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Ensaio: Cultura medieval popular e a influência eclesiástica

Unidade Curricular: Cultura Medieval

Regente: Professor Rodrigo Miguel Correia Furtado

Discente:
Francisco de Mendonça e Póvoas

Lisboa, 18 de Dezembro de 2023

2023/2024
Introdução

Neste trabalho tentei responder à pergunta “há cultura fora da igreja na idade média”,
para o fazer utilizei diversas fontes bibliográficas com diferentes teorias e propostas
para a o tema em questão que renovam o estado da arte.

Este ensaio está estruturado em quatro capítulos: “A reforma e alterações


sociopolíticas”, “Cultura popular, práticas canonizadas e superstitio”, “Género e
sexualidade” e “Conclusão”. Todos estes capítulos pretendem prover ao leitor um leque
de informação, aprumado de uma breve contextualização que se segue de um amplo
desenvolvimento do tema com citações de trabalhos académicos. O ensaio é findado
com uma conclusão, usando o conhecimento adquirido do corpo do trabalho para propor
diretamente e sucintamente uma resposta que a mim, me parece verossímil.

O método de referenciação bibliográfico usado neste trabalho é o Chicago Manual of


Style 17th Edition, coadjuvado de notas de rodapé que remetem para a página da obra
em questão.

A reforma e alterações sociopolíticas

Durante os clássicos verificamos a distinção dos hábitos religiosos oficiais dos


populares, esta distinção concretizasse nas religio, praticas aceitáveis para o culto, e a
superstitio, práticas não aceitáveis consideradas desvios. Com o advento do
cristianismo, e a sua consequente maturação na antiguidade tardia e sobretudo na idade
média, verificamos a transladação desta distinção, ou seja, a “religio”(o aceite) passa a
ser a fé cristã seguindo os cânones e a “superstitio”(não aceite) considerada o
paganismo, magias e as religiões tradicionais.

A distinção e noção de quais práticas são inerentes a uma destas vai variando consoante
local e mesmo durante toda a cristandade medieval, já que o cristianismo foi-se
adaptando durante toda a idade média. Contudo, para interpretar o panorama religioso e
social é necessário observar o panorama politico, sobretudo com a reforma e as suas
consequências na cultura e sociedade, em duzentos anos entre 1100-1300 a difusão da
literacia e preservação de dados, a emergência de studia e universidades onde
funcionários da coroa se podiam formar nas leis teve como consequência o impacto no
reinos e nos príncipes1. Verificamos uma alteração do modus operandi e uma sociedade
1
John Watts, The Making of Polities: Europe, 1300-1500 (Cambridge, UK: Cambridge University Press,
2009), 73.

1
em mudança, como afirma John Watts com as “Communes and leagues” 2, já que estas
eram associações de indivíduos do mesmo grupo que tinham objetivos comuns e eram
liderados por um homem que representava a comunidade, segundo Watts as associações
não eram uma tentativa revolucionário de contrariar o poder régio, o seu intuito era o
beneficio mutuo e partilha de poder.3

Ainda neste periodo de reforma, podemos verificar alterações na estrutura das famílias
aristocráticas, segundo a tese Schmid corroborada por Richard Barton, por volta do
século XI verificamos que a hereditariedade dos bens e propriedades passa a ser linear,
ou seja, de pai para filho primogénito sem consideração para primos ou outros irmãos. 4
Esta alteração deve-se com o intuito de manter o território da família unido, prevenindo
episódios, como por exemplo, o dos netos de Carlos Magno em que o império se
dissolveu pois foi divididos em três.

Neste periodo de reforma verificamos medidas que tiveram impacto a todos os


níveis(cultural, social, politico, religioso), com a sacralização do casamento bem como
o estabelecimento das confissões com o quarto concílio de Latrão de 1215, esta reforma
permitiu aos confessores terem manuais onde neles estava indicado quais as práticas
condenáveis.5

Cultura popular, práticas canonizadas e superstitio

É difícil do ponto de vista historiográfico de tratamento de fontes apurar os hábitos


religiosos populares devido à analfabetização do povo e a sua transmissão ser efetuada
por via oral. A maioria das fontes escritas são clericais e estas escrituras impõe a visão
de duas culturas completamente diferentes “the learned and the folkloric”6, a maioria
das fontes disponíveis para estudar a prática religiosa popular datam da alta idade
média, o estudo delas provém de testamentos, indulgências, imagens e artefactos.7

