

EREMITA; EREMITISMO: do grego eremos, ermo, o deserto. Tem


o mesmo sentido que anacoreta, com a diferença de que aqui é a for-
mação geográfica que designa o solitário.

HAGIOGRAFIA: do grego hagios, sagrado, e graphein, escrever.


A hagiografía é um género literário e religioso adoptado pelos bió-
grafos dos santos, isto é, daqueles que, na Igreja cristã, atingiram um
elevado grau de perfeição e mereceram um culto público.

MONGE, MONAQUISMO: do grego monos, só. Na origem, o ter-


mo é utilizado tanto para os eremitas como para os cenobitas. Mas o
poder do cenobitismo (ligado nomeadamente ao triunfo da regra de
S. Bento) explica que as mais das vezes o monaquismo designe uma
instituição de tipo comunitário.

RECLUSO: termo mais corrente para designar aquele que se faz


encerrar (em latim reclusus, inclusus).
218 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

RELIGIOSA OU MONJA (moniale): equivalente feminino do


monge. Sendo a vida eremítica mais perigosa para as mulheres, as comu-
nidades femininas foram precoces, muitas vezes geminadas com os
mosteiros de homens.

Orientação bibliográfica

Dictionnaire d'Archéologie Chrétienne et de Liturgie, t. 14, 2.°


parte (1948), art. "Reclus", col. 2149-2159.
Dictionnaire de Spiritualité, t. 4 (1960), art. "Érémitisme", col.
936-982.
Dom L. Gougaud, Ermites et Reclus. Etudes sur d'anciennes formes
de la vie religieuse, Ligugé, 1925.
M. C. Guigue, Recherches sur les recluseries de Lyon, Lião, 1887.
P. L Hermite-Leclercq, "Reclus et recluses dans le Sud-Ouest de la
France", Cahiers de Fanjeaux, n.° 23, 1988 (dedicado à mulher na
vida religiosa do Linguadoque).
A. K.. Warren, Anchorites and their Patrons, University of Califor-
nia Press, Berkeley, Los Angeles, Londres, 1985.
Santas e anoréxicas:
o misticismo em questão
Michel Lawers

Em 1989 abriu-se o inquério preliminar ao processo de


beatificação de Marthe Robin. É sem dúvida a razão pela qual
florescem hoje em dia as biografias "empenhadas" que a cele-
bram1.
Foi em 1928 que Marthe Robin, filha de modestos agricul-
tores, com vinte seis anos de idade, foi atingida por uma miste-
riosa doença e caiu de cama. Pouco depois apareceram no seu
corpo os estigmas de Cristo: a coroa de espinhos e a chaga no
flanco. Desde então, até à sua morte ocorrida em 1981, Marthe
Robin não voltou a deixar o leito. Achava-se paralisada, vivia
na obscuridade e participava todas as semanas na paixão de
Cristo, cujas dores sentia, perdia sangue e conhecia o êxtase.
Durante mais de meio-século, Marthe Robin não comeu nem
bebeu fosse o que fosse: à parte a eucaristia, era-lhe impossível
ingerir alimento ou bebida.
Este jejum total, tal como o da sua contemporânea Teresa
Neumann na Alemanha, parece-nos hoje surpreendente. Houve
contudo uma época em que semelhantes abstinências não eram
casos isolados ou excepcionais, mas constituíam quase práticas
sociais. Assim, nos séculos IV e V, havia eremitas que se tinham
retirado para o deserto para viver na ascese e na privação. Os
220 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

seus jejuns repetidos tinham contudo sido sempre de curta


duração. E a Igreja medieval pregou seguidamente uma certa
moderação nas práticas de abstinência, cingindo-se a recomendar
o jejum periódico tanto para os fiéis como para os monges.
Foi a partir do final do século XII que a prática do jejum
tomou nova direcção: numerosíssimas mulheres, muitas vezes
leigas, desejosas de levar uma vida perfeita, fizeram então da
privação de alimentos, por vezes total, um dos elementos essen-
ciais da sua experiência espiritual. Várias de entre elas foram
reconhecidas santas após a sua morte e a narrativa da sua vida
foi posta por escrito.
Estas mulheres mais não faziam a princípio do que observar
com grande rigor os períodos de abstinência previstos pela Igreja.
Passaram depois a prolongá-los, empreendendo jejuns estendi-
dos por vários anos. Muitas baniam completamente da sua ali-
mentação a carne e o vinho; alimentavam-se apenas de pão, de
frutos silvestres e de ervas. Algumas chegavam a rejeitar tudo o
que fosse cozido, aceitando apenas alimentos crus. Não obstante
as pressões dos seus próximos, que as forçavam a alimentar-se,
a sua abstinência tornava-se cada vez mais radical.
Marie d'Oignies, morta em 1213, foi uma das primeiras
penitentes a ser objecto de uma biografia, redigida pelo seu
confessor, um pregador formado em Paris, que viria a ser bis-
po e depois cardeal, Jacques de Vitry: "Durante muito tempo
ela comeu um pão muito escuro e muito duro, que nem os cães
queriam. Também o interior da sua boca era abençoado, em
razão desse amargor e dessa dureza excessiva" — escreve ele.
No fim da sua vida, já não podia absorver nenhum alimento e
até o cheiro do pão lhe dava vómitos. O confessor de Lut-
garde, piedosa mulher da diocese de Liège morta em 1246,
conta igualmente que, "forçada muitas vezes pela obediência,
ela tentava introduzir na sua boca um pouco de carne. Mas
nada maior que uma fava lhe conseguia passar pela garganta."
As privações conduziam por vezes as santas mulheres à morte.
Após o falecimento de Marie d'Oignies, os seus restos mor-
SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM QUESTÃO 221

tais foram encontrados "tão emaciados e reduzidos pela doença


e os jejuns que a espinha dorsal tocava no ventre; como sob
um pequeno véu de linho, sob a delgada pele do ventre, apa-
recia a ossatura das costas".
Um dos casos mais célebres foi sem dúvida o de Catarina de
Sena (Siena), morta em 1380. A partir dos dezasseis anos, pra-
ticamente não se alimentou mais. Depois de ter perdido rapi-
damente metade do peso, deixou de poder engolir fosse o que
fosse, apesar da insistência dos que a rodeavam. Segundo um
contemporâneo, "a fim de evitar dar lugar ao escândalo, ela
tomava por vezes um pouco de salada ou um pouco de outros
vegetais crus ou de frutos e mastigava-os, e depois virava-se
para os deitar fora. E, se chegava a engolir uma parcela mínima,
o estômago não lhe dava repouso enquanto não vomitasse." Nos
últimos séculos da Idade Média, são às dezenas as narrativas
deste género que se contam. Jacques de Vitry afirma que na
diocese de Liège era possível na época ver numerosas mulheres
"enlanguescendo de desejo" por Deus, "não podendo levantar-se
do leito durante muitos anos", vivendo unicamente da hóstia.
Era também o caso de Alpais de Cudot, morta em 1210, na
Borgonha, que passou a sua vida de cama, sem receber outro
alimento a não ser a comunhão dominical.
O historiador americano Rudolph M. Bell demonstrou
recentemente que as santas penitentes da Idade Média mani-
festavam todos os sintomas da anorexia mental tal como a de-
finem hoje os médicos2. Esta explicação pela patologia tem, evi-
dentemente, as suas limitações. Permite todavia compreender
melhor por que razão, a partir do século XIII, semelhantes ca-
sos se tenham multiplicado. Estas mulheres que se recusaram a
alimentar-se a ponto de morrer eram ou adolescentes em re-
volta contra os pais, como Clara de Assis, morta em 1253, e
( atarina de Sena3, ou mulheres casadas, ou ainda mães desejo-
sas de abandonar a vida conjugal ou familiar, como Marie
<1 'Oignies, Margarida de Cortona, que morreu em 1297, e Ângela
de Foligno, morta em 1309.
222 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

A maior parte das penitentes do final da Idade Média aspira-


vam com efeito a uma certa autonomia que a sociedade da época
não lhes concedia. Recusavam o casamento, mas recusavam
igualmente o claustro; queriam, fazendo uma vida religiosa,
manter-se ao mesmo tempo leigas e viver no mundo. As autori-
dades eclesiásticas, que assim não entendiam, esforçaram-se por
reunir as penitentes em beguinarias ou levá-las a integrarem-se
nas ordens religiosas. A "santa anorexia" tornava-se então para
essas mulheres a única maneira de se subtraírem à autoridade e
ao controlo dos homens, fossem eles os pais, os maridos ou os
padres. Podiam assim definir e afirmar a sua identidade e a sua
relação com Deus. Catarina de Sena afirmava: "Devo obede-
cer a Deus, e não aos homens."
A historiadora Caroline W. Bynum chamou a atenção para o
facto de as privações alimentares que as penitentes impunham a
si mesmas na Idade Média não poderem ser dissociadas das
outras manifestações da sua piedade e da sua santidade, em par-
ticular a sua devoção ao corpo de Cristo4, os milagres eucarísti-
cos de que beneficiavam5 e as distribuições de alimentos feitas
aos pobres, todas elas práticas ligadas à nutrição, realidade que
as mulheres conheciam bem6. Elas não controlavam nem o po-
der, nem o dinheiro, nem o sexo, como sucedia com os homens,
mas a alimentação e a sua preparação eram domínios que lhes
eram próprios, recursos que elas dominavam e com os quais
souberam jogar. O jejum podia ser um meio de pressão eficaz
— talvez o único — sobre a família, assim como a devoção
eucarística podia ser um meio de pressão sobre os eclesiásticos.
E, ao recusar todo o alimento com excepção do corpo de
Cristo, elas tornavam-se came sofredora como Cristo o havia
sido. Várias santas foram aliás marcadas com os estigmas, as-
sociando com essas práticas de ascese o seu corpo martirizado
ao de Cristo. Das feridas de Marie d'Oignies "corria sangue,
um sangue que a recordação de Cristo lhe tornava doce. Pelos
ferimentos de Cristo, os seus ferimentos eram mitigados e pela
SANTAS E ANORÉXICAS: O MISTICISMO EM QUESTÃO 223

suavidade do pão celeste, a austeridade do pão rugoso era dul-


cificada." Do corpo das santas mulheres, da sua boca, do seu
peito, dos seus dedos escapava-se sangue, mas também, por mila-
gre, perfumes, óleo e leite. Elas transformavam o seu corpo de
santa em alimento, tal como tinha sucedido com o de Cristo.
"Quero morrer de fome para saciar os pobres" — dizia Marga-
rida de Cortona. Tratava-se de uma forma de imitado Christi,
uma "imitação de Cristo" tipicamente feminina.
Entre o fim do século XII e o século XV, as funções sociais
reconhecidas às mulheres serviram pois de modelo às devoções
femininas. As penitentes transformavam em sinais divinos a sua
experiência ordinária e quotidiana. Deste ponto de vista, as práti-
cas de abstinência das "santas anoréxicas" diferiam da ascese
vivida pelos Padres do deserto; mas sem dúvida também, num
contexto diferente, estavam bastante afastadas, não obstante um
modelo comum e de impressionantes semelhanças, da vida de
uma Marthe Robin.

Notas

' Para citar apenas uma das últimas: Jean-Jacques Antier, Marthe
Robin. Le voyage immobiie, Paris, Perrin, 1991.
2
Rudolph M. Bell, L'Anorexie Sainte: jeüne et mysticisme du
Moyen Age à nos jours. Paris, PUF, 1994. Cf. também Ginette Raim-
bault e Caroline Éliacheff, Les Indomptabies. Figures de 1'anorexie,
Paris, O. Jacob, 1989.
3
A questão das "resistências" familiares às vocações religiosas
durante a Idade Média acaba de ser estudada por Alessandro Barbero,
I In santo in Famiglia. Vocazione religiosa e resísteme sbciali nell,
agiographia latina medievale, Turim, Rosenberg e Sellier, 1991.
4
Cf. Miri Rubin, Corpus Christi. The Eucharist in Late Medieval
('iilture, Cambridge University Press, 1991.
5
Algumas recebiam a comunhão das mãos de um anjo ou de uma
pomba, outras viam aparecer o menino Jesus na hóstia.
6
Caroline W. Bynum, Jeiines et Festins Sacres. Les femmes et la
nourriture dans la spiritualité médiévale, Paris, Le Cerf, 1994.
4. A ORDEM DOS IRMÃOS
PREGADORES E A
ORDEM DOS IRMÃOS
MENORES
As ordens mendicantes
Jacques Le Goff

A inscrição no espaço de uma manifestação religiosa ou,


com mais forte razão, de uma instituição religiosa é rica de sen-
tido. Arvores ou fontes sagradas, postes totémicos, templos, igre-
jas não se situam em qualquer parte. A sua implantação releva
de uma relação dupla, com o divino e com o terreno, com o
sagrado e com o social. Aqui, a topografia, como acontece com
frequência, mais que de comodidade natural, é suporte de
significação simbólica. As ordens religiosas cristãs não fugiram
a esta ligação reveladora com a geografia: situação e localização.
Um dístico que se tornou proverbial a seguir à Idade Média
declarava:

Bernardus valles, montes Benedictus amabat,


Oppida Franciscus, celebres Dominicus urbes.
«Bernardo amava os vales, Bento as montanhas,
Francisco as povoações, Domingos as cidades populosas.»

Assim eram sublinhados, por um lado a ligação do mona-


quismo antigo ou novo, beneditino e cisterciense, com a nature-
za e a solidão, por outro lado a dos irmãos mendicantes, fran-
ciscanos e dominicanos, que não são monges, com as cidades e
os homens que as habitam.
228 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Os pecados da cidade

Porquê esta atracção pelas cidades por parte das novas or-
dens? Na viragem do século XII para o século XIII, o grande
movimento de urbanização iniciado no século XI abarca, com
alguns desníveis, toda a Europa da cristandade latina: o norte de
França, a Flandres, a Renânia, o norte e o centro da Itália vão à
frente, mas da Escandinávia à Península Ibérica, da Inglaterra à
Polónia, um novo mundo urbano se afirma através dos novos
valores e dos comportamentos, do gosto pelas trocas, comerciais
ou intelectuais, do preço do trabalho, do tempo e do dinheiro
mais justamente calculado, da procura da segurança e do conforto
em novos códigos de habitação, de alimentação e de vestuário,
de novas formas de sociabilidade mais igualitárias, tais como a
corporação ou a confraria. A palavra que está na moda é univer-
sitas, que designa o conjunto dos cidadãos da cidade, dos homens
de um ofício e, nomeadamente, do novo ofício intelectual que
aparece nas escolas urbanas. Mas esses homens e essas mulheres
urbanizam-se sem se aperfeiçoarem. São entes duplamente
pecadores: aos pecados tradicionais do mundo rural e senhorial
donde vêm — orgulho e inveja — acrescentam-se os pecados
próprios da cidade — a cupidez (a avaritia, que destrona a su-
perbia da liderança dos sete pecados capitais) e as formas novas
da gula e da luxúria, neste universo de grande farra e de
prostituição. A cidade é pagã, há que convertê-la.
Pior ainda: a cidade é muitas vezes herética; a vaga das con-
testações heterodoxas, das quais as dos valdenses e dos cátaros
são as mais evidentes e as mais numerosas, ameaça o cristianis-
mo oficial. O clero secular, insuficiente em número, instrução e
bons costumes, o monaquismo dominado pelo desprezo pelo
mundo (contemptus mundi), a ideologia da solidão e a absorção
no contexto feudal são impotentes. A nova sociedade urbana
precisa de um apostolado novo. Esses novos apóstolos serão os
irmãos mendicantes. Mas antes de se instalarem nas cidades, as
novas ordens tiveram sérios problemas a resolver. Tendo be-
AS ORDENS MENDICANTES 229

As ordens mendicantes

As ordens mendicantes surgem no século XIII. Receberam essa


designação desde essa época porque a sua maneira de subsistir
pelo peditório e não pela recepção de dízimos e de proventos de
tipo feudal impressionaram os contemporâneos. A mendicidade
— que eles praticam de uma maneira diferente dos "verdadeiros"
mendigos — é um "valor" e um comportamento discutidos no
século XIII. As duas principais ordens mendicantes são a ordem
dos irmãos pregadores (comummente chamados hoje dominica-
nos e, na França medieval, jacobins por causa do nome do seu
convento, Saint-Jacques, de Paris), fundada pelo espanhol
Domingos de Calaruega (ap. 1170-1221, canonizado em 1233) e
a ordem dos irmãos menores (comummente chamados hoje fran-
ciscanos e, na França medieval, cordeliers por causa do grosso
cinto de corda da sua túnica), fundado pelo italiano Francisco de
Assis (1181-1226, canonizado em 1228).
Os mendicantes não são monjes, mas irmãos que vivem entre
os homens e não na solidão. Tendo o quarto concílio de Latrâo
(1215) proibido a formação de ordens que observassem novas re-
gras, os dominicanos adoptaram a regra dita de Santo Agostinho e
apresentaram-se pois canonicamente como cónegos regulares. Em
virtude de uma ficção segundo a qual S. Francisco teria apresenta-
do à Santa Sé um projecto de regra anteriormente a Latrâo IV, os
franciscanos tiveram em 1223 uma regra redigida por Francisco
de Assis após um primeiro projecto recusado em 1221 pela cúria
romana. As duas ordens são dirigidas por um cabido geral que se
reúne de três em três anos e elege um mestre gera\ no caso dos
dominicanos e um ministro geral no dos franciscanos.
Outras ordens adoptaram no decorrer do século XIII o modelo
mendicante mas o segundo concílio de Lião em 1274 deixou sub-
sistir apenas quatro ordens mendicantes: os pregadores, os meno-
res, os carmelitas (Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do
Monte Carmelo), reconhecidos em 1247, e os agostinhos (eremi-
las de Santo Agostinho), formados pela reunião de diversos gru-
pos eremíticos em 1243 e em 1256.
230 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

neficiado desde muito cedo do apoio da cúria romana e dos


príncipes laicos — Branca de Castela e S. Luís, por exemplo,
favoreceram-nos muito —, foram com muita frequência
sustentados pelos bispos e puderam, no conjunto, triunfar com
bastante facilidade sobre a hostilidade do clero paroquial que
via neles — com justa razão — concorrentes.
Contudo, era preciso encontrar um local para construir os
seus conventos e as suas igrejas, arranjar os meios para construir
esses edifícios, assegurar os recursos necessários para viver,
manter os conventos, desempenhar o papel tradicional dos mem-
bros da Igreja face aos pobres e aos necessitados. Embora os
testemunhos formais sobre o estudo preliminar destas condições
só sejam precisos em relação à Baixa Idade Média, é possível, a
partir dos processos e das demoras da fundação dos conventos
e dos mapas desses conventos, concluir que o estabelecimento
dos mendicantes nas cidades foi cuidadosamente planificado.
Dominicanos e franciscanos constituíram, quase ao mesmo
tempo, as suas redes, com a diferença de que os dominicanos
preferiam estabelecer conventos bastante grandes em cidades
bastante importantes, ao passo que os franciscanos estavam
desejosos de instalar também conventos mais pequenos em
aglomerações urbanas mais modestas.
As outras ordens mendicantes mais tardias alojaram-se
sobretudo nos interstícios deixados livres pelas duas grandes
ordens e nas cidades mais importantes que podiam tolerar a ins-
talação de mais de dois conventos mendicantes. Antes de 1294,
as grandes cidades receberam dentro dos seus muros uma mul-
tiplicidade de conventos mendicantes. Paris, a maior cidade da
cristandade latina, acolheu sete (oito, se contarmos os trinitários).
Há três tipos de documentos que ilustram esta planificação
do estabelecimento das ordens mendicantes nas cidades.
Uns precisam os processos a utilizar para a fundação de um
convento no século XIII. Por exemplo, os dominicanos exigiam
duas fases preparatórias: 1) uma inciativa atribuída a um
AS ORDENS MENDICANTES 231

generoso doador ou a um religioso da província (a cristandade


foi dividida por cada ordem em territorios chamados provincias)
fazia surgir a "candidatura" de uma cidade, mas parece que o
mais frequente era a iniciativa partir dos superiores da ordem;
2) a tomada em consideração era decidida a dois níveis: primeiro
pelo prior provincial e os definidores da provincia, seguidamente
pelo cabido geral. A fundação propriamente dita fazia-se em
três momentos distintos:
1) um ou vários religiosos eram enviados ao local para se
informarem das "vias e meios" da fundação; 2) um lugar (isto é,
uma cidade) era recebido como propício à fundação de um con-
vento e para lá eram enviados irmãos para preparar a fundação
definitiva; 3) o convento era definitivalmente fundado, com um
prior, um leitor, irmãos clérigos e conversos, sendo o número
estatutário de um prior e doze irmãos no mínimo. Os fracassos
parecem ter sido muito pouco numerosos.
Textos pontificais precisam, por outro lado, a forma como o
espaço no interior da mesma cidade devia ser repartido entre as
diferentes ordens mendicantes. O papa Clemente IV unificou
na bula Quiaplerumque de 28 de Junho de 1268 diveras medi-
das promulgadas anteriormente. A distância mínima que devia
separar as igrejas de duas ordens mendicantes no interior de
uma cidade era fixada em trezentas cannes em linha recta, isto
é, cerca de quinhentos metros (é preciso não esquecer que a
maior parte das cidades medievais contavam apenas alguns mi-
lhares de habitantes numa superfície pequena).
Finalmente, documentos mais tardios fornecem pormenores
sobre as condições requisitadas para o estabelecimento de um
convento mendicante, condições examinadas no decurso de um
inquérito prévio. Uma bula de Bento XIII em 1404, pela qual o
Papa reconhecido em França (estamos no tempo do Grande Cis-
ma) autoriza a fundação de um convento de dominicanos na
Bretanha, em Guérande, enumera as condições satisfeitas: 1) a
distância entre Guérande e a cidade com um convento men-
dicante mais próxima (Nantes) é satisfatória: é de catorze lé-
232 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

guas, cerca de 60 quilómetros; 2) "a cidade está situada numa


região povoada, fértil e abundante, perto do mar, e recebe a
visita regular, por terra e por mar, de numerosos mercadores
vindos de todas as partes do mundo"; 3) o número da população
é superior ao mínimo necessário, três mil habitantes. A punção
efectuada nos recursos da cidade pelos peditórios permitirá pois
aos irmãos "subsistir e fazer face aos encargos que lhes compe-
tem".
As ordens parecem assim ter "quadriculado" todo o espaço
urbano da cristandade a tal ponto que o mapa dos conventos
mendicantes se confunde com o mapa urbano e que o "critério
mendicante" pode surgir como o melhor meio de referenciar a
rede urbana numa época em que o vocabulário urbano é muito
incerto e as definições da cidade muito vagas.
Por exemplo, em França no ano 1335 existem 222 aglome-
rações "com conventos mendicantes" e é possível estabelecer
uma lista das cidades por níveis de importância. As "grandes
cidades" — cidades com 3 ou 4 conventos mendicantes — são
em número de 52, 37 das quais no reino tal como era então e 15
nos limites da França actual, mas fora do reino no século XV.
Deste número, 28, as maiores de entre as "grandes", têm 4 con-
ventos: Agen, Angers, Baiona, Béziers, Bordéus, Cahors,
Carcassona, Figeac, La Rochelle, Orleães, Limoges, Lião,
Montpellier, Narbona, Pamiers, Paris, Reims, Ruão, Tolosa e
Tours, no reino; Aix, Aries, Avinhão, Marselha, Metz, Nice,
Perpinhão e Estrasburgo fora do reino. 24 delas têm 3: Albi,
Amiens, Arras, Bergerac, Burges, Caen, Châlons-sur-Marne,
Clermont, Condom, Lectoure, Le Puy, Limoux, Millau, Mon-
tauban, Nantes, Nímes e Valenciennes, no reino; Bourg, Colmar,
Draguignan, Grasse, Haguenau, Verdun e Vissemburgo, fora
do reino. A mesma relação estreita entre o mapa urbano e o
mapa da implantação mendicante foi verificada no que se refere
à Hungria medieval.
AS ORDENS MENDICANTES 233

