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Faculdade Dehoniana

HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL


Prof. Marcelo Andrade
Julio Marco Silva e Oliveira (1°Ano de Filosofia)
27/09/2020

OS MOSTEIROS VIRTUAIS
Um comparativo entre a produção intelectual dos mosteiros e a era informacional da internet

Nada grandioso entra nas vidas


dos mortais sem uma maldição
Sófocles

Introdução
As invasões bárbaras germânicas entre os séculos III-V ocasionaram a queda do Império
Romano e, consequentemente, a unificação cultural promovida pelo império fora perdida. Ademais,
além de propriamente territórios perdidos ou o surgimento de uma Europa fragmentada em reinos, os
avanços culturais durante o império, tais como as grandes bibliotecas e a filosofia antiga, ou eram
tomados com indiferença com desprezo por grande parte dos povos bárbaros e eram simplesmente
descartados. Perante toda essa realidade caótica, a Igreja Católica, de forma especial os mosteiros, foi
a umas das poucas instituições, se não há única, que se mantiveram intactas. Diante disso, há de se
notar o empenho da Igreja Católica em salvar a cultura, em reconstruí-la e em difundi-la, sobretudo
depois de sua aliança com os francos, obtendo grande sucesso durante os reinados de Carlos Martel
e Carlos Magno1, caracterizando a chamada Renascença Carolíngia.
Dentre os inúmeros fatores que contribuíram para a salvação das obras clássicas, destaca-se
a vida monástica como grande fator para a manutenção da produção intelectual dos antigos, e,
consequentemente, da construção do pensamento ao longo das épocas. Como afirma o historiador
Christopher Dawson, “Porque, embora a vida monástica pareça à primeira vista uma instituição pouco
apta para resistir à destruição material de uma época de guerras e sem lei, demonstrou possuir um
extraordinário poder de recuperação”2, ou seja, mesmo aparentemente os mosteiros demonstrarem-se
isolados e apartados da realidade, exerceram uma missão em instruir intelectualmente os povos,
guardarem a produção literária passada e copiarem as obras, a fim de sua divulgação.
Diante disso, pode-se inferir um comparativo entre os mosteiros com a internet. O século
XXI, sem dúvida, é marcado pelo desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, uma radical
mudança na sociedade – processo similar com as revoluções industriais e as suas transformações
sociais – tendo como uma de suas principais consequências a globalização. Entretanto, apesar das
vantagens oferecidas pela tecnologia para o enriquecimento cultural, parece que ocorre o contrário
do acontecido durante a Idade Média. Por exemplo, o conhecimento dos monges era revertido em
soluções práticas que promoviam o desenvolvimento do povo, enquanto que hoje o conhecimento
transforma-se em uma forma de poder, motivado pelo orgulho em saber mais que o outro; ou, o
intercâmbio de novas tecnologias que traziam benefícios tanto para os mosteiros como para a
população local, hoje, contudo, há disputas pela informação, chegando ao ponto de pessoas, os
chamados hackers3, de roubarem informações sigilosas de pessoas ou governos; ou ainda, mesmo
com a escassez de conteúdo – obras dos antigos filósofos perdidas, não muitas cópias das obras

1
Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.17-19.
2
Christopher DAWSON apud Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.22
3
Entendido no sentido pejorativo, quem obtém informações pessoais de forma ilegal.
guardadas/recuperadas – havia o amor pela verdade e a valorização dos saber, em contraste com o
mundo moderno, onde, apesar da facilidade do acesso e obtenção de informações, existe descaso para
com o conhecimento e pela investigação filosófica.
Em vista dessa realidade, o paper em questão propõe a reflexão sobre o valor atribuído ao
conhecimento no mundo contemporâneo, a partir de uma análise comparativa dos centros culturais
que marcaram a Idade Média, com especial ênfase nos mosteiros. Além do mais, o projeto em questão
visa também uma análise de um novo conhecimento atual que, de certo modo, são as máquinas que
produzem acerca do ser humano: Os dados digitais.

