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MÓDULO 3

A CULTURA DO MOSTEIRO
Séculos IX-XII. Da Reorganização cristã da Europa (Christianitas) ao
crescimento e afirmação urbanos (O tempo)

Nascida do rescaldo das invasões germânicas (século V e VI) e Idade Média = Período
da desagregação das estruturas clássicas, principalmente da história que se situa
romanas, a Idade Média foi um período conturbado para a entre os séculos V e XV
da Era Cristã. Começa
história da Europa. com a queda do Império
Romano do Ocidente,
Após a queda do Império Romano do Ocidente o continente em 476, e termina com
a tomada de
europeu iniciou uma «viagem» que durou cinco séculos. A Constantinopla pelos
História designou por Alta Idade Média o período que teve o seu Turcos Otomanos, em
início no século V d.C. e que terminou cerca do ano mil, um ano 1453.
temido pela premonição do fim dos tempos. Este início de uma nova idade do Homem
sobre a Terra, que a História classificou de Média, revelar-se-ia de grandes conquistas
sociais e humanas. No processo criativo do Homem, não foi uma época de definição de
estilos ou de produtividade artística, uma vez que a instabilidade política e social nesse
tempo de enorme desorientação, após o desaparecimento das referências culturais do
mundo romano dificultaram o exercício de contemplação e de criatividade, num mundo
em que o importante era sobreviver.

As cidades «adormeceram» com o desaparecimento progressivo da vida urbana. O


deslocamento da população para os campos era uma opção ditada naturalmente pela força
das circunstâncias. As cidades, como antigos centros de Poder, eram agora alvos
preferenciais das incursões bélicas que conduziam à destruição e à degradação social. No
século V, os Ostrogodos, Visigodos, Burgúndios, Francos, Saxões, Vândalos e Vikings,
chamados bárbaros pelo mundo romano em decadência, introduziram-se em territórios
do Ocidente europeu, umas vezes violentamente, outras como colonos, trazendo para
locais outrora romanizados um heterogéneo «mosaico» de culturas.

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Assim, o embate entre os mundos romano e bárbaro-germano trouxe importante
alterações estruturais:

• Enfraqueceu a economia mercantil


• Provocou o declínio e a redução dos centros urbanos
• Desorganizou a administração pública
• Causou uma profunda depressão demográfica

Estas características acentuaram-se nos séculos seguintes (VII, VIII, IX e X) marcados


por novas invasões (muçulmanas, a partir do século VII; normandas, eslavas e magiares,
após o século IX), pela precariedade da subsistência, pelo barbarismo dos costumes, pelo
acentuar da ruralização na vida económico-cultural e por uma permanente instabilidade e
insegurança – razões que explicam a instalação, a partir dos séculos X-XI, do feudalismo,
com a formação de uma sociedade simultaneamente guerreira e rural, rude e cavaleiresca.

Feudalismo = “Pode considerar-se o feudalismo como um tipo de sociedade cujos caracteres


determinantes são: um desenvolvimento levado até muito longe dos laços de dependência de homem
para homem, com uma classe de guerreiros especializados a ocuparem os escalões superiores dessa
hierarquia; […] uma hierarquia de direitos sobre a terra correspondente à hierarquia dos laços de
dependência pessoal; um parcelamento do poder politico criando, em cada região, uma hierarquia de
instancias autónomas que exercem, no seu próprio interesse, poderes normalmente atribuídos ao Estado
[…]. Este tipo de sociedade […] foi aquele que a Europa ocidental conheceu nos séculos X, XI, XII”
(Ganshof, O que é o feudalismo?, Publicações Europa-América.)

A partir do Ano Mil, deu-se a inversão deste quadro depressivo, com o cessar das vagas
invasoras e com o abrandamento das guerras privadas, de carácter feudal.

O regresso à paz permitiu maior estabilidade e segurança, favoreceu o desenvolvimento


de práticas agrícolas, propiciadoras de excedentes que contribuíram para o crescimento
demográfico e para o renascer do comércio. O comercio e as suas gentes reanimaram as
cidades, onde os bispos instalaram as suas dioceses.
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No século XII, os burgos – as cidades medievais – eram já símbolos do renascer da
Europa, abrigando as feiras e os mercados e, à sombra das suas igrejas episcopais, as
colegiadas e as universidades.

À Igreja, dispersa pelo mundo ocidental e ainda em organização, coube a gigantesca tarefa
de exercer uma autoridade cultural. Através de uma intensa atividade pedagógica, criou
normas de comportamento sócio religioso e moral e foi mediadora junto de populações
desavindas, compostas por bárbaros dominadores e gente que recentemente aderira à Fé
Cristã.

Este mundo tinha três únicos estratos sociais: os


servos, procurando sobreviver e dificilmente
produzindo riqueza, enfileirando com as alfaias
como armas nas tropas do seu senhor; o senhor
feudal, guerreiro e nobre, detentor de terras e de
poder; e uma Igreja de grande capacidade
administrativa e intelectual, com prestígio crescente
e inicialmente alheia ao feudalismo, mas que
disputaria mais tarde a posse da terra.

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A Europa dos reinos cristãos. A geografia monástica da Europa (O
espaço)
Nesta pulverizada Europa de reinos feudais, enfraquecida, violente e rural, uma única
força se manteve em crescimento: o cristianismo, tornado religião única e oficial do
Estado Romano desde 381.

Equiparados a juízes e magistrados romanos, os bispos cristãos do Baixo Império


aproveitaram as estruturas administrativas centrais e locais, então em decadência, para
congregarem as comunidades de fieis e tornarem-se as únicas autoridades presentes e
atuantes junto das populações.

A ação da Igreja, durante toda a Alta Idade Média, ultrapassou em muito as obrigações
religiosas, pastorais e doutrinais, exercendo, simultaneamente, um importante papel
civilizacional (a nível das práticas agrícolas, da suavização dos costumes e da
conservação e desenvolvimento das artes e das letras), que teve como focos difusores as
igrejas e principalmente os mosteiros. Consequentemente, toda a cultura medieval tomou
um caracter religioso e doutrinal, apesar do barbarismo e paganismo que grassavam entre
as populações.

Foi esse papel civilizacional da Igreja que criou a Cristandade (Christianitas) –


comunidade de povos e nações que, professando a fé cristã, criaram entre si vínculos
sociais, políticos, jurídicos e culturais dai decorrente -, instalada principalmente no
Ocidente, entre os séculos IX e XIV.

Neste contexto, foi também a Igreja que mandou construir ou reconstruir igrejas e
mosteiros, incentivou as peregrinações aos lugares santos (os mais concorridos foram os
da Terra Santa e o túmulo do Apostolo Santiago, em Compostela, na Galiza) e organizou
as cruzadas, importantes movimentos religiosos e militares geradores da aproximação
oriental e com África.

O fervor dos primeiros tempos do Cristianismo deu origem, no Ocidente cristão, a um


movimento religioso – o monaquismo – que se expandiu a partir do Oriente e em poucos
séculos se tornou uma realidade em toda a Europa.

Monaquismo = movimento que levou muitos cristãos a abandonar a vida mundana para se entregarem
totalmente à oração e ao serviço de Deus. Formaram, para isso, congregações ou ordens religiosas unidas
pelos mesmos votos, vivendo conforme certa regra, sob a autoridade de um chefe espiritual, por
exemplo: São Bernardo, São Domingos, São Francisco. Existiram, também, na Idade Media, ordens de
cavalaria, que tiveram origem nas cruzadas. Foram instituídas, inicialmente, para reunir sob a mesma lei
os cavaleiros que se dedicavam quer a cuidar dos peregrinos da Terra Santa quer à conquista e guarda
do Santo Sepulcro.

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O Mosteiro (O local)
O monaquismo cristão nasceu no século IV, no Oriente (Egito, Síria, Asia Menor) e
rapidamente se espalhou pelo Mediterrâneo, para o Norte e para as regiões do Sul a
Rússia. Surgiu ligado ao desejo de isolamento, de evasão do mundo profano – fuga mundi
– para uma entrega a Deus através do ascetismo, ou seja, da meditação e contemplação.

Partindo de atitudes individuais, rapidamente se formaram grupos de discípulos, dispostos


a seguir o modelo do mestre. Surgem então as comunidades de monges e monjas.