Uma palavra nova

Descobrimos, através da implantação e da acção dos con-


ventos mendicantes, as relações entre cidades e campos tais como
eram na Idade Média. A cidade domina o campo circundante.
Os dominicanos, por exemplo, limitam em torno de cada um
dos seus conventos urbanos um território — que se pode con-
siderar como "o interior" da cidade —- a que chamam praedi-
catio, território de pregação de facto mas também de peditório,
completando o espaço de apostolado e de exploração da cidade
propriamente dita. Humberto de Romans, mestre-geral dos do-
minicanos de 1254 a 1263, enumera entre os três motivos prin-
cipais da escolha das cidades como local de estabelecimento
dos conventos da ordem o facto de pelas cidades se chegar ao
campo, pois o campo imita a cidade. Resta dizer que os mendi-
cantes raramente procuraram instalar-se directamente num meio
rural e que, quando procuraram fazê-lo, isso constituiu quase
sempre um fracasso, como na Toscana no século XIV.
O período em que as ordens mendicantes chegam às cidades,
no segundo terço do século XIII, é também aquele em que
começa a funcionar a nova rede paroquial que então se esta-
beleceu, com um desnível mais ou menos grande tendo em conta
o extraordinário crescimento urbano do século. Face a esta rede
paroquial, os conventos mendicantes, mesmo nas cidades onde
eles partilham entre várias ordens o espaço urbano, formam uma
rede extra-paroquial e supra-paroquial. Os conventos men-
dicantes não "cobrem" apenas uma parte do território urbano,
mas sim o seu conjunto. E um primeiro contratempo. Há outros.
O primeiro é a palavra, e não apenas para os pregadores.
Desde finais do século XII, face aos hereges que discutem nas
praças públicas, face à sociedade urbana que tem necessidade
de que lhe falem de maneira diferente de Deus e da sua sal-
vação, uma palavra nova começa a fazer-se ouvir. A pregação
conhece um impulso extraordinário e uma metamorfose pro-
funda. Não cai já do alto sobre o povo dos fiéis, mas dirige-se
234 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

verdadeiramente a ele. Esforça-se por lhe falar dos seus proble-


mas específicos e distingue auditórios segundo as suas activida-
des socio-profissionais, o seu "estado" {sermones ad status):
sermões para os clérigos, para os universitários, para os
negociantes, os artesãos, os camponeses, etc. Recorre a narrativas
que divertem, apela para a fábula ou para a vida do dia-a-dia: os
exempla.
Entre os dominicanos, as igrejas comportam por vezes duas
naves, como nos jacobins de Paris, ou nos de Tolosa, das quais
uma, reservada aos leigos, lhes oferece um espaço particular de
audição. A pregação acabará por sair às praças, em púlpitos
exteriores, provisórios ou permanentes (em Paris, em 1439,
Michelozzo e Donatello constroem e ornamentam um), o ser-
mão com os seus pregadores populares em voga, verdadeiros
"ídolos" da multidão, tomará proporções de meeting.
Os mendicantes também sabem encontrar a fórmula que satis-
faz as aspirações dos leigos a viver uma vida espiritual que seja
simultaneamente a sua e os associe à dos clérigos. E a descoberta
das Ordens Terceiras, que tem lugar no final do século XIII.
O êxito é menor no que se refere às mulheres. Desde cedo,
os franciscanos, graças a S. Francisco e à sua amiga Santa Clara,
criam uma ordem feminina, as clarissas, cuja atracção porém
não é maior que a que exerce em muitas mulheres, na cidade,
um novo género de vida a meio-caminho entre a vida laica e a
vida religiosa, o das beguinas. E certo que são as ordens mendi-
cantes que tomam a seu cargo o enquadramento espiritual das
beguinas. Em Paris, as superioras das beguinas são enterradas
nas igrejas dos jacobins e na beguinaria criada por S. Luís entre
o Sena e a igreja de S. Paulo os pregadores são na sua maioria
irmãos mendicantes. Mas a segunda ordem dos pregadores só
dificilmente chega a constituir-se e as irmãs dominicanas —
como as clarissas — mantêm-se enclausuradas, numa presença
reclusa na cidade.
Os mendicantes são mais felizes com os mortos. Sabem sei-
os mais zelosos na assistência aos moribundos, ajudam à re-
AS ORDENS MENDICANTES 235

dacção da nova forma de expressão das últimas vontades, os


testamentos, acolhem, por um golpe de génio, os cadáveres lai-
cos não só nos cemitérios contíguos às suas igrejas, mas no in-
terior das próprias igrejas, ao lado dos irmãos. São os melhores
propagandistas da crença nova no Além, intermediário entre o
Inferno e o Paraíso, terceiro reino onde se pode ainda ser resga-
tado entre o juízo individual que se segue imediatamente à morte
e o juízo final: o Purgatório, nascido, enquanto lugar específi-
co, no final do século. Ora, escreveu-o o cisterciense Cesário de
Heisterbach por volta de 1220, o Purgatório, para muitos peca-
dores dantes votados ao Inferno, é a esperança.
Promotores — mas não inventores a maior parte das vezes
— de devoções novas, é também o culto mariano que eles
difundem, por vezes graças a novas utilizações da oração, tal
como o rosário que os dominicanos lançam ou o uso do
escapulário espalhado pelo bem-aventurado Simão Stock,
mestre-geral dos Carmelitas, morto em 1258.
Sobretudo eles tornam-se os grandes especialistas da nova
forma da confissão, a confissão auricular imposta a todos os
cristãos pelo menos uma vez por ano pelo quarto concílio de
Latrão de 1215. Revolução espiritual e psicológica que cria um
diálogo insólito entre os sacerdotes e os leigos, desenvolve o
exame de consciência, sofistica a casuística moral. Para colocar
as boas questões e dar-lhes as respostas apropriadas, as que têm
em conta os problemas religiosos colocados pelas novas activi-
dades urbanas e as novas mentalidades que estão ligadas, são
preciosos manuais, os manuais do confessor. Os redactores dos
manuais de êxito nos séculos XIII e XIV são quase todos men-
dicantes.

Influência social e política

Assim, os mendicantes fornecem as justificações religiosas


de que a sociedade urbana tem necessidade. Surgem numerosos
236 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mestres e estudantes que têm de encontrar formas de subsistên-


cia fora das escolas monásticas e episcopais. Os espíritos
tradicionais acusam-nos de vender a ciência que só a Deus per-
tence. Os mercadores que se multiplicam e detêm na cidade os
lugares mais favoráveis praticam o empréstimo a juros e outras
formas de actividade cujo benefício vem do facto de poderem
adiantar dinheiro. A Igreja tradicional acusa-os de praticar a
usura e de vender o tempo, que, também ele, só a Deus per-
cence. As ordens mendicantes legitimam o essencial da activi-
dade dos universitários e dos mercadores, fazendo valer o seu
trabalho que merece ser remunerado.
De maneira geral, os mendicantes favorecem e legitimam a
nova sociabilidade. Os conselhos municipais, as universidades,
instituições novas, durante muito tempo não têm locais pró-
prios. Almotacés, cônsules, universitários reúnem-se nas vastas
igrejas dos conventos mendicantes.
As gentes das cidades exprimem a sua devoção através das
organizações novas, as confrarias. Os mendicantes criam e
enquadram as principais confrarias—a da Virgem, a do Espírito
Santo, a de S. Domingos, por exemplo —, sob o impulso dos
pregadores.
Quando podem fazê-lo, em Itália sobretudo, região das
Cidades-Estado, os mendicantes dominam a vida espiritual e a
política inteira das cidades. No norte de Itália, em 1233-1234, o
"revivalismo" religioso do Alleluia, dirigido pelos dominicanos
e pelos franciscanos, conduziu a uma reforma dos estatutos
comunais e a acordos de paz entre as classes e as facções de
habitantes. As medidas visam os hereges, abolem as disposições
contrárias às liberdades eclesiásticas, reprimem o luxo, a liber-
tinagem e a usura. É o caso de Parma, de Bolonha, de Vermeuil,
de Milão, etc. Numa cidade como Foligno, os mendicantes
surgem no começo do século XIV como os garantes de uma
verdadeira "república eclesiástica".
O século XIII assiste ao nascimento do urbanismo e do patrio-
tismo urbano. Os mendicantes encontram-se na primeira fila
AS ORDENS MENDICANTES 237

deste movimento. Como em muitas cidades o urbanismo e a


implantação dos mendicantes são contemporâneos, os conven-
tos mendicantes modelam a nova morfologia urbana. Em mui-
tas destas cidades, a presença das três principais ordens, (domi-
nicanos, franciscanos e agostinhos), traduz-se por um modelo
de estrutura triangular (cf. E. Guidoni): foi o que se passou em
Sena, em Cortona, em Palermo, em Colmar. Quando, no início
do século XIV, os pregadores constroem a sua igreja de San
Domênico em Sena com a sua praça, exprimem as suas preo-
cupações simultaneamente práticas (criar um espaço idóneo de
pregação) e estéticas (realizar um belo edifício e embelezar a
paisagem urbana). Na segunda metade do século XIV o fran-
ciscano catalão Francesch Eximeniç traça no seu Regiment de
Princeps o plano da cidade ideal: é um quadrilátero, com a praça
da catedral ao centro, dividido em quatro bairros, tendo cada
um no seu centro uma praça "grande e bela", a de cada uma das
ordens mendicantes.
Os mendicantes desempenham também um papel importante
no desenvolvimento, no final da Idade Média, de uma histo-
riografia propriamente urbana, de uma história de que as cidades
são as heroínas.
No decurso desta urbanização dos mendicantes, estes não
deixaram de estar cada vez mais ligados aos grupos dominantes
das cidades, isto é, a essas famílias a que se chama o patriciado
(nobres e burgueses) e de quem acolhiam nas suas igrejas os
monumentos funerários ostentatórios, como se pode ainda ver
em Florença e em Veneza. A sua obra de recuperação, de justi-
ficação da sociedade urbana acompanhava o reforço da domi-
nação dos ricos e dos poderosos. Estudando o alargamento dos
c onventos dos jacobins de Tolosa, o padre Vigário demonstrou
que num primeiro período (1229-1234), os pregadores cons-
Iroem um convento baixo e pobre unicamente com as esmolas
da população sem distinção social; num segundo (1242-1254),
beneficiam além disso do apoio de uma parte das grandes famí-
lias de Tolosa; na última campanha (1275-1340), graças à ge-
238 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nerosidade dos prelados do Meio-Dia e de Avinhão e da elite


urbana, constroem uma igreja e um convento cheios de magni-
ficência.
No seus sermões pronunciados em Florença de 1303 a 1309,
o dominicano Giordano de Pisa exalta a solidariedade da comu-
nidade urbana e exprime o seu menosprezo pelos rurais; mas ao
pregar um modelo escatológico que não tem consequências para
a vida quotidiana, ao limitar a um nível psicológico a acção
penitencial que ele insufla, ele justifica e fortalece os poderes
dos senhores da cidade.
Não é pois de espantar que as críticas feitas desde meados
do século XIII no interior e no exterior da ordem (pelos poetas
Rutebeuf e Guillaume de Meung), depois de ter vilipendiado o
irmão mendicante hipócrita, a construção de conventos afasta-
dos do espírito de pobreza e de humildade, o enriquecimento de
ordens que se viravam cada vez mais para a posse de rendas
urbanas, tenham desembocado numa franca crítica anti-urbana.
Os agostinhos passam dificilmente "de eremitas para ci-
dadãos" (ex heremitis urbaniste). S. Boaventura, contra uma
fracção de espirituais animados do espírito do "deserto", teve
de defender a implantação na cidade. No concílio de Viena em
1311, o franciscano contestatário Libertino de Casale escan-
daliza-se com a construção, no coração das cidades, em pleno
centro da especulação imobiliária, de sumptuosos conventos
mendicantes. No século XV, os franciscanos observantes
retomam estas críticas e alguns, na Bretanha, por exemplo,
querem inverter o movimento estabelecendo conventos nas flo-
restas e nas ilhas. Muita gente pensava que os mendicantes ti-
nham sido perdidos pelas cidades que haviam querido salvar.

Orientação bibliográfica

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AS ORDENS MENDICANTES 239

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S. Francisco de Assis
André Vauchez

Há oito séculos — no final do ano de 1181 ou no começo de


1182 — nascia no coração da Úmbria uma personagem de
origem obscura. Era o filho de um mercador de panos que viria
a marcar a história do Ocidente de maneira muito mais profun-
da do que a maior parte dos reis ou dos papas do seu tempo:
Francisco de Assis. Decerto foi menos célebre em vida do que
os seus contemporâneos Inocêncio III ou Frederico II, mas a
influência da sua acção e o fascínio do seu ideal fazem-se sentir
ainda nos nossos dias, como o testemunham tanto a vaga cres-
cente da peregrinação a Assis como o impulso dos estudos fran-
ciscanos, ambos tendo conhecido uma constante renovação,
desde as últimas décadas do século XIX até agora. Não esque-
çamos também as numerosas famílias religiosas que, a títulos
diversos, o reclamam para si e rodeiam a sua memória de uma
veneração particular. Tudo isto contribui para fazer dele uma
figura familiar, mesmo para aqueles que são insensíveis à sua
dimensão mística: quem não ouviu falar da pregação de S.
Francisco aos pássaros ou do episódio do lobo de Gúbio?
Não está porém confirmado que a ideia que se tem habitual-
mente do Pobre de Assis (o Poverello, em italiano) abarque a
realidade histórica da personagem. A visita aos "lugares santos"
do franciscanismo pode neste ponto induzir em erro. Cida-
244 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de-museu e cidade-santuário, Assis conservou um cenário


arquitectónico que, no essencial, não variou desde o século XIV
e pode-se assim reconstituir sem esforço o quadro no qual se
desenrolou a vida do filho de Pietro Bernardone. Mas a calma e
o silêncio que aí se desfrutam nada evocam das suas actividades
económicas hoje desaparecidas, assim como das lutas de partidos
e de clãs de uma extrema violência de que a cidade medieval foi
palco. Do mesmo modo, o espectáculo dos pequenos claustros
harmoniosos e floridos, reverberando o rumor das fontes e dos
cantos dos pássaros, leva por vezes o turista apressado a identi-
ficar o espírito franciscano com uma simples estética do despo-
jamento, e até com uma certa pieguice. Não será só o clima da
Úmbria que mantém a ilusão: a sua doçura primaveril ou outonal
arrisca-se a fazer esquecer os rigores da canícula dos meses de
Verão e sobretudo os do Inverno, muitas vezes rude nesta região
montanhosa; as biografias de S. Francisco estão repletas de
menções a bátegas de chuva, a caminhos cheios de neve e a
ventos glaciais dos quais lhe era bastante difícil proteger-se a
não ser acrescentando à sua túnica alguns pedaços de fazenda.
Só os eremitérios de Carceri ou de Fonte Colombo, perto de
Rieti, sugerem que a vida do Poverello e dos seus contemporâ-
neos tenha sido um tanto diferente da vagabundagem folgazã
no meio de uma natureza amena que numerosos pintores se delei-
taram a representar.
Outras razões •— estas de ordem historiográfica — fazem
com que não seja sensato aderir ao "verdadeiro" S. Francisco,
pelo menos a uma representação deste que não seja demasiado
arbitrária ou duvidosa. Esta observação pode parecer sur-
preendente tratando-se de uma personagem que não se perde na
noite dos tempos, uma vez que viveu na mesma época que um
Filipe Augusto ou um João Sem Terra, cuja biografia é bem
conhecida e se apoia em dados solidamente estabelecidos. Mas
Francisco não era um dos grandes deste mundo e, exceptuando
duas regras (a de 1221 e a de 1223) que chegaram até nós, não
deixou qualquer texto legislativo. A maior parte da sua corres-
S. FRANCISCO DE ASSIS 245

pondência não foi conservada e as únicas obras autênticas que


dele se conhecem são uma dúzia de cartas ou bilhetes, algumas
orações, fórmulas de louvor e bênçãos, o Cântico do Irmão Sol
ou Das Criaturas e sobretudo o Testamento que ditou pouco
antes de morrer. Conjunto precioso, é certo, mas afinal de vo-
lume pouco espesso e que — à excepção do Testamento — nos
informa mais sobre a devoção do seu autor do que sobre a sua
história. Nos textos da época, as menções do Poverello não são
muito numerosas. Fora da Itália, Jacques de Vitry — um prelado
francês que se tinha dirigido em 1216 à Cúria antes de ir
ocupar uma sede episcopal no Oriente — foi um dos raros a
discernir em vida a importância histórica do movimento
franciscano. Além disso, as passagens da sua correspondência
que lhe fazem referência ilustram sobretudo os primórdios da
ordem dos irmãos menores.
Restam as biografias. São numerosas e prolixas, mas a sua
utilização como fontes coloca aos historiadores graves proble-
mas. Todas, com efeito, foram redigidas posteriormente à cano-
nização de Francisco pelo papado, a qual teve lugar em 1228,
dois anos após a sua morte. Ora as vidas de santos e, de maneira
geral, os textos hagiográficos constituíam na Idade Média um
género literário bem definido, regido por um certo número de
convenções e visando a edificação. Tomar à letra e encadear
Iodos os episódios que figuram nas vidas medievais de S. Fran-
i isco, como fizeram certos autores modernos, constitui pois um
contra-senso. Finalmente, e acima de tudo, a biografia de S.
Francisco tornou-se rapidamente uma aposta importante e uma
lonte de contradição no seio dos irmãos menores. Temos ainda
que as diversas lendas foram compostas em função de preo-
cupações muito precisas que correspondiam a vicissitudes in-
lernas da ordem. Tal como é bem visível nas variações que
.ipresentam as duas primeiras biografias oficiais, obras do fran-
ciscano Tomás de Celano. Enquanto na primeira, composta em
I ' '9-1230, o irmão Elias de Cortona (comanditário da obra com
o papa Gregório IX) ocupa um certo lugar e é apresentado sob
246 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

uma luz favorável, a sua acção e as suas relações com S.


Francisco são evocadas em termos nitidamente mais discretos
na segunda, que data de 1246. É que entretanto esta personagem
contestada fora obrigada a abandonar a direcção da ordem e
reunira-se ao imperador Frederico II em luta contra o papado.
Mais completa que a anterior, esta última Vida só parcialmen-
te tomou em consideração as recordações que os primeiros com-
panheiros de Francisco, os irmãos Leone (morto em 1271), Ânge-
lo e Rufino, tinham relatado por escrito após 1224, por medo de
ver caída no esquecimento a verdadeira imagem daquele a quem
tinham amado e seguido. Inquietos com a evolução da ordem,
sublinhavam sobretudo o espírito de pobreza do fundador, a
desconfiança de que tinha dado testemunho face aos estudos e
o seu apego apaixonado aos valores evangélicos. Ignora-se qual
foi a forma exacta desta preciosa recolha a que se chama o Flo-
rilégio de Greccio e os especialistas ainda hoje discutem o seu
conteúdo e a sua organização interna. Mas o essencial foi trans-
mitido em dois textos compostos em meados do século XIII: a
Lenda dos Três Companheiros e a Lenda (denominada) de
Perúsia, que se revestem efectivamente de uma importância
particular. Um pouco mais tarde, um ministro geral, S. Boaven-
tura (1257-1274), desejoso de restabelecer a unidade e a con-
córdia no seio da ordem, compôs uma nova biografia oficial, a
Legenda Major, que foi a única autorizada a partir de 1266. A
maior parte dos manuscritos das biografias anteriores foram
então destruídas, o que explica—para tomar apenas um exemplo
— que tenha sido necessário aguardar o início do nosso século
para que se redescobrisse o texto da Lenda de Perúsia]k citada,
assim como outras biografias de S. Francisco compostas no início
do século XV pelos franciscanos "espirituais" — isto é, hostis
ao relaxamento e às atenuações das exigências da regra em
matéria de pobreza —, como é o caso do Espelho de Perfeição.
Ainda mais tarde, nos eremitérios da Marca de Ancona, fo-
ram postas por escrito tradições orais m ais ou menos folcloriza-
das. São os Actus Beati Francisci et Sociorum, recolha que
S. FRANCISCO DE ASSIS 247

obteve um êxito duradouro na sua tradução italiana de 1390


conhecida pelo nome de Fioretti. Conforme optamos por nos
apoiar essencialmente nesta ou naquela dessas fontes, obtemos
imagens de S. Francisco assaz diferentes. No fim do século
passado, o pastor protestante Paul Sabatier pôs em causa a au-
tenticidade até então incontestada das biografias oficiais (I e II
Celano, Legenda Major) e suscitou um grande escândalo ao
escrever uma Vida de S. Francisco inspirada no Espelho de
Perfeição, no qual julgava ter encontrado a Vida mais antiga do
Poverello. O santo aparece nela como uma personagem total-
mente carismática, esmagada e alquebrada pela Igreja Romana
na pessoa do cardeal Hugolino, que, sob pretexto de proteger a
ordem nascente, lhe teria imposto um quadro institucional que
repugnava a Francisco. Com esta publicação retumbante se abre
a "Questão Franciscana", polémica erudita que tende hoje em
dia a esgotar-se mas que levou à descoberta e à publicação de
numerosos textos inéditos. A hipótese de Sabatier era falsa, mas
leve o mérito de suscitar pesquisas que permitem hoje aos his-
loriadores avançar sobre um terreno menos minado.
Francisco, como vimos, era filho de um rico mercador de
panos que frequentava esse grande centro de trocas da Europa
da altura que eram as feiras de Champanha. Seria essa a razão
pela qual teria querido que o seu filho se chamasse Francesco
— "o Francês" —, nome próprio que não era então muito cor-
rente. Sabe-se que teve irmãos e que a mãe lhe manifestava uma
i feição particular. Pelas suas origens familiares e a sua profissão,
pertencia aos Popolo, isto é, a um grupo social que, no quadro
. 111 ida feudal que caracterizava Assis no fim de século XII, estava
•ubmetido à preponderância da nobreza e excluído do poder.
Mas, como em todas as cidades de Itália nessa época, a franja
uperior desse Popolo — em particular os homens de negócios
e os proprietários de imóveis urbanos — tendia a aproximar-se
M i aristocracia pelo seu género de vida. A fortuna de Pietro
lleinardone permitia assim ao seu filho viver à maneira dos
nobres e fazer parte da mocidade dourada da cidade. Chefe de
248 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

uma confraria de alegres estróinas, tornara-se bem popular


junto dos amigos já que se achava sempre disposto a pagar-
-lhes coisas.
Francisco, com efeito, reagiu muito cedo aos valores
dominantes do seu meio — avidez do lucro, avareza — e sofreu
a influência do ideal cortês veiculado pelas obras literárias —
canções de gesta e poemas de amor — vindas de França que
invadiam então a Itália. Foi profundamente marcado por esta
moda e, mesmo após a sua conversão, continuará a cantar poe-
mas em francês e a evocar os paladinos da Canção de Rolando
e os Cavaleiros da Távola Redonda. Seja como for, por volta
dos vinte anos foi tentado pela carreira das armas e, em 1204,
pensava colocar-se ao serviço de um condottiere para se tornar
cavaleiro quando uma doença o obrigou a renunciar aos seus
projectos.
Começou então para Francisco um período de inquietação e
de "vazio na alma" que iria durar dois anos (1205-1206) e levá-lo
ao que os seus biógrafos chamam a sua conversão. Decepcio-
nado pela vida que levara até então, procurou durante muito
tempo a sua via e tomou progressivamente consciência da sua
vocação: servir não qualquer nobre dama mas a Pobreza e rea-
lizar proezas não nos campos de batalha mas ao serviço de Cristo,
cujo rosto lhe era revelado nos desafortunados. Foi nesse mo-
mento que começou a visitar e a tratar os leprosos e essa vitória
que conquistou sobre si mesmo foi de uma importância decisi-
va, como ele próprio reconheceu no seu Testamento: "Quando
os deixava, o que me havia parecido amargo tornava-se para
mim em doçura para o espírito e para o corpo. A seguir, pouco
mais esperei e disse adeus ao mundo." De facto, não tardou a
romper de maneira espectacular com o pai, que o censurava por
dilapidar a fortuna, distribuindo pelos pobres dinheiro que não
lhe pertencia. Conhece-se, quanto mais não seja por intermédio
de Giotto que o ilustrou magnificamente, o episódio de Francis-
co despojando-e das suas roupas e restituindo-as ao pai para se
ir colocar sob a protecção do bispo Guido de Assis. Por este
S. FRANCISCO DE ASSIS 249

gesto, tornava-se um "homem religioso", deixando de depen-


der da autoridade paterna e dos tribunais civis e passando a
depender da Igreja.
Isso não significava contudo que tivesse a intenção de se
tornar padre ou monge, coisas que nunca foi. Mas existia na
cristandade medieval um estado intermédio entre o dos clérigos
e o dos leigos: tratava-se dos penitentes, isto é, de fiéis que opta-
vam por renunciar à vida mundana sem no entanto passarem a
fazer parte das ordens. Esses convertidos (ou conversos) levavam
uma existência ascética e consagravam-se à oração e às obras
de beneficência. Francisco adoptou este estilo de vida que
começava então a conhecer um certo êxito em Itália: vestido
com um hábito de eremita, dedicou-se à reparação de pequenas
igrejas em ruínas na periferia de Assis, rezando e meditando
diante dos grandes crucifixos pintados sobre madeira que ali se
encontravam. Os seus concidadãos não andavam longe de o con-
siderar um louco ou um iluminado. Apesar disso, em breve se
lhe juntaram alguns companheiros originários da cidade: Ber-
nardo de Quintavalle, Pedro Cattani, Gil, Filipe, Ângelo e
Silvestre. Este último era um sacerdote que se agregou em pé
de igualdade com os outros à nova "fraternidade dos penitentes
de Assis" de que Francisco era o chefe e o animador. O grupo
instalou-se em cabanas de pedra seca, em Rivo Torto, na planície
pantanosa situada em nível inferior em relação às muralhas da
cidade. Mas um camponês desalojou-os ao ir ali instalar o seu
burro. Como não queriam entrar em conflito com ninguém,
retiraram-se e foram instalar-se na igreja de Santa Maria dos
Anjos, dita a Porciúncula, que o abade de S. Bento do Subásio
lhes concedeu depois.
Este período primitivo é evocado com emoção pelo Francis-
co dos últimos anos e pelos textos que dependem do testemu-
nho dos três companheiros: não contentes em orar apenas e ser-
vir os pobres na alegria, os irmãos anunciavam o Evangelho e
pregavam a penitência, isto é, a conversão, nas aldeias e nas
pequenas cidades da Úmbria e das Marcas. Este "tomar a
250 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