Caracterização dos mosteiros


Para compreensão dos mosteiros, é necessário o entendimento da prática da ascese cristã nos
primeiros séculos e na primeira parte da Idade Média. Em vista da forte predominância do
pensamento platônico nos primeiros séculos do Cristianismo, observa-se a dicotomia entre corpo e
alma em grande parte dos autores cristãos, compreendendo a vida de fé como um constante desapegar-
se de tudo aquilo material (corpo), priorizando somente as realidades espirituais (alma). Grande
exemplo dessa mentalidade é um dos expoentes da filosofia medieval e grande doutor da Igreja
Católica, Santo Agostinho. Em sua obra Confissões, no livro IX, relata a passagem de sua mãe dessa
vida para a vida eterna, e usa de uma linguagem explicitamente platônica: “[...] essa alma [mãe de
Agostinho] fiel e piedosa libertou-se do corpo”4.
À luz dessa compreensão, muitos cristãos buscaram a vida solitária, num lugar remoto,
buscando uma vida austera, sobrevivendo do pouco que conseguisse obter do ambiente. Num
primeiro momento, por volta dos séculos III-IV5, essas pessoas eram chamadas eremitas, indivíduos
que decidiram por viver uma vida isolada nos desertos (locais afastados da sociedade) focalizada na
oração. Com o decorrer o tempo, os cristãos reconheceram a importância da vida comunitária, então
começaram a reunir-se em locais ao redor de uma Igreja, fundando os mosteiros, locais onde essas
pessoas recorriam com o mesmo propósito de viver a oração e a mortificação (submissão do corpo
ao domínio da vontade). Somente no século VI, com o monge Bento de Núrsia, surgiu a “Regra de
São Bento”, um código de normas para a vida dos monges cenobitas6 e, dado a ordem e moderação
da Regra, fora adotado, se não em todos, em grande parte dos mosteiros ocidentais. Ademais, com a
unificação da regra e o crescente números de conversões ao Cristianismo, eram instaurados cada vez
mais mosteiros na Europa, um fator decisivo para a preservação e manutenção da cultura da época.
Como visto, os monges eram cristãos que decidiram por abdicar um cotidiano para viverem
uma radical ascética cristã, portanto é necessário igualmente o conhecimento da rotina dos monges.
Estes seguiam a “Regra de São Bento”, uma síntese do itinerário espiritual de conversão a Deus,
contava com práticas de penitência, mortificação e oração. Dentre as normas, de mais interesse para
o paper em questão, é o capítulo 48, no qual é tratada sobre o trabalho manual, cujo “desempenhou
uma importante função na vida monástica”7. Como visto, os monges buscavam uma vida para
crescessem na ascese, desprezando tudo aquilo que atrapalhasse seu progresso, contudo o trabalho,
ainda sim, continuava sendo necessário, logicamente para manterem sua autossuficiência, e,
sobretudo, para a espiritualidade – que se difere com a crença do espiritualismo8 uma vez ele ser
compreendido como uma forma de submeter o corpo à alma, combatendo a ociosidade – como consta
Bento de Núrsia: “A ociosidade é inimiga da alma; por isso, em certas horas devem ocupar-se os
irmãos com o trabalho manual, e em outras horas com a leitura espiritual.”9
Essa valorização do trabalho manual foi essencial para a preservação de uma prática
econômica que marcou a Idade Média, como afirma o historiador Henry Goodell, “eles [os monges]

