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DIVERSIDADE NAS ENCÍCLICAS DO PAPA FRANCISCO

Laura Moniz
laura.moniz@hotmail.com

1| Diversidade e Fé – Laura Moniz


Resumo:
Neste trabalho utilizam-se apenas as encíclicas do actual Papa Francisco e as suas reflexões.
Nas três encíclicas que foram publicadas até à presente data o pontífice pondera a questão da
fé católica esboçando a ideia de religião como diversidade em si, assim considerada na pós-
modernidade; e, sem excluir algumas deliberações e comunicações dos seus antecessores,
nem mesmo uma certa tradição intelectual, literária e filosófica, procura encontrar pontos de
diálogo com outras diversidades, mantendo o foco nas bases da ideologia católica. Manifesta
também preocupações pela sobrevivência do planeta, na segunda encíclica publicada, Laudato
Si´. Esta liga-se à sua primeira encíclica Lumen Fidei embora seja mais incisiva e refira pelo
nome atentados à humanidade; e por último tece reflexões sobre o ser humano na sua
inevitável diversidade na encíclica Fratelli Tutti. Conclui-se das suas observações que estas são
observações relativas à ideia de Bem e de Mal que não são contrários a preocupações
humanistas globais e de discursos paralelos que confluem no caminho que conduz à inclusão
da diversidade, indiscriminadamente, mas em que a Igreja se detém apenas no ponto onde a
vida é posta em causa ou onde o seu dogmatismo intrínseco, que não admite excepções,
encontra maneira de contorná-las, sem prejudicar a diversidade.

Palavras-chave:
Diversidade, encíclica, inclusão, exclusão, contemporaneidade, Francisco

Abstract
In this paper only the encyclics and the reflections contained in them of the current Pope
Frances are used as corpus. All three encyclics that have been published up to the present day
ponder the question of the catholic faith drawing an idea of religion as being itself a form o
diversity, thus considered in post-modernity; without excluding some discussions and writings
from his predecessors and not even a certain intellectual, literary and philosophical tradition,
the Pope endeavors to find common ground to dialogue with other diversities, keeping his
focus on the foundations of the catholic ideology. He also states his concerns regarding the
planet’s survival on his second encyclic entitled Laudato Si´. The latter is closely connected to
his first encyclic Lumen fidei although it is much blunt and to the point for referring directly
wrongs against humanity; lastly, he draws reflections on the human and on our unavoidable
diversity in his encyclic Fratelli Tutti. One can draw some conclusions from his considerations
regarding the ideas of Evil and Good that are not contrary to global humanist concerns and
also parallel reflections that converge to the same trail that leads to inclusion of diversity,
indiscriminately, but in which the Catholic Church only halts wherever life is at stake or when
her intrinsic dogmatism, where exceptions are not allowed, finds a way to deflect them
without prejudice to diversity.

Keywords:
Diversity, encyclic, inclusion, exclusion, contemporaneity, Pope Francesco

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INTRODUÇÃO

Este trabalho considera as encíclicas papais como documentos do domínio público e que
são dirigidas a destinatários anónimos, e indiferenciados, e não tem pretensões de impor uma
interpretação pessoal como definitiva ou conclusiva, mas como indagação à luz do discurso
inclusivo e globalizante da contemporaneidade que foi debatido no Concílio Vaticano II e que
redundou em alterações posteriores no código de direito canónico.

“Portanto, ao promulgar hoje o Código, estamos plenamente cônscios de que este acto é
expressão da autoridade Pontifícia, e por isso se reveste de um carácter primacial. Mas
estamos de igual modo cônscios de que este Código, no que diz respeito à matéria,
manifesta em si a solicitude colegial pela Igreja por parte de todos os Nossos Irmãos no
Episcopado; além disso, por certa analogia com o Concílio, o mesmo Código deve ser
considerado como o fruto de uma colaboração colegial, que surgiu de energias da parte
de homens e instituições especializadas que, em toda a Igreja, se uniram num todo.” (João
Paulo II apud Vários, 1983: X)

As premissas desta indagação são as seguintes: através do discurso papal, determinar a


postura do Vaticano, expressada nas encíclicas papais, relativamente à diversidade, desde o
Concílio Vaticano II até a actualidade, uma vez que este se iniciou sob o signo da
“actualização”: “João XXIII utilizou então pela primeira vez a palavra aggiornamento, que se
tornou um ex-libris do concílio, e que significava a adaptação da Igreja ao mundo
contemporâneo.” (Faria, 2014: 17). Para averiguação da pertinência desta reflexão incluí na
bibliografia as várias actas do concílio assinadas pelo papa Paulo VI, embora não as cite e
apenas as use, após ponderada leitura, como referência para fundamentar esta reflexão.
Um dos aspectos que gostaria de analisar no âmbito de um futuro trabalho mais
minucioso e extenso é de que modo o catolicismo se liga ou se distancia das premissas iniciais
de Jesus Cristo relativamente aos aspectos de inclusão ou exclusão da alteridade
(nacionalidade, etnia, comportamento «desviante», fragilidade física e psicológica, condição
da mulher, avanços tecnológicos e científicos, homossexualidade, transsexualidade, aborto,
uniões de facto, casamento gay, comunidade LGBTQ, comportameno sexual, contracepção) ou
silencia diplomaticamente tópicos polémicos; é, além disso, outro modo de averiguar
brevemente como ou se o catolicismo se desvinculou ou voltou a aproximar das suas bases
embora João Paulo II tenha afirmado o seguinte:

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“Assim, os escritos do Novo Testamento permitem-nos compreender ainda mais esta
mesma importância da disciplina, e poder entender melhor os vínculos, que, de modo
mais estreito, a ligam à índole salvífica do próprio anúncio do Evangelho.” (Vários, 1983:X)

Nesta reflexão inicial limito-me a identificar as variações no discurso encíclico dos papas,
posterior ao concílio, e perceber se a postura do catolicismo se tornou mais abrangente
perante as novas realidades derivantes da passagem do tempo e mudança de mentalidades,
uma vez que foi esta a preocupação de norteou a organização do concílio pelo papa João XXIII,
embora se tenha apenas concluído no decorrer do pontificado de Paulo VI em 1965.