Apesar de teologicamente não terem significado o culto das imagens é grande devido à
alta analfabetização como reitera Geibr von Keyserberg: “if you cannont read, then take

2
Ibid (98)
3
Ibid (98)
4
Richard E. Barton, A Companion to the Medieval World, Blackwell Companions to European History
(Chichester, UK: Wiley-Blackwell, 2009), 502.
5
Ibid(172)
6
Laura A. Smoller, The Oxford Handbook of Medieval Christianity, ed. John Arnold (Oxford: Oxford
University Press, 2014), 337.
7
Ibid (337)

2
one of those paper images”8. Apesar das imagens terem origem pagã, têm aprovação
clerical e eram de facto um fator chave na devoção e prática da fé cristã em todos a
todos os níveis sociais.9 Durante a idade média vamos verificar uma mistura de certas
práticas locais com o cristianismo, o culto das imagens, amuletos, textos e palavras. Na
idade média a fé per capita, era uma atividade tão relevante como a economia e creio
que esta citação de Eanon Duffy demonstra o que refiro: “Late medieval people
collectet prayers as we collect récipes”10.

Um elemento de qualquer nível social na idade média pretendia chegar a Deus, nesse
sentido todos os elemento tinham várias formas de praticar a fé, verificamos práticas
com aprovação clerical tais como: A vela Agnus Dei feita com cera sagrada11, ou a
prática de no batismo a criança beber da água que o padre lavou as mãos pois estava
purificada, ou através do votum receber aprovação e mercê do divino 12, ou o uso de
palavras como “tetragrammaton” cujo a origem etimológica é judaica e é sinonimo de
grandes milagres13. Muitos para chegar perto do divino recorriam a objetos ou práticas
que fossem consideradas por alguns como pagãs como os amuletos, por exemplo,
segundo um comentador de Dante em 1373 quando Giovanni Boccaccio visitou Monte
Cassino, encontrou monges a rasgar livros para fazerem dos excertos deles em papel
amuletos com o intuito de os venderem. Estas práticas, para os teólogos de então, estão
entre a religião e a superstitio, contudo para São Tomás de Aquino, era tolerável um
crente usar amuletos com extratos de escrituras desde que o faça com devoção sincera. 14

Verificamos numa folha do século XIV, na frente a vida de Santa Margarida(padroeira


do parto na França) e no verso verificamos 36 quadrados com frases e nomes tais como:
76 nomes de Deus, personagens mágicas e fórmulas para curar febres e outros
malefícios.15 Este artefacto mostra de facto a mistura entre a cultura popular e a cultura
canonizada, como é óbvio estas práticas eram vistas pelos teólogos e eruditos
contemporâneos como um limite e uma área cinzenta entre a magia e a fé cristã embora
muitos elementos do clero, como referi anteriormente, serem a favor de artefactos como
certos amuletos.
8
Ibid (340)
9
Ibid (340)
10
Ibid (342)
11
Ibid (342)
12
Ibid (341)
13
Ibid (342)
14
Ibid (343)
15
Ibid (342)

3
Em suma, verificamos uma evolução e adaptação dos hábitos e práticas religiosas, aos
costumes e hábitos populares durante toda a idade média. Por exemplo, uma procissão
de velas representa a pureza da virgem e uma afirmação de comunidade, contudo,
podemos interpretar esta prática como uma evolução de uma religio Romana. Estas não
eram práticas impostas por uma cultura dominante, muitos comportamentos e crenças
interpretadas como magia e pagão foram encontradas em todos os níveis da sociedade,
ou seja, este tipo de rezas mágicas eram tanto encontradas em livros de nobres como em
pedaços de madeira.16