No Ocidente, foi só a partir dos séculos VI e VII que surgiram os primeiros “legisladores”
da vida religiosa comunitária, como São Bento de Núrsia.
Segundo Gregório Magno, seu único biógrafo (em diálogos, Livro I ), São Bento era filho de ricos
proprietários rurais e estudou em Roma. Mas cedo abandonou esta cidade corrompida para se juntar a
uma comunidade asceta Enfide. Três anos depois, fez-se anacoreta em Subiano. Aí um grupo de
eremitas escolhe-o como seu chefe, mas logo o rejeitaram por causa da sua disciplina e rigor excessivo.
São Bento voltou ao isolamento, mas, pouco depois, formou uma comunidade constituída por 12
pequenos mosteiros. Em 529, transferiu-se para Montecassino onde escreveu a sua Regra (ou
regulamento da Vida Comunitária). Esta está escrita em latim vulgar e teve como fontes a Sagrada
escritura e os escritos de santos como Pacómio, Basílio, Leão Magno, Jerónimo Agostinho, Cesário
Arles e, sobretudo, João Cassiano, cuja doutrina fomentou o monaquismo ocidental.
A Regra de São Bento dominou o Ocidente até ao século XII e a ação civilizacional da sua congregação
– a Ordem Beneditina – foi de tal modo importante que, em 1964, o Papa Paulo VI o declarou
solenemente, patrono da Europa.

Os regulamentos – ou Regra – que este escreveu para os seus cenobitas (monges), em


529, serviram de modelo para a organização da vida religiosa comunitária na maior parte
dos mosteiros medievais europeus até ao século XII, como Cluny, Cister, Dijon,
Fontevrault … e para as ordens militares dos séculos XI-XII, espalhando-se por toda a
europa.

Como São Bento definia na sua regra, o mosteiro era uma “escola ao serviço do Senhor”,
onde o abade era o pai e mestre dos irmãos e cuja comunidade tinha por princípios básicos
os da obediência, silencio e humildade, na ordem de Deus.

A primeira obrigação dos monges era a do ofício divino (culto religioso) ao qual “nada se
deve antepor”; mas os irmãos possuíam outros deveres onde a oração ombreava com o
trabalho (ora et labora) no scriptorium, nas variadíssimas oficinas, nos campos, em
horários e ritmos rigorosamente estipulados e concebidos, desde o romper do sol até à
noite.

O regulamento beneditino definia os cargos e tarefas de cada um na comunidade (sempre


escrupulosamente hierarquizados) e estabelecia, inclusive, um código penal para os
faltosos e não cumpridores, onde as sanções incluíam o flagelamento, o isolamento (ou
exclusão temporária da comunidade), o jejum, a abstinência e a meditação.

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Segundo o ideal de fuga mundi, grande parte dos mosteiros medievais estavam instalados
em zonas isoladas, no alto de montanhas ou em vales e clareiras das florestas, embora
alguns existissem no seio das cidades.

Eram concebidos como pequenos mundos autónomos e autossuficientes, virados para o


interior e fechados ao exterior por muralhas e portas rigorosamente vigiadas e
regulamentadas por cargos próprios (porteiro, hospedeiro, esmoleiro, …). A entrada era
franqueada à comunidade de acordo com hierarquias preestabelecidas: clérigos seculares
ou outras congregações tinham um tratamento mais íntimo, podendo até participar das
refeições e das tarefas da comunidade; os nobres tinham tratamento de privilégio, com
alojamento próprio; outros estratos: não passavam da hospedaria a eles destinada, sem
acesso à vida comunitária nem ao contacto direto com os monges.

O mosteiro organizava-se com várias dependências de carácter funcional, que permitiam


a sua autossuficiência, tais como: refeitórios, cozinha, dispensa, adegas, estábulos,
oficinas, etc.

O próprio plano arquitetónico dos mosteiros tinha sido pensado meticulosamente por São
Bento, proposto para a Abadia de Saint-Gall, na Suíça, cuja planta fora desenhada em
perfeito equilíbrio geométrico e em perfeita correspondência matemática. Os mosteiros
tornaram-se, assim, os campos de ensaio das soluções técnicas e formais concretizadas
posteriormente nas igrejas.

Os mosteiros foram beneficiados pela política, economia e cultura do seu tempo. Para
eles foram canalizadas grandes riquezas captadas através de doações, dízimos, rendas

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fundiárias e corveias. Assim, os mosteiros transformaram-se em centros dinamizadores
da economia - difusores de técnicas e praticas agrícolas inovadoras, artesanato, comércio
-, da produção cultural - teologia, letras, ciências - e escolar, exercendo importante papel
civilizacional.

O poder da escrita (Síntese)


A depressão cultural provocada pela queda do Império Romano do Ocidente, provocou
um retorno ao analfabetismo e a uma cultura popular não escolarizada e não escrita, onde
predominou a tradição oral. Todavia mantiveram-se alguns focos culturais ativos,
distantes uns dos outros nas regiões mediterrânicas e britânicas. Contudo os homens que
animavam estes centros de produção cultural são uma minoria ínfima no conjunto da
população. No total, umas centenas de pessoas, apenas seriam capazes de ler e escrever,
e muito menor os que sabiam organizar e sintetizar ideias. Assim acentuou-se por todo o
Ocidente uma notória disparidade cultural entre a cultura latina (escrita em Latim), cada
vez mais restrita ao âmbito religioso e a um escol muito pouco numeroso de intelectuais
e a cultura das massas, medíocre, barbarizada, oral.

O papel de guardiães do saber escrito cabe igualmente aos monges pelo trabalho exercido
nos scriptoria (escritórios), conventuais, espécie de oficinas de escrita, onde
pacientemente, alguns monges especializados (escribas e copistas) escreviam
documentos e registos do mosteiro e se entregavam à tarefa de copiar, à mão, os livros
religiosos e os grandes clássicos, muitas vezes ricamente ilustrados com iluminuras ou
miniaturas. Esta ação foi extremamente valiosa numa época em que não havia outros
processos de edição ou reprodução de livros, nem oficinas privadas que disso se
encarregassem. Assim, foi o esforço destes copistas que trouxe até nós o conhecimento e
o pensamento dos Antigos. A arte de escrever, restrita a uma elite, foi então extremamente
aperfeiçoada.

Devido às dificuldades de comunicação da época e ao isolamento dos mosteiros,


desenvolveram-se caligrafias e alfabetos diferenciados. O domínio da arte da escrita e do
saber engrandeceu o papel dos eclesiásticos na sociedade e conferiu-lhe durante muito
tempo, pelo menos até ao advento da burguesia (Séculos XII-XIII), o monopólio dos
cargos públicos e das chancelarias régias, valorizando-os aos olhos do monarca.

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História da Música

Os primeiros séculos da igreja cristã


Algumas características da música da Grécia e das sociedades mistas orientais
-helenísticas do Mediterrâneo Oriental foram seguramente absorvidas pela igreja cristã
nos seus dois ou três primeiros séculos de existência. Mas certos aspetos foram
completamente rejeitados. Um desses aspeto foi a ideia de cultivar a arte apenas pelo
prazer que proporciona.
As formas e tipos de música associados a grandes espetáculos públicos, como festivais,
concursos e representações teatrais, foram considerados impróprios para a Igreja pois
havia a necessidade de desviar os convertidos do mundo pagão. Existia mesmo uma certa
desconfiança em relação à música instrumental.

A herança Judaica

Durante muito tempo os historiadores pensaram que os primeiros cristãos teriam copiado
os serviços religiosos pelos da sinagoga judaica. Hoje pensa-se que terão evitado copiar
os serviços judaicos por forma a sublinharem o carácter distinto das suas crenças e rituais.
É necessário estabelecer uma distinção entre as funções religiosas do templo e da
sinagoga.
O templo — ou seja, o segundo templo de Jerusalém, que existiu no mesmo lugar do
primeiro templo de Salomão de 539 a. C. até à sua destruição pelos Romanos em 70 d. C.
— era um local de culto público. Esse culto consistia principalmente num sacrifício, em
geral de um cordeiro, realizado por sacerdotes, assistidos por levitas, entre os quais se
contavam vários músicos, e na presença de leigos israelitas. Estes sacrifícios realizavam-
se diariamente, de manhã e de tarde; no sabat e nas festas havia sacrifícios públicos
suplementares. Enquanto decorria o sacrifício, um coro de levitas — com doze elementos,
pelo menos — cantava um salmo, diferente para cada dia da semana, acompanhado por
instrumentos de cordas.
A sinagoga era um centro de leituras e homilias, bem mais do que de sacrifícios ou
orações. Aí, em assembleias ou serviços, as Escrituras eram lidas e comentadas.
O que a liturgia ficou a dever à sinagoga foi principalmente a pratica das leituras
associadas a um calendário e o seu comentário público num local de reunião dos crentes.
À medida que a igreja cristã primitiva se expandia de Jerusalém para a Ásia Menor e para
o Ocidente, chegando a África e à Europa, ia acumulando elementos musicais
provenientes de diversas zonas.
Os mosteiros e igrejas da Síria tiveram um papel importante no desenvolvimento do canto
dos salmos e dos hinos.
Estes dois tipos de canto religioso parecem ter-se difundido a partir da Síria, via Bizâncio,
até Milão e outros centros ocidentais.
O canto dos hinos é a primeira atividade musical documentada da igreja cristã.