palavra", da parte de leigos que não tinham recebido nenhum


mandato da hierarquia, nem sempre era bem recebido. Muitos
fiéis manifestavam hostilidade para com esses pés-descalços que
ninguém ou quase ninguém distinguia dos verdadeiros pobres e
os clérigos desconfiavam deles, suspeitando que pertencessem
a movimentos heréticos, então bastante numerosos.
Mas Francisco soube convencer a hierarquia da sua ortodoxia
e da sua submissão à Igreja. O encontro decisivo teve lugar em
Roma em 1210. O papa Inocêncio III, parece que não sem
algumas hesitações, acedeu a aprovar oralmente a regra que o
Pobre de Assis tinha composto para a sua pequena comunidade.
Este texto, que não foi conservado, era composto por versículos
do Evangelho encadeados e não comportava nenhum aspecto
jurídico. Confortados por este apoio, os irmãos menores — foi o
nome que então adoptaram, no seguimento de várias propostas
que surgiram — desenvolveram a sua acção apostólica em toda a
Itália central e viram afluir numerosos recrutas. Em 1212, Clara,
uma jovem da aristocracia de Assis, impressionada pela pregação
e pelo exemplo de Francisco, foge de casa para ir juntar-se a ele.
Em breve foi seguida por várias parentas e amigas que constituíram
sob a sua direcção uma comunidade de penitentes enclausuradas,
as "Damas Pobres", que se instalam dentro em pouco no pequeno
convento de S. Damião.
A continuação já é conhecida e contentar-nos-emos em evo-
car as datas principais: em 1217, quando do cabido geral
(reunião anual de todos os irmãos que tinha lugar na Por-
ciúncula), foi decidido sair das fronteiras da Itália. O próprio
Francisco teria querido ir a França, mas o cardeal Hugolino,
com quem se encontrou em Florença, descreveu-lhe os perigos
que a sua partida se arriscava a fazer correr à sua fundação ainda
muito frágil. Não tendo essas primeiras "missões" a norte dos
Alpes dado quaisquer resultados, a experiência foi retomada
em 1219 em melhores condições e grupos de irmãos alcançaram
a Alemanha, a França e a Hungria e em breve a Inglaterra, onde
começaram a estabelecer-se. Alguns foram até Marrocos, onde
S. FRANCISCO DE ASSIS 251

foram massacrados. O próprio Francisco partiu para a Terra


Santa, juntando-se em Damieta, no Egipto, à quinta cruzada,
que, sob a direcção de um legado pontifical, se esforçava por
quebrar o poderio militar do Islão. Descoroçoado pelo espec-
táculo das violências que acompanharam a tomada da cidade,
partiu com um só companheiro em direcção às linhas inimigas.
Preso e conduzido diante do sultão Malek-al-Kamil, teve com
ele uma conversa sobre as questões religiosas (cuja realidade se
encontra bem estabelecida) e foi reconduzido com todas as
honras ao campo dos cruzados. Chamado a Itália pelas más novas
que lhe chegavam, encontrou a ordem em plena efervescência
em razão de certas iniciativas que tinham sido tomadas na sua
ausência pelos seus "vigários" e das tensões que começavam a
manifestar-se no seu seio. Inquieto com esta evolução,
esforçou-se por contrariá-la dotando os irmãos menores de uma
regra e pedindo à Santa Sé a nomeação de um cardeal protector
que foi Hugolino, o futuro papa Gregório IX. '
A regra que ele compôs em 1221 não conseguiu a unanimi-
dade no seio da ordem nem foi aprovada pelo Papa. Foi preciso
esperar pelo ano de 1223 para que um último texto, que Fran-
cisco considerava como um mínimo e que possuía um aspecto
mais jurídico que os anteriores, fosse oficialmente promulgado.
Entretanto o Poverello tinha renunciado a dirigir os irmãos,
alegando o seu estado de saúde, o qual, de facto, se tornara
muito mau depois do seu regresso do Oriente onde contraíra
uma doença nos olhos. Distanciando-se de um organismo cada
vez mais espalhado e que lhe escapava, alternou campanhas de
pregação na Itália com estadas prolongadas em eremitérios, ro-
deado de um pequeno número de companheiros. Foi num deles,
o do Verna, a norte do Arezzo, que recebeu em 1224 os es-
iif.inas da Paixão de Cristo, enquanto se achava absorvido na
meditação desse mistério doloroso. Os seus últimos anos foram
sob todos os espectos um calvário. Quase cego e sofrendo além
disso do baço e do fígado, foi transportado de uma cidade para
mitra para aí receber os cuidados de médicos que só
252 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

agravaram o seu padecimento. Foi neste estado de sofrimento


e de desânimo — começava a tornar-se importuno para um
certo número de irmãos e tinha consciência disso — que
compôs em Assis o Cântico do Irmão Sol, extraordinário louvor
ao Deus criador no qual se exprime — em italiano — toda a
sua sensibilidade poética e cósmica. No Verão de 1226, o seu
estado tornou-se desesperado e foi levado para Assis onde
morreu a 3 de Outubro, depois de ter ditado o seu Testamento,
texto fundamental que dá o sentido último da sua experiência
religiosa e do itinerário que percorrera após a sua conversão.
Em 1228, foi canonizado pelo papa Gregório IX e os seus restos
mortais foram solenemente transportados em 1230 para a nova
basílica que começava a ser construída em sua honra a oeste
da cidade, num terreno plano até então reservado para os
enforcamentos.
Nessa época, a ordem dos irmãos menores contava já perto
de três mil membros e o seu êxito continuava a aumentar. Não
havia cidade de certa importância, primeiro na Itália e em breve
em toda a cristandade, que não quisesse ter dentro dos seus muros
um convento franciscano. O papado apoiava-o com todos os
seus esforços, seguro de poder contar com esta nova "milícia"
toda devotada — assim como com a ordem dos irmãos
pregadores criada na mesma época por S. Domingos — na luta
contra a heresia. Mas era mesmo isso o que Francisco teria
querido?

A mensagem espiritual

Quando se tenta defini-la em termos abstractos, a mensagem


de S. Francisco reduz-se a algumas fórmulas que podem pare-
cer bastante banais. Ele não foi, com efeito, nem um grande
teólogo, como Santo Agostinho, por exemplo, nem um pensa-
dor profundo como S. Tomás de Aquino, nem sequer um teóri-
co da vida espiritual como um S. Bernardo ou um Inácio de
Loiola. Este leigo que escrevia um latim rugoso e cheio de ita-
S. FRANCISCO DE ASSIS 253

lianismos não deixou uma obra importante mas um testemu-


nho: o de um homem que quis viver o Evangelho à letra e ser
uma testemunha do amor de Deus no seio do mundo. Não há
aparentemente nisso nada de original. E contudo todos os tes-
temunhos contemporâneos se acham de acordo ao sublinhar a
novidade do seu propósito e do seu género de vida. É a natureza
exacta desta experiência religiosa inaudita, a qual suscitou tanto
entusiasmo e tantas paixões, que temos agora de apreender
melhor.
"Viver segundo o santo Evangelho", segundo a fórmula em-
pregue por S. Francisco no seu Testamento, era, nos alvores do
século XI, uma ideia nova. É certo que desde o final do século
XI, um certo número de movimentos religiosos tinham fixado
para si mesmos ambições assaz próximas: Papas reformadores
como Gregório VII ou Urbano II, pregadores populares como
Roberto d'Arbrissel ou eremitas como Estevão de Muret tinham
difundido na cristandade o ideal da vida apostólica, isto é, um
retorno à vida da Igreja primitiva tal como se encontra descrita
nos Actos dos Apóstolos (II, 44-47): a de uma comunidade em
que "os crentes tinham um só coração" e punham em comum
tudo o que possuíam. Este mito dinâmico tinha suscitado o apare-
cimento de novas formas de vida religiosa: cónegos regulares
vivendo segundo a regra de Santo Agostinho, ordens monásti-
cas reformadas como as de Grandmont ou de Cister ou grupos
de laicos que se colocavam ao serviço dos religiosos como con-
versos. Mas estas novas ordens, por rigorosas que fossem as
suas exigências em matéria de austeridade, mantinham-se no
quadro feudal e senhorial. Se os religiosos eram pobres indivi-
dualmente, eram ricos e poderosos colectivamente. Além disso,
a maior parte deles foram vítimas do seu próprio êxito. Cumu-
lados de bens pela nobreza, não tardaram a atenuar o rigor das
suas observâncias e a deixar-se monopolizar pelas tarefas de
) gestão e pela preocupação em estender o seu património. Os
que com isso se escandalizaram e que, como Arnoldo de Brescia
na década de 1140, preconizaram que a Igreja renunciasse ao
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

seu poder temporal e aos seus bens, acabaram por entrar em


conflito com a hierarquia. Foi, um pouco mais tarde, o caso dos
Valdenses, discípulos de Valdo, um rico mercador lionês que se
despojou dos seus bens para ir anunciar o Evangelho. O Papa
declarou-os heréticos em 1184. Sob o golpe das condenações
eclesiásticas, os movimentos evangélicos populares tenderam a
constituir seitas à margem da instituição oficial ou foram con-
taminados pelas teses dualistas propagadas nas regiões meri-
dionais da França e em Itália pelos cátaros. Entre uma Igreja
desejosa, antes de mais, por desenvolver as suas estruturas e de
acentuar a sua preponderância sobre a sociedade, e as aspirações
religiosas de numerosos fiéis cada vez mais críticos face aos
clérigos e aos monges, cavara-se um fosso que não parava de se
aprofundar.
Francisco de Assis situa-se na esteira deste evangelismo
popular que acabamos de evocar. A partir da sua conversão,
esforçou-se por "seguir nu o Cristo nu", calcorreando as pisadas
do "Filho do Homem que não tinha onde repousar a cabeça".
Com ele, pela primeira vez na história do cristianismo, a vida
religiosa deixa de ser concebida como uma contemplação do mis-
tério de Deus e passa a ser concebida antes como uma imitação
de Cristo ou, melhor ainda, como a busca de uma conformidade
sempre mais estreita com o seu exemplo e a sua pessoa. Depois
da morte de S. Francisco os irmãos menores celebrarão nele um
novo ou um segundo Cristo (alter Christus), o que permitirá mais
tarde a Lutero censurá-los por quererm fazer dele "um outro Deus".
Quer esta crítica seja fundada quer não, não há no Pobre de Assis
nenhuma ambiguidade: não se encontra nele nem ambição
prometeica nem aspiração panteísta, mas o desejo ardente de se
tornar semelhante ao Crucificado e de permitir a cada cristão fazer
o mesmo. Para o conseguir, não havia aos seus olhos outro
caminho senão o de uma fidelidade literal — o que não quer
dizer estreita — ao Evangelho. Ainda neste ponto é-nos difícil
imaginar a novidade da mensagem franciscana a que os
contemporâneos foram tão sensíveis. Numa época em que, sob a
S. FRANCISCO DE ASSIS 255

influência da exegese monástica, a Igreja considerava a Escritura


como '"uma floresta de símbolos" e um conjunto de textos tão
difícil e rico de significações ocultas, que só os clérigos formados
nas disciplinas do arcano eram capazes de desvendar o seu sentido
velado. Francisco inova radicalmente, recusando toda a
interpretação alegórica da Palavra de Deus. Longe de se
comprazer, como muitos espirituais ou teólogos do seu tempo,
em especulações sobre os textos mais obscuros do Antigo ou do
Novo Testamento, — por exemplo, o Apocalipse que Joaquim
de Flore tinha comentado alguns anos antes — o Poverello des-
tacou o que constituía aos seus olhos o âmago da mensagem
evangélica: o amor divino encarnado em Jesus Cristo, Deus feito
homem, nascido num estábulo, tendo vivido pobre no meio dos
pescadores e tendo sofrido os tormentos da sua Paixão para que
depois dele possamos ressuscitar de entre os mortos.
Esta invocação simples e firme dos dados centrais do mis-
tério cristão não teria talvez bastado para despertar o espírito
ilos seus contemporâneos se ele lhos não tivesse apresentado de
uma maneira própria para os tocar. O encontro de S. Francisco
foi para milhares de homens ocasião de um choque emocional e
religioso profundo, porque ele lhes falava de Deus de maneira
igualmente nova. Aquele que se definia a si mesmo como "o
.itauto do grande rei" ou o "jogral de Deus" não se limitava a
11 regar: mimava a vida de Cristo e, no sentido mais concreto do
liTino, "representava-a" perante os homens. Sabemos que ele
i >ij-.anizou em Greccio o primeiro presépio [vivo] numa noite de
Natal, ilustrando assim para os seus irmãos e para os aldeãos a
ii-.ilidade do mistério da Natividade. Para fazer compreender
MOS habitantes de Assis a nudez e os oprobios de Cristo na cruz
«•.sim como as exigências do despojamento, não hesitou em
pregar nu na cidade, depois de lá ter enviado o irmão Rufino no
mesmo preparo. Com ele, a experiência íntima dos mistérios da
»»l vação encarna-se numa cultura gestual. Torna-se simultanea-
mente acção e espectáculo. Mas não se trata unicamente de
256 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fazer ver para fazer crer. A inscrição na sua carne dos estigmas
da Paixão — as chagas das mãos, do pés e do lado — mostra
que esta maneira de viver a realidade do Evangelho se situa
muito para além do procedimento pedagógico ou do jogo.
De facto, foi primeiro na sua vida quotidiana que Francisco
se esforçou por imitar Cristo. Daí a importância, fundamental
aos seus olhos, da humildade e da pobreza. O próprio nome que
ele deu à sua ordem, os irmãos menores, atesta o apego que ele
sentia pela primeira destas virtudes. "Éramos simples e submis-
sos a todos" — diz ele no Testamento, ao evocar a época das
origens. E quando os seus companheiros lhe faziam queixas
por terem sido mal recebidos pelos sacerdotes e pelos bispos,
ele recomendava-lhes que não insistissem e se afastassem sem
recriminações ou sem fazer caso dos seus direitos. Quanto à po-
breza, sabemos que ela está no âmago da experiência francisca-
na. A entrada na ordem implicava aliás que se renunciasse a
todos os bens pessoais, que estes fossem distribuídos pelos po-
bres e que se ficasse apenas com uma túnica, umas ceroulas e
uma corda, uma vez que os irmãos menores, ao contrário dos
monges e dos outros religiosos, não deviam possuir nada, nem
de seu nem sequer em comum. Viver segundo o Evangelho era
recusar toda a segurança e entregar-se à providência no que se
referia à subsistência, ao alojamento e a todas as outras necessi-
dades. As polémicas que surgiram na ordem após a morte de S.
Francisco em torno da noção de pobreza obscureceram um pouco
o sentido da sua escolha da "Pobreza" como do apego apaixo-
nado que ele lhe manifestava. Para ele, tratava-se menos de recu-
sar, a priori, toda a forma jurídica de propriedade (em 1213
aceitou que o conde Orlando de Chuisi lhe desse a localidade
de La Verna para aí estabelecer um eremitério) do que de aniqui-
lar em si mesmo o espírito de apropriação. Foi assim que dei-
xou um dia precipitadamente uma cela que os irmãos lhe tinham
preparado por um deles se lhe ter referido dizendo "a tua cela".
O facto de se instalar em algum sítio ou em alguma coisa que se
podia reivindicar como seu arriscava-se com efeito a afastar o
S. FRANCISCO DE ASSIS 257

homem de Deus conferindo-lhe um sentimento de poder e de


autonomia. Assim se explica a sua hostilidade visceral face ao
dinheiro, que ele proibia aos irmãos de receber e possuir. Isto
porque a posse da moeda não confere apenas uma sensação de
poder ilusória, falseia igualmente as relações entre os homens e
situa os que a possuem entre os opressores. Em conformidade
com as ideias económicas do seu tempo, o filho de Pietro
Bernardone estava convencido de que a quantidade de dinheiro
disponível no mundo era constante e que, ao enriquecer ou acu-
mular riqueza se empobrecia os outros.
Além disso, Francisco tinha compreendido que o apego aos
bens deste mundo conduz fatalmente à violência. Ao bispo de
Assis, que se inquietava por ver os irmãos recusarem toda a
forma de propriedade, respondeu simplesmente: "Se possuísse-
mos bens, teríamos de defendê-los." Ora ele tinha escolhido
colocar-se de uma vez por todas do lado dos fracos, dos
deserdados e dos marginais: leprosos, vagabundos, mendigos e
salteadores, todos os que constituíam a escória da sociedade,
eram para ele objectos de predilecção. Neles, mais que em
qualquer outro homem, ele encontrava o rosto do Cristo sofredor.
Mas, consciente das ambiguidades da pobreza voluntária, queria
que os irmãos partilhassem com os miseráveis as esmolas que
recebiam e no seu Testamento recordou a necessidade de
trabalhar com as próprias mãos — não para ganhar um salário
mas para não estar a cargo de ninguém —, sendo a mendicidade
admitida apenas em caso de necessidade. Concebia-a ainda como
uma troca desigual, em que aquele que mendigava, ao chamar a
benção de Deus sobre aquele que lhe dava esmola, dava infini-
lainente mais do que recebia.
E no mesmo registo que convém situar a atitude, assaz com-
plexa e até contraditória aparentemente, de S. Francisco face à
cultura. Ele mesmo, sem ser um letrado, sabia ler e escrever,
lendo mostrado por várias ocasiões, nas suas obras, a estima
pelos teólogos, graças aos quais a Palavra de Deus pode ser
258 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mais bem compreendida. Todavia, contemporâneo do impulso


das escolas e das universidades, tinha igualmente entrevisto os
riscos que o gosto pelos estudos podia fazer correr à sua
fundação. Por isso multiplicou as advertências nesse capítulo,
acentuando os estreitos elos existentes entre a ciência, a riqueza
e o poder. Numa época em que os livros valiam muito e eram
ainda assimilados a tesouros, o simples facto de os possuir não
se arriscaria a colocar os irmãos ao lado dos ricos e a conduzi-los
à presunção, dando-lhes a ilusão de ter resposta para tudo? Por
isso se encontra com tanta frequência na sua boca o elogio da
simplicidade e um convite a abster-se de uma cultura livresca a
que estavam ligadas tantas tentações. A um irmão que queria
possuir um saltério respondeu um dia, não sem alguma
vivacidade: «Quando tiveres um saltério, hás-de querer um
breviário e quando tiveres um breviário, hás-de instalar-te no
púlpito como um grande prelado e ordenarás ao teu irmão:
"Traz-me um breviário!"» Posto isto, todo exaltado, pegou em
cinza da lareira, espalhou-a na cabeça e esfregou-a, repetindo:
"Aqui está o breviário." O incidente é significativo: pelo seu
gesto, Francisco situa-se deliberadamente do lado da natureza.
Saído da sociedade urbana mais avançada e mais refinada do
seu tempo, nela condena pelo seu comportamento o orgulho e a
avareza, e propõe um modo de vida alternativo baseado na recusa
desta "sociedade de consumo". Foi pelo menos assim que o seu
testemunho foi recebido pelos contemporâneos: como diz a
Lenda dos Três Companheiros a propósito dos primeiros irmãos,
"o seu hábito e a sua vida tornavam-nos bem diferentes de to-
dos os outros mortais e faziam por assim dizer deles homens
das florestas" (poder-se-ia igualmente traduzir por "homens sel-
vagens"). Num mundo em que se afirmavam duas formas novas
de poder — o dinheiro e o saber —, o Pobre de Assis remava
conscientemente contra a corrente da evolução, como o teste-
munha a famosa frase que pronunciou em 1219, no cabido de
Nattes, diante de todos os irmãos reunidos em torno dele: "Deus
chamou-me a caminhar na senda da humildade e mostrou-me o
S. F R A N C I S C O DE A S S I S 259

caminho da simplicidade (...) O Senhor disse-me que queria fazer


de mim mais um louco no mundo e Deus não quer conduzir-vos
por outra ciência a não ser essa."
Sob a influência da obra de Paul Sabatier, a historiografia
recente manteve-se em larga medida dominada pela imagem de
um S. Francisco "recuperado" pela Igreja romana e obrigado a
aceitar, contra a sua vontade, a trasnsformação da sua fraterni-
dade primitiva numa ordem religiosa dotada de instituições pe-
los cuidados da cúria. Nem tudo é falso nesta maneira de ver as
coisas e é certo que o Poverello sofreu muito no fim da sua vida
por ver os irmãos — ou pelo menos alguns deles—afastarem-se
do género de vida que fora o seu, em Rivo Torto e na Porciún-
cula, na época dos começos. Mas temos de abordar o problema
das suas relações com a Igreja banindo todo o romantismo e
sem querer conduzi-lo a todo o custo a um confronto sistemá-
tico entre o sacerdócio e o profetismo, a instituição e o carisma,
ou a qualquer outro esquema simplista deste tipo.
Francisco não era só espontaneidade e doçura; logo que os
••eus companheiros se tornaram suficientemente numerosos, ele
mesmo tomou a iniciativa de os repartir por "províncias", à ca-
beça das quais foram colocados ministros e não houve nenhum
outro fundador de ordem, talvez antes de Santo Inácio, que
iivesse insistido tanto como ele na necessidade da obediência.
<.>uanto à sua atitude face ao clero, é clara e sem equívocos:
"Mesmo que me persigam" — diz ele no seu Testamento — "é
muda assim a eles que quero recorrer (...) pois é o filho de Deus
que eles recebem e eles são os seus únicos ministros." Pelo
•imples facto de consagrarem e darem aos fiéis o corpo e o
M i n g u e de Cristo, "os sacerdotes são os nossos senhores", ainda
que a sua dignidade moral não esteja à altura da missão que
l >t us lhes confiou. Longe de opor a autoridade da Escritura à
dir. homens, S. Francisco não concebeu a sua acção senão no
•no da Igrejae em colaboração com ela. Mas enganar-nos-íamos
leu,límente ao ver nele simplesmente o fundador de uma ordem
icli^iosa particularmente dedicada à Santa Sé e desejosa, acima
260 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de tudo, de assegurar o triunfo da ortodoxia. A sua obediência à


Igreja exclui qualquer servilismo e não deixa de reivindicar o
apelo particular que Deus lhe dirigiu. Como ele diz no
Testamento, "ninguém me mostrou o que devia fazer, mas foi o
próprio Altíssimo que me revelou que eu devia viver segundo o
santo Evangelho". Foi precisamente esta certeza de estar com a
razão que esteve na origem dessa dilaceração que vemos
acentuar-se nele no decurso dos últimos anos. As biografias não
oficiais (mas também a segunda Vida de Tomás de Celano) põem
em evidência as tentações que o assaltaram então, os conflitos
que o opuseram aos ministros, isto é, à hierarquia da ordem, e a
ansiedade que suscitava nele a evolução da sua fundação. Por
medo do escândalo preferia as mais das vezes calar-se "não sou
um carrasco que castiga e flagela" — teria dito então aos que o
convidavam a reagir publicamente —) e redobrar de austeri-
dade para deixar aos seus irmãos um exemplo que não pudesse
ser discutido.
Nem sempre se viu com acerto a natureza desta última pro-
vação. Na realidade, não é a existência da ordem nem sequer o
seu desenvolvimento que estão na sua origem. Francisco tinha
acolhido com alegria a chegada dos seus companheiros e tinha
visto no êxito dos irmãos menores uma graça pela qual dava
graças a Deus. Mas nunca tinha sonhado, ao contrário do seu
contemporâneo, S. Domingos, criar uma ordem de pregadores
especializados que fizessem concorrência ao clero secular e su-
prissem as suas deficiências. Para ele, os irmãos deviam consti-
tuir "um pequeno povo diferente dos povos precedentes e que
se contentaria em possuir, como riqueza, o Altíssimo", seriam
uma fraternidade de homens evangélicos menos preocupados
em convencer e criar polémicas do que em edificar e converter
pelas suas acções e pelo seu testemunho. Ora, diante dos seus
olhos, a sua fundação transformava-se numa ordem religiosa
como tantas outras, desejosa acima de tudo de eficácia apostóli-
ca a curto prazo e pronta, para isso, a renunciar a certos aspec-
tos do género de vida evangélica que lhe pareciam inúteis ou
S. FRANCISCO DE ASSIS 261

incómodos. Instalações fixas, construção de conventos e de igre-


jas, introdução de práticas ascéticas ou litúrgicas de tipo mo-
nástico, relaxação em matéria de pobreza e de simplicidade,
interesse crescente pelos estudos e a ciência, todas estas entor-
ses do ideal primitivo Francisco parece tê-las sentido como ou-
tras tantas traições. Mas falar, como muitas vezes se faz, a
propósito disto, de uma decadência da ordem, a qual teria
começado antes do falecimento do seu fundador, é um abuso de
linguagem que mais não faz do que baralhar as cartas. Trata-se,
mais profundamente, de uma divergência de pontos de vista que
era quase inevitável entre aqueles — os ministros franciscanos,
0 papado — que eram sobretudo sensíveis às necessidades ime-
diatas da Igreja (escalada das heresias, insuficiências do clero,
ignorância religiosa dos leigos) e que procuravam fazer-lhes
lace utilizando para tal essa "massa de manobra" providencial
que era a ordem dos irmãos menores e, por outro lado, o fun-
dador, que, sem ignorar estes problemas, via para além deles.
E que — e talvez o essencial seja isso — Francisco de Assis
eslava muito avançado em relação ao seu tempo. O seu apelo à
li aternidade universal, da qual não excluía nem os animais nem
os elementos, nem mesmo "a nossa irmã, a morte corporal", era
demasiado carregado de consequências para que se apreendesse
imediatamente o seu alcance. Além disso, se ele tinha pessoal-
mente transcendido as clivagens que existiam então na socie-
dade e na Igreja e se tinha pretendido que no seio do movimen-
to a que dera origem não houvesse mais ricos e pobres, letrados
e gente inculta nem, poder-se-ia mesmo dizer, homens e mu-
lheres, estas distinções não tardaram a reaparecer entre os que o
tinham seguido, por amor, é certo, mas sem sempre compreen-
derem onde ele os queria conduzir. Não temos que nos escanda-
llé, ir ou que censurar os seus contemporâneos. Podemos mesmo
pensar que é na medida em que a sua mensagem foi, no decorrer
dos séculos, empobrecida ou deformada que Francisco de Assis
1 (ml i nua a ser uma personagem actual que continua a ser
11 instantemente redescoberta.
262 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Orientação bibliográfica

Escritos (em francês):


O conjunto das obras de S. Francisco e das suas biografias medie-
vais foi publicado nas Éditions franciscaines numa boa tradução fran-
cesa: Saint François d'Assise. Documents, écrits et premiers biogra-
phies, reunidos pelo Pe. Théophile Desbonnets e pelo Pe. Damien
Vorreux, Paris, Ed. Franciscaines, 1968.
Oeuvres de Saint François d'Assise, tradução francesa de Alexan-
dre Masseron, Paris, Éd. du Seuil, 1982.
François d'Assise, Écrits, Paris, Le Cerf, 1981.