4
AGOSTINHO, Confissões. p. 255.
5
Cf. Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.25.
6
Monges que vivem sob a tutela de uma regra e um Abade (Responsável geral do mosteiro).
7
Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.29.
8
Doutrina na qual se crê somente na dimensão espiritual.
9
Regra de são Bento, cap. XLVIII.
salvaram a agricultura quando ninguém mais poderia fazê-lo”10. Por buscarem, os mosteiros, essa
autossuficiência praticavam a agricultura com técnicas, relativamente, superiores, para otimizar a
produção. O interessante fato é que os monges, por se encontrarem isolados, não lhes era o foco
produzir para lucrar, mas como forma de viverem sua fé cada vez mais profundamente, como consta
o cardeal Newman: “[...] transformaram as terras de cultivo em larga escala, associando agricultura e
oração.”11 Nota-se tamanha influência monástica no que tange as práticas e técnicas agrícolas,
transformavam pântanos, locais onde a agricultura se encontra quase que impossível, em terras férteis
preparadas para o cultivo; locais onde seriam impossível de estabilizar uma população eram
transformados pelos monges e tornavam-se pequenos povoados12.
Diante disso, observa-se igualmente como os monges prepararam os lugares que se
tornariam as vilas, promovendo o crescimento populacional. Ademais, não se limitaram apenas em
técnicas agrícolas, mas desenvolveram inúmeras práticas de produção e implementaram indústrias
rudimentares beneficiando não apenas a si mesmos – pois não carregam o interesse de possuir, mas
simplesmente de viverem a ascese – mas a toda população local13. Recorda-se, mesmo com a
comunicação limitada da época, as inovações técnicas e desenvolvimentos fabris eram
compartilhados rapidamente pelas redes de mosteiros, que, quando dissolvidas, rompeu-se a
transferência de tecnologia14.
Essa realidade medieval, infelizmente desprezada e tomada de forma pejorativa, trouxeram
inúmeros progressos, que não se limitavam no campo da intelectualidade ou religioso, mas abrangiam
toda a gama da sociedade, investigando com uma “grande criatividade e um fértil espírito de
pesquisa”15. Por fim, é de suma perceber a mentalidade que permeia esses religiosos, tomados
inicialmente pelos escritos platônicos, tendenciosos a compreender a matéria como algo a ser
superado, é constantemente purificado com os escritos aristotélicos sendo redescobertos,
compreendendo a realidade de uma forma mais profunda e passando a ser, igualmente, valorizada
como as realidades espirituais. A retomada dos escritos antigos deu-se, igualmente, como atividade
essencial dos mosteiros a produção intelectual.

Produção intelectual dos mosteiros


Há de se perceber, com toda a situação instalada com a queda o Império Romano, sobretudo
com as invasões bárbaras, como o aspecto cultural fora deixado de lado. Os povos invasores
despreocupavam-se em guardar as obras antigas – exceto alguns povos que apresentavam admiração
pela cultura romana e clássica – e praticavam saques e pilhagens nas cidades. Como visto, os
mosteiros foram, numa espécie de ‘guardiões culturais’. Dentre os principais ofícios dos monges,
destaca-se a “honrosa tarefa dos copistas, cuja era difícil e exigente”, que mesmo em situações
extremas do “frio mais cortante”16 exerciam sua função com maior zelo e piedade. Se hoje têm-se
acesso às copias das obras antigas, deu-se pelos monges copistas, como consta Thomas Woods, “a
Igreja [sobretudo os mosteiros] empenhou-se e, preservar os livros e documentos que foram de
seminal importância para salvar a civilização antiga”17.
Portanto, observa-se a atuação dos monges que, fisicamente isolados da sociedade, residindo
em lugares remotos, curiosamente, desempenharam grande atuação para a restruturação cultural de
toda sociedade. Essa retomada cultural, na prática, deu-se, como visto na Regra de são Bento, com a
importância atribuída ao tempo, sobretudo em bem aproveitá-lo para crescer espiritualmente e
combater a ociosidade. Além do trabalho, o tempo deveria ser ocupado com as leituras18, e estas, sem