“O papa João XXIII, ao convocar o concílio, tinha em mente um objectivo de carácter


pastoral: a Igreja devia falar ao mundo atual exprimindo-se de um modo adequado
aos nossos tempos, «para dar a possibilidade de contribuir mais eficazmente para a
solução dos problemas da idade moderna.»” (Faria, 2014: 17)

Num mundo que anda em busca da harmonia e em que o politicamente correcto é


falar em inclusão e aceitação da alteridade como discurso central de direitos humanos, a igreja
católica tem feito um esforço de acompanhamento da mudança dos tempos e teve de esbater
fronteiras ideológicas e dogmatismos, assumindo uma atitude quase que de defesa em relação
à sua própria diversidade. Esta minha opinião carece de uma maor fundamentação, mas liga-se
ao que é dito pela UNESCO:

“Todas as tradições vivas estão submetidas à contínua reinvenção de si mesmas. A


diversidade cultural, tal como a identidade cultural, estriba-se na inovação, na
criatividade e na receptividade a novas influências. Identidades nacionais,
religiosas, culturais e múltiplas. A questão das identidades – nacionais, culturais,
religiosas, étnicas, linguísticas, baseadas no gênero ou em formas de consumo –
adquire cada vez mais importância para as pessoas e grupos que encaram a
globalização e a mudança cultural como ameaça às suas crenças e modos de
vida.” (UNESCO, 2009: 6)

Talvez por feliz sincronia, nos anos 60 o concílio ecuménico Vaticano II debateu a
postura religiosa entre as várias religiões cristãs, além de outros temas da
contemporaneidade.
“No concílio participaram 800 bispos originários de várias instituições e ordens
religiosas, o que equivaleu a quase um terço dos padres conciliares, mas
encontravam-se também presentes 103 superiores gerais de ordens e
congregações e alguns teólogos que acompanhavam os bispos como «peritos».
Este número tão elevado não deve surpreender; mostra apenas a importância

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histórica e missionária dos religiosos na história da Igreja desde as suas origens.”
(Faria, 2014: 92)

Creio, como disse acima, que as conclusões resultantes do debate do concílio Vaticano
II se reflectem no discurso dos últimos pontífices. Sendo o paradigma religioso católico
indissociável da cultura, sobretudo da cultura ocidental, é pertinente reflectir acerca da
postura do Vaticano, em que medida se mantém na sua linha de conservadorismo e em que
medida se adaptou aos tempos, uma vez que em anos recentes a sua postura em termos
éticos se aproxima grandemente da legislação que tutela os direitos humanos, mas em que
também se nota um retorno às bases do cristianismo, aliada a uma certa cautela em
denominar e lidar com situações amplamente discutidas na nossa época que podem ser
consideradas polémicas.
Assim, para poder definir um centro a partir do qual possamos explicar as
características da Igreja católica e logo, a sua diversidade, e deste modo, a sua própria
identidade, definimos a cristianismo como uma religião que se inicia sob a égide da inclusão da
diversidade, tendo em conta as bases teóricas registadas nos livros do Segundo Testamento.
A mensagem de Jesus Cristo estabelece as premissas para a tolerância, perdão,
aceitação, inclusão e não-violência. Outra das bases, talvez a que mais defina ou deveria
definir o catolicismo, é o respeito pela vida. O discurso que encontramos no cânone do
catolicismo, não tendo em conta os evangelhos apócrifos, poderá talvez não possibilitar
delinear de forma mais abrangente a postura do fundador desta igreja milenar em relação a
todos os aspectos de diversidade que aqui indagamos, mas julgo que, esta breve reflexão é de
momento suficiente, como leitura leiga ou plebeia, como a que aqui propomos, sobre a Igreja
actual e os seus representantes máximos.

BASES DO CATOLICISMO, PAPADO E ALGUMAS ELUCIDAÇÕES SOBRE AS ENCÍCLICAS

A igreja católica baseia-se nos 10 Mandamentos contidos tanto no livro do Êxodo como no
Deuteronómio e que foram comunicados ao profeta Moisés: Adorar um Deus único, respeitar
o Seu dia, não usar o nome de Deus em vão, não idolatrar, não cometer adultério, não cobiçar,
não matar, honrar as hierarquias familiares, não difamar, não roubar. Acrescentam-se a essas
regras a proibição de actos considerados também pecaminosos como a homossexualidade e a
consulta de adivinhos. Estas são as regras do Velho Testamento. Com a vinda de Jesus, este
acrescenta amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Marcos,
12:30-33). Ao longo do Novo testamento observa-se a atitude de compreender, ouvir, não