Vida de S. Francisco:
E. Renan, "Saint François d'Assise", em Nouvelles Etades d'Histoire
Religieuse, Paris, 1884, pp. 323-352.
P. Sabatier, Vie de Saint François, 2.° ed., Paris, 1931.
I. Gobry, Saint François d'Assise et l 'Esprit Franciscain, Paris, Ed.
du Seuil, 1977.
E. Longpré, Saint François d'Assise et son Expérience Spirituelle,
Paris, Éd. Franciscaines, 1966.
R. Manselli, François d'Assise, Paris, Éditions Franciscaines, 1981.

Cassetes-vídeo:
Podem ser adquiridas na France-Culture (Av. du Président-Kennedy,
n.° 116 Paris XVIe) as cassetes-vídeo da emissão "Un hornme, une
ville: saint François et Assise", que foi transmitida em Julho de 1981.
S. Domingos, "o mal-amado"
André Vauchez

Não se teria a posteridade enganado? Se a figura de S. Fran-


cisco, o Pobre de Assis, suscita estima e simpatia mesmo no
exterior do mundo cristão, a de S. Domingos mantém-se pouco
atraente. Michelet contribuiu em larga medida para fazer de Do-
mingos o "terrível fundador da Inquisição". Sem qualquer in-
dulgência, escrevia ele em 1861: "Ninguém mais do que ele
teve o dom das lágrimas, que com tanta frequência se alia ao
fanatismo.'" Dois historiadores dominicanos, o padre M.-H.
Vicaire e padre G. Bedouelle2, chamaram a si a tarefa de reagir
contra estas ideias que consideram falsas.
Nascido em Caleruega, uma terra castelhana, por volta de
1170, Domingos de Gusmão {Guzman), oriundo de uma família
nobre, foi desde muito cedo destinado ao estado clerical. Por
volta de 1186, foi enviado para as escolas de Palença. Segundo
uma tradição a que não falta verosimilhança, ter-se-ia
distinguido desde essa época pela sua caridade, não hesitando
cm pôr à venda os livros da sua biblioteca para poder distri-
buir esmolas aos pobres depois de uma fome generalizada se
HT abatido na região. Em 1196, o jovem clérigo foi eleito cóne-
go do cabido da catedral de Osma, primeira etapa de uma
carreira eclesiástica brilhante, à qual as suas origens sociais e
it sua formação escolar pareciam destiná-lo.
264 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Em 1203, o jovem subprior do capítulo de Osma acompa-


nhou o seu bispo, Diego, numa missão diplomática que os le-
vou à Dinamarca. Tendo, de caminho, atravessado o condado
de Tolosa e pernoitado nessa cidade, patentearam os êxitos aí
alcançados pela heresia cátara e ressentiram-se disso. Uma se-
gunda missão levou os dois homens à mesma região em
1205-1206; tiveram ocasião de encontrar, em Montpellier, os
legados cistercienses que o Papa Inocêncio III tinha enviado ao
Linguadoque para aí pregarem contra os "Albigenses". Desen-
corajados pelo mau acolhimento encontrado junto das
populações locais, os cistercienses pediram conselho ao bispo
de Osma, que criticou vivamente a amplitude da sua equipagem
e o luxo das suas vestes: "Não é assim, irmãos, que se deve
proceder" — ter-lhes-ia declarado — "pois os hereges mostram
as aparências da devoção e dão às gentes o exemplo mentiroso
da frugalidade evangélica e da austeridade. Portanto, se expondes
maneiras de viver opostas, edificais pouco, destruireis muito e
as gentes recusar-se-ão a aderir [à Igreja católica]."
Domingos não esqueceria esta lição. Renunciou logo ao seu
título de subprior para passar a chamar-se irmão. Com Diego e
alguns clérigos que se lhes juntaram, empreendeu, sem aparato
nem escolta, uma campanha de pregação itinerante através das
províncias eclesiásticas de Narbona e Tolosa. O seu programa
de evangelização baseava-se na imitação dos Apóstolos, tema
que havia inspirado numerosos pregadores do século XII.
Tratava-se de anunciar a palavra de Deus na humildade e na
penitência, de pôr em prática a mendicidade que testemunhava
o abandono à providência na vida quotidiana.
Toda a pretensão à autoridade teria sido mal recebida nesta
região onde os defensores da Igreja romana estavam em vias de
se tornar minoritários. Diego e Domingos aceitaram pois en-
frentar os cátaros e os valdenses por ocasião de controvérsias
públicas que, sem acarretar necessariamente conversões em
grande número, contribuíram para modificar a imagem da orto-
doxia católica. Em 1207, Diego fundou, em Prouille, um centro
S. DOMINGOS, "O MAL-AMADO' 265

de missão e uma comunidade feminina destinada a receber as


jovens vindas do catarismo para a Igreja. Confiou a sua direcção
espiritual ao seu companheiro e voltou depois para a sua dioce-
se, onde veio a morrer pouco tempo depois.
Domingos prosseguiu a sua acção em condições bem difíceis,
porquanto os cisterciences, desiludidos pelos magros resulta-
dos obtidos nesta região, voltaram para o norte da França e a
cruzada provocada pelo assassinato do legado pontifical Pedro
de Castelnau se abateu sobre Tolosa a partir de Julho de 1209.
Apoiado pelo novo bispo de Tolosa, Fulco, Domingos
estabeleceu nesta cidade uma comunidade de clérigos. A sua
missão? Consagrarem-se à salvação das almas assistindo os
prelados no seu ensinamento e esforçando-se por suprir as insu-
ficiencias do clero paroquial. Foram-lhes atribuídas três igre-
jas, cuja manutenção era assegurada pela outorga de um sexto
dos dízimos da diocese.
Esta nova congregação de pregadores foi aprovada em 1215
pelo bispo de Tolosa, com o qual Domingos se dirigiu ao con-
cílio de Latrão IV a fim de obter uma confirmação do Papa.
Inocêncio III ratificou o título de Ordo Fratrum Praedicatorum
(Ordem dos Irmãos Pregadores). Contudo, pelo facto de o
Concílio ter acabado de proibir a criação de nova ordens
religiosas, este impôs-lhe a adopção de uma regra que existia
já, a de Santo Agostinho.

Mendigar para viver

A ordem dominicana não teria sem dúvida conhecido o êxi-


to de que temos conhecimento se o seu fundador não tivesse
tomado, no fim do ano de 1217, a iniciativa de abandonar a
região na qual tinha nascido. Entretanto, a situação tornara-se
i-xtremamente tensa no Linguadoque onde parecia que a única
saída seria o recurso à coacção e à guerra para reprimir a he-
resia triunfante. A ideia de génio do fundador foi dispersar os
seus companheiros — ainda pouco numerosos nesse momento
266 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

— peios grandes centros urbanos da cristandade: Paris, Orleães,


Bolonha, Madrid e Segóvia. Nestas cidades — as três primeiras
eram centros universitários afamados —, os irmãos pregadores
iriam consagrar-se aos estudos e ao reforço da sua preparação
teológica visando a pregação. A crer nos testemunhos recolhidos
quando do processo de canonização de S. Domingos, o seu fervor
e a austeridade do seu género de vida impressionaram os meios
intelectuais no seio dos quais fizeram numerosos recrutas de
valor.
Com o apoio da Cúria, que a cumulava de privilégios, a or-
dem dominicana depressa adquiriu uma dimensão universal:
quando da morte do seu fundador, em 1221, contava já algumas
centenas de irmãos, vinte cinco conventos e cinco províncias.
Não tardaram a associar-se-lhes comunidades femininas em
Itália, tais como as de Santa Inês em Bolonha, dirigida por Diana
de Andalo, e a de S. Sisto em Roma. No cabido geral de 1221,
ficou decidido o envio de irmãos a Inglaterra e à Hungria.
No ano anterior, em 1220, a instâncias do seu fundador, os
pregadores tinham introduzido nas suas instituições a renúncia
a toda a propriedade e a todo o rendimento. Isso implicava o
recurso à mendicidade para sobreviver. Estava pois achada a
fórmula fundamental das ordens mendicantes. Desde 1220 que
o papado apelara a Domingos para que participasse, ao lado de
outros religiosos, numa grande missão, animada pelo cardeal
Hugolino, na Lombardia. Em 1231, isto é, dez anos após a morte
do santo, Hugolino, tornado papa sob o nome Gregório IX, ins-
tituiu a Inquisição. Em 1233-1234, confiou aos seus filhos es-
pirituais o cuidado de perseguir e de extirpar a heresia do
Linguadoque e da Provença. Esses mesmos anos viram a canoni-
zação de Domingos (1234).
Em certos aspectos, os irmãos pregadores surgem como uma
criação menos original do que os irmãos menores de S. Francis-
co, quanto mais não seja porque adoptaram, como se disse, uma
regra já antiga, a de Santo Agostinho. Além disso, enquanto o
"Pobre de Assis" tinha voluntariamente associado na sua or-
S. DOMINGOS, "O MAL-AMADO' 267

dem clérigos e leigos num pé de igualdade, Domingos de Gus-


mão fundou uma ordem de clérigos que recebiam normalmente
a ordenação sacerdotal. Os conversos (religiosos não sacerdotes)
que os assistiam eram remetidos para as tarefas materiais: asse-
gurar a vida quotidiana dos conventos e ganhar o alimento dos
irmãos clérigos indo mendigar. Parece que S. Domingos dese-
jou conferir-lhes um poder importante no seio da ordem,
confiando-lhes a inteira responsabilidade do aspecto temporal a
fim de que os pregadores, livres de toda a preocupação, pudessem
entregar-se unicamente a tarefas espirituais. Mas os seus com-
panheiros opuseram-se. Ateve-se assim a fórmulas mais tradi-
cionais, inspiradas em Cister e Prémontré, onde os conversos se
achavam subordinados aos clérigos em todos os planos.
Seria injusto dar ênfase unicamente ao que podia haver de
arcaico nas estruturas edificadas por S. Domingos. Com efeito,
como o Poverello, ele tinha compreendido a importância fun-
damental da palavra na transmissão e na educação da fé cristã.
Mas os pregadores eram clérigos e, longe de se oporem à cultu-
ra livresca ou de considerarem com suspeita as escolas e as uni-
versidades então em pleno desenvolvimento, procuraram logo
apoiar-se nelas para tornar mais eficaz o seu ministério. Do-
mingos dava o exemplo, trazendo sempre consigo o Evangelho
de S. Mateus e as Epístolas de S. Paulo, prescrevendo aos seus
irmãos que "não levassem consigo senão comida, roupas e li-
vros".
O objectivo que Domingos designara para os irmãos prega-
dores era simples e grandioso: "Falar com Deus e de Deus."
Para tal, não hesitara em dar prioridade ao trabalho intelectual;
na recitação do oficio, o ritmo da salmodia não devia ser dema-
siado lento "para não prejudicar os estudos" e ele tinha previsto
numerosos casos de dispensa a fim de que a regra não pudesse
em caso algum tornar-se um obstáculo ao cumprimento da mis-
são fundamental do pregador. Esta aposta na cultura erudita deu
os seus lucros: num mundo onde o saber teórico e prático
começava a desempenhar um papel importante e onde os profes-
268 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

sores de teologia, de filosofia e de direito em breve iriam constitu-


ir um terceiro poder, ao lado do Sacerdócio e do Império, havia
lugar, no Ocidente, para uma ordem de "doutores".
Todavia, S. Domingos tinha convivido bastante com os
valdenses e com os cátaros, no Linguadoque e em Itália, para
saber que a ciência dos pregadores não bastava para induzir a
adesão dos seus auditores. De resto, ele próprio parece ter sido
mais um homem de oração que de cultura, ainda que esses dois
aspectos da vida do espírito fossem indissociáveis aos seus olhos.
Para além de tudo o mais, ele achava-se animado de uma grande
compaixão pelas almas em perigo e desejava ardentemente a
salvação dos heréticos, dos pagãos e até dos condenados cujo
destino póstumo lhe arrancava abundantes lágrimas — que es-
tão na origem do juízo severo de Michelet.
A despeito de uma lenda tenaz, Domingos nunca foi inquisi-
dor, quanto mais não fosse porque a Inquisição, no sentido em
que se entende habitualmente o termo, não existia ainda. Mais:
ele tinha compreendido que a sua mensagem e a dos seus irmãos
não seria credível senão fosse apresentada na humildade e na
pobreza. Por isso recusou, por diversas vezes, o episcopado e
quis que os pregadores vivessem como os Apóstolos: andar de
pés descalços, não trazer consigo ouro nem prata, mendigar e
proclamar a vinda do Reino de Deus. S. Domingos não é menos
apegado à pobreza que Francisco, mas atribui-lhe um lugar di-
ferente. Para ele, ela é antes de mais uma arma contra a heresia;
é um instrumento, não um absoluto, nem sequer um meio de
partilhar as condições de vida dos mais desprotegidos. Os do-
minicanos mostraram-se pois rapidamente mais flexíveis que
os franciscanos neste domínio, aceitando sem escrúpulos pos-
suir as igrejas que lhes davam e os terrenos nos quais eram cons-
truídos os seus conventos.
Tudo isso não basta todavia para explicar a má reputação —
persistente — de Domingos. Já no século XIII, um cronista fran-
ciscano — é certo que bastante dado à má-língua —, Salim-
beno de Parma, notava com uma ironia pérfida que os irmãos
S. DOMINGOS, "O MAL-AMADO' 269

pregadores tinham esperado mais de dez anos antes de se aper-


ceberem da santidade do seu fundador! Mesmo que se recuse
este testemunho, como faz o padre Vicaire, não se pode deixar
de ficar surpreendido com a "discrição" com a qual Jourdain de
Saxe, o seu primeiro sucessor, evoca o papel de S. Domingos
na sua obra sobre as origens da ordem, que data de 1233. É
verdade que S. Domingos não tem nem a profundidade espiri-
tual de um Santo Inácio — não deixou qualquer obra escrita
significativa — nem o génio poético e religioso de um S. Fran-
cisco. Muito mais que este último, Domingos de Gusmão
identifica-se com a sua ordem e não é, afinal de contas, senão o
primeiro dos dominicanos. Talvez seja afinal justificadamente
que sobre ele recaíram, com o decorrer dos séculos, todas as
simpatias ou as antipatias que os seus filhos espirituais foram
inspirando.

Notas

1
Michelet, Oeuvres Completes, Paris, éd. P. Viallaneix, 1974, t. 4,
p. 657.
2
M.-H. Vicaire, Histoire de Saint Dominique, Paris, Le Cerf, 1982,
2 vols. Trata-se da segunda edição, muito corrigida e enriquecida, de
uma obra aparecida com o mesmo título em 1957. G. Bedouelle, Do-
minique ou la Grâce de la Parole, Paris, Fayard/Mame, col. "Douze
hommes dans l'histoire de l'Église", 1982; W. A. Hinnebusch, Breve
Histoire de l 'Ordre Dominicain, Paris, Le Cerf, 1990.
Estêvão de Bourbon, o inquisidor exemplar
Jacques Berlíoz

Estêvão (Etienne) de Bourbon, inquisidor dominicano do


século XIII, autor de uma volumosa recolha de narrativas
exemplares para uso dos pregadores, é uma personagem que se
manteve durante muito tempo desconhecida. A sua obra,
amplamente explorada, mesmo pilhada, durante toda a Idade
Média, manteve-se anónima durante muito tempo. A sua noto-
riedade póstuma data do início do século XVIII1. E só em 1877
é que a personagem nasceu verdadeiramente para a história,
quando foi publicada uma edição abreviada da sua recolha.
De há alguns anos a esta parte, o interesse crescente pela
cultura popular da Idade Média valeu a Estevão de Bourbon a
atenção dos investigadores2. Esta espantosa figura de inquisi-
dor acabou mesmo por tocar o grande público; a antiga assistente
de François Truffaut, Suzanne Schiffman, dedicou-lhe um filme
cm 1987 com o título — inexacto, pois este dominicano não era
monge — Le Moine et la Sorcière. Em pouco tempo, Estevão de
Bourbon tornou-se uma verdadeira "diva" da história medieval.
Quem era então ele e como é que o conhecemos? As princi-
pais informações são-nos fornecidas pela recolha de episódios
variados que ele redigiu no convento de Lião entre 1250 e 1261
aproximadamente. Muitas vezes ele mesmo surge em cena e
• ita a sua experiência de pregador e inquisidor. Possuímos
272 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

também uma curta nota biográfica redigida pelo dominicano


Bernardo Gui no início do século XIV. Pela primeira vez, fica-
mos a saber o nome do inquisidor — que não mencionava nun-
ca senão o seu nome próprio: "Irmão Estevão de Bourbon". A
nota indica seguidamente que ele nasceu em Belleville, na
diocese de Lião, isto é, na actual Belleville-sur-Saône, pequena
localidade de Beaujolais situada a uns quinze quilómetros a norte
de Villefranche, na margem direita do Sona. Dá-nos por fim a
data aproximada da sua morte, 1261, e o local: o convento dos
dominicanos de Lião. Os arquivos deste convento, que teriam
podido informar-nos, foram infelizmente destruídos em grande
parte, em Abril de 1562, quando da pilhagem do convento pe-
los protestantes, conduzidos pelo impiedoso barão dos Adrets.
As origens precisas do irmão Estevão são difíceis de estabele-
cer. Ele mesmo nada nos diz da sua família. O nome de Bour-
bon é comum em Beaujolais e em Forez. Entre os benfeitores
das igrejas de S. João e de S. Paulo de Lião, figuram vários
membros de uma família dita de Bourbon, à qual muito prova-
velmente ele pertencia. O que é certo é que ele não tem nenhum
elo de parentesco com os senhores de Bourbon3.
Etienne nasceu pois em Belleville-sur-Saône, entre 1190 e
1195. Faz os seus primeiros estudos na escola episcopal de
Mâcon. Conta-nos aliás uma tradição, a propósito desta igreja
de S. Vicente, que ele faz remontar ao fim do século XI. Os
pássaros sujavam-na com os seus excrementos e impediam o
bom desenrolar da missa. Como não era possível enxotá-los, o
bispo Landri de Berzé (147-1096) excomungou-os — a
excomunhão dos animais não era rara na Idade Média e tinha o
sentido de uma poderosa maldição —, ameaçando-os de morte
se persistissem em querer penetrar na igreja. Abandonaram o
local para não mais voltar. "Eu mesmo" — escreve Estevão —
"vi uma multidão que fazia ninho em redor de toda a igreja e a
sobrevoava. Mas nunca vi lá entrar nenhum pássaro. E todos
pensavam que se alguém capturasse um pássaro e o introduzisse
à força na igreja, esse pássaro morreria imediatamente."
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 273

O jovem deve contar-se entre os melhores alunos desta es-


cola, uma vez que o voltamos a encontrar, em 1215, na univer-
sidade de Paris. Deixou-nos preciosos relatos sobre a capital e a
vida universitária do seu tempo: acorre a Notre-Dame quando
para lá levam as vítimas do "mal des ardents"4e vê-os curarem-se
ou expirar diante do adro; conta como um dos seus companhei-
ros recorreu a um mágico para encontrar os livros que lhe ti-
nham roubado...
Durante o Verão de 1217, um acontecimento capital vai re-
volver o destino deste sábio estudante: S. Domingos, que fun-
dou a sua ordem dois anos antes, decide dispersar pelo mundo o
irmãos da sua comunidade de Tolosa. Sete deles são enviados a
Paris para "lá estudar, pregar e fundar um convento". Instalam-se
perto de Notre-Dame e depois, em 1218, na casa de S. Tiago
(Saint-Jacques), em pleno bairro estudantil. Estêvão de Bourbon,
seduzido pelo fervor e o dinamismo desta nova ordem, não tar-
da a entrar nela. Entre os fundadores de S. Tiago, conheceu
pessoalmente Mateus de França, primeiro prior do convento,
enviado pelo próprio S. Domingos, assim como vários irmãos
que tinham acompanhado este último ao Linguadoque quando
ele pregava contra os Cátaros. Mas Estevão de Bourbon parece
não ter encontrado S. Domingos, que morre em Agosto de 1221.
Ele pertence já à segunda geração dos dominicanos, os que
entraram na ordem levados não pelo santo fundador propria-
mente dito, mas pelos seus discípulos mais próximos.
Estêvão de Bourbon, após entrar na ordem, não fica em Pa-
ris — tinha pouco gosto pelos estudos e pelas subtilezas teoló-
gicas —, mas regressa à sua terra natal. No fim de 1218 ou
logo no começo de 1219, Arnaldo de Tolosa e Romeu de Lívia
fundaram o convento dominicano de Lião. Os irmãos, acolhidos
pelo arcebispo Reinaldo {Renaud) de Forez (1193-1226),
começaram por se estabelecer na colina de Fourvière. Em breve
a deixam para se irem instalar na Rigaudière, onde permanecerão
até 1236. Nesta data, o abade de Ainay cede-lhes, por trás da
casa dos Templários, o terreno onde se encontrava a capela de
274 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Notre-Dame de Confort. O convento ocupa a partir de então um


lugar central na cidade, entre o Sona e o Ródano, a alguns pas-
sos da actual praça Bellecourt.
Estêvão de Bourbon chega a Lião por volta de 1223. Lião
pertence então, não ao reino de França, mas ao Império, tal como
a margem esquerda do Sona e do Ródano. Mas nenhum dos
sucessores de Frederido Barba-Roxa se interessou realmente pela
cidade, que está, em contrapartida, aberta à influência francesa.
O todo-poderoso arcebispo exerce aí o poder condal; ela é en-
tão um centro vital da cristandade. Acolherá em 1245 o papa
Inocêncio IV, que, fugindo do imperador Frederico II, ali orga-
nizará o concílio dito de Lião I. Lião viu igualmente nascer um
importante movimento religioso contestatário, o dos valdenses,
condenado por heresia em 1184. Esses leigos, conduzidos por
um mercador, Valdo, aspiravam a viver na pobreza, em
conformidade com o Evangelho. Estêvão de Bourbon esteve de
resto muito ligado a um certo Bernardo Ydros, que tinha tradu-
zido para os valdenses livros da Bíblia em linguagem vulgar.
O convento dominicano é um verdadeiro viveiro de talen-
tos: grandes personagens da ordem de lá saíram, tais como Hugo
de Saint-Cher, futuro cardeal, Humberto de Romans, futuro
mestre geral da ordem, Guilherme Peyraut, Chabert de Sabóia
(que veio a ser dclarado pela Igreja bem-aventurado), ou Pedro
de Tarentaise, arcebispo de Lião, cardeal e finalmente Papa sob
o nome de Inocêncio V. O franciscano Fra Salimbeno perguntou
um dia a Guilherme Peyraut por que razão os irmãos prega-
dores não tinham nenhuma instalação em Vienne (no Delfinado).
Guilherme respondeu que preferiam ter um único convento em
Lião mas bom. Estêvão de Bourbon encontra-se pois em exce-
lente companhia.
E deste convento que ele vai irradiar para cumprir inces-
santes missões de pregação e de inqusição. S. Domingos e os
seus irmãos receberam com efeito do Papa, desde o mês de Ja-
neiro de 1217, o poder de pregar por toda a parte. Além do
mais, Estêvão de Bourbon é um pregador geral, isto é, tem a
possibilidade de pregar em todo o lado, sem a autorização do
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 275

prior do seu convento, e é totalmente livre de se deslocar. A sua


vida assemelha-se à dos seus irmãos, que deixam o convento
durante vários dias, por vezes várias semanas, e percorrem uma
região determinada de antemão, seja para pregar (ao ar livre ou
nas igrejas), seja para inquirir. São em princípio acompanhados
por um outro irmão que lhes obedece em tudo "como ao seu
próprio prior".
Os irmãos pregadores circulam a pé, com um bastão na mão.
Vestidos pobremente, não levam dinheiro consigo. Têm por
bagagem alguns livros, em particular certos livros da Bíblia.
Têm de mendigar a comida ou recebê-la dos seus auditores,
assim como o alojamento. Depois da sua missão, regressam ao
convento para aí recuperarem as forças e refazerem os seus co-
nhecimentos de teologia.
Estêvão de Bourbon percorre sobretudo a região lionesa,
nomeadamente a zona de Dombes e da Borgonha. Filho da terra,
falando a língua dos habitantes, deve sentir-se particularmente
à vontade. A região que conhece melhor é sem dúvida alguma o
actual departamento de Saône-et-Loire. Faz estadas em Cluníaco,
em Chalón, em Marcigny. Mas não se acantona só na Borgonha
meridional: prega contra os heréticos albigenses por volta de
1226 em Vézelay; encontramo-lo em Fontaine-Iès-Dijon, em
Dijon (depois de 1240) e em Auxonne.
Faz igualmente incursões para leste e para nordeste:
demora-se em Besançon; assiste em Reims no ano de 1223 ou
de 1226 à sagração de um rei de França — Luís VIII ou S. Luís;
participa em 1239 no processo de heréticos champanheses, no
Mont-Aimé; atravessa a diocese de Toul na Lorena. As suas
missões levam-no também a Forez e ao Maciço Central: em
Sury-le-Comtal, perto de Montbrison, está em contacto com a
lamília condal de Forez e em Saint-Pourçain (Allier), convoca-
do pelo bispo de Clermont Hugo de la Tour, interroga heré-
f icos. Mais ao sul, prega na diocese de Valence e chega mesmo
ii ir até ao Rossilhão, na diocese de Elne; a sueste, atravessa
M Sabóia sem dúvida no intuito de se dirigir ao Piemonte.
276 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Recolhe numerosas histórias factuais sobre esta região, tal como


