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17/04/2021 A distorção do espaço-tempo como forma narrativa

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Frentes Versos 16 de Ago de 2020

A distorção do espaço-tempo como forma


narrativa
\\ ESPECIAIS

Esses dois quadrinhos são dois verdadeiros


tratados sobre a capacidade que só a arte
tem de distorcer o espaço-tempo para
transformá-lo em agente narrativo.

Por André Cáceres, colaboração para Frentes Versos

Página do quadrinho "Aqui", de Richard McGuire.

Desde que o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) propôs, em sua


Teoria da Relatividade Geral, que espaço e tempo não são categorias
fixas e absolutas, mas dependem do ponto de vista do observador que
as observa — algo que pode soar contraintuitivo, mas já foi
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comprovado dezenas de vezes nos últimos cem anos —, o lugar da


humanidade no universo foi alterado definitivamente, e a arte passou
a refletir essa perspectiva relativística, seja na fragmentação da
forma na pintura cubista, na fragmentação da mente na literatura
moderna ou na fragmentação do tempo no cinema de vanguarda. Sendo
uma das artes que surgiram quase concomitantemente à teoria de
Einstein, os quadrinhos não deixaram de refletir esse novo paradigma
físico, filosófico e ontológico.

Assim como o crítico literário russo Mikhail Bakhtin (1895-1975)


demonstra no segundo volume de sua Teoria do Romance, As formas do
tempo e do cronotopo (Editora 34), os meios pelos quais a literatura
retrata tempo e espaço (cronotopo) desde a antiguidade e o impacto
da Relatividade sobre a forma do romance no século 20, também o
teórico italiano Daniele Barbieri (1957-) demonstra, em seu estudo
As linguagens dos quadrinhos (ed. Peirópolis), como os quadrinhos
manipulam, deformam e distorcem o cronotopo se apropriando de
técnicas da fotografia e do cinema, mas também criando novas
estratégias.

Duas graphic novels relevantes publicadas no Brasil nos últimos anos


ajudam a compreender a relação que os quadrinhos estabelecem com
tempo e espaço, transformando esses elementos em dispositivos
narrativos e mesmo personificando-os em certos casos. As obras são
Um pedaço de madeira e aço, do autor francês Christophe Chabouté
(ed. Pipoca & Nanquim), e Aqui, do quadrinista norte-americano
Richard McGuire (ed. Quadrinhos na Cia.).

Chabouté é um dos mestres na


arte de representar a solidão,
a angústia e a melancolia em
seus quadrinhos em preto e
branco com traços finos e
poucas falas, como sua
adaptação de Moby Dick e
Solitário, que retrata um
faroleiro deformado e apartado
da sociedade. Em Um pedaço de
madeira e aço, o artista narra
toda a história (se é que se
pode dizer que há uma
história) do ponto de vista de
um banco de praça.

A partir de personagens que


aparecem apenas uma vez ali e
dos recorrentes, como o
mendigo que dorme sobre ele, o
cachorro que urina nele e o
casal de idosos que passam o
"Um pedaço de madeira e aço", de Christophe
Chabouté. tempo ali, Chabouté oferece
fragmentos mínimos de
realidade e instiga o leitor a investigar cada gesto das pessoas que

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passam ao largo do banco.

Não há, no entanto, a antropomorfização do objeto, que permanece


apenas um pedaço de madeira e aço. A operação realizada por Chabouté
é a caracterização do cronotopo identificado pelo banco numa praça
pública, de modo a alargar aquele espaço e aquele tempo, mostrando
os romances que se desenrolam ali, os dramas humanos, as infinitas
histórias que percorrem aquele local em tempos diferentes.

Página do quadrinho "Um pedaço de madeira e aço", de Christophe Chabouté.

Mais evidente ainda nessa questão é o quadrinho experimental Aqui,


de Richard McGuire. A obra mostra em todos os painéis um mesmo canto
de uma casa, sem nem mesmo alterar a perspectiva, como se houvesse
uma câmera fixa ali desde a aurora dos tempos até o futuro distante.

O tempo em Aqui não é linear,


cada painel tem a data em que
se passa escrita num balão e
cabe ao leitor montar o
mosaico de tramas narradas por
aquele único cômodo. Várias
famílias passam pela casa em
décadas diferentes, diversas
histórias se desenrolam no
local. As mudanças são
evidenciadas pelas trocas de
mobília e papel de parede.
Tudo muda, mas tudo permanece
igual.

Em alguns momentos, a obra


volta para a pré-história,
antes mesmo do surgimento da
raça humana, ou para uma época
anterior à construção da casa;

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em outros, avança para o


"Aqui", de Richard McGuire.
futuro incerto. Então retorna
para a data em que o cômodo estava sendo erguido. Nessas idas e
vindas, McGuire mostra a efemeridade da vida, mas também brinca com
a relatividade do tempo por meio da fixação de um ponto no espaço.

Conteudisticamente, ambas as obras trazem em si uma melancolia


inerente ao desnudar a ideia da impermanência das coisas, evidenciar
nossa finitude diante de um universo alheio à nossa própria
existência. Mas formalmente é que Um pedaço de madeira e aço e Aqui
se destacam, fazendo lembrar das ideias do cineasta russo Andrei
Tarkovsky (1932-1986), para quem fazer cinema é esculpir o tempo.
Esses dois quadrinhos são dois verdadeiros tratados sobre a
capacidade que só a arte tem de distorcer o espaço-tempo para
transformá-lo em agente narrativo.

***
(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da
FV)

\\ ESPECIAIS

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