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Bizâncio

As igrejas orientais, na ausência de uma autoridade central forte, desenvolveram liturgias


diferentes nas várias regiões. Embora não subsistam manuscritos anteriores ao século IX
com a música usada nestes ritos orientais, algumas inferências podem ser feitas quanto
aos primórdios da música religiosa no Oriente.

A cidade de Bizâncio (ou Constantinopla, hoje Istambul) foi reconstruída por Constantino
e designada em 330 como capital do seu império reunificado. A partir de 395, data em
que foi instaurada a divisão permanente entre Império do Oriente e do Ocidente, até à sua
conquista pelos Turcos, em 1453, esta cidade permaneceu como capital do Império do
Oriente.

A prática musical bizantina deixou marcas no cantochão ocidental, particularmente na


classificação do reportório em oito modos e num certo número de cânticos importados
pelo Ocidente em momentos diversos entre o século VI e o século IX

As bases do sistema ocidental de modos parecem ter sido importadas do Oriente, embora
a elaboração teórica do sistema de oito modos do Ocidente tenha sido fortemente
influenciada pela teoria musical grega, tal como foi transmitida por Boécio.

Liturgias Ocidentais

No Ocidente, como no Oriente, as igrejas locais eram de início relativamente


independentes. Embora partilhassem uma ampla gama de práticas comuns, é provável
que cada região do Ocidente tenha recebido a herança oriental sob uma forma
ligeiramente diferente; estas diferenças originais combinaram-se com as condições locais
particulares, dando origem a várias liturgias e corpos de cânticos distintos entre os séculos
V e VII.
Com o passar do tempo a maioria das versões locais (a ambrosiana é uma das exceções)
desapareceram ou foram absorvidas pela prática uniforme que tinha em Roma a sua
autoridade central.
Entre o século IX e o século XVI, a liturgia da igreja ocidental foi-se romanizando cada
vez mais.
Durante o século VII e o princípio do século VIII o controle da Europa ocidental estava
repartido entre Lombardos, Francos e Godos, e cada uma destas divisões políticas tinha
o seu reportório de cânticos:
o Na Gália — território que correspondia, aproximadamente, à França atual —
havia o canto galicano,
o No Sul da Itália, o benaventino,
o Em Roma, o canto romano antigo,
o Em Espanha, o visigótico ou moçárabe,
o Na região de Milão, o ambrosiano.

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Canto Galicano

A liturgia galicana, que incluía elementos célticos e bizantinos, esteve em vigor entre os
Francos quase até ao final do século VII, momento em que foi suprimida por Pepino e
pelo seu filho Carlos Magno, que impuseram o canto gregoriano nos seus domínios. Esta
liturgia foi tão radicalmente suprimida que pouco se sabe acerca dela.

Canto Moçárabe

Conservaram-se quase todos os antigos textos hispânicos e as respetivas melodias, mas


numa notação que até hoje desafiou todas as tentativas de transcrição, pois o seu sistema
tornou-se obsoleto antes de o canto passar a ser registado em linhas de pauta.
Os usos hispânicos tomaram forma definida no Concílio de Toledo de 633, e após a
conquista muçulmana do século VII esta liturgia recebeu o seu nome de moçárabe,
embora não haja motivos para pressupor influência árabe na música.
O rito hispânico só em 1071 foi oficialmente substituído pelo rito romano, e ainda hoje
subsistem dele alguns vestígios em certas igrejas de Toledo, Salamanca e Valladolid.

Canto Romano Antigo

O canto romano antigo é um repertório que subsiste em manuscritos de Roma com datas
que vão do século XI ao século XIII, mas cujas origens remontam pelo menos ao século
VIII.
Julga-se que esta liturgia representaria um uso mais antigo, que terá persistido e
continuado a desenvolver-se em Roma mesmo depois de o repertório gregoriano,
fortemente impregnado de influências do Norte, do país dos Francos, se ter difundido pela
Europa.
O reino franco, fundado por Carlos Magno (742-814), ocupava a zona que hoje
corresponde à França, à Suíça e à parte ocidental da Alemanha.
Quais foram então as melodias trazidas de Roma para terras francas? Ninguém pode
responder com segurança a esta pergunta. Podemos deduzir que no seu novo local de
acolhimento grande parte, se não a totalidade, desta música importada terá sofrido
modificações antes de, finalmente, ser registada sob a forma em que hoje a encontramos
nos mais antigos manuscritos do Norte. Além disso, muitas novas melodias e novas
formas de cantochão desenvolveram-se no Norte já depois do século IX. Em suma,
praticamente todo o corpo do cantochão, tal como hoje o conhecemos, provém de fontes
francas, que, provavelmente, se basearam em versões romanas, com acrescentos e
correções da responsabilidade dos escribas e músicos locais.
O cantochão conservado nos mais importantes manuscritos francos transmite o reportório
tal como terá sido reorganizado sob a orientação do papa Gregório (590-604) e de um seu
importante sucessor, o papa Vitaliano (657-672).
Em virtude do papel que Gregório I terá supostamente desempenhado neste processo, tal
reportório recebeu o nome de gregoriano. Depois de Carlos Magno ter sido coroado em

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800 como chefe do Sacro Império Romano, ele próprio e os seus sucessores procuraram
impor este reportório gregoriano e suprimir os diversos dialetos do cantochão, como o
céltico, o galicano, o moçárabe, o ambrosiano, mas não conseguiram eliminar por
completo os usos locais.

A proeminência de Roma

Como capital imperial, a Roma dos primeiros séculos da nossa era albergou um grande
número de cristãos, que se reuniam e celebravam os seus ritos em segredo.
Em 313 o imperador Constantino concedeu aos cristãos os mesmos direitos e a mesma
proteção que aos praticantes das outras religiões do império; desde logo a Igreja emergiu
da sua vida subterrânea e no decurso do século IV o latim substituiu o grego como língua
oficial da liturgia em Roma.
À medida que declinava o prestígio do imperador romano, o do bispo de Roma ia
aumentando, e começou gradualmente a ser reconhecida a autoridade preeminente de
Roma em questões de fé e disciplina.
Entre o século V e o século VII muitos papas se empenharam na revisão da liturgia e da
música.
A Regra de S. Bento (c. 520), conjunto de instruções determinando a forma de organizar
um mosteiro, menciona um chantre, mas não indica quais eram os seus deveres.
Nos séculos seguintes, porém, o chantre monástico tornou-se uma figura-chave do
panorama musical, uma vez que era responsável pela organização da biblioteca e do
scriptorium e orientava a celebração da liturgia.
No século VIII existia já em Roma uma schola cantorum, um grupo bem definido de
cantores e professores incumbidos de formar rapazes e homens para músicos de igreja.
Atribui-se a Gregório I (Gregório Magno), papa de 590 a 604, um esforço de
regulamentação e uniformização dos cânticos litúrgicos.
As realizações de Gregório foram objeto de tal admiração que em meados do século IX
começou a tomar forma uma lenda segundo a qual teria sido ele próprio, sob inspiração
divina, quem compusera todas as melodias usadas pela Igreja. A sua contribuição real,
embora provavelmente muito importante, foi sem dúvida menor do que aquilo que a
tradição medieval veio posteriormente a imputar-lhe.

Música como contemplação Divina

O valor da música residia no seu poder de elevar a alma à contemplação das coisas
divinas.
Acreditavam firmemente que a música podia influenciar, para melhor ou para pior, o
carácter de quem a ouvia. A música era para ser ouvida tendo apenas em vista o gozo
estético, o prazer que proporciona a combinação de belos sons.
Não negavam, é claro, que o som da música é agradável, mas defendiam que todos os
prazeres devem ser julgados segundo o princípio platónico de que as coisas belas existem

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para nos lembrarem a beleza perfeita e divina; por conseguinte, as belezas aparentes do
mundo que apenas inspiram o deleite egoísta, ou o desejo de posse, devem ser rejeitadas.
A música seria serva da religião. Só é digna de ser ouvida na igreja a música que por meio
dos seus encantos abre a alma aos ensinamentos cristãos e a predispõe para pensamentos
santos.
Uma vez que não acreditavam que a música sem letra pudesse produzir tais efeitos,
excluíram, a princípio, a música instrumental do culto público, embora fosse permitido
aos fiéis usar uma lira para acompanharem o canto dos hinos e dos salmos em suas casas
e em reuniões informais.
Neste ponto os Padres da Igreja debatiam-se com algumas dificuldades, pois o Antigo
Testamento, especialmente o Livro dos Salmos, está cheio de referências ao saltério, à
harpa, ao órgão e a outros instrumentos musicais. A exclusão de certos tipos de música
dos serviços religiosos da igreja primitiva tinha também motivos práticos: e uma delas
era o facto de as peças vocais mais elaboradas, os grandes coros, os instrumentos e a
dança estarem associadas aos espetáculos pagãos.