uma lenda sobre a queda do monte Granier (1248) — uma das
mais importantes catástrofes naturais da Idade Média ocidental5
— ou o relato da caça selvagem empreendida pelo rei Artur ao
monte do Gato, que transcreve por ter ouvido contá-la. Descreve
a rude existência dos pastores saboianos com quem teve ocasião
de contactar.
Estêvão de Bourbon é um pregador infatigável. A maior parte
dos episódios factuais que presenciou começam por estas
palavras: "Estava eu a pregar na diocese de..." Pregar é para ele
um meio de converter e de incitar à penitência: é também
confessor, pois, como diz Humberto de Romans, "semeia-se pela
pregação, mas colhem-se os frutos pela confissão". É preciso
que se saiba que, desde 1215, cada cristão tem a obrigação de
se confessar pelo menos uma vez por ano. A concorrência entre
os sacerdotes seculares e as ordens mendicantes é, neste ter-
reno, muitas vezes viva! A confissão também é concebida pelos
dominicanos como um meio de melhor conhecer as consciên-
cias: não é raro que Estêvão de Bourbon seja posto ao corrente,
quando de uma confissão, de práticas supersticiosas.
Corajoso, não hesita em afrontar o perigo para ganhar almas.
Conta por duas vezes como tentou convencer um salteador da
estrada real, de nascimento nobre, que havia sete anos vivia
escondido no meio dos bosques, desconfiando de toda a gente,
mesmo dos cúmplices dos seus crimes. Malogrou na sua tenta-
tiva e o salteador foi enforcado.
Estêvão de Bourbon é um dos primeiríssimos inquisidores:
esse ofício é-lhe confiado por mandado apostólico por volta de
1236 (em 1231, o Papa nomeava o seu primeiro delegado para
o Império, escolhido entre os dominicanos; no ano seguinte, o
sistema estendia-se à França). Ele acrescenta então à pregação
o exame e o interrogatório dos heréticos. O irmão Estêvão não
é um inquisidor cruel e sanguinário, como por exemplo Roberto
le Bougre (Velhaco), inquisidor-geral para o Norte da França,
que mandou queimar um grande número de heréticos e acabou
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 277

destituído e encarcerado. É certo que o nosso dominicano


aprovou a execução no Mont-Aimé, na Champanha, em 1239,
de mais de 180 heréticos, após a sentença proferida pelo mes-
mo Roberto o Velhaco, sentença que deu origem, em Roma, a
um afluxo de protestos. Para ele, os heréticos não são mais que
horror e fedor: não o espanta que o cheiro horrível de um herético
particularmente obstinado e queimado longe de Clermont
consiga chegar até à cidade.
O irmão Estêvão conhece bem os heréticos: elabora dos seus
"erros" um longo catálogo, que será retomado por bastantes
inquisidores, nomeadamente por Bernardo Gui, no seu Manuel
de ITnquisiteur. Mas se convém lutar a todo o momento contra
a heresia, não se trata nunca de acusar com ligeireza. As narra-
tivas que dão conta da sua própria actividade inquisitorial mos-
tram um homem calmo, comedido, prudente, procurando antes
do mais chamar ao redil as ovelhas tresmalhadas. Uma nobre
dama foi um dia ter com ele para se confessar herética e digna
da fogueira: Estevão fá-la confessar que detesta os seus
pensamentos heréticos e manda-a embora em paz com ela mes-
ma.
O inquisidor Estêvão também não dá fé facilmente às denún-
cias. E quando o dominicano põe termo à superstição que rei-
nava perto de Villars-lès-Dombes em torno de um santo cão —
episódio admiravelmente estudado por Jean-Claude Shmitt —,
•i sua sentença é das mais moderadas: estamos a braços com um
inquisidor intratável mas prudente. É preciso não o julgar à luz
do que foi a Inquisição da Península Ibérica dos séculos XV e
XVI.
Esta actividade missionária e inquisitorial dura perto de trinta
mos, de 1223 a 1250 aproximadamente. Estêvão de Bourbon
iftira-se então, com os seus sessenta anos de idade, para o con-
vento de Lião para aí redigir o seu testamento espiritual: uma
recolha de episódios exemplares. Os pregadores, que devem
nesta época dirigir-se não a um público letrado mas ao "povo" e
nos leigos, vêem-se com efeito confrontados com um grave pro-
blema: como solicitar a atenção do auditório, pouco inclinado a
278 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

escutar argucias teológicas e pronto a deixar-se adormecer? Pode


rechear-se o sermão de historietas destinadas a ilustrá-lo para
convencer os auditores, O método não é novo: não pregou Cris-
to por meio de parábolas? No século XII, os cistercienses utili-
zam igualmente nos seus sermões episódios factuais morais. Mas
este modelo de pregação por meio da utilização maciça de nar-
rativas exemplares amplifica-se e torna-se preponderante no de-
curso do século XIII, sob o impulso das ordens mendicantes,
dominicanos e franciscanos. Daí uma procura muito forte da
parte dos pregadores, impacientes por encontrar narrativas quan-
do preparam os seus sermões. Essas histórias são designadas na
Idade Média pelo nome latino de exempla.
Desejoso de ser útil aos seus confrades, Estêvão de Bourbon
começa então, por volta de 1250, um volume que deve propor
não só narrativas exemplares, como ainda argumentações teo-
lógicas, acompanhadas de citações bíblicas e patrísticas sobre
todos os assuntos abordados nos sermões. O título que dá à obra
é explícito: "Aqui começa" — escreve no prólogo —• "o Tratado
das diversas matérias a pregar". Este tipo de obra está na altura
por inventar. Não se trata certamente da primeira recolha de nar-
rativas exemplares — os cistercienses tinham já composto obras
dessas — nem a primeira obra que alia narrativas, raciocínios de
ordem escolástica e citações: Tiago de Vitry havia já redigido,
entre 1228 e 1240, ano da sua morte, recolhas de sermões-mode-
lo. Mas trata-se da primeira obra que oferece, sob a forma de um
tratado único, uma tripla matéria para compor um sermão.
Estêvão de Bourbon opta por dividir a sua recolha segundo
os sete dons do Espírito Santo. Mas, surpreendido pela morte,
não chega a terminá-la. A recolha contém portanto apenas cin-
co partes que tratam dos dons de temor, de piedade, de ciência,
de força e de conselhos. Também esta última parte se encontra
inacabada. O conjunho da vida cristã é todavia abordado, uma
vez que o primeiro dom é consagrado aos fins derradeiros (Morte,
Purgatório, Inferno, Juízo Final), o segundo a Cristo, à Virgem
e à misericórdia, o terceiro à penitência e às suas obras (con-
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 279

trição, confissão, jejum, peregrinação e cruzada), o quarto — o


mais importante em volume — aos pecados capitais, e finalmente
o quinto às virtudes da prudência, da temperança e da força. O
sexto dom deveria ter sido consagrado aos dogmas e aos artigos
de fé e o sétimo ao amor de Deus.
Os manuscritos do seu tratado testemunham-no: Estêvão de
Bourbon faz questão de que o seu livro seja utilizado eficaz-
mente. Remete frequentemente de uma parte para outra. Para
atrair o olhar do leitor, os anúncios das diversas subdivisões são
sublinhados a vermelho, tal como os títulos marginais das nar-
rativas. O manuscrito mais antigo que possuímos pertenceu, na
Idade Média, à biblioteca da Sorbona: encontrava-se entre as
obras "usuais" e preso por uma corrente à sua estante para não
ser roubado.
A recolha contém perto de três mil narrativas. Há que in-
cluir neste número as comparações extraídas dos bestiários
(pequenas enciclopédias sobre os animais) ou dos lapidários
(obras consagradas às propriedades dos minerais). As fontes
dos episódios são muito variadas. O autor foi buscar grande
número deles a documentos escritos cuja lista elabora no prólo-
go. Aí encontramos vidas de santos — e nesse aspecto a recolha
é uma verdadeira colecção de lendas —, enciclopédias, obras
históricas. Os exempla que põem em cena a Antiguidade pagã
(Oriente, Grécia, Roma) e são empregues sobretudo para pro-
por modelos de virtude ou exemplos a não seguir, representam
perto de 10% do total das narrativas. A maior parte das vezes, o
autor não copia os textos palavra por palavra, mas resume-os e
adapta-os ao seu objectivo. A rica biblioteca do convento de
Lião — infelizmente desaparecida na sequência da pilhagem a
que já fizemos referência — forneceu-lhe o essencial da sua
documentação. Mas aconteceu-lhe, ele mesmo o diz, recopiar
uma narrativa interessante na biblioteca de uma abadia onde se
achava de passagem.
Alguns dos episódios factuais provêm da experiência pessoal
e das recordações de Estêvão de Bourbon. Outros ainda
280 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

devem-se a informadores — clérigos ou leigos — que o


dominicano tem geralmente o cuidado de citar: fica esclarecida
a autoridade da narrativa. Esta, para ser eficaz, deve ser com
efeito apresentada como uma história verídica, ou pelo menos
verosímil. É assim possível reconstituir as redes de relações do
irmão Estêvão6. Não nos surpreenderá encontrar em primeiro
lugar dominicanos. Estêvão vai buscar exempla tanto aos ir-
mãos mais conhecidos e afamados da ordem, como é o caso de
Jordão de Saxe ou Humberto de Romans, como aos anónimos.
Estas narrativas que geralmente só nos foram dadas a conhecer
através dele são preciosas para a história dos primórdios da
ordem. Assim, Guilherme de Limoges, subprior do convento
de Saint-Jacques em Paris, relata-lhe como o diabo procurava,
sob a forma de um dominicano, desviar do seu apostolado os
irmãos parisienses.
Estêvão de Bourbon encontra igualmente franciscanos como
Guilherme de Cordelle, principal agente do papado para a pre-
gação e a colecta dos fundos da cruzada. Convive também os
pastores das diversas dioceses que percorre: Aimon, bispo de
Mâcon; Reinaldo II de Forez, arcebispo de Lião; Nicolau de Fla-
vigny, arcebispo de Besançon; Hugues de la Tour, bispo de Cler-
mont. Os sacerdotes de paróquia dão igualmente o seu contributo.
Os próprios aldeãos, na condição de serem pessoas honestas
e dignas de fé, podem tornar-se informadores; relatam em geral
um feito público, muitas vezes um escândalo que perturbou a
comunidade. Um exemplo único bastará: "Aconteceu na dio-
cese de Mâcon que um homem foi levado perante o tribunal
eclesiástico pelo seu capelão e os seus vizinhos. Foi acusado e
excomungado publicamente. Um irmão pregador exortou-o a
deixar uma das suas parentas ou aliadas que tinha então por
concubina. Nem as ameaças nem as lisonjas conseguiram con-
vencê-lo. Crendo ainda poder chafurdar por muito tempo no
seu pecado opondo-se a Deus, deixou o irmão sem mudar de
parecer. No caminho de volta, depois de encontrar o pai e de se
pôr a falar com ele, foi subitamente fulminado pela morte e
logo ali ficou caído, na estrada. Foi o que me contaram, quando
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 281

eu pregava nessa terra a que chamam La Chapei le de Dun, o


seu pai e o capelão. Estavam igualmente presentes os que o
haviam admoestado vivamente e diante dos quais ele pereceu,
fechado na sua obstinação."
Estêvão de Bourbon tem contactos frequentes com a aristo-
cracia local, sobretudo borgonhesa. Entre as suas relações mais
prestigiosas, duas mulheres. Sibila de Hainau, cunhada do rei
de França Filipe Augusto, esposa de Guichard IV, o senhor de
Beaujeu, fornece-lhe duas narrativas: uma sobre a morte de Filipe
Augusto, a outra sobre a bem-aventurada Alpaís de Cudot7.
Depois, Alix de Vergy, mulher do duque de Borgonha Eudes
III, que trouxe os dominicanos para Dijon em 1237. Entre os
homens, citemos Calón de Fontaine, sobrinho-neto de S. Ber-
nardo e Guilherme de Contres, senhor nivernês que se tornou
ilustre durante a guerra contra os Albigenses. Estêvão vai buscar
ao primeiro o relato da conversação do pai fundador de Claraval
e ao segundo o da aparição póstuma de um parente que lhe foi
pedir que restituísse os bens mal adquiridos durante a sua vida.
Estêvão de Bourbon fornece por outro lado numerosas infor-
mações sobre a aristocracia borgonhesa e particularmente so-
bre esses senhores rapinantes, que vemos a exercer as suas seví-
cias durante o século XII e no começo do século XIII.
Para além do seu interesse descritivo, esta recolha do irmão
Estêvão, prodigioso viveiro de matérias narrativas, permite
apreender o catecismo "exemplar" do século XIII, pois o exem-
plum é feito para transformar o auditor, para o emendar. Esta
catequese resume-se em três pontos: 1) inspirar o medo da con-
denação eterna; 2) mostrar o caminho da salvação; 3) lutar con-
tra os vícios.
Em meados deste século XIII, a existência do Além, onde os
mortos desfrutam de uma retribuição determinada pelo com-
portamento que tiveram na Terra, é uma certeza bem estabele-
cida. Para evitar a condenação eterna, é preciso morrer de acor-
do com o Senhor, no perdão das faltas cometidas. É por isso
que Estevão insiste na necessidade de pensar incessantemente
282 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

na morte. Os exempla são pois pequenos lembretes que os fiéis


levam consigo, após o sermão, e que evocam a todo o momento
um fim talvez iminente. Daí uma insistência particular nos hor-
rores do Inferno e do Purgatório, que devem provocar um temor
salutar8. A simples evocação do quarto, da cama e da coberta
que viria a ter no inferno leva assim um estudante a entrar para
os irmãos pregadores.
O caminho da salvação passa pela confissão, a qual ajuda a
triunfar sobre o Maligno. É testemunha disso esta narrativa, lo-
calizada na Irlanda e que lhe foi trazida por um irmão dominicano
de passagem por Lião. Um homem presta homenagem ao Diabo
e traz o seu selo impresso na mão. Ouve pregar o irmão e
confessa-se-lhe: o selo desaparece e o diabo deixa de o reco-
nhecer. As obras de penitência e de misericórdia são os comple-
mentos indispensáveis da confissão. E as múltiplas vantagens
do jejum, da peregrinação, da cruzada, das esmolas são
demonstradas a poder de exempla. O apelo aos santos e a Nossa
Senhora também não é menos recomendado. Estêvão de Bour-
bon tem o cuidado de narrar milagres contemporâneos. Conta
deste modo, segundo o testemunho d'"os que estavam
presentes", como Maria manteve em vida um homem do conde
de Macon que guardava o castelo de Roche-de-Solutré —
passava-se isto em 1231 aproximadamente — até que um
pregador foi receber a sua confissão. É verdade que o soldado
observava escrupulosamente as vigílias da mãe do Senhor.
É finalmente necessário denunciar os vícios, com toda a
veemência possível. O tratado consagra a isso mais de metade.
O autor ordena, sob os sete pecados capitais, todos os crimes do
seu tempo. Alguns exemplos: sob o orgulho, lá estão as here-
sias, as "superstições", tal como a garridice das mulheres, essas
aliadas de Satanás, ou o escandaloso comportamento dos
prelados. Sob a cólera, os blasfemos. Sob a avareza, lá estão
condenados os uãurários, os senhores rapinantes, os mercadores
fraudulentos, os advogados rapaces, os prelados — ainda os
prelados — ávidos de riquezas9. Sem falar da luxúria, de conse-
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 283

quências terríveis: um normando, mestre das artes em Paris, é


assim feito em pedaços ao penetrar em casa da sua amante, uma
mulher casada. Tinha todavia sido prevenido por duas visões
sucessivas.
Não se poderá ver em Estêvão de Bourbon um brilhante teó-
logo ou um agradável narrador. Ele fez parte desses irmãos obs-
curos, humildes mas ao mesmo tempo eficazes artesãos da
reconquista do povo cristão pela Igreja no século XIII. E este
homem cuja palavra se virava sobretudo para a gente do povo
soube — e é o que constitui todo o apreço e todo o sabor da sua
obra — escutar e conservar a sua.

Notas
1
Os irmãos J. Quétif e J. Échard tinham-lhe dedicado uma impor-
tante nota no seu catálogo dos escritores dominicanos surgido em 1719.
2
A recolha de Etienne de Bourbon foi objecto de três teses da Ecole
desChartes, por J. Berlioz em 1977, D. Ogilvie-David em 1978eJ.-L.
Eichenlaub em 1984. A edição integral do tratado em língua francesa
encontra-se em preparação para as Éditions Brepols sob a direcção de
J. Berlioz. Entretanto, cf. a edição parcial de A. Lecoy de la Marche,
Paris, 1877.
3
M.-A. Chazaud, Etude sur ta Chronologie des Sires de Bourbon
(...), 1865, Moulins, 2.a ed., 1935, pp. 350-351.
4
O mal des ardents era uma doença terrível devida a um fungo
parasita do centeio. Provocava convulsões ou gangrena. A morte sobre-
vinha no meio de dores atrozes (cf.¿'Histoire, n.° 74, p. 66). [Nota da
edição portuguesa: trata-se de uma espécie de eripsela gangrenosa.
Ver: As Doenças Têm História, nesta mesma edição.]
5
J. Berlioz, "L'effondrement du mont Granier en Savoie (fin 1248)",
in Le Monde Alpin et Rhodanien. 1987/1-2, pp. 7-68.
6
V. Massignon, Etude sur la Transmission et les Représentations
des "exempla" d'Etienne de Bourbon (...) (Dissertação de mestrado,
Paris-I), 1976.
7
Alpaís, nascida na aldeia de Cudot (Yonne), de pais pobres, foi
atingida por uma doença grave aos doze anos de idade. Nossa Senhora
curou-a por volta de 1170. Manteve-se contudo de cama, sem receber
284 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

outro alimento além da comunhão dominical. Operou milagres, teve


visões, gozou de êxtases, predisse o futuro. Atraiu numerosos pe-
regrinos, como a esposa do rei de França Luís VII, Adélia de Cham-
panha, que a foi visitar por diversas ocasiões. Morreu em Novembro
de 1211.
8
O Purgatório é aliás, na obra de Estêvão de Bourbon, enquadrado
num contexto de medo escatológico onde se abeira do Inferno; cf. J.
Le Goff, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard, 1981, pp.
416-423. Sobre a concepção do inferno na obra de Estêvão de Bour-
bon, cf. J. Baschet. Les Justices de l'Au-Delà. Les représentations de
l 'enfer en France et en Italie (Xlle-XVe siècle), Roma, École Française
de Rome, 1993, pp. 64-82.
9
Sobre os usurários, tradução de numerosas narrativas por J. Le
Goff, La Bourse et la Vie. Economie et religión au Moyen Age, Paris,
Hachette, 1986.

Orientação bibliográfica

Sobre Estêvão de Bourbon:


J. Berlioz, "Étienne de Bourbon", em G. Hasenohr e M. Zink, s/d.,
Dictionnaire des Lettres Françaises. Le Moyen Age, 2.a ed., Paris, Le
Livre de Poche, "Encyclopédies d'aujourd hui", pp. 418-420 (bi-
bliografia importante); id., Saints et Damnés. La Bourgogne du Moyen
Age dans les récits d'Etienne de Boubon, inquisiteur (1190-1261), Di-
jon, Éditions du Bien Public, 1989. Tradução e apresentação do con-
junto das narrativas (mais de cinquenta) relativas a Borgonha.
J.C. Schmitt, Le Saint Lévrier. Guinefort, guérisseur d'enfants de-
puis de XUIe siècle. Paris, Flammarion, "Bibliothèque d'EthnoIogie
historique", 1979.

Sobre as narrativas exemplares na Idade Média:


Prêcheur d'Exemples. Narrativas de pregadores da Idade Média,
apresentadas por J.-C-. Schmitt, Paris, Stock, "Moyen Age", 1985. Com
a tradução em francês de uma dezena de exempla de Étienne de Bour-
bon, pp. 82-92.
C. Bremond, J. Le Goff e J.-C. Schmitt, L 'Exemplum, 'Typologie
des sources du Moyen Age occidental, 40", Turnhout, Brepols, 1982.
ESTEVÃO DE BOURBON, O INQUISIDOR EXEMPLAR 285

J. Berlioz e M.-A. Polo de Beaulieu, s/d., Les exempla Médiévaia


(...), Carcassonne, GARAE/Hésiode, 1992.
Le Rire du Prédicateur. Récits facétieux du Moyen Age. Textos
traduzidos por A. Lecoy de la Marche. Apresentação, notas e anexos
por J. Berlioz, Turnhout, Brepols, "Miroir du Moyen Age", 1992.
J, Horowitz e S. Menache, L 'Humouren chaire. Le rire dans I 'Eglise
médiévale, Paris, Labor et Fides, "Histoire et société", 28, 1994.

Sobre a vida religiosa da época:


J. Le Goff e R. Rémond, s/d., Histoire de la France Religieuse, 1.1,
Des Dieux de la Gaule à la Papauté d'Avignon (des origines au XI Ve
siècle), Paris, Éd. du Sueil, 1988. As narrativas de Estêvão de Bour-
bon são particularmente utilizadas na quarta parte desta obra, as "su-
perstições", por J.-C. Scmitt.
A. Vauchez, Les Lales au Moyen Age. Pratiques et expériences
religieuses, Paris, Le Cerf, 1987.
Tomás de Aquino,
um universitário na Idade Média
Jacques Verger

Observemos o S. Tomás de Aquino de Justo de Ganda (Gand),


no Louvre. Pintado a partir de um fresco desaparecido, este quadro
passa por ser um verdadeiro retrato. O cenário é reduzido ao mí-
nimo. Corpulenta, maciça, serena, a personagem de Tomás in-
vade todo o espaço. As vestes dominicanas—túnica branca, capa
negra — reforçam o seu carácter imponente: chamavam-lhe "o
boi da Sicília'". O olhar deste célebre distraído parece vago, vira-
do para o interior. Todo o movimento aparente, reflexo da activi-
dade intelectual, se concentra nas mãos, longas e finas. S. Tomás
é pintado aqui como professor. Mas este professor não "lê" — o
livro lá está, mas pousado nos joelhos, fechado —, raciocina,
disputa, enumera cuidadosamente os seus argumentos e as suas
respostas às objecções: "Adprimum..." ("em primeiro lugar...").
O religioso sob o hábito, o professor infatigável na sua cáte-
dra, a personalidade calma e possante... O pintor anónimo que
copiou Justo de Ganda soube exprimir de maneira impressio-
nante os traços mais característicos deste homem, deste "grande
clérigo" que domina toda a história intelectual do século XIII.
A este século não faltaram certamente pensadores eminen-
tes, mas S. Tomás é um caso à parte. É o único a ser conhecido
288 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fora do círculo dos especialistas, o único a ter dado o seu nome


a uma doutrina — o tomismo —, o único cujas obras principais,
largamente traduzidas nas línguas modernas, ainda hoje são li-
das. Homem do seu tempo, é certo, S. Tomás representa tam-
bém alguma coisa para os nossos contemporâneos. Onde se
encontram as raízes históricas desta "modernidade"?
Na sua vida? À primeira vista, trata-se da vida absolutamente
simples de um professor, de um intelectual que só se sente à
vontade na sua sala de aula ou entre os seus livros. Ignorou as
honrarias, das poucas que lhe propuseram. Ao contrário de
muitos dos seus colegas, não chegou a ser bispo nem cardeal.
Mesmo na sua ordem, a dos irmãos pregadores, dominicanos,
era respeitado mas não acedeu às posições dirigentes. Como
qualquer outro irmão, obedeceu sem murmurar às injunções dos
seus chefes ou do Papa; vai onde lhe dizem que vá, ensina onde
o nomeiam, parte para onde é transferido.
Na globalidade, contudo, a vida de S. Tomás não é tão insi-
gnificante como parece. Conhecemo-la bem. Em vida ainda e
após a sua morte, todos os historiadores e cronistas da ordem
dominicana lhe dedicaram algumas linhas abundantes. Em 1318,
o seu antigo aluno Guilherme de Tocco escrevia a sua grande
Vie du Bienheureux Thomas d Aquin e, no ano seguinte, o inqué-
rito de canonização permitiu recolher os depoimentos de nume-
rosas testemunhas de entre as quais uma dúzia tinham conhecido
pessoalmente S. Tomás.
Poder-se-á explicar S. Tomás pelo seu meio de origem, essa
grande nobreza feudal um pouco decadente do reino da Sicília,
dividida entre o serviço ao imperador-rei Frederico II2 e a fide-
lidade ao Papa? Sem dúvida que não, já que o jovem Tomás,
último filho do fidalgo Landolfo de Aquino, nascido em 1224
ou 1225 no castelo de Roccasecca, cedo recusou a carreira
monástica tradicional que lhe haviam traçado os seus pais ao
confiarem-no muito pequeno aos beneditinos do Monte Cassino.
Em 1239, parte para ir estudar filosofia na universidade de
Nápoles. É lá que descobre Aristóteles. Lá descobre também a
TOMÁS DE AQUINO 289

ordem dos irmãos pregadores, instituída por S. Domingos em


1216 e estabelecida em Nápoles desde 1227. Fascinado, como
tantos outros estudantes do seu tempo, pelo seu modo de vida e
pelo seu ideal evangélico, toma o hábito em 1244, no convento
de San Domênico de Nápoles. Prudentemente, é imediatamente
enviado para Paris a fim de aí fazer o seu noviciado e os seus
estudos de teologia. A famíliatenta opor-se, alcança-o na estrada,
leva-o à força para Roccasecca. Mas tiveram de ceder: a sua
vocação era irresistível e, em 1245, ei-lo de novo a caminho de
Paris.
Terá sido a ruptura total? Por detrás de uma formação, de
uma cultura, de uma carreira que tudo ficarão a dever à sua
ordem e à universidade, adivinha-se por vezes em S. Tomás,
sobretudo no fim da sua vida, durante a sua estada napolitana, a
nostalgia de uma infância feliz e de uma família perdida. Como
que exilado na sua própria terra, no momento em que a lassidão
física começa a acabrunhá-lo e a dúvida a minar as suas certezas,
ele aproxima-se dos seus.
Não passam, apesar de tudo, de indícios ténues, breves
desfalecimentos, numa vida inteira ao serviço da sua sua or-
dem e da Igreja. Ora esse serviço, nos dominicanos, já não se
acomodava ao ideal monástico de "estabilidade". S. Tomás
foi, como todos os seus irmãos, um grande viajante. Calcula-se
que terá percorrido onze mil quilómetros, a pé ou de burro,
com alguns companheiros e grandes sacos contendo os seus
manuscritos. Os seus estudos e o ensino levaram-no a Paris,
Colónia e Nápoles.
Por que é que não havemos de pensar que estas numerosas
deslocações, os contactos humanos que elas permitiam, tantas
cidades e paisagens atravessadas, contribuíram para dar a Tomás
essa visão global da Igreja e da Cristandade do seu tempo, esse
sentimento da solidez, da diversidade e da beleza da Criação
material, essa confiança, enfim, no testemunho dos sentidos —
outras tantas marcas da sua filosofia? Napolitano viajante, S.
Tomás era todavia, também e sobretudo, um professor parisiense.
As escolas, nomeadamente as de Paris onde ele viveu mais de
290 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

treze anos, foram o universo habitual de S. Tomás, o verdadeiro


lugar da sua aventura intelectual.
A que se assemelhava então a universidade de Paris? Era
uma instituição jovem, nascida com o século, e em pleno desen-
volvimento. Alguns milhares de estudantes, vindos de todo o
Ocidente, algumas centenas de professores. A maioria, os mais
jovens, os mais turbulentos, pertenciam à faculdade das artes
onde se estudava, com um entusiasmo crescente, a filosofia de
Aristóteles e a ciência greco-árabe. Tomás, que já tinha estuda-
do as "artes" em Nápoles, não frequentou esta faculdade, mas
será aí popular. Os filósofos apreciavam com efeito a tal ponto
este teólogo tão sensível às suas próprias preocupações, que
pedirão em vão, após a sua morte, a transferência do corpo para
Paris: "Era dos nossos" — escrevem eles ao Papa.
Na realidade, S. Tomás pertencia à faculdade de teologia,
mais exactamente à escola de teologia do convento S. Tiago, o
convento parisiense dos irmãos pregadores, fundado em 1217.
Esta escola tinha os seus próprios professores e duas cátedras,
sendo detentor de uma delas um francês, e da outra um estrangei-
ro. Estava integrada na faculdade de teologia, o que permitia
aos seus estudantes obter os graus universitários.
Os estudantes de teologia preparavam-se para o doutorado
seguindo as lições dos mestres e ensinando depois eles mes-
mos, como "bacharéis". A este título, deviam comentar, de ma-
neira concisa, alguns livros da Bíblia e, sobretudo, explicar aos
estudantes principiantes os Livros das Sentenças, de Pedro
Lombardo. Tratava-se de um manual prático, doutrinalmente
assaz neutro, composto por volta de 1150 por um mestre
parisiense e reunindo, sobre os principais pontos do dogma
cristão (Deus, a Criação, Cristo, os sacramentos), recolhas de
citações dos Padres da Igreja. Mas o exercício mais formador
para os bacharéis consistia em participar nas "disputas", essas
discussões públicas sobre, os temas mais diversos que davam a
cada um a ocasião de pôr à prova o perfeito domínio da dialéctica
apresentando ao mesmo tempo as suas teses pessoais.
TOMÁS DE AQUINO 291

