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RESUMO ABSTRACT
A produção gráfica recente expandiu os limites característicos The recent graphic production has expanded the boundaries of
dos quadrinhos multiplicando os meios de veiculação e comics by multiplying the means of placement and circulation,
circulação, o mercado e a atenção cultural para esses discursos the market, and cultural attention to these artistic discourses.
artísticos. Olhando para essa expansão cultural, neste trabalho, Looking at this cultural expansion, in this work, we examine the
examinamos a graphic novel Cachalote (2010), produzida por graphic novel Cachalote (2010), produced by Daniel Galera and
Daniel Galera e Rafael Coutinho, tendo surgido nesse cenário Rafael Coutinho, having emerged in this scenario and presenting
e apresentando alguma dessas características de experimentos characteristics of experiments in language in transit with other
da linguagem em trânsito com outras práticas artísticas. Com artistic practices. With the purpose of having a reading of the
o propósito de realizarmos uma leitura da prática do suspense practice of suspense as responsible for the thread of narrative,
como responsável pelo fio condutor da narrativa, da aderência reader adherence and its influences and gains for a comic
do leitor e de suas influências e ganhos para a experimentação experimentation, we selected a French semiotic theory, in the
dos quadrinhos, selecionamos a teoria semiótica francesa, na proposal of Pietroforte (2009) and in the theory from McCloud’s
proposição de Pietroforte (2009) e na teoria dos quadrinhos de comics (2008) to detail the narrative rhythm of suspense as
McCloud (2008) para detalhar o ritmo narrativo do suspense, regularities and inventions of comic book expression. In this
as regularidades e inventividades da expressão dos quadrinhos. way, an analysis of the graphic novel allows a look at the artistic
Dessa forma, a análise da graphic novel possibilita um olhar result of the intense artistic practices of the recent comics and
para o resultado artístico das intensas práticas artísticas dos their aesthetic gains.
quadrinhos recentes e seus ganhos estéticos.
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Apoio: CNPq.
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Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas. Caixa
postal: 6001, Campus Universitário, 86051-990, Londrina, PR, Brasil.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC-BY 4.0), sendo permitidas
reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Renan Luis Salermo, Cássia Vanessa Batalha
no fazer missivo, como delimita Pietroforte (2009) para Seguindo as definições de McCloud (2008) o
o regime dos quadrinhos. enquadramento por ação a ação são quadros amplos,
Tecendo interlocução, sob a perspectiva dos onde ocorrem mudanças de espaço e tempo de um
roteiros dos quadrinhos, McCloud (2008) admite que quadro anterior para o seguinte. Associando-se ao
o enquadramento é o processo pelo qual os quadrinhos ritmo dos quadrinhos de Pietroforte (2009), no regime
acontecem e desenvolvem-se, apontando o enquadramen- missivo, os enquadramentos de ação a ação contro-
to como o primordial responsável pela diferença entre os lam ordem do emissivo, ou acelerado. Estabelece um
quadrinhos e cinema. Segundo este teórico, a diferença simulacro discursivo do enquadramento ação a ação,
está no instante preciso dos quadrinhos enquadrar-se. acelerando a mudança temporal e espacial em todos os
Enquanto o cinema acontece num enquadramento tem- quadros seguidamente, acelerando as ações narrativas.
poral cinético, os quadrinhos “fecham” esse tempo num Esse formato de enunciação pode ser visto na primeira
único instante e espaço. Isso revela que, ao se enunciar a sequência de enquadramentos, conforme apresentam as
história no formato dos quadrinhos, a precisão do ritmo Figuras 1, 2 e 3.
e do enquadramento entre abertura e fechamento dos Nesta sequência inicial, a história acontece acele-
quadros é o grande trabalho para uma comunicação e radamente, os quadros em ação a ação abrem a narrativa
aceitabilidade pelo enunciatário no percurso de leitura sendo potencializadoras do relaxamento inicial, efetivan-
Cotejando as perspectivas do fazer missivo em do um avanço nas ações de tocar piano e subir a escada.