Cantochão
O reportório do cantochão e das liturgias desenvolveram-se ao longo de muitos séculos.
Certos rituais permaneceram bastante estáveis.
A maior parte dos cânticos tiveram origem na Idade Média, mas mantiveram-se em uso
desde esse tempo, com os desenvolvimentos inerentes.

Liturgia Romana

Duas categorias principais de serviços religiosos: Oficio e Missa

Ofício Divino (ou horas canónicas):

Foram codificados pela primeira vez nos capítulos 8 a 19 da Regra de S. Bento (c. 520)
Celebram-se todos os dias, a horas determinadas, sempre pela mesma ordem:
• Matinas (antes do nascer do sol)
• Laudes (ao alvorecer)
• Prima (6 da manhã)
• Terça (9 da manhã)
• Sexta (meio-dia)
• Nonas (3 da tarde)
• Vésperas (pôr do sol)
• Completas (normalmente logo a seguir às vésperas)

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Celebrado pelo clero secular e pelas ordens religiosas, compõe-se de:
• Orações
• Salmos
• Cânticos
• Antífonas
• Responsos
• Hinos
• Leituras
A música para os ofícios encontra-se compilada num livro litúrgico: o Antifonário
(Antiphonale).
Principais momentos musicais:
• Canto dos salmos, com as respetivas antífonas
• Canto dos hinos e dos cânticos
• Entoação das lições (passagens das escrituras), com os respetivos
responsórios
Os ofícios mais importantes são:
• As matinas (incluem alguns dos mais antigos cantos da Igreja)
• As laudas
• As vésperas (compreendem o cântico Magnificat anima mea Dominum –
A minha alma glorifica o Senhor). De especial importância para a música
sacra, porque desde os tempos mais remotos admitia o canto polifónico.
Aspeto característico das Completas:
• Canto das quatro antífonas da Santa Virgem Maria, as chamadas antífonas
marianas, uma para cada uma das divisões principais do ano litúrgico
(Advento, Epifania, Quaresma, Páscoa, Pentecostes, Trindade)
o Alma Redemptoris Mater (Doce Mãe do Redentor) – do Advento
até 1 de fevereiro
o Ave, Regina caelorum (Salve, rainha dos céus) – de 2 de fevereiro
à quarta-feira da Semana Santa
o Regina caeli laetare (Alegrai-vos, rainha dos céus) – da pascoa até
ao domingo da Trindade
o Salve, Regina (Salve, rainha) – da Trindade ao Advento

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Missa

Serviço religioso mais importante da Igreja Católica.


A palavra missa vem da frase que termina o serviço: Ite, missa est (Ide-vos, a congregação
pode dispersar).
O ato com que culmina a missa é a celebração da última ceia, através da oferta e
consagração do pão e do vinho e da sua partilha entre os fiéis.
Na Igreja Católica o cerimonial de celebrar a missa recebe o nome de missa solemnis e
inclui peças cantadas pelo celebrante, além de cantochão ou canto polifónico por um coro
e/ou congregação.
Os diversos elementos da missa foram entrando na liturgia em momentos e em lugares
diferentes.
Logo nas primeiras descrições da celebração da última ceia, ou Eucaristia, se torna
evidente que a cerimonia se divide em duas partes:
• Liturgia da palavra
• Liturgia da Eucaristia
O Ordo Romanus Primus (final do séc. VII) são um conjunto de instruções para a
celebração da liturgia, promulgado pelo bispo de Roma, e menciona o Intróito, o Kyrie,
o Gloria e a colecta como devendo preceder as leituras da Bíblia, nomeadamente dos
Evangelhos, e as orações dos fiéis.
Em 1570 foi publicado pelo Papa Pio V um Missal (livro com os textos para a missa).
Este livro reflete as decisões do Concilio de Trento, fixando os textos e os ritos (liturgia
tridentina)
A missa, tal como começou a ser celebrada a partir do final
da Idade Média, codificada pelo Missal de 1570, pode
esquematizar-se da seguinte forma:

Os textos de certas partes da missa são invariáveis. Outros


mudam conforme a época do ano ou as datas de determinadas
festividades ou comemorações. As partes variáveis
denominam-se por próprio da missa (proprium missae). As
partes invariáveis do serviço denominam-se ordinário da
missa (assinaladas a azul no esquema anterior):
• Estas partes são cantadas pelo coro (nos
primeiros tempos também cantadas pela
congregação)
• A partir do século XIV são estes os textos
mais frequentemente elaborados em polifonia
• O termo missa é muitas vezes usado pelos
músicos para designar apenas estas secções
(por exemplo, como acontece na Missa
Solemnis de Beethoven)
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A partir de meados do século XV, a missa de Requiem, passa a ser objeto de arranjos
polifónicos. A missa de Requiem tem um próprio especial que não varia com o calendário.
A música para a missa, quer para o próprio, quer para o ordinário, vem compilada num
livro litúrgico, o Gradual.
O Liber usualis, contem a seleção dos cânticos mais frequentemente utilizados, tanto do
Antifonário, como do Gradual.
Os textos da missa são coligidos, respetivamente, no Missal e no Breviário.

Canto Gregoriano
O canto monódico, em latim, da Igreja Católica, ainda em uso atualmente, é chamado
canto gregoriano, a partir do nome do papa Gregório I (590-604) (São Gregório Magno).
A partir do século IV, com o fortalecimento e expansão do cristianismo, desenvolveram-
se arcebispados e conventos relativamente independentes de Roma.
Coexistiam na época de Gregório I diferentes liturgias e maneiras de cantar (Romana,
Milanesa ou Ambrosiana, Moçárabe, Galicana, Bizantina, etc.). No ocidente, o bispo de
Roma reclamava a liderança.
Em finais do séc. VI, o papa Gregório I levou a cabo uma reforma da liturgia romana.
O papado alcançou o objetivo de clarificar e simplificar as melodias com a monarquia
carolíngia e somente nesta época se vinculou lendariamente à autoridade de Gregório I,
ao receber o nome de gregoriano.
Uma lenda que data do séc. IX conta-nos como
o papa Gregório compilou o corpus do
cantochão. Uma pomba ditava-lhe os cânticos
ao ouvido e ele ia-os cantando a um escriba que
os registava. A intervenção da pomba é uma
alegoria da inspiração divina. Claro que é
inverosímil. Não havia nesta época notação
apropriada que o escriba pudesse utilizar.
Atribui-se todo o reportório de cantochão a um
só compositor: Gregório, o que é um exagero.
Não sabemos de o próprio foi compositor ou
não, mas julga-se que terá sido, pelo menos,
responsável pela organização de um livro
litúrgico.

Schola cantorum
O canto litúrgico estava a cargo, em Roma, de
um coro especial, o qual instruía os cantores,
denominando-se por essa razão, schola cantorum. Constava de 7 cantores, dos quais os 3
primeiros também cantavam como solistas. O quarto cantor denominar-se-ia “primeiro
cantor secundário”. Do quinto ao sétimo seriam os “cantores secundários” (estes só
cantavam em coro). Como reforço, empregavam-se vozes infantis. Seguindo este modelo,

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fundaram-se escolas de cantores por toda a Europa, destacando-se as de Tours, Metz e St.
Gall.

Categorias, formas e tipos de cantochão

Peças de cantochão podiam usar:


• Textos bíblicos e não bíblicos
• Cada uma destas divisões pode utilizar textos em prosa e textos poéticos
O cantochão pode também ser classificado segundo a forma como é cantado:
• Antifonal (em que os coros cantavam alternadamente)
• Responsorial (a voz solista alterna com o coro)
• Directo (sem alternância)
Pode ainda ser classificado segundo a relação entre as notas e as sílabas
• Silábico: onde a maior parte das sílabas corresponde a uma nota
• Melismático: onde várias notas correspondem a uma sílaba.
Esta divisão não é sempre nítida porque nem sempre é somente silábico ou melismático,
podendo assim ser chamado de neumático.
No cantochão, a melodia adapta-se ao texto, ao seu espírito dominante e às funções
litúrgicas que o canto desempenha. Isto não significa que o cantochão seja inexpressivo,
ma sim que quer por em ênfase o texto. Na maioria dos casos, a linha melódica tema
forma de arco: começa em baixo, eleva-se a um ponto mais alto onde permanece por
algum tempo, e volta a descer no final.
Aspetos gerais da forma:
• Formas exemplificadas nos tons de salmodia: corresponde às duas metades
equilibradas de um versículo de um salmo.
• Forma estrófica exemplificada nos hinos: a mesma melodia é cantada para
sucessivas estrofes do texto.
• Formas livres: incluem todos os outros tipos que não tem uma descrição
concisa.
Recitação e tons de Salmodia
• Os cantos para a recitação de orações e leituras estão na fronteira entre a fala e o
canto.
• Consistem numa única nota de recitação ao som da qual cada versículo ou período
do texto é entoado.
• Esta nota de recitação é também designada de tenor.
• Pode ser introduzida outra nota para destacar uma sílaba importante.