Foi assim o cursus de Tomás de Aquino. Primeiro aluno do


mestre alemão Alberto Magno, é recebido como doutor em teo-
logia em 1256. Por seu turno, ensina, preside a disputas, forma
discípulos. Regressando em 1259 à Itália, onde sulca a provín-
cia "romana" da sua ordem e assiste aos cabidos provinciais
anuais na qualidade de "pregador geral", só em 1269-1272 re-
tomará a sua actividade em Paris.
Compreenderemos mal a obra de S. Tomás se não a situar-
mos nesse mundo escolar, onde elaborou a maior parte dos seus
livros. Mundo turbulento da palavra e da livre discussão. Mun-
do autónomo, que os privilégios pontificais autorizavam a
administrar-se a si mesmo, ao abrigo das intervenções abusivas
do rei de França ou do bispo de Paris. Mundo fechado, geogra-
ficamente concentrado nas vertentes da colina de Santa
Genoveva, em Paris no qual os conflitos, debates de ideias ou
rivalidades de pessoas depressa se inflamavam.
Todas as audácias pareciam então ser permitidas e os livros
de Aristóteles proibidos em 1215 (a Física e a Metafísica)
estudavam-se daí para a frente abertamente, juntamente com os
dos seus comentadores árabes. É-nos difícil imaginar o que isso
terá representado para os intelectuais desse tempo. Até então,
tinham estudado sobretudo a gramática e a lógica, que eram
simples utensílios de análise, que permitiam compreender me-
lhor os textos e colocar melhor os problemas. Com a descober-
ta, graças às traduções feitas nas décadas anteriores, do conjun-
to da filosofia de Aristóteles, era, pelo contrário, todo um saber
positivo, o saber, pensavam eles, que se lhes oferecia.
Situação exaltante, mas perigosa, pois tratava-se de um sa-
ber elaborado por autores "pagãos", sem referência ao cristia-
nismo. A base era constituída por uma filosofia do ser (ontologia)
que permitia apreender de maneira rigorosa a realidade concre-
ta do mundo sensível, que a tradição cristã tinha o hábito de
desvalorizar em proveito das únicas realidades espirituais. Desse
mundo sensível, um conhecimento científico, edificado sobre
demonstrações claras, tornava-se possível: física, psicologia,
292 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fisiologia, ciências naturais, moral, política, etc., outras tantas


disciplinas autónomas cujas portas o aristotelismo abria. Um
mundo confuso de aparências, que a Igreja aconselhava tradi-
cionalmente a "desprezar", era substituído, bem de acordo com
as aspirações de homens vivendo num tempo de desenvolvi-
mento geo-demográfico e económico, de estabilização social e
política, por um universo concreto e sólido, bem estruturado,
cognoscível e dominável.
Fora o ensino, S. Tomás foi chamado a prestar, à medida que
a sua reputação crescia, consultas que lhe pediam os papas ou
os príncipes sobre assuntos variados (a astrologia, o cisma gre-
go, o estatuto dos judeus, etc.). A bem dizer, estes escritos de
circunstância, muitas vezes um pouco apressados e insuficien-
temente informados, são bastante banais e não acrescentam
muito à sua glória.
Em contrapartida, não se pode subestimar a importância das
suas duas grandes Sumas, as únicas de entre os seus escritos a
ter escapado à pressão das circunstâncias imediatas. A Suma
contra os Gentios (= os pagãos, isto é, os Muçulmanos), com-
posta de 1259 a 1264, é uma espécie de enciclopédia teológica,
uma exposição completa do dogma cristão; o seu plano em
quatro livros inspira-se no dos Livros das Sentenças de Pedro
Lombardo, mas com infinitamente mais originalidade e força.
Mais monumental ainda, a Suma Teológica, começada em
1266 e inacabada, foi comparada a uma catedral gótica. Tem a
mesma majestade, a mesma clareza, o mesmo equilíbrio.
Mantendo-se fiel ao procedimento escolar da "questão", S. Tomás
expôs nela, segundo um plano maduramente reflectido, toda a
sua ciência teológica e filosófica, com um sentido da síntese de
que nenhum outro autor escolástico foi capaz. Transportada num
prodigioso movimento circular de descida e subida, do Criador
para o homem e deste para o Cristo salvador, a Suma apresenta-se,
sem dúvida pela primeira vez, como uma verdadeira exposição
completa de filosofia cristã, uma visão de conjunto simul-
taneamente de Deus e da Criação vista à luz de Deus.
TOMÁS DE AQUINO 293

Tudo, na actividade de Tomás de Aquino, tem proporções


colossais. É certo que ele beneficiou das condições de trabalho
muito favoráveis que a ordem dominicana, ordem de pregadores
e de doutores segundo a própria vontade do seu fundador,
reservava aos seus professores de teologia. Além dos recursos
da biblioteca do convento S. Tiago, S. Tomás tinha a vantagem
de poder dispor de três ou quatro secretários que recopiavam os
manuscritos de que ele tinha necessidade ou transcreviam as
suas próprias obras ditadas por ele ou a partir dos rascunhos,
apressadamente redigidos e quase ilegíveis, que ele lhes
entregava.
Mas estas condições privilegiadas não explicariam nada sem
o génio pessoal e o poder de trabalho de S. Tomás. A sua ca-
pacidade de concentração e abstracção era tal, que dava origem
a uma distracção que se tornou lendária. Mil histórias circula-
vam a esse respeito: abismado nos seus pensamentos, uma vez
não terá sentido a queimadura de uma vela que se consumia e
lhe escorria para a mão. Convidado um dia para a mesa de
S. Luís e esquecendo-se de onde se encontrava, mergulhou numa
reflexão silenciosa da qual saiu de repente batendo com o punho
na mesa e exclamando, para grande surpresa dos convivas:
"Achei, eis aquilo que dá cabo do erro dos Maniqueus!"3
Sempre em busca de melhores manuscritos ou de traduções
novas de Aristóteles, dominava, graças às suas inúmeras leitu-
ras, todo o saber teológico e filosófico do seu tempo; só por si,
as duas Símias contêm cerca de trinta e oito mil citações. Era
infatigável. Em Paris, além das suas lições, organizava apro-
ximadamente uma disputa por semana. Calcula-se que, durante
perto de um quarto de século, compôs regularmente, por ano, o
equivalente a um milhar de páginas impressas. A edição cientí-
fica das suas obras completas, chamada "edição leonina", está
em curso e comportará cinquenta volumes in-fólio4. Esta obra
majestosa é, em grande parte, uma obra de debates e de com-
bates. Firme nas suas convicções mas plácido, S. Tomás parece
não ter tido um temperamento agressivo. Mas as circunstâncias
294 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

colocaram-no na primeira fila entre as tensões e as lutas que, no


século Xlll, agitaram a Igreja e a Universidade.
A partir de 1252, quando voltou de Colónia para Paris para
terminar os seus estudos, encontra a faculdade de teologia em
plena ebulição. Professores seculares tinham decidido, condu-
zidos por um dos seus, Guilherme de Saint-Amour (1205-1272
aproximadamente), excluir os religiosos mendicantes domini-
canos e franciscanos, ou pelo menos reduzir a sua importância.
As causas do conflito eram múltiplas: inveja perante o êxito das
novas ordens, hostilidade de teólogos tradicionalistas para com
colegas muito mais abertos aos contributos do aristotelismo;
furor de cónegos ricos face ao ideal de pobreza evangélica dos
recém-chegados; desconfiança de notabilidades, ciosas da sua
recente autonomia, face a religiosos pouco apegados aos pri-
vilégios universitários e que pretendiam obedecer apenas aos
seus superiores ou ao Papa.
Fosse como fosse, a contra-ofensiva dos seculares vinha
demasiado tarde. O Papa, o rei, uma boa parte dos estudantes e
dos fiéis apoiavam os mendicantes. Em 1255-1257, uma série
de bulas pontificais veio confirmar a até fortificar a sua implan-
tação na universidade. A sua vitória era total, mas a luta tinha
sido por vezes rude: intimidações físicas, disputas agitadas, pan-
fletos violentos. S. Tomás foi, neste caso, o porta-voz dos do-
minicanos. Sem prescindir da sua calma, refutara um a um os
argumentos de Guilherme de Saint-Amour. Este queria remeter
os religiosos para a solidão dos claustros e para o trabalho ma-
nual. Não — responde S. Tomás —, nos nossos dias, os irmãos
têm o direito de salvar as almas ensinando e pregando; a vida
deles de pobreza e de mendicidade está em conformidade com
o Evangelho.
Eis S. Tomás no apogeu da sua fama. Em breve deixa Paris,
de acordo com o princípio de rotação dos professores aplicado
na sua ordem. De regresso a Itália, a sua actividade não en-
fraquece. Dá início sucessivamente às suas duas Sumas. Dois
papas de origem francesa, Urbano IV (1261-1264) e Clemente
TOMÁS DE AQUINO 295

IV (1265-1268), fazem dele seu conselheiro em todos os domí-


nios, incluindo a liturgia. Em 1264, compõe o ofício romano do
Corpo de Deus (celebrado em honra do "Corpo de Cristo", isto é,
da Eucaristia) quando Urbano IV decide estender a toda a Igreja
esta solenidade até então local: revela-se poeta e músico.
Em 1269, a sua ordem volta a enviá-lo a Paris. E tratarse de
novo de se defrontar com uma situação crítica. Tem, mais uma
vez, de travar polémica com alguns seculares que retomaram a
ofensiva contra os mendicantes. Mas é apenas um combate de
retaguarda. Há coisas mais graves. A faculdade das artes
encontra-se então no centro dos debates. O desenvolvimento
dos estudos de filosofia tinha aí atingido um ponto crítico.
Apoiando-se em Averróis (1126-1198), principal comentador
árabe de Aristóteles, certos professores não hesitavam já em
reivindicar a autonomia da sua disciplina e em expor integral-
mente as teses aristotélicas, mesmo quando estavam em con-
tradição flagrante com o dogma cristão.
Para Aristóteles, o universo era uma máquina vasta e perfei-
ta, eterna e imutável. Um "primeiro motor imóvel", identificado
com a Divindade, achava-se na origem do movimento que se
transmitia, por intermédio das esferas celestes, até chegar ao
nosso mundo sublunar. Daqui se infere que deixa de haver
criação, deixa de haver amor e liberdade divina, mas há apenas
uma necessidade absoluta que preside a todos os acontecimen-
tos terrenos, a qual é possível prever observando os movimentos
dos astros. Do mesmo modo, na sua preocupação em afirmar e
inteligibilidade do sensível e do indivíduo, Aristóteles definira
o ser vivo como o combinado de uma matéria — o seu corpo —
e de uma forma—a sua alma. Mas esta alma, "forma do corpo",
não podia evidentemente sobreviver-lhe. A imortalidade só era
prometida àquilo a que ele chamava o "intelecto agente", espécie
de princípio de energia intelectual, de capacidade de
conhecimento, comum a toda a espécie humana e que se podia
ser tentado a identificar com a Razão ou com Deus.
296 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

É verdade que os mestres da faculdade das artes em nada


apresentavam este género de exegese filosófica como uma "ver-
dade" que se opusesse à da Revelação, mas, para muitos teó-
logos, já era demasiado, tanto mais que, em relação a alguns,
este ensinamento era acompanhado de uma exaltação da digni-
dade do "filósofo" que, como tal, teria encarnado a forma mais
alta de felicidade e de liberdade acessível ao homem nesta ter-
ra.
A hostilidade provinha em particular dos teólogos mais tradi-
cionais, apegados aos ensinamentos de Santo Agostinho, privile-
giando portanto a fé em relação à razão, a intuição iluminadora
em relação ao esforço lógico, a contemplação das essências em
relação ao conhecimento sensível, a humilde sabedoria do
coração em relação à ciência orgulhosa. Esses teólogos eram
numerosos entre os franciscanos. O seu grande homem, Boaven-
tura, que na década de 1250 tinha aliás lutado ao lado de S.
Tomás contra Guilherme de Saint-Amour, já lá não estava, ten-
do sido eleito ministro geral da sua ordem em 1257. Mas os
seus discípulos, reunidos em torno do inglês John Peckham,
mantinham a sua tradição.
S. Tomás teve pois de combater em duas frentes ao mesmo
tempo: contra os agostinianos que recusavam toda a ideia de
uma ciência teológica que aplicasse aos princípios da fé os pro-
cedimentos da demonstração racional e contra os "averroístas"
que, em nome da autonomia da filosofia, pareciam empenhar-se
na via de um intelectualismo puro. Se ele se demarcou destes
afirmando, no seu tratado Da Unidade do Intelecto, a sua fé na
imortalidade da alma individual, mantinha que era possível ex-
trair de Aristóteles um saber compatível com o ensinamento de
Cristo. Foi assim que por pouco não foi citado na condenação
do "averroísmo" que os agostinianos obtiveram do bispo de
Paris.
Esta suspeita desenvolvia-se com mais facilidade ainda, na
medida em que S. Tomás era então menos apoiado por Roma.
Os favores do novo papa Gregório X (1271-1276), que parece
TOMÁS DE AQUINO 297

que não fez estudos universitários, iam mais para os francisca-


nos; em 1273, nomeou Boaventura cardeal. A ordem dominica-
na julga então mais avisado chamar S. Tomás a Itália, com a
tarefa menos exposta de reorganizar a escola de teologia do
convento de Nápoles.
Mas o seu humor esmorece e, a 6 de Dezembro de 1273,
bruscamente, dá-se a crise. Arruma todo o seu material de es-
crita. Ao seu secretário estupefacto, que lhe suplica que termine
a sua Suma Teológica, responde simplesmente: "Não, não pos-
so; tudo o que escrevi me parece palha." Reacção completa-
mente desconcertante da parte de um homem aparentemente
tão sólido. Na realidade, S. Tomás não tem mais de três meses
de vida. Em Fevereiro de 1274, parte para o concílio de Lião,
onde foi convocado por Gregório X. Um dominicano não deso-
bedece ao Papa. Tratava-se do anúncio de um retorno dos fa-
vores, da promessa de uma mitra de cardeal? O que se passa é
que Tomás não chegará nunca a Lião. Em breve cai doente,
arrasta-se até Fossanova, a menos de duzentos quilómetros do
seu ponto de partida, e aí vem a morrer a 7 de Março. Não tinha
ainda cinquenta anos.
Aqui começa a vida póstuma de S. Tomás. E certo que a sua
doutrina se mantém suspeita para muitos, sobretudo entre os
franciscanos. Em 1277, condenando de novo o "averroísmo", o
bispo de Paris não hesita, desta feita, em visar algumas
proposições tomistas. Nos séculos XIV e XV, os teólogos "mo-
dernos" definem-se em primeiro lugar pela sua oposição à sín-
tese de S. Tomás. Todavia, no mesmo momento, esta é reconhe-
cida como a doutrina oficial da ordem dominicana (1309). E S.
Tomás é canonizado em 1323. Um pouco esquecido na época
moderna, o tomismo — ou antes, o neo-tomismo — regressou
em força no fim do século XIX, a ponto de figurar hoje como
teologia oficial da Igreja Católica.
Este "triunfo de S. Tomás", tão frequentemente celebrado
pela pintura dominicana, em nada serve a inteligência histórica
da sua obra. A força de ver nela um monumento intemporal,
298 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

esquece-se que no seu século era nova, contestada e, afinal de


contas, sempre minoritária.
Disse-se que o tomismo era um "modernismo", isto é, um
esforço para adaptar ao seu tempo a mensagem cristã, para tomar
em consideração (em vez de condená-los ou de ignorá-los)
elementos novos e exteriores à Revelação. E era precisamente
assim que o apresentava o discípulo de S. Tomás, Guilherme de
Tocco: "O irmão Tomás colocava no seu curso problemas novos,
descobria novos métodos, empregava novas redes de provas; e,
ao ouvi-lo ensinar assim uma nova doutrina, com argumentos
novos, não se podia duvidar de que Deus, pela irradiação desta
nova luz e pela novidade desta inspiração, lhe tinha dado a en-
sinar, na palavra e por escrito, uma nova doutrina." A repetição
obsidiante da palavra novus (novo), de força inegável no latim
medieval, é significativa.
Como todos os universitários da época, Tomás foi confron-
tado com o contributo considerável que representavam as obras
de Aristóteles e dos outros pensadores e sábios gregos, judeus e
árabes. Seria necessário, por fidelidade à tradição, repudiar todo
esse saber? Seria necessário abandoná-lo unicamente aos filó-
sofos, correndo o risco de os ver propor uma religião puramente
filosófica, naturalista e determinista, muito afastada da religião
de amor que o cristianismo pretende ser? Recusando semelhante
demissão, sensível à expectativa dos seus alunos em busca de
novas razões para crer, Tomás elaborou pois uma doutrina que
era simultaneamente filosófica e teológica. Mas com ele, a filo-
sofia, embora desdobrando-se amplamente, mantinha-se rigo-
rosamente submetida à teologia. Ao contrário de Alberto Mag-
no, ele nunca se perdeu na minúcia da exegese aristotélica, nunca
namorou a tentação do enciclopedismo. A sua teologia não sepa-
rava Deus da Sua Criação.
S. Tomás coloca pois o homem e o mundo a uma luz que é a
de Deus — é aquilo a que ele chama "exprimir Deus", manifes-
tar a sua presença universal, a omnipotência do seu gesto cria-
dor — e mostra ao mesmo tempo que uma ciência positiva, au-
TOMÁS DE AQUINO 299

têntica, da criação ("a verdade das coisas") é possível e até


necessária a uma boa compreensão do plano divino.
Uma das dimensões essenciais desta teologia é o seu opti-
mismo ou, se assim se preferir, o seu humanismo. Em S. Tomás,
o homem não é nem esmagado pela enfermidade da sua con-
dição nem dilacerado entre uma parte espiritual virada para a
"pátria celeste" e uma parte carnal prometida ao pecado e à
morte. Sem ignorar as exigências do Evangelho e os limites da
razão, sem contrapor a tirania da ciência à do temor, ele afir-
mou a liberdade e a responsabilidade pessoal do homem,
ensinando-o ao mesmo tempo a não desprezar a criação, a
começar pelo seu próprio corpo. O universo sensível é um livro
inteligível que nos fala de Deus.
E sem dúvida legítimo pôr esta vontade de síntese, este huma-
nismo cristão, em relação com as façanhas da civilização oci-
dental em meados do século XIII. Trata-se de um momento de
equilíbrio aparente, o qual será mais tarde lamentado como "o
bom tempo de Monsenhor S. Luís". Com efeito, graças ao desen-
volvimento demográfico, as cidades e as escolas povoam-se.
Os êxitos económicos tornam a existência menos incerta. Se a
cruzada não traz consigo senão dissabores, a Igreja pelo menos
triunfou sobre o Imperador Frederico II e sobre os heréticos.
Em Paris como em Nápoles, os príncipes capetos, aliados ao
Papa, favorecem o desenvolvimento das ordens mendicantes, a
expansão da arte gótica, a actividade das universidades5.
E sem dúvida legítimo ver igualmente na construção tomis-
ta um testemunho de maturidade intelectual, a obra-prima de
uma escolástica em plena posse dos seus meios.
Finalmente, é preciso não ignorar que S. Tomás não foi cri-
ticado, em vida, senão por adversários de má fé. A sua teologia
não era a única possível. Aquilo que se conhece da sua perso-
nalidade deixa adivinhar que ele mesmo, para além dos racio-
cínios impassíveis da Suma, nem sempre esteve ao abrigo da
inquietação, e até da dúvida. Mas foi ele sem dúvida o primeiro
a afirmar — e com que força e coerência! — que se podia "mo-
300 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

dernizar" o cristianismo, conciliar a fé e a razão, a natureza e a


graça, Deus e mundo.
Hoje como outrora, esta maneira de ver, demasiado optimis-
ta para uns, um pouco "totalitária" para outros, utópica para
muitos, não alcança forçosamente a unanimidade. No mínimo,
a referência persistente ao "Doutor comum", como lhe chama-
ram a partir do século XIV — entenda-se o mais aberto, também
o mais capaz de chamar a si a concordância do maior número
—, exprime sem dúvida, entre os nossos contemporâneos, a
nostalgia de uma unidade perdida da civilização ocidental.

Notas

' Na Idade Média, o termo "Sicília" designava toda a Itália do Sul,


peninsular e insular. Falar-se-á também, mais tarde, das "Duas Sicí-
lias".
2
Frederico II de Hohenstaufen (1194-1250) era ao mesmo tempo,
por parte do pai, imperador do Sacro Império Romano-Germânico e,
por parte da mãe, rei da Sicília.
3
O "erro dos maniqueus" era o erro dos "dualistas" que, como os
cátaros, acreditavam na existência distinta de dois princípios, o do Bem
e o do Mal, em luta eterna.
4
A edição "leonina" chama-se assim porque foi lançada, em 1880,
pelo papa Leão XIII; trinta e oito volumes, dos cinquenta previstos,
estão actualmente editados.
5
A partir de 1266, Carlos de Anjou, irmão de S. Luís, reina sobre o
reino da Sicília, investido pelo Papa.

Orientação bibliográfica

Obras de S. Tomás em francês:


Opuscules Théologiques, 6 vols., Paris, Vrin, 1984.
Somme contre les Gentils, 4 vols., Paris, Lethielleux, 1951-1961,
reed. em 1 vol. por Cerf, Paris, 1993.
Somme Théologique, 4 vols., Paris, Le Cerf, 1984-1986.
TOMÁS DE AQUINO 301

Sobre S. Tomás:
M.D. Chenu, Introduction à l 'Etude de Saint Thomas d'Aquin, Mon-
tréal-Paris, Instituí d'Études Médiévales/Vrin, 1954; Saint Thomas et
la Théologie, Paris, Éd. du Seuil, 1959.
É. Gilson, Le Thomisme. Introduction à la Philosophie de Saint
Thomas d'Aquin, Paris, Vrin, 6.a ed., 1964.
J.A. Weisheipl, Frère Thomas d'Aquin. Sa Vie, sa Pensée, ses Oeu-
vres, trad. fr., Paris, Le Cerf, 1993.
J.-P. Torrell, Initiation à Saint Thomas d 'Aquin. Sa Personne et Son
Oeuvre, Friburgo-Paris, Éd. Univ. de Friburgo-Le Cerf, 1993.