10
Henry H. GOODELL apud Thomas E. Woods Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.29.
11
Cf. John Henry NEWMAN apud Thomas E. Woods Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.29.
12
Cf. Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, 2014, p.30.
13
Cf. Idem p. 31-32.
14
Cf. Idem p. 38.
15
Réginald GRÉGOIRE, Léo MOULIN e Raymond OURSEL apud Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica
construiu a civilização ocidental, 2014 p.36.
16
Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, 2014 p.39.
17
Idem p.40.
18
Cf. Regra de são Bento XIXVIII
dúvidas, eram apreciadas pelos monges, a tal ponto de muitos dedicarem-se a viajar longas distâncias
para adquirir volumes de obras para suas bibliotecas monásticas e, igualmente, de copiá-las para
outros mosteiros – conforme visto acerca da unidade e compartilhamento de informações – como
relata Charles Montalembert19.
Diante desse encantamento pelos livros e pelo saber, apesar de historiadores afirmarem o
contrário, os monges não limitavam o conhecimento somente a eles próprios, mas visavam também
divulga-lo a todos que apresentassem o interesse em aprender e, aqueles que não o apresentavam,
procuravam, ao menos, incutir em seus espíritos o amor pelo saber. Como afirma o historiador Adolf
von Harnack, “os mosteiros e as escolas monásticas tornaram-se, não apenas centros florescentes de
vida religiosa, mas também de ensino”, portanto tinham em suas consciências que o saber não era
algo a ser desprezado e, muito menos, omitido para aqueles que queriam aprender, além de que
também “lançaram as bases das futuras universidades”20. Um exemplo dessa atitude nobre em ensinar
e instruir os amantes pela verdade, é a figura de são Patrício na Irlanda, quem estimulou o ensino por
parte dos mosteiros, não se limitando aos religiosos, mas abrangendo os leigos.21
Perante toda essa contribuição no campo cultural e intelectual dos monges, há de se notar
como a criação dos mosteiros foi algo determinante para a construção de todo contexto da Idade
Média. Igualmente isso, um fator determinante, se dá em outras épocas e também as influencia
profundamente. Por exemplo, a Idade Moderna foi marcada por fortes críticas e ruptura ao período
anterior (Idade Média), e a Idade Contemporânea, período de interesse desse paper, foi marcado pelo
desenvolvimento técnico-informacional, culminando na criação da internet, um sistema global de
redes interligadas que, apesar das grandes vantagens proporcionadas, ocasionou enormes problemas
sociais.

Os mosteiros virtuais
Antigamente na Idade Média, como visto, as obras literárias e filosóficas concentravam-se
nas bibliotecas dos mosteiros e das universidades, devido à escassez de cópias, portanto, era
necessário ingressar no meio universitário e acadêmico para eventuais consultas nos livros. Essa
realidade foi, inicialmente, transformada por Gutenberg a partir da invenção da prensa, que aumentou
a produção de cópias e, consequentemente, a quantidade de materiais de pesquisa disponível; e o
movimento enciclopedista, que visava catalogar todo – a tentativa racionalista sistemática –
conhecimento até então, a fim de compila-los em obras seletas. Esse acontecimento, foi o prelúdio
daquilo que, hoje, conhece-se como internet.
Com o advento da internet, inúmeras e diversas obras e produções intelectuais foram
digitalizadas22 e disponibilizadas nas mídias sociais; surgiram usuários23, formando grupos e
comunidades on-line; surgiram os produtores de conteúdo, que divulgam suas marcas e opiniões a
partir das plataformas digitais, tais como Youtube, Instagram e Facebook; enfim, ocorreu uma
transformação radical em toda a sociedade e em toda sua organização. Por exemplo, se no passado,
era necessário visitar uma biblioteca ou um sebo para ter acesso ao conhecimento, hoje basta digitar
na caixa de pesquisa do Google e você encontra a resposta; ou até, se antes era necessário mandar
uma carta e esperar semanas pela resposta, hoje basta ligar no FaceTime24. Em outras palavras,
antigamente pessoas procuravam mosteiros para fugirem da realidade caótica e crescerem na vida
espiritual, hoje as pessoas buscam como ‘mosteiros virtuais’ para se conectarem ao mundo virtual
contemporâneo como numa necessidade de serem reconhecidas.
Esse conceito de ‘mosteiros virtuais’ embora faça alusão, ao ideal dos antigos mosteiro –
onde monges queriam se esconder do mundo, viver a ascética cristã, e dedicar-se à vida espiritual e