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• A nota de recitação pode ser precedida por uma formula introdutória de 2 ou 3
notas, denominada de initium.
• No final de cada versículo há uma breve cadencia melódica.
Cantos do Ordinário
Eram, originalmente, melodias silábicas muito simples cantadas pela congregação. Foram
depois substituídas por outras composições a partir do séc. IX, embora o estilo silábico
continue a manter-se no Gloria e no Credo.
O Kyrie, o Sanctus e o Agnus Dei passaram a ser mais ornamentados, e, em virtude da
natureza dos respetivos textos, têm arranjos tripartidos.

Desenvolvimentos posteriores do cantochão

Entre os séculos V e IX, os povos do Norte e Ocidente da Europa converteram-se ao


cristianismo e às doutrinas e ritos de Roma.
O canto gregoriano “oficial” já estava implantado no império franco antes de meados do
séc. IX e, progressivamente, começam a surgir desenvolvimento do cantochão resultando
em novas estruturas. Todos estes desenvolvimentos coincidiram com a emergência da
monodia secular e com as primeiras experiências de polifonia.

TROPOS
Eram, na origem, um acrescento composto de novo, geralmente em estilo neumático e
com um texto poético, para um dos cânticos antifonais do próprio da missa (maior parte
das vezes para o introito).
É considerado uma ornamentação especial (festividades). É um complemento ao
cantochão, que se interpola com o mesmo ou que se acrescenta.
Formas de tropos:
o Aplicação de texto a melismas: texto novo que se submete silabicamente
a um melisma pré-existente no gregoriano.
o Texto novo com melodia nova: guiam-se pelo texto e pela melodia
originais do cantochão.
o Interpolação puramente melódica: interpola-se, com fins ornamentais,
um melisma numa passagem determinada.
Floresceram nos séc. X e XI, mas no séc. XII começaram a desaparecer gradualmente
tendo sido um dos centros mais importantes St. Gall, na Suíça.

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SEQUÊNCIAS
É um caso particular do Tropo. A sequencia ouvia-se na missa na repetição do Aleluia
depois do versículo dos Salmos (Alleluia-Versículo-Alleluia), antes do Evangelho.
(aplicação de um texto ao prolongado melisma do Aleluia). Nas missas sem aleluia, a
sequência encontra-se situada depois do Tractus.
De ajuda para a memória, estes textos converteram-se numa forma poética, e em breve
também musical, própria.
O equivalente profano da sequencia é o lai ou laich e a estampida instrumental.
História da Sequencia – três períodos:
• Sequência Clássica (c 850-1050): especialmente em St. Gall, Reichenau
e no convento de S. Martial de Limoges. Principais representantes: Notker,
Ekkehart, Contractus e Berno.
• Sequência rimada (desde o séc. XII): adaptação dos pares de versículos
em extensão e ritmo, com melodias próprias e sem relação com o Alleluia.
Principal representante: Adam de St. Victor.
• Sequência estrófica (desde o séc. XIII): evolução da sequencia rimada.
Principais representantes: Tomás de Celano e São Tomas de Aquino.
As sequências, em especial do estilo mais recente, gozaram de tal predileção na Idade
Média que ocuparam um grande âmbito na liturgia. O seu número ascendeu a
aproximadamente 5000.

DRAMA LITÚRGICO
Um dos mais antigos dramas litúrgicos baseia-se num dialogo ou tropo do séc. X que
antecedia o introito da missa da Pascoa. O dialogo pascal apresenta três Marias a
chegarem ao tumulo de Jesus. Relatos da época indicam que, não só este dialogo era
cantado em estilo responsorial, como também o canto era acompanhado de uma
movimentação dramática apropriada.
Esta forma dialogada foi igualmente adaptada ao introito do Natal.
Os mistérios do Natal e da Pascoa eram os mais comuns e representavam-se em toda a
Europa.
Subsistem ainda peças do séc. XII e mais tardias, que são extremamente complexas, com
encadeamentos de muitos cânticos, procissões e movimentações.

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Notação, neumas
Até ao século IX o cantochão desconheceu qualquer sistema de notação. Era simples e de
tradição oral. Quando existia a necessidade de criar uma peça para uma festa, a
composição fazia-se com base em formulas pré-existentes.
No entanto, o cantor solista precisava de cerca de 10 anos para memorizar todo o
reportório litúrgico.
Quando o reportório se alarga e quando é preciso manter a uniformidade, começa a
utilizar-se alguns sinais que ajudavam a memória do cantor. Estes sinais ou acentos com
função musical, chamavam-se neumas. Os neumas começam a utilizar-se no século IX,
sem qualquer referência a intervalos, por cima da palavra ou sílaba.
Os neumas não designam alturas de som, mas apenas direções:

Os primeiros manuscritos com neumas datam dos séculos VIII/IX, e os últimos do século
XIV (St. Gall).

Sistema de linhas
Existiram muitas tentativas de notação com linhas. A que se impôs foi o sistema de Guido
de Arezzo (+1050).
Usavam cores nas duas linhas sob as quais se situava o meio-tom: a linha de dó a amarelo
e a linha de fá a azul. Além disso usavam a clave de dó e a de fá (fig. B).

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Notação quadrada
Ao longo dos séculos formaram-se escolas de notação em diferentes épocas e lugares.

• Punctum (ponto): indica movimentos descendentes, ou seja, uma nota mais grave
(não é possível discernir se se refere a uma segunda, uma terceira, uma quarta,
…).
• Virga (barra): movimento ascendente, ou seja, uma nota mais aguda ou
permanência no agudo.
• Podatus ou pes: movimento grave agudo, combinação de punctum e virga.
• Clivis ou flexa (inclinação): movimento agudo grave.
• Scandicus e Climacus: comportam 3 notas, ascendentes ou descendentes.
• Torculus e porrectus: compreendem 3 notas, agudo-grave-agudo e vice-versa.
A notação quadrada não mensural é a notação gregoriana romana ainda hoje em uso.
Desenvolveu-se a partir dos neumas do Norte de França e aquitanos, a partir do século
XII.
Quanto ao ritmo, o gregoriano ao apresenta respostas na notação. O tempo e o ritmo
dependiam do texto e não eram anotados.
A notação neumática pressupunha que os cantores aprendessem e conhecessem as
melodias com os seus intervalos exatos, a partir da tradição oral. A imperfeição desta
notação é reflexo do alto nível das escolas de cantores.

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Sistema Musical

Os modos eclesiásticos
Sistematização em 8 modi, os modos eclesiásticos (posição dos tons e meios tons numa
oitava diatónica, construída a partir da finalis).
Sistematizados já acontece quando existia um grande número de melodias gregorianas
podem ser analisados a partir das seguintes características:
• Nota final (finalis): ponto de destino e de repouso, espécie de tónica
(geralmente, a ultima nota da melodia)
• Tenor (tuba, repercussa): nota melódica principal, espécie de dominante
• Âmbito (ambitus): normalmente de uma oitava
• Formulas melódicas: intervalos e desenhos melódicos típicos
Os modos eram numerados e agrupados aos pares (autênticos/plagais).
Existem 4 modos principais, os modos autênticos (tenor sobre a quinta). Somam-se-lhes
os 4 modos plagais (modos secundários), com as mesmas finalis, mas com o âmbito
deslocado uma quarta abaixo e tenor sobre a terceira.
Cada modo plagal tinha, invariavelmente, a mesma final que o modo autentico
correspondente.
Estas notas não representam uma altura absoluta.
Nos modos autênticos, o tenor situa-se uma quinta acima da finalis.

Primeiro modo:
parte de Ré
Terceiro modo:
parte de Mi
Quinto modo:
parte de Fá
Sétimo modo:
parte de Sol
Os modos
correspondentes
plagais partem de
uma quarta abaixo
Nos modos
autênticos, o
âmbito situa-se
por inteiro acima
da final, enquanto
nos modos plagais é a final é a quarta nota a contar do início da oitava
Assim, o primeiro e o oitavo modo tem o mesmo âmbito, mas finais e tenores diferentes

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O único acidente usado na notação do cantochão era o sib. Podia-se usar no primeiro e
segundo modos e, ocasionalmente, no quinto e no sexto. Os acidentes tornavam-se
necessários quando uma melodia modal era transposta: se um cântico no primeiro modo
fosse escrito em sol, passava a ser necessário um bemol na clave.
No século X, alguns autores (como Boécio) aplicaram os nomes dos tonoi gregos aos
modos eclesiásticos:
1. dórico 5. lídio
2. hipodórico 6. hipolídio
3. frígio 7. Mixolídio
4. hipofrigio 8. Hipomixolídio
Contudo, os dois modos estão longe de ser paralelos, pois os nomes dos modos
eclesiásticos não concordam com os modos gregos originais (dórico grego corresponde a
mi-mi; o dórico medieval corresponde a ré-ré).
No século XVI concebeu-se um sistema de 12 modos, acrescentando-se o eólico,
hipoeólico, jónico e hipojónico.
Para o ensino da leitura, um monge do século XI, Guido de Arezzo, propôs uma série de
sílabas (ut, re, mi, fa sol, la) para ajudar os monges a memorizarem a sequência de tons
ou meios-tons. Nesta sequencia, um meio-tom separa a terceira e a quarta nota, enquanto
os restantes graus da escala estão separados por tons inteiros
As sílabas derivam do texto de um hino (Hino
de S. João Baptista, séc. VIII) que Guido terá
talvez musicado para ilustrar esta sequencia.
Cada uma das seis frases do hino começa com
uma das notas da sequencia que passaram a ser
os nomes das notas.
Estas sílabas são chamadas de solmização
(assim chamadas a partir do nome das notas sol-
mi)
O modelo de solmização deu origem a um
sistema de hexacordes (sequencia de 6 notas):
escala de 6 notas com distancias fixas entre elas.