Pietroforte (2009) junto dos conceitos da teoria dos qua- No enquadramento 9, percebe-se alteração do
drinhos de McCloud (2008), selecionamos o ritmo da sistema de organização discursiva. O enunciado desloca-
narrativa e a criação do suspense na primeira narrativa -se para aquilo que McCloud (2008) define como enqua-
em Cachalote, a qual traz formatos de enquadramentos dramento momento a momento. O espaço mantém-se e
rimando com o ritmo do suspense. o tempo corre muito mais devagar. O ritmo da narrativa
desacelera e o espaço começa a fechar-se, reconhecendo
um ritmo remissivo, conforme a formulação de Pietroforte
(2009). Nas categorias de tempo e espaço, não temos
mais uma mudança espacial (fixa-se o plano aquático),
sucedendo somente a mudança temporal. Testemunhamos
o momento a momento remissivo nas Figuras 4, 5 e 6.
A organização de desaceleração e fechamento da
narrativa reflete primeiro sintoma rítmico proporcionado
pelo suspense. Quando o espaço se fecha e o tempo desa-
celera existe uma retenção narrativa. O espaço não muda,
fazendo as ações acontecerem pausadamente, prende-se
Figura 1. Enquadramento 1.
o leitor no espaço aquático durante 10 quadros. Apri-
Figure 1. Frame 1.
sionado, o campo discursivo quadrinístico instaura uma
Fonte: Galera e Coutinho (2010). tensão na recepção de leitura. Barrando as ações narrativas
Plano da expressão
Plano do conteúdo
(categoria cromática)
Emissivo – ritmo relaxado Branco
Remissivo – ritmo intensivo Preto
Nesta ordem, a posição da narrativa dentro de pelo ritmo da enunciação e domina o campo discursivo,
toda a graphic novel está de acordo com a sua função o epílogo reitera o espaço do prologo e faz das águas o
de prólogo e epílogo para as outras narrativas cruzadas incomodo suspensivo para o leitor.
internamente. A narrativa da velha solitária organiza-se O ritmo do suspense no prólogo e epílogo pro-
no suspense e nas inseguranças enunciativas do momento movem ao enunciatário-leitor experiências do fazer-crer,
da leitura, funcionando, basicamente com: sendo-as responsáveis pelo ritmo interativo da leitura.
Conforme considerado por Limoli (2014, p. 1445):
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A organização dos quadros em uma página pode partir de uma estrutura pré-definida regular ou irregular, chamada de grid. No
início das HQs era comum a utilização do que hoje denominamos de grid clássico ou simples que mantém uma disposição de quatro
quadros do mesmo tamanho divididos igualmente na página. Sua origem vem das primeiras HQs, onde tiras de quadrinhos oriundas
de jornais eram organizadas no formato de revista.
Se não há categorias semióticas que relevem a Desse modo, o silêncio propagado na prática
priori da expressão ou do conteúdo, a relação quadrinística em Cachalote (2010) funde-se no suspense.
entre exteroceptividade e interoceptividade tem de O enunciador define o silêncio perpassando os quadros e
ser redefinida sempre que há uma nova enuncia- amplia a significação além da necessidade dos balões de
ção: os efeitos de interioridade e de exterioridade fala. Ao desenvolver um silêncio mútico durante a narrati-
dependem, segundo J. Fontanille, da posição que va, reinstaura o ritmo tenso estabelecendo o suspense por
se dá o corpo-carne proprioceptivo no momento todos os quadros. O silêncio assume um caráter intrigante,
em que ele se coloca como instância enunciante. como distinguido em alguns quadros, a expressão aparece
Mesmo não inscrito, o silêncio faz sinal, assina- abstrata e sem a ancoragem do verbal, reforçando as suas
la, sendo por isso uma construção, um facto de múltiplas leituras. De acordo com Barthes (1990), em
sentido: não inscrito, não dito, mas assinalado e “A Retórica da Imagem”, a falta de ancorarem verbal e a
significante. Que descodificamos. Podemos dizer pluralidade visual advertem o enunciatário das práticas
que ele se escreve, se lê, se ouve. É, portanto um plurais de leitura dos quadrinhos.
significante com textura e contexto próprios. No enquadramento 17 (Figura 14), o enunciatário
O silêncio é percebido como valor, dado que valor não consegue delimitar as singularidades expressivas do
preside à definição da significação. Por isso está quadro.