19
Charles MONTALEMBERT apud Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental.
p.41.
20
Adolf von HARNACK apud Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.43.
21
Cf. Thomas CAHILL apud Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. p.43.
22
Processo pelo qual uma imagem é transformada em código digital.
23
Cadastros de pessoas na internet a fim de acessar algum serviço na plataforma.
24
Aplicativo capaz de realizar chamadas de vídeo e de áudio.
intelectual, mas que, na prática, acabaram transformando radicalmente a sociedade e o contexto onde
viviam, sendo os guardiões do patrimônio cultural e ocasionando grandes avanços para a comunidade
local – é considerada como negativa, a tal ponto de ser considerada como uma deturpação do ideal
dos monges, inserida no atual contexto de era técnica-informacional. Em síntese, esses ‘mosteiros
virtuais’ são chamados assim porque remontam a ideia monástica de um local reservado, onde são
arquivadas obras literárias-filosóficas e pessoas se reúnem em prol de um ideal, contudo, no
entendimento que o local é a vasta internet onde se encontra toda e qualquer tipo de informação –
apesar de não se saber com exatidão a veracidade – e as pessoas são os usuários das redes.
Paradoxalmente, os mosteiros medievais, que visavam o isolamento da realidade, fizeram
mais bem para as sociedades do que a era globalizada que tendia a integrar as pessoas, mas acabou
por dividi-las ainda mais. Diante dessa nova estrutura, o ‘mosteiro virtual’, que, na sua origem, traz
a ideia de integração de pessoas, debate de ideias – visto a facilidade comunicacional que a internet
apresenta – e discussões semelhantes as disputationes25 medievais, na realidade acontece o inverso:
Pessoas se distanciam mais ainda da realidade e do convívio social, em vista de gastarem horas do
seu dia nas redes sociais; a polarização, não somente na política, mas de uma forma geral, segregou
as pessoas em grupos fechados ao diálogo; e, o mais grave, desmotivar a indivíduo na procura do
verdadeiro conhecimento, uma vez que ele se encontra desnorteado perante a tantas fontes e,
infelizmente, superficiais.
Os monges, embora buscassem o afastamento, movidos pela regra de São Bento, tendiam a
promover o desenvolvimento em diversas áreas da sociedade. Seguiam o princípio de para os de
dentro, portas fechadas à distração do mundo, mas abertas aos que precisavam de ajuda, por exemplo
de considerar todos os peregrinos ou visitantes como o próprio Cristo26. Atualmente, os ‘monges
virtuais’, na ânsia de serem reconhecidos pelo mundo, acabam mais por se fechar à realidade que os
circunda para adentrar na realidade virtual, isto é, na ilusão da verdadeira realidade. Nota-se o a ênfase
da contemporaneidade dada ao sujeito, fruto também de um histórico filosófico, mas com o
desenvolvimento técnico amplificasse isso, ou seja, os males da sociedade emergiram de forma mais
intensa, especialmente uma mentalidade orgulhosa, de sobressair-se às outras pessoas.
Essa mentalidade orgulhosa que foi se formando ao longo dos anos, hoje, encontra-se
radicalizada por grande culpa da tecnologia. Se os mosteiros medievais, com suas regras e normas,
providenciavam pessoas virtuosas que reconheciam suas fragilidades e limitações, os virtuais
providenciam pessoas apartadas da realidade, cuja ilusão é de serem as superiores em comparação
aos outros. Essa mentalidade, de querer sobressair-se, remonta à teoria do poder de Foucault, pois
compreende as relações não como uma união e necessidade do outro – o viver em comunidade
reconhecido pelos monges – mas numa espécie de dominador e dominado, e é aplicada à área do
conhecimento, onde este passa a ser compreendido não mais como uma verdade a ser contemplada –
pensamento clássico e medieval – porém, como um instrumento de domínio, culminando numa frase
atribuída ao filósofo racionalista Francis Bacon: “Saber é poder”27.
Novamente, nota-se outro paradoxo: Apesar do conhecimento ser o novo instrumento de
domínio e as pessoas se interessem por dominar, percebe-se o nível do conhecimento cada vez mais
superficial fruto, curiosamente, de outro paradoxo que é um excesso de informação disponível –
mesmo de qualidade suspeita – e pouca procura. Destaca-se esse fato, porque demonstra como o ser
humano, quando conquista algo facilmente, tende à despreza-lo, exemplificando no caso do
conhecimento: Antes, como dito ao longo do texto, vários monges copistas dedicavam-se e, em
muitos casos, padeciam enfermidades e dificuldades físicas para copiar as obras; e, em virtude disso,
reconheciam a grandiosidade da verdade, que, se necessário, valia sofrer e morrer por ela. Em
contraponto, a modernidade, com a reta intenção e propósito, facilitou o acesso às obras e produziu
outras, ou seja, aumentou a quantidade de material disponível para pesquisa, mas, pela mentalidade
tendendo ao puro desenvolvimento técnico em si mesmo, desprezou essa grande disponibilidade e
decaiu o valor atribuído, de forma especial, das ciências humanas.