Para o contexto geral:


M.-M. Dufeuil, Guillaume de Saint-Amour et la Polémique Universi-
taire Parisienne, 1250-1259, Paris, Picard, 1972.
J. Le Goff, Les Intellectuels au Moyen Age, Paris, Éd. du Seuil,
1985.
F.Van Steenberghen, La Philosophie au XlIIe Siècle, Lovaina-Paris,
Publications Universitaires/B. Nauwelaerts', 1966.
J. Verger, s/d., Histoire des Universités en France, Tolosa, Privat,
1986.
Guilherme de Rubrouck entre os Mongóis
Marie-France Auzépy

"Tínheis-me dito, quando vos deixei, que escrevesse para


vós tudo o que visse entre os Tártaros (os Mongóis). Cumpro o
que me haveis ordenado." Assim começa a longa carta que o
franciscano Guilherme de Rubrouck escreve ao rei de França
Luis (S. Luís), de São João de Acre, em Agosto de 1255. Ele
volta de Caracorum, capital do khan (soberano) mongol. Como
julgava que S. Luís continuava retido pela cruzada na Terra
Santa, optou por fazer um desvio pelas neves do Cáucaso em
vez de regressar directamente pela planície do Norte. Mas em
Chipre topa com o ministro provincial da sua ordem, que o no-
meia para Acre e lhe proíbe que regresse a França para junto do
rei. Demos graças à perversidade deste superior: sem ela, tería-
mos sido privados do relato de viagem de Rubrouck.
Por que foi que Rubrouck empreendeu esta viagem tão
distante (dezasseis mil quilómetros percorridos a cavalo ou a
pé, em dois anos)? Diz-nos ele: para converter os "Tártaros"
(por outras palavras, os Mongóis), ao cristianismo. Em vinte anos,
por meio de fulminantes invasões, estes acabam de virar às aves-
sas o mapa político do continente euro-asiático. Em 1238-1241,
no decorrer da expedição conduzida pelo neto de Gengis Khan,
Batu, bateram sucessivamente os exércitos russo, polaco, hún-
garo e atingiram o Adriático; aproximavam-se de Viena quan-
304 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

do, por sorte para a Europa ocidental, a notícia da morte do


grande khan chamou Batu à Mongólia para participar na eleição
do sucessor do defunto. Os Mongóis não voltaram ao Ocidente,
nem em 1242 nem mais tarde, apesar das excelentes pastagens
que a planície húngara oferecia aos seus cavalos. Sobre as razões
profundas desta retirada, só se podem colocar hipóteses incertas.
O império assim constituído unia o Mediterrâneo ao Mar da
China. Por ferozes que fossem, os Mongóis tinham, aos olhos
dos cristãos, uma vantagem que fizera noutro tempo todo o valor
de Clóvis: eram pagãos, logo conversíveis. Um ganho inespe-
rado. De interesse para o Papa e as duas ordens, franciscana e
dominicana, que, acabadas de nascer, se tinham especializado,
entre outras, na actividade missionária. A partir de 1245, o Papa
Inocêncio IV enviou sem êxito duas missões — franciscana e
dominicana — ao khan dos Mongóis para lhe explicar os fun-
damentos da religião cristã e lhe dar a conhecer o interesse que
lhe merecia a salvação da sua alma.
Mas Guilherme de Rubrouck, embora franciscano,e
missionário, não é enviado pelo Papa. As cartas que leva são
escritas pelo rei Luís IX. Depois do fracasso da embaixada que
enviou em 1249-1250 ao khan mongol, este já não espera uma
aliança contra os muçulmanos, inimigos comuns dos Mongóis
e dos Francos da Terra Santa. Mas, se este franciscano que o
seguiu ao Oriente e que ele pensa querer tentar converter os
Mongóis, por que não fornecer-lhe dinheiro e cartas de reco-
mendação? Durante muito tempo acreditou-se que Rubrouck
era o enviado, talvez secreto, de S. Luís. Não é assim. Rubrouck
quis partir por vontade própria, tentado por esse extraordinário
scoop missionário: converter o khan dos Mongóis.
Este forte desejo de glória, que ele deixa transparecer quan-
do confessa o seu malogro — "Se eu tivesse o poder de fazer
milagres como Moisés, talvez o khan se tivesse humilhado (...)"
— não terá sido do gosto do seu superior. Mas era necessário
para o decidir a partir e para o sustentar na sua viagem. Era
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 305

preciso com efeito uma audácia sagrada e uma santa audácia


para arrostar com os perigos da aventura.
Em primeiro lugar, para partir era preciso não ter medo dos
Mongóis. Ora os Mongóis aterrorizavam toda a gente. A rapi-
dez, a crueldade destes inimigos surgidos sabe-se lá de onde
perturbaram o Ocidente cristão. Sob o choque, foram assimilados
a um flagelo de Deus: os pecados dos cristãos. Deus tinha dei-
xado os povos de Gog e Magog passar os portões de ferro de-
trás dos quais Alexandre os tinha fechado e os Mongóis, que
eram tratados pelo nome funesto e infernal de Tártaros, eram
esses povos do Apocalipse que anunciavam o fim dos tempos.
A seguir, era preciso não ter medo do desconhecido. Sem
mapa, com efeito, Rubrouck não tinha meio de ter de antemão
uma representação da sua viagem. E uma evidência que é para
nós difícil de compreender. O nosso primeiro reflexo, quando
lemos o seu relato de viagem, é "ir ver ao mapa" por onde foi
que ele passou (cf. mapa, página seguinte). Assim se organiza
para nós o quadro da sua viagem: o triângulo da Crimeia, a
estepe entre Crimeia e Ural, a lenta passagem pelo deserto a
norte e a leste do Mar de Arai, os oásis no sopé dos montes
Tien-Chan, os vales e altas montanhas do Altai, a extremidade
norte do deserto de Gobi são assinalados e inscritos numa repre-
sentação conhecida e tranquilizadora do espaço, o mapa. Através
dele, ficamos a par do caminho, o que para ele foi impossível
antes da viagem. Os mapas da sua época não serviam para
representar a natureza, mas sim a palavra da Escritura referente
ao mundo conhecido e desconhecido, figurando neles o Paraí-
so, para lá do Oceano. Assim os mapas não eram próprios para
preparar uma viagem e não teria vindo à ideia de ninguém con-
sultar um antes de partir. A única preparação útil consistia em
entrevistar quem já tivesse feito a viagem: o que Rubrouck fez
junto dos franciscanos, missionários nessas regiões antes da in-
vasão mongol, e junto do enviado do Papa e de S. Luís, André
de Longjumeau.
Finalmente, era necessário ter uma resistência física fora do
comum: Rubrouck, homem corpulento a quem eram reservados
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 307

os cavalos sólidos, possuía-a sem dúvida, mas não o seu fraco


companheiro, Bartolomeu de Cremona, a quem faltaram as
forças para voltar a partir e que preferiu ficar em Caracorum.
A narrativa de Rubrouck traz a marca deste contexto. É um
verdadeiro relatório onde o viajante toma nota de todas as in-
formações que pensa que podem interessar a monarca: o que
lhe disseram da história dos Mongóis, o que viu dos seus cos-
tumes, da sua religião, dos seus meios de existência, tudo é ano-
tado. Este estudo de geografia política confunde-se sem enfado
com a narrativa da viagem e da estada.
Primeiro, a viagem: partida com cinco pessoas, Rubrouck e
o seu companheiro franciscano, um clérigo, o "truchement" (o
intérprete) e um jovem escravo comprado em Constantinopla
graças às "esmolas" do rei Luís. A partida tem lugar no começo
do mês de Junho de 1253 de um porto da Crimeia, Soldaia (lalta),
onde Rubrouck chegou de barco. Os homens vão a cavalo e
seguem o passo lento dos bois que puxam as carroças onde vão
as coisas; vão para norte, para o campo de Sartach, filho de
Batu, de quem se ouviu dizer que talvez seja cristão. A três dias
de Soldaia, é o primeiro encontro com os Tártaros. E tudo va-
cila: "Quando entrei no meio deles, pareceu-me verdadeiramente
que entrava noutro mundo." Mundo do nómada, da marcha, do
ar livre e do vento, das manadas, onde as próprias casas se deslo-
cam, montadas em carroças. Já nada há de estável e de construí-
do: as aldeias de casas de pedra apertadas em torno do cam-
panário da igreja, no centro das culturas, as cidades de edifícios
múltiplos, mercado, torre e catedral, desaparecem nas costas
dos viajantes que entram no "outro mundo".
Mas, neste espaço desconhecido, o tempo mantém-se fami-
liar. Graças à leitura quotidiana do seu missal, Rubrouck mantém
o domínio dele. Cada dia é identificado, situado no calendário
cristão que estabelece uma continuidade que permite suportar a
estranheza dos lugares e dos homens: no dia de Saint-
-Pierre-aux-Liens (1 de Agosto), Sartach recebe-o; na véspera
do dia de Todos os Santos mudam de direcção, abandonando o
308 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

leste pelo sul; a partir do dia de S.Nicolau (6 de Dezembro),


duplicam as etapas; no dia de S. João Evangelista (27 de Dezem-
bro), chegam à corte do grande khan Mangu.

Logo que entra no "outro mundo", Rubrouck faz a aprendi-


zagem da viagem. Ele é para os Mongóis objecto de curiosi-
dade: apertam-no, mexem nas suas coisas, reclamam presentes
— "queriam ver tudo o que tínhamos" —, roubam-no às vezes.
Os seus hábitos repugnam-lhe: aliviam o ventre "a menos de
um lanço de fava, conversando entre si". O meio que devia per-
mitir viajar em condições convenientes, a saber, as moedas so-
nantes e de peso, não circula: são as peças de tecido, ali, que
servem de moeda. E quase morrem de fome, com a bolsa cheia.
Sem contar que o intérprete não sente qualquer interesse pela
santa doutrina cristã e se recusa a traduzir ou diz qualquer coisa
à toa quando Rubrouck tenta evangelizar os Mongóis. Para o
nosso franciscano, isso é o que mais lhe custa e, assim que o
compreende, opta por se calar.
Mas há também a surpresa dos encontros: Alanos (povo de
origem iraniana) cristãos que lhe levam carne e lhe perguntam
se virão a ser salvos ainda que comam carne sangrada como os
Sarracenos e bebam "comos" 1 como os Mongóis; Rubrouck
sossega-os e dá-lhes algumas noções adequadas a consolidar a
sua identidade cristã; no acampamento de Batu, húngaros, dos
quais um deles compreende o latim e para quem ele copia o
Ofício dos Mortos; um cumano que o saúda em latim por ter
sido aluno dos irmãos na Hungria...
A viagem é mais longa do que o previsto pois que, de acampa-
mento em acampamento, de khan em khan, Rubrouck é lança-
do como uma bala. No acampamento de Sartach, entre o Don e
o Volga, julgando-se chegado, emprega todos os seus meios e
organiza uma magnífica encenação: entra na casa de Sartach
vestido de ricos hábitos sacerdotais, trazendo sobre uma almofada
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 309

a Bíblia e o saltério ornados de miniaturas que lhe ofereceram o


rei e a rainha, seguido do seu companheiro, que traz o missal e a
cruz, e do clérigo, que traz o turíbulo. A entrada faz-se cantando
o Salve Regina. Sartach observa os livros com atenção, com-
preende mal a situação exacta de Rubrouck e envia-o ao seu pai,
Batu. Mas, antes da partida, um secretário de Sartach, agindo
provavelmente por sua própria conta, acerca-se das carroças e
manda retirar casula, cruz, Bíblia e saltério... Eis Rubrouck
reduzido ao seu hábito de monge para afrontar Batu. S. Luís, na
sua carta, pedia que Rubrouck ficasse em terras mongóis para aí
viver e pregar: Batu recusa-se a tomar a responsabilidade desta
decisão e envia-o ao seu primo Mangu, o grande khan. E é a
segunda parte da viagem, a mais penosa. Em marchas forçadas,
percorrendo cada dia, diz Rubrouck, exagerando um pouco, a
distância de Paris a Orleães (116 km), caminham de 14 de Se-
tembro a 27 de Dezembro, do Volga ao Gobi: "Uma provação
bastante rude (...) a fome e a sede, o frio e a fadiga..." Os alimen-
tos e a bebida são fornecidos pelo guia, que desconsidera hóspedes
tão desprezíveis, uma vez por dia apenas: um quarto de carneiro
com as costelas, meio cozido, pois é o excremento de cavalo que
serve de combustível, e caldo em quantidade insuficiente,
Após este longo martírio que Rubrouck descreve simples-
mente, sem dramatizar, é a chegada à corte de Mangu. Ali se
torna imediatamente notado: sob o pretexto de que chegou ao
destino e de que tem pois de seguir a regra da sua ordem,
passeia-se descalço... No planalto mongol, em pleno Inverno!
Estupefactos, os Mongóis perguntam-lhe se os pés não lhe
servem para nada... Os pés gelam-lhe imediatamente e ele re-
nuncia a seguir a regra. Fica três meses na corte de Mangu, isto
é, no imenso acampamento itinerante que rodeia o khan, e, a
seguir, três meses em Caracorum, a capital rude que "não vale o
burgo de Saint-Denis".
Por distantes e de difícil acesso que sejam, estes dois lu-
gares são locais de encontro mundiais: os embaixadores
310 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

comprimem-se em torno do khan que domina o mundo do Me-


diterrâneo ao Mar da China. Rubrouck cruza-se com as em-
baixadas bizantinas, turcas, com as do califa de Bagdad,
desencontra-se com o rei da Arménia, volta a partir com os
embaixadores do Soudan (sultão) da índia com cavalos
carregados com leopardos e galgos. Cativos de toda a naciona-
lidade fazem de Caracorum uma encruzilhada dos povos: a
senhora Pascha, de Metz, é de uma filha do khan, refez a sua
vida com um ruteno (um russo) de quem tem três belos filhos;
Guilherme Boucher, joalheiro parisiense, cujo irmão tem uma
loja na Grand Pont em Paris, fabrica para Mangu uma árvo-
re-fontenário digna das Mil e Uma Noites; um inglês, sobrinho
de um bispo normando — como os outros — capturado na
Hungria, rutenos, alanos, georgianos... Encruzilhada das
religiões também: há budistas a quem Rubrouck chama idóla-
tras. Há um preconceito de certa forma favorável para com esta
religião desconhecida que ele toma, quando a descobre, por um
avatar do cristianismo. O recolhimento, as imagens familiares
de figuras aladas, de personagens que fazem o gesto da bênção
levam-no a tomar o primeiro templo onde entra por uma igreja.
Mas há também em torno do khan xamãs a quem ele chama
os adivinhos, muçulmanos e... sacerdotes cristãos. Cristãos de
uma espécie muito rara, desaparecida na Europa há oito sécu-
los, que sobreviveu na Pérsia concentrada na Ásia Central: nesto-
rianos. Heréticos, ignaros, bêbedos, polígamos, corrompidos mas
cristãos e até sacerdotes. Instalados ali há gerações e que for-
mam, aos olhos do khan, a comunidade cristã. Mais: educam o
seu filho mais velho. É uma severa desilusão. Em vez de ser o
único representante de Cristo face ao pagão mongol, como deve
ter sonhado ao longo de toda a sua viagem, nos rigores do
caminho, ei-lo assimilado a sacredotes que são, aos seus olhos,
o contra-exemplo da vida cristã. Na qualidade de recém-chegado,
fica mesmo depois deles e depois do monge arménio junto de
quem o khan o acantonou. Um exemplo: pela altura da Páscoa,
Mangu manda vir os cristãos à sua "casa": "Os sacerdotes
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 311

nestorianos cantaram abençoando a sua bebida; depois deles o


monge deu a sua bênção e, para terminar, cabia-nos a nós
abençoá-lo."
Momentaneamente, alia-se ao monge arménio, uma perso-
nagem estranha que mandou fazer para seu uso um barrete de
bispo ornado de penas de pavão e esconde frutos secos debaixo
do altar nos dias de jejum. Mas fala mongol e Mangu aprecia-o:
mandou colocar a "casa" dele defronte da sua, honra que esse
monge partilha unicamente com os xamãs. Sobretudo, possui
uma cruz de prata ornada de pedras preciosas, trunfo de apreço
na dura batalha que travam em torno do khan os representantes
das diferentes religiões. A cruz anda pelas casas dos príncipes
e das princesas mongóis onde é adorada, o que vale ao monge
sedas, alimentos e inveja da parte dos sacerdotes nestorianos...
Montada sobre uma lança, é levada em passeio através de todo
o acampamento por Rubrouck, cantando o Vexilla Régis — "o
que deixava os Sarracenos cheios de assombro". Mas depressa
Rubrouck se apercebe de que o monge arménio é um impostor
que nem sequer sabe ler e escrever e, o que mais é, um impostor
perigoso que não hesita em apressar a morte do mais impor-
tante dos sacerdotes nestorianos: "Não estejais em cuidados por
causa dele. Matei-o por meio das minhas orações. Só ele era
instruído e era nosso inimigo." A estada em Caracorum desem-
baraça Rubrouck do monge arménio e sela uma forma de apro-
ximação com os nestorianos.
Pouco a pouco, o seu desgosto para com eles atenua-se. É
certo que essas pessoas que se dizem cristãs se embriagam, ven-
dem os sacramentos, praticam a adivinhação, repetem como pa-
pagaios os textos litúrgicos siríacos cujo sentido ignoram, fes-
tejam o sábado como os Sarracenos (os muçulmanos). Mas
Caracorum não é Paris e, nesse mundo estrangeiro, eles repre-
sentam apesar de tudo a comunidade cristã: têm cruzes, igrejas,
um calendário cristão. A celebração da Páscoa aviva estas con-
tradições: "Devia receber os sacramentos das suas mãos,
celebrar com as suas vestes e o seu cálice sobre o seu altar, ou
312 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

devia abster-me inteiramente do sacramento?" É adoptada uma


solução ecuménica: no material litúrgico dos nestorianos, Ru-
brouck consagra as suas próprias hóstias, feitas num molde do
fabrico de Guilherme Boucher, o joalheiro: "Demos a bênção
ao povo (...) eles mesmos baptizaram na véspera da Páscoa ses-
senta pessoas. E foi uma alegria muito grande partilhada por
todos os cristãos."
Ao mesmo tempo que Rubrouck começa a admitir que os
nestorianos são cristãos, vê-se confrontado com uma triste rea-
lidade: o catolicismo romano não está apto a evangelizar os
Mongóis. Porquê? Porque é uma religião da palavra, do Verbo.
É uma religião do Livro, ao passo que os Mongóis querem uma
religião eficaz, produtora de melhorias, uma religião do acto.
Sem descanso Rubrouck quer falar, explicar o dogma, ler o tex-
to santo: o seu intérprete não traduz, sabe-se lá se por recusa se
por disso não ser capaz — mas mesmo que traduzisse, os
Mongóis não o escutariam. O que lhe pedem, com efeito, é que
se saia tão bem como o xamã e, como se costuma dizer, se quiser
"apanhar a fatia maior", que se saia melhor. Deste modo ele é
levado, contra a vontade, a desempenhar um papel próximo do
do feiticeiro. Um episódio da sua viagem mostra bem o dilema
em que se encontrava. Num desfiladeiro medonho dos montes
Altai onde os demónios têm o costume de arrebatar homens, o
guia pede a Rubrouck, que o seu comportamento lhe fez reco-
nhecer como um homem de Deus, que afaste os demónios. "Can-
támos então em voz alta Credo in unum Deum e, pela graça de
Deus, passámos com todo o grupo sem dano. Então pediram-me
que lhes escrevesse papéis para levarem na cabeça; eu dizia-lhes:
«Ensinar-vos-ei uma palavra que levareis no coração»... Mas
de cada vez que os queria instruir, o meu intérprete faltava-me.
Escrevia-lhes porém o Credo e o Pater dizendo-lhes: «Aqui
está escrito o que o homem deve crer em Deus.» O Credo a
servir de amuleto!"
O monge arménio, esse era entendido em encenações hábeis:
armado da cruz, com um desplante incrível, obriga a levantar as
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 313

princesas em agonia, força-as a prostarem-se diante do símbolo


todo-poderoso; espezinha o sacerdote nestoriano doente, a quem
as suas orações darão fim... E arrasta Rubrouck para uma estra-
nha aventura. A segunda esposa do khan, idólatra, está muito
mal de saúde. Mangu manda perguntar ao monge o que ele pode
fazer e este responde sem reflectir: "Se não a curar, que me
cortem a cabeça!" Quando compreende o que acaba de dizer,
põe-se a chorar e chama Rubrouck em seu socorro. Passam a
noite em orações e o monge prepara a sua arma secreta: uma
"água de cruz e de ruibarbo". Receita: reduzir a pó uma raiz de
ruibarbo (?), dissolver o pó em água onde se põe de molho uma
cruz de metal. Deixar repousar uma noite antes de servir esta
bebida fortificante. Rubrouck tenta "rectificar" a coisa benzen-
do a água em que a cruz fica de molho e lendo à cabeceira da
doente a paixão segundo S. João. São bem sucedidos. Mas Ru-
brouck dá consigo a fazer perguntas que provam a sua in-
quietação. "Que há de comum entre Cristo e Belial [Satanás]?
Que há de comum entre a nossa Cruz e estes ídolos?" — diz ele
um dia ao monge, citando S. Paulo, diante dos ídolos de feltro
das casas de Mangu.
Felizmente, um episódio permite-lhe por fim falar e mostrar
todo o seu valor. Aborrecido com as querelas que agitam em
redor da sua casa cristãos, sarracenos e budistas, Mangu ordena
uma confrontação entre eles "para que pudesse ser ele mesmo a
conhecer a verdade". "Bendito seja Deus!" — responde Ru-
brouck. Tendo Mangu pedido um resumo escrito de cada dou-
trina, os nestorianos têm um reflexo de uma outra época, da
época em que os seus antepassados deixaram a bacia mediter-
rânica. Como se fossem bizantinos da Síria ou da Mesopotâmia
no século V, escrevem uma crónica universal desde a criação do
mundo até ao tempo presente. Rubrouck escreve simplesmente
o Credo e prepara a assembleia. Organiza um ensaio geral com
os nestorianos onde os manipula magistralmente e lhes aconselha
"que lhe permitam discutir primeiro" com os budistas. Com que
gosto trabalha! Finalmente um debate! Tendo convencido os
314 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nestorianos, é ele que defronta os budistas. Fala. As suas


palavras estão ainda presentes no seu espírito quando escreve,
assim como a maneira hábil pela qual levou o seu adversário
onde queria, a saber, a dizer "que não havia nenhum Deus
todo-poderoso". Então todos os Sarracenos desataram em
grandes gargalhadas.
Foi de facto prevendo esta aliança dos monoteístas contra os
budistas que ele sugerira começar por estes em vez dos muçul-
manos. Finalmente, a sua formação é-lhe útil e permite-lhe do-
minar a conferência religiosa internacional ordenada pelo khan
em Caracorum em 1254. Naturalmente, não se verifica nenhum
resultado concreto, pelo menos imediato: é Kubilai, o sucessor
de Mangu, o Grande Khan de Marco Polo, quem se converterá,
mas ao budismo, ao mesmo tempo que se instalará na China.
Não obstante, este debate é um grande prazer que Deus oferece
a Rubrouck antes que Mangu lhe ordene que regresse à sua
terra, portador de cartas para S. Luís. E é o regresso. Fala-se de
regresso? Um ano de trajecto contido em algumas páginas.
O que espanta neste relato de viagem tão marcado pela sua
época é a modernidade. Muitas das reacções de Rubrouck não
nos são estranhas e tornam-no-lo, pelo contrário, familiar. Talvez
porque a experiência da viagem, em todos os tempos, conhece
algumas constantes. Antes do mais, a aprendizagem da relati-
vidade. Para Rubrouck, esta aprendizagem é percuciente. Ele
está habituado a um mundo em que o cristianismo reina sem
partilha, universal ("católico"), repelindo o Islão nas suas fron-
teiras, e encontra-se de repente num mundo em que a sua re-
ligião não é senão uma das peças do jogo entre outras, tratada
como o Islão e o budismo, que ele nem sequer sabia, ao partir,
que existia, sem contar com o xamanismo. Singular reviravolta.
Rubrouck sobrevive bem a este choque cultural. Ainda que
abalado ao ver a cruz utilizada como um auxiliar mágico e a
palavra do Senhor inoperante, não as põe em causa. A sua fé
mantém-se intacta, sem contudo a fechar num esplêndido isola-
mento. De uma incansável curiosidade, interroga e informa-se
315
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS

junto de pessoas muito diferentes, incluindo chineses. É de um


grande rigor intelectual: submete à experiência os dados da
ciência do seu tempo, refuta o enciclopedista Isidoro de Sevilha
(século VII) que era ainda uma autoridade e considerava o Mar
Cáspio um mar aberto, pergunta aos seus informadores se têm
conhecimento dos homens monstruosos que Isidoro situa no
grande Norte e, na ausência de uma resposta positiva, põe em
dúvida a autoridade do sábio. Com Guilherme de Rubrouck não
há maravilhas. Esta tranquila audácia alia-se a uma neutralidade,
também ela científica. Ele transmite as informações recolhidas
sem as julgar, pois, como verdadeiro etnólogo de campo, admite
a diferença. As suas informações sobre as cerimónias xamânicas,
o habitat, as práticas alimentares, são uma fonte de primeira
ordem para a história dos Mongóis.
Encontramos nele um outro traço de modernidade, a saber,
um misto, frequente nos viajantes, de consciência da superiori-
dade da sua própria civilização e de aculturação à sociedade vi-
sitada. Assim, Rubrouck acha-se persuadido da excelência da ci-
vilização ocidental: a mais rica, a mais própria, a que possui a
bebida civilizada (o vinho), mas também das maneiras à mesa,
das técnicas de construção, da moeda e de Deus. No entanto, os
meses passados com os Mongóis fazem com que estes passem a
afigurar-se-lhes como simpáticos, conquistando mesmo a sua
admiração e acostumando-se a certos traços do seu género de
vida. A atitude de Rubrouck face à bebida mongol, o "comos"1, é
significativa neste aspecto. A ida, o guia deu-lha a beber, depois
de dois meses de marcha. "Nessa noite, o rapaz que nos guiava
deu-nos a beber comos: fiquei cheio de suores, sob a influência
do horror e da novidade, pois nunca tinha bebido dela." Na volta,
no Cáucaso, detém-se no último acampamento mongol: "Fui a
casa de Bachu e ele deu-nos a beber vinho. Ele bebia comos, que
também eu teria bebido de boa vontade, se mo tivesse dado. Era
porém vinho novo de eleição, mas o comos é mais proveitoso a
um homem afamado."
Por fim, último traço de modernidade, Rubrouck apresenta
como evidente a diferença de nível de vida que separa o Oci-
316 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

dente do mundo mongol quando termina a sua carta ao rei com


estas palavras: "Digo com toda a segurança que se os vossos
camponeses — e não falo dos reis e dos cavaleiros — quisessem
caminhar como o fazem os reis dos Tártaros, e contentar-se com
a mesma comida, poderiam conquistar o mundo inteiro." Frase
de viajante que nos ensina, tanto quanto o torna possível a
viagem, a relatividade. Ela espanta-nos já que, no fundo, por
causa da espessura do tempo e da nossa ignorância, do alto do
nosso século XX, temos tendência para considerar como
igualmente "subdesenvolvidos" o camponês francês e o cava-
leiro mongol. Mas Rubrouck recorda-nos que as pessoas que se
encontram longe, tanto no tempo como no espaço, não são por
isso semelhantes entre si nem diferentes de nós.