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condenar, respeitar, integrar a diferença e perdoar, tornando-se assim esta lei do amor mais
abrangente.
Oficialmente a primeira pedra fundadora da igreja católica é o apóstolo Pedro,
considerado como primeiro papa e chefe da igreja fundada por Jesus Cristo. Até a actualidade,
à sede da Santa Sé, presidiram 266 papas. O actual papa, sucessor do papa Emérito Bento XVI,
é o 266.º papa desta «dinastia». Temos assim, ao fim de dois milénios, a consistência e
permanência de uma religião que continua hoje a ser, de entre as religiões monoteístas, a que
mais abrangência detém, sobretudo no mundo ocidental. O catolicismo libertou-se ao longo
dos séculos de alguns «erros» de interpretação da doutrina de Cristo que levaram a
perseguições, torturas e actos atrozes contra a diversidade de outras culturas, de outros
povos, e mesmo de indivíduos. Convém também relembrar que o mundo cristão, desde o
cristianismo copta, até o protestantismo e mesmo às igrejas ortodoxas orientais, ou
inclusivamente nas igrejas mais conservadoras ou dissidentes, como os mórmons ou igrejas
nascidas recentemente e que proliferam por todo o mundo, é incluído pela Santa Sé como
uma diversidade que deve ser aceite, como ficou estabelecido pelo Concílio Vaticano II.
Mais, as bases do catolicismo mantêm-se, desde as suas regras estabelecidas no Decálogo, ou
Dez Mandamentos, anteriores à pregação de Jesus Cristo, mas também no discurso de Jesus
Cristo que nos foi legado pelos vários testemunhos recolhidos no Novo Testamento e a que
Francisco, o papa actual, se refere ao longo de todas as suas comunicações chegando a afirmar
que os textos sagrados são objecto de constante e contínuo estudo.
As encíclicas como tal, apenas no século V d. C. é que adquiriram essa denominação.
As encíclicas iniciais, hoje em dia consideradas como tal, são as epístolas de São Pedro contidas
na Bíblia Sagrada: “Primeira Epístola Universal do Apóstolo S. Pedro” e “Segunda Epístola
Universal do Apóstolo S. Pedro”.
Em relação à evolução desta tipologia como denominação de comunicações papais
não sabemos o suficiente para explicar o seu processo. Encontra-se no Diccionario da lingua
portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio
de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro (Volume 1: A - K), edição de 1789, na página 523, a
seguinte definição para EPÍSTOLA: “carta poética; ou falando das dos apostolos y. g. as
epiftolas de S. Paulo:. Clérigo de epifiola , fubdiacono. E para o termo EPTSTOLAR: adj. de
carta missiva: eftilo epiftolar”. No entanto, o termo «encíclica» surge no Dicionário de Língua
Portuguesa, Da Porto Editora de 2011, na página 594, como “Carta que o papa envia a todos os
bispos, ou aos bispos de determinada região, para dar conhecimento do seu pensamento sobre
pontos de fé, de moral, do culto e da disciplina, ou sobre outros aspetos relativos ao governo da
Igreja. (Do gr. Egkýklios, «circular» + -ica).” Contudo, as encíclicas mais recentes são mais

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abrangentes e têm como destinatário a humanidade. No fim de contas, do pouco que nos foi
dado compreender, as encíclicas são missivas exclusivas do papa que, pelo seu carácter público
e oficial, expõem um discurso que é dirigido tanto a crentes como não crentes, tanto a clérigos
como a leigos. E tendo em conta o carácter intrinsecamente missionário e evangelizador do
catolicismo este processo é deliberado, pois acaba por ser uma forma de divulgação missionária
que faz parte deste plano dialogante da Igreja Católica com a diversidade e que não difere muito
da postura de observadores internacionais sobre as grandes questões e incógnitas dos nossos
tempos.
“O êxito do diálogo intercultural não depende tanto do conhecimento dos outros
como da capacidade básica de ouvir, da flexibilidade cognitiva, da empatia, da
humildade e da hospitalidade. (...) As memórias (recordações) divergentes têm
sido causa de muitos conflitos ao longo da história. Ainda que por si só, o diálogo
intercultural não possa resolver todos os conflitos políticos, econômicos e sociais,
um dos elementos-chave do seu êxito consiste na criação de um acervo de
memória comum que permita o reconhecimento das faltas cometidas e um
debate aberto sobre memórias antagônicas. A formulação de uma versão comum
da história pode revelar-se crucial para a prevenção de conflitos e para as
estratégias a adotar no pós-conflito, dissipando um passado que continua a estar
presente.” (UNESCO, 2009: 9-10)

LUMEN FIDEI - PARA UMA DEFINIÇÃO DA FÉ COMO DIVERSIDADE


Nesta encíclica, Francisco elabora um discurso em que explica a fé, acabando por criar
a impressão de que a fé no sobrenatural ou em Deus tem de ser explicada como diversidade e
esta percepção não é alheia ao discurso actual sobre diversidade religiosa e as suas
implicações. No caso desta encíclica o papa concentra-se no objectivo de explicar a fé e a
importância desta para o ser humano.
“E contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos nossos
contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos,
pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas
não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua
razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé
aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do
saber.” (Francisco, LF, 2013: 4)

A sua comunicação tem em conta o facto de o mundo actual ter para o ser humano
uma valência material, mais do que abstracta ou espiritual, e assim a fé tem de ser explicada
pelo Papa Francisco, como fundamental para o ser humano, além de ter de ser explicada em si
mesma, como facto da mente o do espírito que os nossos dias rejeitam porque existe a crença
de que a fé aprisiona o homem e o limita. Não refere outros pensadores que nos poderiam
ocorrer, como Bertrand Russell e a sua obra Porque não sou cristão, nem mesmo obras que

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explicam o ateísmo radical em alguns círculos sociais e intelectuais do nossos dias, mas parece-
nos que esse conhecimento está presente na sua reflexão ao citar Nietzsche.
“O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas
(...), na incerteza de proceder de forma autónoma». E acrescentava: «Neste
ponto, separan-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma
e a felicidade, cntenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade,
então investiga». O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche
desenvolvevrá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da
existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso a fé
seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres
rumo ao amanhã.” (Francisco, LF, 2013: 4)

Embora esta consciência – ter fé – ou forma de estar no mundo seja intrínseca ao ser
humano, a vida no mundo actual impele-o a ter como objectivo a sua própria sobrevivência,
num mundo competitivo que se estruturou para criar melhores condições de vida para a
humanidade mas que, ao mesmo tempo, o alienou e o impede de viver ou experienciar outros
aspectos do seu ser que são importantes para o seu equilíbrio e bem-estar e em que o passado
e a aprendizagem que este proporcionou à humanidade é descartado.