25
Método formal de debate designado para descobrir verdades na teologia e nas ciências.
26
Cf. Regra de São Bento, cap. XXXVI.
27
Frase atribuída a Francis Bacon, um dos expoentes do Racionalismo.
O uso da informação e os dados digitais
Como visto, o conhecimento foi, num primeiro momento, sendo arquivado nas grandes
bibliotecas, diversas obras filosóficas e literárias, que cresceram e desenvolveram no decorrer da
Idade Média; em seguida, na Idade Moderna, numa tentativa de abarcar todo conhecimento, que
tendia para o aumento das ciências exatas, em enciclopédias, a fim de sintetizá-los, e, com a invenção
da prensa, divulga-los a todas as pessoas; por fim, na Idade Contemporânea, onde começou a
transição para o meio digital, com a digitalização das obras para torna-las acessível a todo público, e
surgiu como que uma nova forma de conhecimento, mas que não é produzido diretamente pelo
intelecto humano, mas através da Inteligência Artificial28, usando dos algoritmos: Os dados digitais.
Recentemente, a empresa Netflix disponibilizou em sua plataforma o documentário O
Dilema das Redes, cuja principal temática é como os dados coletados dos usuários atendem aos
interesses de empresas midiáticas e, como eles definem, o Capitalismo de Vigilância29. A partir disso,
pode-se suscitar a questão de como os dados digitais reforçam a ideia de um conhecimento não da
verdade a fim de contempla-la, mas um conhecer o outro, informações pessoais e privadas, com o
objetivo de exercer como que um poder/domínio sob ele. Apesar dessa mentalidade existir entre
sujeitos em um meio específico, tal como nas universidades, ela é usada, com grande frequência, se
não sempre, pelas corporações e empresas.
Primeiramente, evidencia-se que a internet proporcionou essa coleta de dados de uma forma
eficiente, uma vez que as redes sociais conseguem acesso às informações dos usuários quando estes
realizam seus cadastros e usam os recursos da plataforma para o entretenimento, a todo momento são
gerados dados sobre o indivíduo – tempo gasto, que tipo de conteúdo é visto, as interações com as
ferramentas da plataforma. Tudo realizado nas plataformas é coletado, armazenado com o objetivo
da criação de um modelo virtual30 que, posteriormente, é vendido para empresas a fim de seus
produtos ou serviços obterem mais chances de serem consumidos, uma vez que se seleciona mais
efetivamente o público alvo.
Uma vez compreendido que quanto mais dados mais preciso será o modelo virtual e o melhor
método de os adquirir é baseado nas redes sociais, estas demonstram o interesse em viciar o sujeito
em suas plataformas com a finalidade de passaram mais tempo on-line, como evidencia,
ironicamente, o professor Edward Tufte “Há somente duas indústrias que chamam seus clientes de
usuários: a de drogas e a de software”31. Portanto, há de se constatar essa oposição: se nos mosteiros
a mentalidade era que a verdade os libertaria (Cf. João 8,32), nos tempos atuais, a internet oferece
uma ‘verdade’ que prende os indivíduos num mundo ilusório. Dita-se ‘verdade’ em vista dela ser
concebida para agradar um posicionamento e, posto que, a Inteligência Artificial tem acesso à essa
informação, ela irá sugerir conteúdos relacionados a isso para prender a atenção do sujeito e
condicioná-lo a fixar nesse posicionamento. Em outras palavras, o sujeito será manipulado.
Eis um, se não o maior, problema para o sustento do Capitalismo da Vigilância: a
manipulação. Sobre isso, sabiamente afirma o especialista em ética Tristan Harris: “A tecnologia
deixou de ter papel de ferramenta para se tornar um vício e um meio de manipulação.”32 A tecnologia,
em destaque a informática, deixou de servir o ser humano para servir-se dele, isto é, escravizou o
homem, de uma forma geral, e submeteu-o ao seu controle; por exemplo, é impensável alguém, em
pleno século XXI, não ter um equipamento eletrônico ou acesso à internet. Se o ser humano foi
escravizado pela tecnologia, aqueles que são menos escravos, pois não conseguem renunciá-la por
completo – seja ficar com o tique de olhar o celular toda hora, seja perder a noção de tempo no seu
uso – usam dela para atender seus interesses próprios.
Além de propriamente empresas, governos usam da facilidade que a internet apresenta para
manipular, como por exemplo se deu em diversas eleições ao redor do mundo, cuja principal marca