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O hexacorde podia encontrar-se em diversos pontos da escala: começando em dó, sol ou
em fá. O hexacorde em sol usava o si natural (b quadrum). O hexacorde de fá usava o si
bemol (b rotundum).
Embora estes sejam os modelos dos nossos bequadro e bemol, tinham uma finalidade
diferente, pois serviam para indicar as sílabas mi e fá.
Assim, teríamos os seguintes hexacordes: sobre dó - hexacorde natural, sobre sol -
hexacorde duro (com si natural), sobre fá - hexacorde mole (com si bemol)
Se a melodia ultrapassava a extensão de um hexacorde, passava-se para outro hexacorde
= mutança.
Um auxiliar pedagógico muito utilizado era a chamada mão guidoniana. Os alunos
aprendiam a cantar intervalos enquanto o mestre apontava com o indicador da mão direita
as diversas articulações da mão esquerda aberta. Cada uma das articulações representava
uma das 20 notas do sistema.

Antecedentes da polifonia primitiva


Nesses anos tiveram início certas mudanças que, quando levadas às últimas
consequências, viriam a conferir à música do Ocidente muitas das suas características
fundamentais, esses traços que a distinguem das outras músicas do mundo. Tais mudanças
podem ser resumidas como se segue.
1. A composição foi a pouco e pouco substituindo a improvisação enquanto forma de
criação de peças musicais. Gradualmente, foi surgindo a ideia de compor cada melodia
em vez de a improvisar a cada interpretação com base em estruturas melódicas
tradicionais. Só a partir de então podemos dizer que as obras musicais passaram a
«existir» na forma como hoje as concebemos, independentemente de cada execução.
2. Uma obra composta podia ser ensinada e transmitida oralmente e podia sofrer
alterações neste processo de transmissão. Mas a invenção da notação musical tornou
possível escrever a música de uma forma definitiva, que podia ser aprendida a partir do
manuscrito. Deste modo, composição e execução passaram a ser atos independentes, em
vez de se conjugarem na mesma pessoa, como antes sucedia, e a função do intérprete
passou a ser de mediação entre o compositor e o público.
3. A música começou a ser mais conscientemente estruturada e sujeita a certos princípios
ordenadores — por exemplo, a teoria dos oito modos, ou as regras relativas ao ritmo e à
consonância; tais princípios acabaram por ser organizados em sistemas e apresentados em
tratados.
4. A polifonia começou a substituir a monofonia. É certo que a polifonia enquanto tal não
é exclusivamente ocidental, mas foi a nossa música que, mais do que qualquer outra, se
especializou nesta técnica.
Devemos sublinhar que todas as mudanças se deram de forma muito gradual; não houve
um corte brusco e absoluto com o passado.
A monofonia continuou: alguns dos mais belos exemplos de canto monofónico, incluindo
antífonas, hinos e sequências, foram produzidos nos séculos XII e XIII.

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A improvisação continuou a praticar-se depois do século XI e muitos aspetos estilísticos
da nova música composta tiveram a sua origem — como sempre acontece — na prática
da improvisação.
No entanto, se lançarmos um olhar de conjunto sobre todo o desenvolvimento histórico,
podemos ver que foi no século XI que começaram a dar-se os primeiros passos no sentido
de um sistema musical novo e diferente.

Organum paralelo
Temos bons motivos para crermos que a polifonia existia na Europa muito antes de ser
descrita como tal. Com toda a probabilidade, seria usada principalmente na música sacra
não litúrgica; poderá ter sido aplicada também na música popular e consistido,
provavelmente, numa duplicação melódica à terceira, quarta ou quinta, ao mesmo tempo
que se praticaria de forma mais ou menos sistemática a heterofonia.
Escusado será dizer que não subsistem documentos desta hipotética polifonia primitiva
na Europa; mas a primeira descrição clara da música cantada a mais de urna voz, datada,
aproximadamente, do final do século IX, refere-se manifestamente a qualquer coisa que
já vinha sendo praticada, não constituindo uma proposta de um processo novo.
Tal acontece num tratado anónimo, Musica enchiriadis («manual de música»); num outro
manual em forma de diálogo que lhe serve de complemento, Scolica enchiriadis, são
descritas duas formas distintas de «cantar em conjunto», ambas designadas pelo nome de
organum.
O Musica enchiriadis, tratado musical anónimo do século IX, originário do Norte de
França, descreve como primeira fonte, além do canto paralelo em oitavas, um organum
de quintas e um organum de quartas. Ambos dependem de uma voz dada de antemão, vox
príncipalis ou cantus (desde o séc. XIII, cantas firmus). Devido ao seu carácter de voz
principal, encontra-se na posição superior.
Organum de quintas: o cantus recebe o acompanhamento da voz organal em quintas
paralelas inferiores. É possível a duplicação à oitava de ambas as vozes. Também podem
ser duplicadas por instrumentos, especialmente o órgão com a sua mistura de quintas e
oitavas (som de organum).
Organum de quartas: para evitar a dissonância do trítono, não se empregam sempre
quartas paralelas, mas também intervalos menores. A vox organalis já não é só uma
duplicação do cantus noutra posição, mas torna-se autónoma. Aqui começa a polifonia
propriamente dita («artificial»).
O tipo mais simples de organum descrito no tratado é aquele em que o cantochão — a
voz principal — é acompanhado por uma voz inferior — a voz organal — cantando em
quartas paralelas.
Um embelezamento possível consistia em acrescentar mais duas vozes, duplicando cada
uma delas uma das melodias do organum a duas vozes.

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A ideia de conjugar vozes distintas e simultâneas parece ter vingado a pouco e pouco.
O organum, na sua primeira fase — em que a voz suplementar se limita a duplicar a
original a um intervalo fixo — , não era suscetível de grandes desenvolvimentos, e a
referência que se lhe faz nos manuais de ensino poderá ter constituído uma simples
tentativa de explicar teoricamente certos exemplos da sua utilização na prática musical
contemporânea e de ilustrar as três consonâncias, a oitava, a quinta e a quarta.

Organum livre
Os exemplos musicais do século XI que chegaram até nós revelam que foram sendo dados
passos importantes no sentido da independência melódica e da igual importância das duas
vozes: os movimentos contrário e oblíquo passaram a ser características comuns do
organum.

Por esta altura já a vox organalis canta, regra geral, acima da vox principalis, embora as
vozes se cruzem frequentemente, e manifesta-se uma diversidade rítmica rudimentar no
facto de a vox organalis cantar ocasionalmente duas notas contra uma da vox principalis.
Em todos os organa do século XI os intervalos consonantes são o uníssono, a oitava, a
quarta e a quinta; os restantes apenas ocorrem acidentalmente e são encarados como
dissonâncias que exigem uma resolução.
O ritmo é o do cantochão, no qual se baseiam todas as peças.
A mais antiga das grandes compilações de peças em estilo de organum está contida em
dois manuscritos do século XI conhecidos, no seu conjunto, pelo nome de Winchester
Troper, que consistiam num repertório de cânticos tropados usados na catedral de
Winchester. O Tropário de Winchester (ca. 1050), como primeiro monumento do
organum, fez-nos chegar uns 150 organa (responsórios, sequências, etc.). As partes corais
são homófonas e as solistas, a duas vozes. O cantus ou coral acha-se presumivelmente na
parte superior. As vozes estão notadas em livros diferentes e com neumas de difícil
interpretação.