“A verdade grande, aquela que explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista
com suspeita. Porventura não foi esta — perguntam-se — a verdade pretendida
pelos grandes totalitarismos do século passado, uma verdade que impunha a
própria concepção global para esmagar a história concreta do indivíduo? No fim, resta
apenas um relativismo, no qual a questão sobre a verdade de tudo — que, no fundo,
é também a questão de Deus — já não interessa. Nesta perspectiva, é lógico que se
pretenda eliminar a ligação da religião com a verdade, porque esta associação estaria
na raiz do fanatismo, que quer emudecer quem não partilha da crença própria. A
este respeito, pode-se falar de uma grande obnubilação da memória no nosso
mundo contemporâneo; de facto,a busca da verdade é uma questão de memória,
de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode
conseguir unir-nos para além do nosso «eu» pequeno e limitado; é uma questão
relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode ver a meta e também o sentido da estrada
comum.” (Francisco, 2013, LF: 31-32)

Há também, como acima refiro, de acordo com o papa Francisco, certas noções que a
filosofia introduziu nos nossos dias, uma dessas noções é do pragmatismo e individualidade
que conduzem à alienação do ser humano do divino. Deste modo, desta encíclica destaca-se o
seguinte: a fé é encarada nos nossos dias como algo de divergente, logo, é uma diversidade
que tem de ser explicada.
“Por este caminho a fé acabou por ser associada com a escuridão. E a fim de
conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe
encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão já não podia ter
certezas. Deste modo a fé foi entendida como um salto no vazio (...) impossível de
ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar o caminho. (...)
Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal,

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diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente
em círculo, sem direcção.” (Francisco, 2013, LF: 5)

Neste texto ecoam algumas intertextualidades: a menção aos Evangelhos e a Dante


Alighieri e a vários outros autores para ilustrar esta reflexão. A influência das deliberações do
concílio Vaticano está também presente para explicar esta necessidade de explicar as questões
de fé. “O Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da experiência humana, percorrendo
assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta forma se vê como a fé enriquece a
existência humana em todas as suas dimensões.” (Francisco, 2013, LF: 8)
A esta encíclica acrescenta também uma informação sobre a redacção inicial desta
pelo seu antecessor, Bento XVI:
“Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé.
Estou-lhe profundamente agradecido, e na fraternidade de Cristo, assumo o seu
precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova
contribuição.” (Francisco, 2013, LF: 9)

Uma forma de reacção à diferença do não material, para continuarmos esta incursão
no território da Fé como diversidade, é, como nos diz o papa Francisco, a incredulidade que
depois leva ao egocentrismo centrado na materialidade, e que o papa define como idolatria:
“A história de Israel mostra-nos ainda a tentação da incredulidade, em que o povo
caiu várias vezes. Aparece aqui o contrário da fé: a idolatria. (...) [O] povo não
suporta o mistério do rosto divino escondido, não suporta o tempo de espera. Por
sua natureza, a fé pede para se renunciar à posse imediata que a visão parece
oferecer, é um convite para se abrir à fonte da luz, respeitando o mistério próprio
de um Rosto que pretende revelar-se de forma pessoal e no momento oportuno.”
(Francisco, 2013, LF: 15).

A esta reflexão que elucida acerca desta dicotomia entre espírito/mente e razão/matéria o
papa continua:
“Martin Buber citava esta definição da idolatria, dada pelo rabino de Kock: há
idolatria, «quando um rosto se dirige reverente a um rosto que não é rosto.» Em
vez de fé em Deus, prefere-se adorar o ídolo, cujo rosto se pode fixar e cuja
origem é conhecida, porque foi feito por nós. Diante do ídolo, cujo rosto se pode
fixar e cuja origem é conhecida, porque foi feito por nós. Diante do ídolo, não se
corre o risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias seguranças,
porque os ídolos «têm boca, mas não falam» (Sal 115, 5). Compreende-se assim
que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na
adoração da obra das próprias mãos.” (Francisco, 2013, LF: 15-16)

Estas considerações sobre questões de fé não são de todo descabidas, se


considerarmos a opinião científica que nos é dada por peritos em saúde mental que referem
que esta ausência do homem de si mesmo, ou melhor, da sua parte mais abstracta e

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imaginativa ou mesmo mística, causa ansiedade e depressão, uma vez que é natural no ser
humano a exploração das várias áreas da sua psique, incluindo a expressão religiosa ou a
integração do simbólico na sua existência.
“Faith, as several relational psychoanalysts argue, lies at the basis not only of self-
development, but also of human religious behaviour. It is a potential that needs to
be realized, individually and collectively; and the various religious traditions are
seen as the psychic infrastrucutre of religion, the anchorage of religion in the
psyche. With the introduction of the concept of faith, the relational view of
religion is given a psychological foundation.” (Zock, 1999: 444)

E sempre a propósito desta dimensão da existência humana, Francisco lembra-nos a


origem do cristianismo, a mitologia cristã do Deus que morre pelo homem, e o seu significado
profundo, que ultrapassa o horror do corpo de um Deus degradado e atinge a esfera da
abstracção, zona que metaforicamente, mesmo que o exemplo seja o corpo de Cristo
trucidado e ferido, atinge componentes basilares do humano que não podem ser descuradas,
como a capacidade de empatia, emulação e transporte do sentimento para uma esfera mais
elevada da psique, mas que é uma realidade intrínseca a esta.
“Na sua obra O Idiota, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski faz o protagonista — o
príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por
Hans Holbein o Jovem: «Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a alguém»;
de facto, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da morte
no corpo de Cristo. Etodavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que
a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu
amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste
amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível crer;
a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos plenamente a
Cristo.” (Francisco, 2013, LF: 19)