sujeito à moralização isto é à sua apreciação A abertura para inferências e interrogações são
ora como displicente vs agradável, belicioso vs. propostas pela revogação do silêncio ampliando a signi-
irénico, mútico vs. falante. Como o contrário da ficação das práticas de quadrinhos experimentais, afinal,
fala ou da voz, ele é eloquente, gritante, intrigante. quando dimensão verbal dos quadrinhos é apagada, o
Considerações finais
Instaurado o vértice do suspense na narrativa, a
base do ritmo nos quadrinhos e a temática insólita servem
Figura 14. Enquadramento 17.
de elementos que o integram e direcionam a significação
Figure 14. Frame 17.
para as vacilações e rupturas cognitivas no momento
Fonte: Galera e Coutinho (2010). da leitura. Organizado entre tensões e relaxamentos, os
enquadramentos exercitam a composição cromática en-
tre o preto e o branco e encarregam-se do contato visual
enunciatário reconstrói o texto integrando o suspense. sensível. Essas configurações do suspense descentralizam
Mais uma vez, é pela experimentação da linguagem que a prática de leitura e interrompem a fluidez e agilidade
o suspense é reforçado enunciativamente. Diferentemente própria da leitura dos quadrinhos. O suspense e seu projeto
dos discursos de suspense tradicionais considerados inventivo em Cachalote (2010) alteram o percurso de
Limoli (2014), no qual os enunciatários aguardam os leitura, rompendo certezas e fraturando a interação, pro-
capítulos seguintes, esperando um fechamento de entrega movendo uma leitura interativa artística e experimental.
daquilo que o enunciador havia deixado como expectativa
ao enunciatário, comum nas telenovelas e outros gêneros
da cultura pop, em Cachalote (2010), os enunciados não
Referências
guiam ao fechamento. Ao retomar a enunciação no epílogo
BARTHES, R. 1990. A Retórica da Imagem. In: R. BARTHES,
da obra, a narrativa não oferece pontas para o fechamento
O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 27-43.
da narrativa, contraditoriamente, amplia os caminhos
FLOCH, J.-M. 1985. Petites Mythologia de l’oiel et de l’esprit:
inquietos e silenciosos que são dados ao leitor-eunciatário.
Pour une sémiotique plastique. Paris/Amsterdam, Hadès-
Tocado pelo silêncio, o enunciatário permanece
-Benajmins, 230 p. https://doi.org/10.1075/as.1
em suspenso, como sugerido pela etimologia da palavra
GALERA, D.; COUTINHO, R. 2010. Cachalote. São Paulo,
suspense.
Cia. das Letras, 280 p.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. 2001. Dicionário Houaiss da
Suspense s.m. 1. CINE LIT RÁD TV no enredo ou língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2048 p.
composição de um filme, telenovela, narrativa, LIMOLI, L. 2014. Atualização narrativa, paixão e suspense na
peça etc., artifício que consiste em retardar ou telenovela. In: A. CORTINA; F.M. SILVA (orgs.), Semiótica
parar momentaneamente a ação num momento e Comunicação: estudos sobre textos sincréticos. Araraquara,
crucial, a fim de criar no espectador, ouvinte Cultura Acadêmica, p. 143-170.
ou leitor uma expectativa ansiosa e angustiante MCCLOUD, S. 2008. Desenhando Quadrinhos. São Paulo, M.
dos acontecimentos que virão a seguir <filme Books do Brasil Editora, 264 p.
de s.> 2. p. ext. qualquer situação em que há um MOURÃO, J.A. 2009. Para uma semiótica do silêncio. In:
acontecimento cuja explicação, continuação ou SOPCOM Sociedade das Mídias, 6, Lisboa, 2009. Anais... Uni-
desfecho são aguardados com grande impaciên- versidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, p. 229-237.
cia e inquietude (Houaiss e Villar, 2001, p. 2235, PIETROFORTE, A.V. 2009. Análise da história em quadrinhos:
grifos nossos). uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. São Paulo,
Annablume/Fapesp, 152 p.
O enunciador constrói um discurso com um silên- SPACCA. 2009. Jubiaba. São Paulo, Cia. das Letras, 96 p.
cio eloquente, convidando o enunciatário para movimen-
tar as páginas e descobrir outros mundos. É essa noção Submetido: 31/01/2017
de deixar em suspenso e criar outras semioses diferentes Aceito: 16/04/2017