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A música a duas vozes está escrita em neumas sem linhas de pauta, de forma que só muito
dificilmente, e com uma grande margem de erro, podem ser determinados os intervalos
exatos, embora, em certos casos, as melodias sejam idênticas às que foram preservadas
em notação mais tardia e mais rigorosa, podendo assim ser reconstituídas.
A música polifónica, no século XI, não se aplicava a todas as partes da liturgia, sendo
usada principalmente nas partes do ordinário (como o Kyrie, o Gloria ou o Benedicamus
Domino), em certas partes do próprio (em especial os graduais, os aleluias, os tractus e
as sequências) e nos responsórios do ofício. E, ainda assim, só eram objeto de arranjo
polifónico as partes que no canto original eram interpretadas por solistas.
Na execução, por conseguinte, os trechos polifónicos alternavam com trechos de canto
monofónico; a polifonia, sendo mais difícil, era cantada pelas vozes dos solistas e o canto
monofónico pelo coro inteiro em uníssono.

Organum melismático
Um novo tipo de organum surge no início do século XII.
Alguns dos exemplos conhecidos conservam-se num manuscrito do mosteiro de Santiago
de Compostela, no extremo noroeste da Espanha, e em vários manuscritos da abadia de
S. Marcial, em Limoges, no Centro-Sul da França.
Neste tipo de organum (designado também por «florido», «melismático», «aquitano» ou
«de S. Marcial») a melodia do cantochão original (tocada ou cantada) corresponde sempre
à voz mais grave, mas cada nota é prolongada de modo a permitir que a voz mais aguda
(o solo) cante contra ela frases de comprimento variável.

Nem sempre a notação dá a entender claramente se a voz superior era cantada em estilo
livre, não rítmico, ou se estava sujeita a indicações rítmicas bem definidas.
Fosse como fosse, é óbvio que este novo tipo de organum não apenas aumentou
significativamente a duração das peças, como também retirou à voz mais grave o seu
carácter original de melodia definida, transformando-a, no fundo, numa série de notas
soltas, como que «bordões» a que se sobrepõem elaborações melódicas.
Trata-se manifestamente de um estilo que poderá ter tido origem na improvisação.
A voz mais grave, uma vez que sustentava ou mantinha a melodia principal, passou a ser
chamada tenor, do latim tenere, «manter», continuando este termo a ser usado para
designar a voz inferior de uma composição polifónica até à segunda metade do século
XV.
O termo organum, no seu sentido próprio, refere-se apenas ao estilo em que a voz mais
grave mantém longas notas; quando ambas as vozes passaram a mover-se a um ritmo

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semelhante, como veio a acontecer no final do século XII e início do seguinte, o termo
medieval comummente utilizado para designar esta forma musical foi descante.

S. Marcial
Na primeira metade do século XII, a polifonia atinge uma nova etapa. Este novo organum
já não é improvisado, mas composto e notado. O cantus já não se encontra situado na
parte superior, mas antes na inferior, como base construtiva da composição polifónica,
enquanto que a vox organalis superior adquire maior peso, devido à sua nova posição e
qualidade.
A principal escola é o Convento de St. Martial, em Limoges (Sul de França), que é, ao
mesmo tempo, o centro da nova monodia (tropos e sequências, canções sacras, …). No
Sul de França, com a Aquitânia, desenvolve-se também, paralelamente à canção sacra, a
nova lírica profana dos trovadores, utilizando-se em parte as mesmas melodias nos
âmbitos sacro e profano.
No organum da época de St. Martial, é possível distinguir diversas estruturas de
composição:
1. Técnica de notas sustentadas (que então se denominou especialmente organum): sobre
uma nota (sílaba) - sustentada do cantus ouve-se um melisma da voz organal, que se canta
sobre a mesma sílaba. O melisma é ritmicamente livre, mas os cantores devem ter o
cuidado de atacar simultaneamente as sílabas (execução solista).
2. Técnica de discante (discantus, alienação da designação polifónica da Baixa Idade
Média diaplionia: canto divergente): escrita nota contra nota, e isto em duas formas: a)
sílaba contra sílaba, no cantus silábico. Ambas as vozes se movem ao ritmo do texto; b)
melisma contra melisma, no cantus melismático. O ritmo é livre, mas possivelmente
adquiriu uma tendência para a regularidade (ritmo pré-modal?) devido à distribuição de
consonâncias e dissonâncias e por repetição de fórmulas melismáticas.

Os Modos Rítmicos
O sistema que os compositores dos séculos XI e XII conceberam para a notação do ritmo
revelou-se adequado a toda a música polifónica até já ir bem entrado o século XIII.
Baseava-se num princípio fundamentalmente diferente do da nossa notação: em vez de
apresentar durações relativas fixas por meio de símbolos diferentes, indicava padrões
rítmicos diferentes por meio de certas combinações de notas e especialmente de grupos
de notas. Por volta de 1250 estes padrões haviam já sido codificados como uma série de
seis modos rítmicos, identificados, regra geral, por um simples número:

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Como pode ver-se, os padrões correspondem aos pés métricos da poesia francesa e latina.
Na prática, porém, o ritmo da melodia era mais flexível do que este esquema indica.
Qualquer das notas podia dividir-se em unidades mais pequenas, as duas notas do padrão
podiam combinar-se numa só, etc.
A base do sistema de modos rítmicos era uma unidade tripla de medida a que os teóricos
davam o nome de perfectio — uma «perfeição». Esta permitia que qualquer dos modos
fosse combinado com qualquer um dos outros.
Até ao século XIV dominou uma divisão ternária do «tempo», produzindo um efeito
semelhante ao do moderno compasso de 6/8 ou 9/8.

Organum De Notre Dame


Não se julgue que o sistema dos modos rítmicos foi inventado de uma vez só ou que o
sistema foi inventado primeiro e a música escrita em conformidade com ele. Na realidade,
aconteceu o oposto: o sistema e a respetiva notação foram-se desenvolvendo
gradualmente ao longo dos séculos XII e XIII para satisfazerem as necessidades de uma
escola de compositores polifónicos que exerciam a sua atividade em Paris, Beauvais, Sens
e outras localidades do Centro-Norte da França.
Dois compositores desta escola — os primeiros compositores de polifonia cujos nomes
conhecemos — foram o poeta e músico Léonin (c. 1159-c. 1201), que era cónego da
catedral de Paris, Notre Dame, e Pérotin (c. 1170-c. 1236), que trabalhou na mesma igreja.
As composições destes dois autores, juntamente com as dos seus anónimos
contemporâneos franceses, são globalmente conhecidas como música da escola de Notre
Dame.
O organum também se cantou noutras regiões da França e em Inglaterra, Espanha e Itália,
mas menos sistematicamente e numa forma menos desenvolvida do que em Paris, onde
era, provavelmente, improvisado pelos cantores em ocasiões festivas.
O grosso da música, quer da missa, quer dos ofícios, continuava a ser o canto monofónico;
ainda encontramos peças monofónicas compostas de novo nos mesmos manuscritos que
contêm organa e outras peças polifónicas.
Três tipos principais de composição estão representados na música da escola de Notre
Dame e na das últimas décadas do século XIII:
• o organum,
• o conductus e o
• motete.

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Léonin escreveu um ciclo de graduais,
aleluias e responsórios a duas vozes para
todo o ano litúrgico, intitulado Magnus
líber organi («Grande livro do
organum»). O Magnus Liber Organi, é a
mais importante fonte sobre os
compositores de Notre Dame. Compilado
durante os séculos XII e XIII, inclui
contributos de Leonin e Perotin. Este
trabalho representa um passo na evolução
entre o cantochão e a complexa polifonia
do final do século XIII e século XIV.
Os organa de Léonin são compostos para
as secções solísticas dos cânticos
responsoriais da missa e dos ofícios. O
aleluia é um desses cânticos, e o da missa
da Páscoa — Alleluia Pascha nostrum —
foi elaborado não apenas por ele, mas
também por compositores posteriores,
fazendo desta peça um exemplo ideal
onde se detectam as sucessivas camadas
de embelezamento polifónico aplicadas a
esta categoria de cânticos.
Ao compararmos a composição de Léonin com o cantochão original, torna-se evidente
que as partes corais foram deixadas em cantochão simples, enquanto as partes a solo
foram polifonicamente amplificadas.
Um maior contraste é ainda introduzido nas partes polifónicas através do recurso a
diferentes estilos de composição. A primeira parte, a entoação Alleluia faz lembrar à
primeira vista as formas mais antigas de organum melismáticos ou florido: a melodia
estende-se em longas notas sem medida certa para formar o tenor. Poderá esta voz ter sido
realmente cantada por um solista? Parece mais provável que fosse tocada num
instrumento de cordas ou num órgão, ou, no mínimo, cantada por vários cantores, que
poderiam inspirar-se em momentos diferentes. Acima das longas notas do tenor, uma voz
de solista canta frases melismáticas sem texto, interrompidas a intervalos irregulares por
cadências e pausas.
Há apenas dois símbolos para representar as notas: a longa e a brevis; as ligaduras de
formas variadas são combinações de longas e breves.
A melodia, no seu conjunto, sugere um estilo derivado da prática da improvisação.
Uma das características distintivas do estilo de Léonin era a justaposição de elementos
antigos e novos, fazendo alternar e contrastar passagens de organum do tipo melismático
com o ritmo mais animado das cláusulas de descante. À medida que avançava o século
XIII, o organum purum foi sendo gradualmente abandonado em favor do descante; no
decurso desta evolução as cláusulas começaram por se transformar em peças quase
independentes, acabando por dar origem a uma forma nova, o motete.