Segundo Francisco, a fé é algo que integra o homem na comunidade e o completa na


sua dimensão abstracta e simbólica. O contrário é a alienação.
“[E]sta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza
obras boas, coloca-se a si própria no centro e não reconhece que aorigem do bem é
Deus. Quem actua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê
exaurir-se e descobre que não pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei; fecha-se,
isolando-se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida torna-se vã, as suas obras
estéreis, como árvore longe da água.” (Francisco, 2013, LF: 23-24)

“O início da salvação é a abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que
sustenta a vida e a guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e
reconhecendo-a é que podemos ser transformados, deixando que a salvação actue
em nós e torne a vida fecunda, cheia de frutos bons.” (Francisco, 2013, LF:24)

Este discurso tem implicações práticas. O ser humano atinge a plenitude quando
concede a si mesmo essa fé, entendida como “(...) a general human capacity which has to do

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with being in contact with a real and meaningful world.” (Zock, 1999: 446). Num discurso que
se pode considerar metafórico-alegórico e que coloca a dimensão humana da fé no centro, e
explica a diversidade da fé, Francisco revela a sua atenção sobre a realidade dos dias de hoje e
fala de como é imprescindível esta dimensão, embora esta cause desconfiança.
“Na cultura contemporânea, tende-se frequentemente a aceitar como verdade
apenas a da tecnologia: é verdadeiro aquilo que o homem consegue construir e medir
com a sua ciência; é verdadeiro porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda
e aprazível. Esta verdade parece ser, hoje, a única certa, a única partilhável com os
outros, aúnica sobre a qual se pode conjuntamente discutir e comprometer-se; depois
haveria as verdades do indivíduo, como ser autêntico face àquilo que cada um sente
no seu íntimo, válidas apenas para o sujeito mas que não podem ser propostas aos
outros com a pretensão de servir o bem comum.” (Francisco, 2013, LF: 31)

LAUDATO SI' – A SOBREVIVÊNCIA PLANETÁRIA – ANOMALIAS E DIVERSIDADE

Nesta longa encíclica, Francisco lança o olhar sobre as condições do planeta Terra em
termos gerais referindo o aquecimento global, a degradação do planeta, a importância dos
ecossistemas em si para a manutenção da saúde planetária e sobrevivência de todas as
espécies. Critica o antropocentrismo desregrado e um certo relativismo que objectifica o ser
humano e as consequências da acção humana sobre o planeta.
“Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar prioridade absoluta aos
seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria
surpreender que, juntamente com a omnipresença do paradigma tecnocrático e a
adoração do poder humano sem limites, se desenvolva nos indivíduos este
relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se
torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite compreender como se
alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a
degradação ambiental e a degradação social.” (Francisco, 2015, LS: 41)

Refere os abusos e adverte para a união de interesses políticos e societais para que o
planeta não se degrade mais. Fala do planeta como «irmã Terra» que deve ser respeitado e
cuidado. A propósito do equilíbrio dos ecossistemas revela a sua preocupação relativamente
ao desaparecimento de espécimes cujo papel é fundamental para a manutenção da vida. A
este tópico alia-se a consciência de que as populações não podem ser escravizadas pela
industrialização abusiva e privadas das suas formas de viver e das suas crenças.

“A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a


aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto, obrigando-a a trabalhos
forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica
que leva à exploração sexual das crianças, ou ao abandono dos idosos que não
servem os interesses próprios. (...) Se não há verdades objectivas nem princípios

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estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas,
que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade
organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles
de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a
compra de órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para
experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo
de seus pais? É a mesma lógica do «usa e joga fora» que produz tantos resíduos,
só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem
necessidade.” (Francisco, 2015, LS: 41)

É evidente que estas observações têm um tom de denúncia, de ideologia ecológica, e


de sinceridade, ao referir a coerção do ser humano por entidades abusivas, mas ao apontar
também a ilegalidade dos abusos sofridos pelas crianças e por idosos, o desperdício e o
hedonismo desenfreado de certas sociedade e as ilegalidades que se cometem todos os dias.
Só um esforço conjunto e global pode salvar o planeta e os seres vivos que o habitam. Deste
texto resulta a interpretação de que, embora não refira a diversidade de modo específico, o
papa insta as várias diversidades à união em nome do bem comum para travar as anomalias
variadas que proliferam por todo o planeta. Do discurso suave de abertura acerca do estado
do ambiente, passou, minuciosamente, a pente fino, a enumerar todos os tipos de degradação
humana e planetária, de forma demolidora.
“Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada
pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi
aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma
missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em
diálogo com todos acerca da nossa casa comum.” (Francisco, 2015, LS: 1)

Mais, o estado do planeta, a sua degradação, não é considerado por Francisco como
diversidade, mas como anomalia e desequilíbrio, daí que este discurso seja um eco das
preocupações que já teriam sido parcialmente expressadas no âmbito do Concilio Vaticano II.
Acrescente-se novamente o seu tom directo quando refere de que modo o avanço técnico,
apesar de positivo em alguns aspectos, prejudica a capacidade de sobrevivência dos homens,
retirando-lhes a dignidade de serem auto-suficientes:
“O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através
do trabalho. Mas a orientação da economia favoreceu um tipo de progresso
tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de produção com base na
diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um
exemplo de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo. A
diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo no plano
económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele
conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras,
indispensável em qualquer convivência civil». Em suma, «os custos humanos são

12 | Diversidade e Fé – Laura Moniz


sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam
sempre também custos humanos». Renunciar a investir nas pessoas para se obter
maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade.” (Francisco, 2015,
LS: 43).