28
Sistemas operacionais que atuam de maneira autônoma e similar à mente humana, ou seja, dotadas da capacidade de se
reprogramarem.
29
Monitoração e coleta de dados de usuários a fim de vende-los às corporações ou empresas.
30
A partir da coleta de dados, consegue-se elaborar um perfil do usuário.
31
Edward TUFTE apud Jeff ORLOWSKI, DILEMA das redes, 2020.
32
Tristan HARRIS apud Jeff ORLOWSKI, DILEMA das redes, 2020.
foi a polarização política. Nunca, em toda história, se observou uma polarização tão intensa, fruto do
processo de manipulação, pois uma vez que a pessoa é condicionada somente a uma visão da realidade
e limita suas relações e discussões com pessoas da mesma visão, é lógico que ela irá compreender
uma realidade fragmentada, se não ilusória, e se afastará da realidade como um todo. Um fator que
amplifica isso são as Fake News, por serem polêmicas e, por conseguinte, atraírem atenção, a
Inteligência Artificial compreende como informação e, desse modo, indica aos usuários certos,
contribuindo para a propagação e a polarização da sociedade.

Considerações finais
Diante de toda essa realidade atual, é injusto qualificar tudo como algo negativo. De fato, os
mosteiros medievais foram essenciais porque atenderam as necessidades de seu período,
corresponderam à altura dos desafios da sua época, enquanto que hoje a tecnologia responde às
demandas, tais como a comunicação eficiente, o acesso a informação, a possibilidade do
desenvolvimento pessoal. Entretanto, da mesma forma que os mosteiros tiveram suas complicações,
a tecnologia também apresenta suas problemáticas, apesar de ser mais intenso e explícito, como
consta Tristan Harris: “A tecnologia fez emergir o pior da sociedade”33.
Se a tecnologia fez vir à tona o pior da sociedade, é porque, na raiz, esse problema já estava
lá. Ela, a tecnologia, fez os males ficarem presentes e, de certo modo, intensificou sua ocorrência,
exemplificando na maldade humana, sempre presente em toda história, e hoje se manifestando através
da manipulação – igualmente fato que não difere em outros períodos – embora esteja elevado em um
altíssimo grau.
Chegou-se num período que é impossível retirar a internet da vivência humana, portanto é
necessário o aprendizado para mantê-la, a internet, como instrumento e não permitir que ela se torne
um vício patológico no ser humano. Isso demonstra uma fragilidade humana, que é a tendência de
procurar algo/alguém em se apoiar. Como visto, a internet é um refúgio para as pessoas serem
reconhecidas, isto é, serem vistas e julgadas pelas outras. Exemplificando na rede social do
Instagram, as pessoas postam fotos para ganhar ‘biscoitos’34, como se suas vidas ou sua autoestima
fossem medidas pela quantidade de likes numa foto.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Tempos Líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.

WOODS Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. Tradução de Élcio
Carillo. 9. ed. São Paulo: Quadrante, 2014.

DILEMA das redes. Direção: Jeff Orlowski. Produção: Larissa Rhodes. Estados Unidos: Netflix,
2020.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984

33
Tristan HARRIS apud Jeff ORLOWSKI, DILEMA da rede, 2020
34
Linguagem informal que se refere às curtidas na foto.

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