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Pérotin [c. 1160 – Paris, c. 1236]
A obra de Pérotin e dos seus contemporâneos pode ser
considerada como uma continuação da obra
produzida pela geração de Léonin.
A estrutura formal básica do organum — uma
alternância de trechos de canto em uníssono com
trechos polifónicos — não foi modificada por Pérotin,
mas dentro dos trechos polifónicos manifestou-se
uma tendência cada vez mais acentuada para uma
maior precisão rítmica.
Não só as partes mais antigas, rapsódicas, de organum
melismático foram muitas vezes substituídas por
cláusulas de descante, como muitas das cláusulas
mais antigas o foram também por outras, as chamadas
clausulae de substituição, secções de estrutura bem
definida e estilizada.
O tenor do organum de Pérotin era estruturado de
forma característica, numa série de motivos rítmicos
idênticos e reiterados. Além disso, a melodia do tenor, que no estilo de Pérotin era, regra
geral, composta por notas mais breves do que os tenores de Léonin, tinha muitas vezes
de ser repetida na totalidade ou em parte por forma a dar ao trecho a duração que o
compositor desejava.
Ambos estes tipos de repetição — dos motivos rítmicos e da melodia — faziam também
parte da estrutura formal do motete de finais do século XIII.

Anónimo IV compara as realizações de Léonin e Pérotin


E notai que mestre Léonin, conforme aquilo que ficou dito, foi o melhor compositor de organa, que fez
o grande livro do organum a partir do gradual e do antifonário por forma a embelezar o serviço divino.
E este livro foi usado até ao tempo do grande Pérotin, que o refundiu e escreveu muitas cláusulas, ou
puncta, pois ele era o melhor compositor de descante, melhor ainda do que Léonin. Já o mesmo não
diremos quanto à subtileza do organum, ele.
Mas o mesmo mestre Pérotin fez excelentes quadrupla, como Viderunt e Sederunt, com grande
abundância de cores da arte harmónica, e também vários e mui nobres tripla, como Alleluia posui
adiutorium, Nativitas, etc. Compôs também conductus a três vozes, como Salvatoris hodie, e conductus
a duas vozes, como Dum sigillum summi patris, e até conductus monofónicos [simplices conductus]
com vários outros, como Beata víscera, etc.

Uma importante inovação introduzida por Pérotin e pelos seus contemporâneos foi a
expansão do organum de duas vozes para três ou quatro.
Uma vez que à segunda voz se chamava o duplum, a terceira e a quarta, por analogia,
foram designadas, respetivamente, por triplum e quadruplum.
Estes mesmos termos designavam também a composição no seu conjunto; um organum
a três vozes era chamado um organum triplum, ou simplesmente um triplum, e um
organum a quatro vozes um quadruplum.

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Conductus Polifónico
A música do conductus polifónico era escrita a duas, três ou quatro vozes que, como no
organum, se mantinham dentro de um âmbito bastante restrito, cruzando-se e voltando a
cruzar-se, e que se organizavam harmonicamente em torno das consonâncias de oitava,
quarta e quinta.
As terceiras também têm lugar de destaque em certos conductus, se bem que o intervalo
não fosse ainda aceite como consonância.
O intercâmbio de vozes é bastante frequente.
O conductus polifónico do princípio do século XIII não se distinguia apenas pela sua
textura quase homorrítmica; tinha ainda duas outras características próprias.
Em primeiro lugar, a letra era quase sempre tratada de forma silábica. Verifica-se uma
exceção a esta regra em certos conductus que incluem passagens relativamente longas
sem texto, chamadas caudae, quer no início ou no fim da peça, quer por vezes também
antes das cadências mais importantes e noutros pontos da melodia. Estas caudae
(literalmente, «caudas»; cf. a palavra coda), que, por vezes, englobavam cláusulas
preexistentes, vinham frequentemente introduzir uma variedade de ritmo entre as vozes
semelhantes aos contrastes rítmicos do organum, donde resultava uma combinação entre
o estilo do organum e o do conductus.
Uma segunda característica distintiva do conductus polifónico do século XIII era a de que
o tenor, em vez de provir de um cântico eclesiástico ou de qualquer outra fonte
preexistente, era muitas vezes uma melodia composta de novo que servia de cantus firmus
para uma determinada composição.
Tanto o organum como o conductus foram gradualmente caindo em desuso a partir de
1250, e na segunda metade do século XIII o tipo mais importante de composição
polifónica passou a ser o motete.

Motete
Leónin introduziu nos seus organa partes bem distintas (cláusulas) em estilo de descante.
A ideia fascinou os compositores da geração seguinte — a tal ponto que Pérotin e outros
músicos criaram centenas de cláusulas de descante, muitas das quais concebidas como
alternativas ou substitutos para as de Léonin e outros compositores mais antigos.
Estas «cláusulas de substituição» eram permutáveis; podiam escrever-se cinco, ou mesmo
dez, utilizando o mesmo tenor, e de entre estas o mestre de coro podia escolher qualquer
uma para determinada ocasião.
É de presumir que as vozes mais agudas acrescentadas não tivessem originalmente letra,
mas ainda antes de meados do século começaram a ser-lhes adaptadas letras —
geralmente tropos ou paráfrases, em verso latino rimado, do texto do tenor.
Por fim, as cláusulas destacaram-se dos longos organa de que faziam parte e iniciaram
uma vida própria enquanto composições separadas — do mesmo modo que a sequência,
tendo começado por ser um apêndice do aleluia, veio mais tarde a tornar-se independente.

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Provavelmente por causa da letra, as recém-autónomas cláusulas de substituição
receberam o nome de motetes.
O termo deriva do francês mot, que significa «palavra», e começou por ser aplicado aos
textos franceses que se acrescentavam ao duplum de uma cláusula.
A forma latina motetus é habitualmente utilizada para designar a segunda voz (o duplum
original) de um motete; quando há mais de duas vozes, a terceira e a quarta têm os mesmos
nomes (triplum, quadruplum) que no organum.
Foram escritos milhares de motetes no século XIII; o estilo difundiu-se, a partir de Paris,
por toda a Europa ocidental. Três dos mais importantes manuscritos que hoje subsistem:
o códice de Montpellier, com 336 composições polifónicas, principalmente motetes, a
maioria dos quais datam de cerca de meados do século, o códice de Bamberg, uma
colectânea de 108 motetes a três vozes de data ligeiramente posterior, e o códice de Las
Huelgas, conservado num mosteiro próximo de Burgos, em Espanha, que, embora escrito
no século XIV, inclui entre as suas 141 composições polifónicas muitos motetes do século
XIII.
Uma vez que a maioria dos motetes têm um texto diferente para cada voz, a forma habitual
de identificar um motete é pelo título composto, que inclui o incipit (a primeira ou
primeiras palavras) de cada uma das vozes, começando pela mais aguda.
Os motetes são, na sua maior parte, anónimos.
Foram adaptadas novas letras a velhas músicas e novas músicas a velhas letras.
A mesma melodia tanto podia servir textos sagrados como profanos.
Encontramos o mesmo tenor em diversos manuscritos, sempre com um duplum diferente.
Um motete originalmente a três vozes podia perder uma das vozes superiores e subsistir
como uma composição a duas vozes; mais frequentemente sucedia ser acrescentada uma
terceira ou quarta voz a um motete mais antigo a duas ou três vozes, ou então uma das
vozes superiores podia ser substituída por outra nova, permanecendo as restantes
inalteradas.
Por vezes, um motete perdia o seu tenor, ficando apenas com as duas vozes mais agudas.
O tipo mais antigo de motete, baseado na cláusula de substituição com textos latinos
acrescentados às vozes mais agudas, em breve sofreu diversas modificações.
Uma evolução natural consistiu em pôr de parte as vozes mais agudas iniciais e, em vez
de acrescentar letras a uma ou várias melodias preexistentes, conservar apenas o tenor e
escrever uma ou mais melodias novas para o acompanhar.
Foram escritos motetes para serem cantados fora dos serviços religiosos, em cenários
profanos; as vozes superiores destes motetes tinham textos também profanos, geralmente
em vernáculo.
Tornou-se habitual, ainda antes de 1250, utilizar textos diferentes, embora próximos no
seu sentido, para as duas vozes superiores de um motete a três vozes. Os textos podiam
ser ambos em latim, ou ambos em francês, ou (raramente) um em latim e outro em francês.
Os tenores tendiam a desenvolver-se segundo padrões rítmicos regulares, repetitivos.

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