Por outro lado, ao desenvolver o seu discurso acaba por falar da diversidade dos povos
aborígenes e do seu direito às suas tradições e forma de se relacionarem com a Terra sem
serem submetidos a migrações forçadas e a abandonar o seu modus vivendi que contribui para
o equilíbrio planetário.
“Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais
interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projectos que
afectam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico,
mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço
sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus
valores.Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida.
Em várias partes do mundo, porém, são objecto de pressões para que abandonem
suas terras e as deixem livres para projectos extractivos e agro-pecuários que não
prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.” (Francisco, 2015, LS: 49)

Na continuação desta comunicação o pontífice refere várias formas de mal-estar


social, como a falta de habitações, a situação das cidades, a exploração e sujeição dos países
considerados pobres, e sugere soluções para todos os tipos de desigualdades para que
possamos legar um melhor futuro às gerações vindouras. Este não é um discurso visionário
nem sem fundamento, mas uma consciência informada a todos os níveis, tanto politicamente,
como cientificamente sobre os riscos de perecermos ou nos degradarmos ainda mais e chegar
a um ponto de não retorno.

“As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às


próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo
de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as
possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável – só
pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente
em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio actual depende do
que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos
atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.
(...) A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração
ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica. (...) muitos problemas
sociais de hoje estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação imediata,
com as crises dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em reconhecer o
outro.” (Francisco, 2015, LS: 54)

Outra das preocupações presentes nesta encíclica é a urgência em encontrar uma


solução conjunta e coordenada para impedir a poluição ou para usar países mais frágeis como
contentores ou depositórios de dejectos (Francisco, LS: 57). Seguem-se ulteriores observações,

13 | Diversidade e Fé – Laura Moniz


apontar de anomalias e sugestão de soluções. Pouco antes de encerrar o seu discurso em que
esboça esperança e crença numa solução globalizante e ecologicamente viável, que finda com
uma oração pela Terra, cita Santa Teresa de Lisieux como exemplo simples a pôr em prática
com a sugestão do retorno ao humano, ao sorriso.

“O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno


caminho do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso,
de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é
feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da
violência, da exploração, do egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo
exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas
formas.” (Francisco, 2015, LS: 75)

FRATELLI TUTTI – A INCLUSÃO

No texto de abertura desta encíclica, Francisco diz o seguinte, lançando os tópicos principais
acerca dos quias irá discorrer, e mais uma vez, como acima referimos, demonstrando o estudo
constante das escrituras também das mensagens de profetas e santos, como é o caso de
Francisco de Assis, que o pontífice usa como mote para este discurso. Ao longo da encíclica
Laudato Si´, continua a fazer menção às directivas resultantes do Concílio Vaticano II.
“As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre
estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos
últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas
intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além disso, se na
redação da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o
Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora
senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com
quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus «criou todos os seres
humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver
entre si como irmãos». (Francisco, 2020, FT: 2)

Referindo a actual situação de pandemia, Francisco denuncia a fragmentação e divisão


global que impede a concretização de soluções, e apela à fraternidade e amizade social, não só
localmente, no círculo social restrito, mas também entre todos os países, instando o ser
humano a abrir-se e apreciar a alteridade.
“Existem periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na
própria família. Também há um aspeto da abertura universal do amor que não é
geográfico, mas existencial: a capacidade diária de alargar o meu círculo, chegar
àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de
interesses, embora se encontrem perto de mim.” (Fancisco, 2020, FT:27

14 | Diversidade e Fé – Laura Moniz


Denuncia também o facto de a história não ter ensinado aos homens a não cometerem os
mesmos erros, uma vez que estes se repetem:
“Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se
consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados,
ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e
da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de
perda do sentido social, mascaradas por uma suposta defesa dos interesses
nacionais.” (Francisco, 2020, FT: 3)

Pessoas com deficiência, rejeita uma globalização que esbata as diferenças de forma radical e
destrua a identidade dos povos, relembra a parábola do bom samaritano em contraste com:

“Nesta linha, com tristeza, volto a destacar que «vivemos já muito tempo na
degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegouo
momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu.
Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos
uns contra os outros na defesa dos próprios interesses».[86] Voltemos a
promover o bem, para nós mesmos e para toda a humanidade, e assim
caminharemos juntos para um crescimento genuíno e integral. Cada sociedade
precisa de garantir a transmissão dos valores; caso contrário, transmitem-se o
egoísmo, a violência, a corrupção nas suas diversas formas, a indiferença e, em
última análise, uma vida fechada a toda a transcendência e entrincheirada nos
interesses individuais.” (Francisco, 2020, FT: 31)

Indirectamente evoca o conceito de modernidade líquida, termo cunhado pelo sociólogo


Zigmunt Bauman, pedindo ao mundo solidez e solidariedade para o bem comum, relembra o
planeta, ligando assim esta encíclica à anterior, mas refere o direito que todo o ser humano
tem à propriedade, a usufruir do planeta para poder subsistir, revelando também o seu
conhecimento das injustiças do mundo capitalista ou do pensamento capitalista que subjuga
os mais frágeis.