Nota
1
O "comos" (kumis) é a bebida mongol por excelência. Trata-se de
soro de leite de égua fermentado.

Orientação Bibliográfica

Os textos:
Jean de Plan Carpin, Histoire des Mongols, trad. e anexos de J.
Becquet e L. Hambris, Paris, Maisonneuve, 1965.
Guillaume de Rubrouck, Voyage dans 1'Empire Mongol, trad. e
comentário de C. e R. Kappler, Paris, Payot, 1985; a mesma tradução,
apresentada, comentada e ilustrada pelos mesmos autores, Paris, Im-
primerie Nationale, 1993.
H. Yule, Cathay and the Way Thither, Londres, Hakluyt Society,
1886.
"Histoire du patriarche Mar Jabalah III et du moine Raban Çauma",
trad. de J.-B. Charbot, em Revue de 1'Orient Latin, t. 1, 1893.

Os estudos:
R. Grousset, L 'Empire des Steppes, Paris, Payot, 1965.
P. Pelliot, La Haute Asie, Paris, L'Édition Artistique (brochura de
GUILHERME DE RUBROUCK. ENTRE OS MONGÓIS 317

40 pp., que é uma apresentação luminosa da Alta Ásia, geografia, po-


voamento, religiões), sem data. Este texto foi também publicado na
reedição de La Croisière Jaune de Georges Le Fèvre, Paris, L'Asia-
thèque, 1991.
J.-P. Roux, Les Explorateurs au Moyen Age. Paris. Éd. du Seuil,
1967, eFayard, 1985.
Referências cronológicas

ap. 280 O anacoreta egípcio Santo Antão (falecido


em 356) funda uma comunidade em Pispor.
ap. 320 S. Pacómio (falecido em 346) funda o seu
primeiro mosteiro.
ap. 360 Regra de S. Basílio.
361 S. Martinho funda o mosteiro de Ligugé,
perto de Poitiers.
391 Santo Agostinho organiza uma comunidade
em Hipona (num sítio muito perto de Bone,
na Argélia).
ap. 400 Santo Honorato cria os mosteiros de Lérins
(próximo de Cannes).
ap. 415 João Cassiano estabelece o mosteiro de
S. Vítor em Marselha.
515 fundação da abadia de S. Maurício
d'Agaune (Valais suíço).
ap. 540 Cassiodoro funda o mosteiro de Vivarium
(extremo sul da Itália).
ap. 529 S. Bento de Núrcia funda o mosteiro do
Monte Cassino (Itália central).
ap. 500-530 Elaboração da regra de S. Bento.
590-604 Pontificado de S. Gregório Magno.
320 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

590 S. Columbano (nascido na Irlanda por volta


de 540) funda o mosteiro de Luxeuil
(Alto-Sona).
596 Santo Agostinho (de Cantuária) e os seus
monges partem de Roma para evangelizar
os Anglo-Saxões.
614 S. Columbano funda o mosteiro de Bobbio,
perto de Pavia.
ap. 625 Fundação da abadia de S. Dinis (Paris)
ap. 750-821 Vida de S. Bento de Aniane, restaurador
da observância da Regra Beneditina.
910 O duque Guilherme da Aquitânia funda
Cluny, na Borgonha.
1012 S. Romualdo funda um eremitério em
Camaldoli (Itália, diocese de Arezzo).
ap. 1076 Estevão de Muret funda a ordem de
Grandmont.
1084 S. Bruno funda a comunidade da
Grande Cartuxa.
1098 Roberto de Molesme funda a abadia de
Citeaivc (Cister), perto de Dijon.
1101 Roberto d'Arbrissel (falecido em 1116)
funda o mosteiro "duplo" de Fontevrault.
ap. 1108 Guilherme de Champeaux funda o mostei-
ro (cónegos regulares) de S. Vítor de
Paris.
1113 O papa Pascoal II reconhece a Ordem dos
Hospitalários de São João de Jerusa.
1115 S. Bernardo (falecido em 1153), partido de
('Citeaia Cister), funda a abadia de Clair-
vaux, (Claraval), na Champanha.
1118/1119 Hugo de Payns funda a Ordem do Tem-
plo.
1120 S. Norberto funda o mosteiro de Prémon-
tré, na floresta de Coucy.
REFERÊNCIAS CRONOLÓGICAS 321

1122-1156 Pedro, o Venerável, abade de Cluny.


1129 Abelardo é eleito pelos monges da abadia
de Saint-Gildas-de-Rhuys (Morbihan).
ap. 1130/1145-1202Vida de Joaquim de Flore.
ap. 1170-1221 Vida de S. Domingos.
ap. 1180 A primeira beguinaria surge em Liège.
ap. 1182-1226 Vida de S. Francisco de Assis.
1198 A Ordem Teutónica passa de hospitalar a
militar.
1206 S. Domingos funda o convento de mu-
lheres de Prouille.
ap. 1209 Francisco de Assis funda uma nova família
de religiosos (os irmãos menores).
ap. 1213 Clara de Assis funda a Ordem das "Pobres
Reclusas de S. Damião".
1217 O papa Honório III reconhece a Ordem
dos irmãos pregadores fundada por São
Domingos.
1221 Primeira regra da ordem franciscana.
1228-1274 Vida de S. Tomás de Aquino.
1231-1232 Criação da Inquisição pontifical.
1247 O papa Inocêncio IV concede aos Carmeli-
tas, fundados no século XII, o estatuto de
ordem mendicante.
1253-1255 Missão do franciscano flamengo Guilherme
de Rubrouck na Ásia Central.
1256 Fundação da ordem dos eremitas de Santo
Agostinho.
1311 Clemente V condena certas comunidades
de beguinas (Alemanha).
1314 Os altos dignitários da Ordem do Templo
são queimados como relapsos.
1317 Condenação pelo Papa João XXII da Frati-
celles.
1410 Batalha de Tannenberg (Polónia): Ladislau
II Jagelão inflige aí uma sangrenta derrota
à Ordem Teutónica.
322 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

1435 Francisco de Paula funda a Ordem dos Mí-


nimos.
1498 Morte de Savonarola.
Bibliografía geral

1. Obras de referencia:
Dois livros essenciais:
Mareei Pacaut, Les Ordres Monastiques et Religieitx au Moyen
Age, Paris, Nathan, 2.a ed., revista e aumentada, 1993 (série
fac. "Histoire"). Bibliografía publicada.
Gaston e Monique Duchet-Suchaux, Les Ordres Religeux. Guide
historique, Paris, Flammarion, 1993. Preciosas notas-devi-
das a dois arquivistas paleógrafos - , por ordem alfabética,
sobre as personagens, as abadias, os tipos de ordem, o fun-
cionamento do convento, os termos de direito ou de admi-
nistração que regulamentam a vida das ordens.

Obras a completar imperativamente por este ensaio magistral:


Giovanni Miccoli, "Les Moines", in Jacques Le Goff, s/d.,
L'Homme Medieval, Paris, Éd. du Seuil, ' L'Univers
Historique", 1989 (rééd. "Points Histoire", 1994), pp. 45-85.

A ler igualmente:
Bernard Bligny, Saint Bruno le Premier C hartreux, Rennes,
Ouest-France, 1984.
Alain Demurger, Vie et Mortde l'Ordre du Temple, 1118-1314,
Paris, Éd. du Seuil, 2.a ed., revista e publicada, "Points His-
toire", 1989 (1.a ed., 1985).
324 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Jacques Dubois, Les Ordres Monastiques, Paris, Presses


Universitaires de France, "Que sais-je?", n.° 2241, 1958.
Georges Duby, Les Trois Ordres ou l 'Imaginaire du Féodalisme,
Paris, Gallimard, "Bibliothèque des Histoires", 1978.
Pierre-Roger Gaussin, Les Cohortes du Christ, Rennes,
Ouest-France, 1985.
Gabriel Le Bras, s/d., Les Ordres Religieux, Paris, Flammarion,
2 vols., 1972.
Henry Marc-Bonnet, Histoire des Ordres Religieux, Paris, Pres-
ses Universitaires de France, 4.a ed., revista, "Que sais-je?",
n.° 338, 1968 (1.a ed., 1949).
C.H. Lawrence, The Friars. The impact of the early mendicant
movement on western society, Londres/Nova Iorque,
Longman, 1994.
II Monachesimo nell 'Alto Medioevo e la Formazione delia Ci-
viltà Occidentale, Spoleto, Centro Italiano di Studi sull'Alto
Medioevo, 1957.
Naissance et Fonctionnement des Réseaux Monastiques et
Canoniaux, Saint-Étienne, CERCOR, 1991.
Michel Parisse, Les Nonnes au Moyen Age, Le Puy, Christinne
Bonneton, ed., "Des Français ensemble", 1983.
Prieurs et Prieurés dans l'Occident Medieval, Paris/Genebra,
Champion/Droz, 1987.

Sobre a vida quotidiana dos monges:


Léo Moulin, La Vie Quotidienne des Religieux au Moyen Age.
Xe-XVe siècle, Paris, Hachette, 1978.
Danièle Choisselet e Placide Vernet, Les Ecclesiastica Officia
Cisterciens du XlIIe siècle, Oelenberg, "La documentation
cistercienne, 22", 1989 (difusão Turnhout, Brepols). Síntese
- erudita mas acessível - de documentos referentes à vida
do dia-a-dia dos cistercienses no século XII.

Sobre a cultura monástica, duas obras indispensáveis:


Dom Jean Lerclercq, L'Amour des Lettres et le Désir de Dieu.
BIBLIOGRAFIA GERAL 325

Initiation aux auteurs monastiques du Moyen Age, Paris, Le


Cerf, 3.a ed., 1990 (1.a ed., 1957).
André Vauchez, La Spiritualité du Moyen Age Occidental.
VlIIe-XIIIe siècle, Paris, Éd. du Seuil, 2.a ed., revista e
aumentada, "Points Histoire", 1994 (1.a ed., 1975).

As sínteses sobre a história religiosa da Idade Média abrangem


sempre importantes desenvolvimentos sobre as ordens
monásticas e religiosas. A reter:
Jacques Le Goff e René Rémond, s/d., Histoire de la France
Religieuse, 1.1. Des dieux de la Gaule à lapapauté d'Avignon
(des origines au XlVe siècle); t. 2. Du christianisme flam-
boyant à l'aube des Lumières (XlVe-XVIIIe siècle). Paris.
Éd. du Seuil. "L' Univers historique", 1988.
Jean-Marie Mayeur, Charles Piétri, André Vauchez, Mare Ve-
nard, s/d., Histoire du Christianisme des Origines à nos
Jours: t. 4 (s/d., G. Dagron, P. Riché e A. Vauchez), Évêques,
moines et empereurs, 612-1054, Paris, Desclée, 1993; t. 5
(s/d., A. Vauchez), Apogée de la papauté et expansión de la
chrétienté, 1054-1274, Paris, Desclée, 1993; t .6 (s/d.,
A.Vauchez e M. Mollat du Jourdin), Un temps d'épreuves,
1274-1449, Paris, Desclée/Fayard, 1990.
Gabriele de Rosa, Tullio Gregory, André Vauchez, s/d., Storia
dellTtalia Religiosa, t.l, L'Antichitá e il Medioevo, Bari,
Laterza, 1993.

Os dicionários gerais sobre a Iadde Média ou sobre o cristia-


nismo fornecem uma quantidade de rúbricas interessantes
sobre monges e religiosos. Citemos:
Jean Favier, Dictionnaire de la France Médiévale, Paris, Fayard,
1993.
Nicole Lemaítre, Marie-Thérèse Quinson, Véronique Sot,
Dictionnaire Culturel du Christianisme. Paris. Le Cerf1
Nathan. 1994.
André Vauchez, s/d., Dictionnaire Encyclopédique du Moyen
Age Chrétien, Paris, Le Cerf, no prelo.
326 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Os dicionários especializados - em vários volumes, mas facil-


mente consultáveis nas bibliotecas - oferecem notas de um
grande interesse. Entre os principais:
Catholicisme (...), Paris, Letouzey et Ané, desde 1948. Em 1993,
t. 13, fase. 63, até Sida.
Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique: doctrine et
histoire, Paris, Beauchesne, 1937-1994.
Dictionario degli Isttituti di Perfezione, Roma, Edizioni Pao-
line, desde 1974, 10 volumes previstos, 8 volumes editados.
Dictionnaire d'Histoire et de Géographie Ecclésiastiques, Paris,
Letouzey et Ané, desde 1909. Em 1994, t. 25, fase. 145, até
Hyacinte de Saint-Vincent.
Lexikon des Mittelalters (Dicionário da Idade Média), Muni-
que/Zurique, Ártemis, desde 1977. Em 1993, t. 6, fase. 8,
até Patrimonium Sancti Petri.

2.1dentificar uma abadia ou um priorado:


L.H. Cottinou, Répertoire Topo-Bibliografhique des Abbayes
et des Prieurés, Mâcon, 3 vols., 1935-1970.
M.J. Heimbucher, Die Orden und Kongregationen der
katholischen Kirche (As ordens e congregações da Igreja
católica), 3.a ed., Paderborn, 2 vols., 1933-1934.
Dom Beaunier, Dom Besse e colab., e a seguir dom Jean Bec-
quet, Abbayes et Prieurés de 1'Ancienne France (...),
Ligugé-Paris, desde 1905.

3. Reunir a documentação:
Para além das obras gerais e dos dicionários acima citados,
ver, para os trabalhos franceses recentes:
Société des Historiens Médiévistes de 1'Enseignement Supérieur,
L' Histoire Médiévale en France. Bilan et perspectives. Pre-
fácio de Georges Duby. Textos reunidos por Michel Balard,
Paris, Éd. du Seuil, 1991.
Société des Historiens Médiévistes de 1'Enseignement Supérieur,
Bibliographie de VHistoire Médiévale en France (1965-
BIBLIOGRAFIA GERAL 327

-1990). Textos reunidos por Michel Balard, Paris, Publica-


tions de la Sorbonne, 1992, pp.131-136.

No que se refere à França, encontrar-se-á a bibliografia cor-


rente na:
Bibliographie Annuelle de l'Histoire de France, Paris, CNRS,
desde 1953. Com índice dos assuntos e dos autores.

No que se refere à cultura monástica do Ocidente medieval,


consultar:
Medioevo Latino. Bolletino bibliográfico delia cultura europea
dal secolo VI a XIII, Espoleto, Centro Italiano di Studi
sull'Alto Medievo desde 1980.
Bibliographie Annuelle du Moyen Age Tardif. Auteurs et textes
latins vers 1250-1500, Turnhout, Brepols, desde 1991.
É igualmente útil o Bulletin du CERCOR (Centre Européen de
Recherches sur les Congrégations et Ordres Religieux, Mai-
son Rhône-Alpes des Sciences de 1'Homme, 35, rue du
Onze-Novembre, F-42023 Saint-Étienne Cedex 2; telef.: 77
38 96 67 ou 77 42 16 70; fax 77 42 16 84). Este boletim
fornece nomeadamente o resumo das grandes revistas inter-
nacionais dedicadas ao monaquismo e informações sobre os
trabalhos em curso, as publicações recentes e os colóquios.
Os Autores

AUZÉPY, Marie France: professora da Universidade de Paris


VIH - Vincennes, em Saint-Denis. Especialista de iconografía
bizantina.
ALTET, Xavier Barral i: antigo director da Missão Histórica
Francesa na Alemanha e do Museu Nacional de Arte, da
Catalunha. Professor de Ciências Históricas na Universidade
de Rennes-II. Autor de Les Mosaiques de Pavement
Médiévales de Venise, Torcello et Murano (Picard, 1984) e
L'Art Pré-Roman en Catalogne, uf-jf Siècle (Ed. 62, 1981).
BERLIOZ, Jacques: arquivista paleógrafo. Antigo membro da
Escola Francesa de Roma, encarregado de investigação no
CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica, Paris) e
membro da Redacção da revista L'Histoire.
DALARUN, Jacques: director dos Estudos Medievais na Escola
Francesa de Roma. Publicou: L'Impossible Sainteté. La Vie
Retrouvée de Robert d'Arbrissel (Le Cerf, 1985), Robert
d'Arbrissel, Fondateur de Fontevraud(Albin Michel, 1986),
La Sainte et la Cité. Micheline de Pesaro, Tertiaire
Franciscaine (École Française de Rome, 1992), Lapsus
Linguae. La Légende de Claire de Rimini (SI SM EL, 1994),
Questa Donna era Francesco (La Viella, 1994).
DOLLINGER, Philippe: professor honorário da Universidade
de Estrasburgo. Especialista de história da Alemanha
medieval. Autor de La Hanse, xif-xnf Siècle (Aubier, 1970).
330 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

GATIER, Pierre-Louis: investigador do CNRS. Estuda a


helenização e a romanização do Próximo-Oriente, antes do
Islão. Publicou: Inscriptions de la Jordanie. Région Centrale
(Geuthner, 1986); com M.A. Calvet-Sébasti, Lettres de
Firmus de Césarée (Le Cerf, 1989); com B. Helly e J.-P. Rey-
Coquais, Géographie Historique du Proche-Orient (CNRS,
1988).
HEITZ, Carol: professora emérita de História de Arte, na
Universidade de Paris X - Nanterre. Publicou: Architecture
et Liturgie à l 'Epoque Carolingieme, Paris, SEVPEN, 1963;
Du viif au xf Siècle: Edifices Monastiques et Cuite en
Lorraine et en Bourgogne (em colaboração com Fr. Heber-
Suffrin, Éd. de 1'Université de Nanterre, 1977);L\Architecture
Religieuse Carolingienne: les formes et leurs fonctions
(Picard, 1980); La Peinture Pré-Romane et Romane
(Genebra, Famot, 1981); Gallia Praeromanica (Viena,
Schroll, 1982); La France Pré-Romaine. Archéologie et
Architecture Religieuse en France au Haut Moyen Age. Du
tv* siècle à l 'an mil (Errance, 1987).
LAUWERS, Michel: professor da Universidade de Nice.
Especialista de cultura popular medieval, em especial sobre
a morte, defendeu uma tese, em 1992, sobre La Mémoire des
Ancêtres, le Souci des Morts. Fonction et usage du cuite des
morts dans l 'Occident médiéval (Diocèse de Liège, xf-xnf
siècle).
LE GOFF, Jacques: historiador, medievalista. Director de estudos
da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais (EHESS), de
Paris, da qual é presidente honorário. Opondo-se quer à
tendência para «enegrecer» a Idade Média quer à tendência
para «dourar» a mesma época, é autor de alguns livros
fundamentais a tal respeito: Os Intelectuais na Idade Média
(Gradiva), A Civilização do Ocidente Medieval e Para uma
Outra Idade Média (ambos publicados pela Estampa). Co-
-dirigiu (com Pierre Nora) a edição de Fazer a História
(Bertrand), LaNouvelle Histoire (com R. Chartier e J. Revel,
OS AUTORES 331

1978), Éditions Retz; Histoire de la France Religiense (com


R. Rémond), 1988-1992, Éditions du Seuil. Dirigiu o 2.°
volume da Histoire de France (s.d., G. Duby), La Ville
Médiévale, 1982, Éditions du Seuil; o 2.° volume da Histoire
de la France (s.d., A. Bruguière e J. Revel), L'État et les
Pouvoirs, 1990, Éditions du Seuil.
LEROUX-DHUYS, Jean-François: professor de Ordenação
Territorial e Urbanismo, no Instituto de Estudos Políticos de
Paris. Membro da Academia de Arquitectura e presidente da
associação Renaissance de l'Abbaye de Clairvaux (Aube).
LHERMITE-LECLERCQ, Paulette: professora agregada de
Historia e Geografía, com doutoramento de Estado. Profes-
sora da Universidade de Paris IV. Publicou: Garéoult, un
Village de Provence dans la Deitxième Moitié du xvf Siècle
(Éd. du CNRS, 1979) e a sua tese Le Monachisme Féminin
dans la Societé de Son Temps. La Celle-lès-Brignoles, xf-
xvf siècle (Éd. Cujas, 1989).
PARISSE, Michel: professor da Universidade de Paris-
Panthéon-Sorbonne. Colaborador da revista Annales de l 'Est
e autor de uma tese sobre a nobreza lorena (séculos xi-xiii).
Especialista de historia religiosa. Publicou: Histoire de la
Lorraine (Privat, 1977) e um livro sobre as freiras na Idade
Média (1993). É também co-director da colecção «Faire
l'Europe» (publicada em Portugal pela Presença).
VAUCHEZ, André: professor de História Medieval, da
Universidade de Paris X - Nanterre e membro do Instituto
Universitário de França. Participou na Histoire de la France
Religieuse(t. 1, Paris, Ed. du Seuil, 1988, p. 283-416) e é autor
de numerosas obras sobre a história religiosa da Idade Média,
em especial La Sainteté en Occident aux Derniers Siècles du
Moyen Age, Roma-Paris, 2.a ed., De Boccard, 1988, e Les Laics
au Moyen Age, Paris, Le Cerf, 1987. Sob a sua direcção foram
publicados o 1.° volume daStoria dell 'Italia Religiosa, Roma,
Laterza, 1993, e os três volumes medievais (tomos 4, 5 e 6) de
Histoire du Christianisme, Paris, Desclée-Mame, 1990-1993).
332 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

VERGER, Jacques: professor da Escola Normal Superior, de


Paris. Ocupa-se especialmente da história cultural dos últimos
séculos da Idade Média. Publicou, na revista L'Histoire, os
artigos «Les étudiants au Moyen Age» (n.° 34) e «La
République des lettres au Moyen Âge» (n.° 110).
ZIMMERMANN, Michel: professor de Historiada Idade Média,
na Universidade de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines.
Tem-se ocupado da história das origens da Catalunha e da
história cultural da alta Idade Média. Em 1992, defendeu uma
tese de Estado: Ecrire et Lire en Catalogne (vf-xif Siècle),
editada por Publications de la Sorbonne/Casa Velasquez,
Paris.
r

Indice geral

Apresentação
por Jacques Berlioz 5

1. FUNDAÇÕES E RENOVAÇÕES

S. Bento e a revolução dos mosteiros


por André Vauchez 15
Nascimento de uma regra, 19. Um êxito progressivo, 24.

Roberto d'Arbrissel e a salvação das mulheres


por Jacques Dalarun 31
A alma fendida, 33.

S. Bernardo, o soldado de Deus


por Jacques Berlioz 47

Abelardo. Escolas no claustro


por Jacques Verger 57
A formação escolar, 60. A impossível tebaida, 67.
Artesão de paz, 71.
334 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Os Cavaleiros Teutónicos,
monges-soldados do germanismo
por Philippe Dollinger 77
Um Estado dentro do Estado, 83. Comércio e cultura, 89.

2. ESPAÇO E VIDA MONÁSTICOS

A paisagem arquitectónica do ano Mil


por Xavier BarRal i Altet 99

As abadias da Catalunha
por Michel Zimmermann 115
Grutas e ninhos de águia, 116. Povoamento e defesa, 123.

Os construtores de Cluníaco (Cluny)


por Carol Heitz 131

Claraval (Clairvaux), da abadia à prisão


por Jean-François Leroux-Dhuys 143

A razão dos gestos: por que se reza de joelhos


por Jacques Berlioz 157

Guiberto de Nogent, o monge jornalista

por Michel Parisse 163

3. AS MULHERES DE DEUS

Mulheres no deserto?
por Pierre-Louis Gatier 169

As freiras
por Michel Parisse 185
O rigor das monjas, 190. "Democratização"... 193.
... e "reacção nobiliária", 195.
ÍNDICE GERAL 335

A vida quotidiana das reclusas


por Paulette L'Hermite-Leclercq 201
Despedir-se do mundo, 203. O refúgio
dos infortúnios humanos, 208.

Santas e anoréxicas: o misticismo em questão

por Michel Lauwers 219

4. PREGADORES E MENORES

As ordens mendicantes
por Jacques Le Goff 227
Os pecados da cidade, 228. Uma palavra nova, 233.
Influência social e política, 235.
S. Francisco de Assis
por André Vauchez 243
A mensagem espiritual, 252.

S. Domingos, "o mal-amado"


por André Vauchez 263
Mendigar para viver, 265.

Estêvão de Bourbon, o inquisidor exemplar


por Jacques Berlioz 271

Tomás de Aquino, um universitário na Idade Média


por Jacques Verger 287

Guilherme de Rubrouck entre os Mongóis


por Marie-France Auzépy 303

Referências cronológicas 319


Bibliografia geral 323
Os autores 329

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