Género e Sexualidade

Segundo os eruditos medievais que se seguiam pela raiz da filosofia antiga e a bíblia a
mulher era vista como um homem mal acabado, frágil e instável incapaz de praticar os
mesmos ofícios que o homem. Podemos verificar este ponto de vista através de
narrativas, cantigas e lendas, como é o caso de uma lenda Italiana em que um homem
chamado Nastagio degli Onesti vê um cavaleiro a caçar uma rapariga nua que o rejeitou,
os cães do cavaleiro fixam-na no chão e ele abre as entranhas da rapariga arrancando o
seu coração que o dá de alimentou aos seus animais, ela levanta-se e esta cena repete-se
infinitamente, a lenda finda com Nastagio levando à floresta sua amada para mostrar
esta cena e servir-lhe de exemplo para o amar e ser leal. Esta estória e tipo de narrativa,
que consiste na violação e passividade feminina era contada de várias formas na Itália
medieval.17As mulheres quer teologicamente quer de facto na cultura latina sempre
colocadas no segundo patamar devido a uma cultura patriarcal, segundo John Arnold “a
sociedade medieval era patriarcal e a cultura medieval era misógina, é ridículo
argumentar o contrário”18.

Os homens na cultura medieval estavam divididos em três estados: Oratores, Pelatores


e Laboratores. A masculinidade mais visível, é a do cavaleiro cavalheiresco com lendas
como a canção de Rolando que valoriza os valores de cavaleiro que se associa
principalmente à aristocracia embora ao mesmo tempo sugere que qualquer homem se

16
Ibid (345)
17
John Arnold, A Companion to the Medieval World, Blackwell Companions to European History
(Chichester, UK: Wiley-Blackwell, 2009), 164-165.
18
Ibid (165)

4
pode tornar cavalheiresco, ou seja, a imagem do cavaleiro individual que luta pela glória
e pelo seu nome.19

O sexo podemos aferir que segundo uma visão teológica medieval, este era natural e
inevitável dado que foi ordenhado por Deus para a procriação da espécie mas o desejo
era algo contrário que todos tinham de lutar. Já a homossexualidade há várias teorias,
segundo Foucault alguns textos indicam que havia homens que gostavam de fazer sexo
com outros homens, John Boswell afirma que havia uma “sub-cultura” gay associada às
cidades medievais e a estabelecimentos de ensino.20

No caso Português verificamos alguns textos que referem que D. Pedro gostava de
dormir com homens, o que pode indiciar a homossexualidade. Contudo, mesmo em
Portugal verificamos que a homossexualidade é condenada, sobretudo quando se trata
de uma sodomia passiva como o caso heterossexual: “a sujeição de alguém de condição
superior a um parceiro de baixo nível social” 21, ou seja, quando alguém de um estado
social inferior tem o papel ativo no acto.

Conclusão

Em suma, sim há cultura popular fora da igreja, contudo, ela foi se adaptando ao longo
dos séculos ao cristianismo mantendo algumas tradições pagãs, verificamos isso com os
amuletos, imagens, textos, rezas que remetem a divindades pagãs o que demonstra uma
mutação e adaptação de crenças e comunidades locais ao cristianismo, verificamos
fenómenos como o da tábua de Santa Margarida que citei neste ensaio embora mais no
meio rural, onde o poder central e a influência da igreja dogmática é mais fraco.

Muitas das procissões e práticas que hoje consideramos cristãs, têm como base rituais
romanos como as procissões de velas ou mesmo festas como as Saturnálias cujo as suas
práticas foram absorvidas no século VI para o natal, entre outras festividades. Os santos
também e a sua adoração pela escultura também é algo marcadamente pagão tanto que
Calvino e Lutero vão considerar herético e portanto podemos verificar que o
cristianismo com o seu cariz universal permitiu a incorporação de certas práticas outrora
pagãs.
19
Ibid (168-169)
20
Ibidn(174)
21
José Mattoso, Naquele tempo: ensaios de história medieval, 1a ed (Lisboa: Temas & Debates, 2009),
28.

5
Bibliografia

Smoller, Laura. The Oxford Handbook of Medieval Christianity. Editado por John
Arnold. Oxford: Oxford University Press, 2014.

Arnold, John. A Companion to the Medieval World. Blackwell Companions to


European History. Chichester, UK: Wiley-Blackwell, 2009.

Watts, John. The Making of Polities: Europe, 1300-1500. Cambridge, UK: Cambridge
University Press, 2009.

E. Barton, Richard. A Companion to the Medieval World. Blackwell Companions to


European History. Chichester, UK: Wiley-Blackwell, 2009.

Mattoso, José. Naquele tempo: ensaios de história medieval. 1a ed. Lisboa: Temas &
Debates, 2009.

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