“E a justiça exige reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas


também os direitos sociais e os direitos dos povos. (...) Quanto afirmamos implica
que se assegure «o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso»,
(...) que às vezes é fortemente dificultado pela pressão resultante da dívida
externa. Em muitos casos, o pagamento da dívida não só não favorece o
desenvolvimento, mas limita-o e condiciona-o intensamente.” (Francisco, 2020:
FT: 35)

Condena a guerra e a violência e afirma que é possível sonhar com uma humanidade melhor e
mais équa. Refere as diferenças religiosas do Islamismo mas reconhece que o diálogo fomenta
a paz e há interesse mútuo dos líderes religiosos em fomentá-la. Discorre acerca do racismo
considerando-o obsoleto, e ao longo de cerca de 100 páginas o seu discurso repete-se,

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aprofundando tópicos que não são apenas de pendor religioso, mas legal e humanitário. Um
desses tópicos é a condenação da pena de morte que ainda vigora em muitos países, a
condenação dos sentimentos e actos de vingança, considera também como «miopia» as várias
manipulações políticas e económicas incorrectas, como nacionalismos e abusos de poder, o
extremismo religioso. Condena os narcisismos por oposição à gratuitidade e caridade de
gestos quotidianos. Refere as oportunidades de aprendizagem que se perderam perante crises
económicas anteriores e também a solidão a que são votados os mais desfavorecidos apelando
a que se eliminem as desigualdades. Reconhece os valores e a actuação de organismos
internacionais, como a ONU, condena as «políticas mesquinhas e focadas no interesse do
imediato» (Francisco, 2020: 49) e também os políticos que incitam ao voto, mas não
consideram os verdadeiros interesses dos cidadãos, além do marketing que é produto do
objectivo de lucro e outra forma de exploração do homem e do mau jornalismo.

“Temos de nos exercitar em desmascarar as várias modalidades de manipulação,


deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada. O que
chamamos «verdade» não é só a comunicação de factos operada pelo jornalismo.
É, antes de mais nada, a busca dos fundamentos mais sólidos que estão na base
das nossas opções e também das nossas leis. Isto implica aceitar que a inteligência
humana pode ir além das conveniências do momento atual e captar algumas
verdades que não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão.
Indagando sobre a natureza humana, a razão descobre valores que são universais,
porque derivam dela.”(Francisco, 2020:FT: 58)

Fala da fome dos dias de hoje, da incerteza, da pobreza, da fragmentação, como já


disse, do planeta em geral e da sociedade e da comunidade internacional. Cita, na conclusão
desta longa encíclica, um acordo firmado em Abu Dhabi, a 4 de Fevereiro de 2019 com Ahmad
Al- Tayyeb cujo cerne é o diálogo.

CONCLUSÃO

Da leitura das três encíclicas publicadas até agora pelo actual pontífice há três aspectos
que se destacam. O primeiro diz respeito à consciência de que a fé actualmente é considerada
como diversidade e tem de ser explicada e definida como dimensão humana que leva ao
transcendente. Embora esse aspecto não tenha sido directamente focado no concílio Vaticano
II, Francisco faz referência várias vezes ao legado do Concílio Vaticano II e chega a citar Paulo
VI transcrevendo um excerto do discurso deste, numa nota de rodapé, que apresento aqui:

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“Embora o concílio não trate expressamente da fé, todavia fala dela em cada
página, reconhece o seu carácter vital e sobrenatural, supõe-na íntegra e forte e
constrói sobre ela os seus ensinamentos. Bastaria lembrar as declarações
conciliares (...) para nos darmos conta da importância essencial que o concílio,
coerente com a tradição doutrinal da Igreja, atribui à Fé, à verdadeira fé, aquela
que tem Cristo como fonte e, como canal, o magistério da Igreja.” (Francisco,
2013, LF: 8)

O segundo aspecto diz respeito à sabedoria que todos devem ter, esquecendo as
diferenças e logo, as diversidades ou divergências, para trabalhar em nome da casa comum
que é o planeta Terra.

“Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu- se à
problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é «consequência
dramática» da actividade descontrolada do ser humano: «Por motivo de uma
exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa acorrer o risco de a
destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação». E, dirigindo-se à
FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o efeito da explosão
da civilização industrial», sublinhando a «necessidade urgente duma mudança
radical no comportamento da humanidade», porque «os progressos científicos
mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento
económico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e
moral, voltam-se necessariamente contra o homem».” (FRANCISCO, 2015, LS: 2)

O terceiro aspecto tem a ver com a maturação no seio da Igreja Católica de uma maior
abertura em relação à diferença e a sua tentativa de se propor como solução para as
inquietações humanas, incluindo questões polémicas, do ponto de vista cultural e moral e
mesmo social como a tentativa de contornar a questão das uniões homossexuais.
Um trabalho mais abrangente incluiria também a observação de aspectos como o
paralelismo em relação a ideais enumerados na carta da declaração dos direitos do homem ou
mesmo na legislação lavrada por estados democráticos relativamente à diversidade, além dos
aspectos de pressão da mudança societal que poderiam ter forçado o Vaticano a uma
mudança de postura. E mesmo que essa mudança não advenha de nenhum factor exterior
acaba por convergir com discursos como o da UNESCO, no seu relatório mundial sobre
diversidade.
“A diversidade cultural converteu-se também numa questão social de primeira
ordem vinculada à maior diversidade dos códigos sociais que operam no interior
das sociedades e entre estas. Perante essa variedade de códigos e perspectivas,
os estados nem sempre encontram as respostas apropriadas, por vezes urgentes,
nem logram colocar a diversidade cultural ao serviço do bem comum.” (UNESCO,
2009: 3)

Outra limitação deste trabalho prende-se com o corpus delimitado por questões de tempo
disponível e de extensão desta reflexão. Além de não se tratar de ficção, mas de discursos

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elaborados de forma coesa e consistente, com uma lógica interna de que é impossível desviar-
se, a extensão das encíclicas exigiu numerosas pausas e reflexões. Verifiquei na minha
investigação que relativamente a posturas mais pessoais o actual Papa expressa-se por outros
meios: nas cartas motu proprio e noutras missivas tem expressado a tomada de decisões que
têm repercussões em termos de direito canónico, mas em entrevistas tem manifestado
posturas pessoais que não alteram o cânone e logo, não têm repercussões efectivas sobre o
funcionamento desta religião milenar.
Outra das lacunas tem a ver com o processo de elaboração das encíclicas, que me parecem
ser fruto de deliberações conjuntas do colégio Vaticano e que apenas são sancionadas pelo
Papa, sendo este apresentado como autor de um discurso que por vez se torna repetitivo, ou
melhor: repete as deliberações de documentos vaticanos e seus antecessores. Seria
interessante alargar o corpus de estudo ao processo específico decisório dos tópicos
escolhidos e apresentados como da autoria do Sumo Pontífice – saber da maior ou menor
autonomia deste no centro da Igreja que oficialmente dirige.
Outro aspecto que se tentaria futuramente também considerar é a diversidade de
posturas no seio do próprio vaticano relativamente ao discurso oficial de cada papa e ainda o
território remoto de outra realidade que a igreja refere como Lúcifer e tentar perceber se essa
distinção entre Bem e Mal que os exorcistas nomeados pelo Vaticano denominam de maligno
é uma zona que não se refere, por ser território submetido à discrição e a uma espécie de
silêncio imposto pelo mito do politicamente correcto para evitar celeuma, mas que já vi como
tópico de discussão entre sociólogos, por exemplo Zigmunt Bauman em Cegueira Moral e
alguns membros da igreja, nomeadamente Duarte Sousa Lara e Gabriel Amorth, ambos
exorcistas nomeados pelo Vaticano.
Porém, desta leitura das três encíclicas do actual Sumo Pontífice destaca-se pelo tom
dialogante e directo a preocupação com a civilização humana, com a ética, com toda a
diversidade e com o sofrimento e desorientação do homem actual, tópicos também presentes
nas actas do Concílio Vaticano II. Pode assim concluir-se que depois de um longo desvio o
catolicismo regressa à mensagem inicial de que só o amor e respeito mútuo nos podem salvar,
não só espiritualmente, como materialmente.

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CORPUS:
Francisco (2013). Lumen fidei. Libreria Editrice Vaticana online
Francisco (2015). Laudato si'. Libreria Editrice Vaticana online
Francisco (2020). Fratelli tutti. Libreria Editrice Vaticana online

BIBLIOGRAFIA
UNESCO (2009) Relatório Mundial da UNESCO. Investir na diversidade cultural e no diálogo
intercultural. Resumo. Organização das nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura.
Faria, Teodoro de (2014). O Concílio Vaticano II, 50 anos depois. Cascais: Princípia Editora, Lda.
Zock, Hetty (1999). “Religion as the realization of the faith.” in The Pragmatics of defining
religion – Contexts, Concepts & Contests.pp. 433-459. Ed. Jan G.Platvoet & Arie L.
Molendijk. The Netherlands: Brill
Vários (1983). Código do Direito Canónico promulgado por S.S. o Papa João Paulo II. 4.ª Edição.
Lisboa: Conferência Episcopal Portuguesa.

WEBGRAFIA - TEXTOS DE APOIO


Paulo VI (28/10/1965). Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as Religiões não cristãs.
Roma. Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (28/10/1965). Declaração Gravissimum Educationis sobre a educação Cristã. Roma:
Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (07/12/1965). Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade Religiosa. Libreria
Editrice Vaticana
Paulo VI (21/11/1964). Decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo. Vaticano. Libreria
Editrice Vaticana
Paulo VI (07/12/1965). Decreto Ad Gentes sobre a actividade Missionária da Igreja. Roma
Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (18/11/1965). Decreto Apostolicam Actuositatem sobre o apostolado dos leigos.
Vaticano. Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (04/12/1966). Decreto Inter Mirifica sobre os meios de comunicação social. Vaticano
Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (07/12/1965). Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a igreja no mundo actual.
Roma. Libreria Editrice Vaticana
Paulo VI (04/12/1963). Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia.
Roma Libreria Editrice Vaticana

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Paulo VI (21/11/1964). Contituição Dogmática Lumen Gentium sobre a igreja. Roma. Libreria
Editrice Vaticana
Paulo VI (18/11/1965). Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelaçãp divina. Roma.
Libreria Editrice Vaticana

Nota sobre corpus e textos de apoio da Libreria Editrice Vaticana online

Estes textos, devido à dificuldade em encontrar publicações impressas disponíveis, foram


convertidos em PDF e a numeração daí resultante foi utilizada na localização das citações.
Além disso, por não ter familiaridade com as regras de citação de textos religiosos, creio que
terão ocorrido algumas incorrecções na citação das encíclicas papais.

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Conteúdo
DIVERSIDADE NAS ENCÍCLICAS DO PAPA FRANCISCO................................................................... 1
Resumo:..................................................................................................................................... 2
Abstract ..................................................................................................................................... 2
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 3
BASES DO CATOLICISMO, PAPADO E ALGUMAS ELUCIDAÇÕES SOBRE AS ENCÍCLICAS ........... 5
LUMEN FIDEI - PARA UMA DEFINIÇÃO DA FÉ COMO DIVERSIDADE ......................................... 7
LAUDATO SI' – A SOBREVIVÊNCIA PLANETÁRIA – ANOMALIAS E DIVERSIDADE .................... 11
FRATELLI TUTTI – A INCLUSÃO ................................................................................................ 14
CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 16
CORPUS: .................................................................................................................................. 19
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 19
WEBGRAFIA - TEXTOS DE APOIO ............................................................................................ 19
Nota sobre corpus e textos de apoio da Libreria Editrice Vaticana online ............................. 20

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