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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE

INSTITUTO DE LETRAS E ARTES


CURSO DE ARTES VISUAIS LICENCIATURA

A LINGUAGEM DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A PRODUÇÃO DE


SUBJETIVIDADE

Felipe Santos dos Santos

Rio Grande
2018
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Felipe Santos dos Santos

A LINGUAGEM DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A PRODUÇÃO DE


SUBJETIVIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como


requisito parcial para obtenção do título de licenciado em
Artes Visuais

Orientador: Profº Drº Marcelo Gobatto

Rio Grande
2018

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Felipe Santos dos Santos

A Linguagem das Histórias em Quadrinhos e a produção de subjetividade

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito


para a obtenção do título de Licenciado em Artes Visuais

Orientador: Profº. Marcelo Gobatto

Banca Examinadora

Profº. Marcelo Gobatto – Orientador

___________________________________________________________________________________________

Profª. Ana Maio

Profª. Nadia Senna

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AGRADECIMENTOS

Agradeço meu orientador por me auxiliar nesse trajeto.

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RESUMO

Com o presente trabalho pretendemos alargar as discussões sobre a potencialidade estéstica


das Histórias em Quadrinhos. Essa forma de arte foi marginalizada durante a maior parte do século
XX. Mesmo autores simpáticos a ela, como Umberto Eco e Marshal McLuhan ainda a
consideravam uma forma de arte menor. No entanto acreditamos ser esse pensamento fruto de um
preconceito arraigado na cultura ocidental. O que pretendemos demonstrar. Queremos mostrar que
as HQs também podem veicular discursos estéticos tão elaborados quanto as outras artes. Dessa
forma mostraremos como elas podem também ser objeto de ensino em sala de aula e como podem
produzir subjetividade alternativamente ao Capitalismo Mundial Integrado, de acordo com o
conceito de Félix Guattari.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos, linguagem, subjtividade

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ABSTRACT

With the present work we pretend to enlarge the debates about the asthetic potentiality of the
Comics. This form of art was marginalized during the most part of the XX century. Even amiable
authors to its, like Umberto Eco and Marshal McLuhan still considered it a minor form of art.
However we bealive to be this thinking fruit of a preconception ingrained in westerner culture.
What we pretend to demonstre. We wich to show the Comics can vehicular too astheticals
discourses so elaboretes like the other arts. This way we will show how they can be object of
education in the classroom and how they can to produce subjectivity alternatively to the Integrated
Worldwide Capitalism (IWC), according the concept of Félix Guattari.

Key-words: Comics, language, subjectivity

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Índice/Sumário

Introdução...........................................................................................................................................8

1. O reconhecimento das Histórias em Quadrinhos (HQs) como forma de arte........................10

2. Os estudos precedentes dos intelectuais mais respeitados em relação às HQs.......................14

3. O Logocentrismo, a novidade técnica do cinema e os discursos dominantes.........................27

4. Releitura de “Steve Canyon” I – A linguagem da história em quadrinhos............................33


4.1. O desenho na HQ.......................................................................................................................33

4.2. O balão.......................................................................................................................................38

4.3. Onomatopeia..............................................................................................................................40
4.4. Conceitos visuais.......................................................................................................................41

4.5. Planos/enquadramentos/quadro.................................................................................................41

4.5. Montagem..................................................................................................................................42

4.6. “Movimentos de câmera e da objetiva”.....................................................................................51


4.7. Diagrama...................................................................................................................................52

5. Releitura de “Steve Canyon” II – Análise das mensagens.......................................................58

6. O discurso estético nas Histórias em Quadrinhos....................................................................79

7. A produção de subjetividade na sala de aula a partir das HQs.............................................89

Conclusões.........................................................................................................................................98

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Introdução

Com o presente trabalho propomo-nos demonstrar que as Histórias em Quadrinhos (HQs)


não são uma forma de arte menor. Umberto Eco e Marshal McLuhan, os mais respeitados
intelectuais a tratar do assunto, apesar de sua simpatia por essa forma de arte deixam implícito o
problema de estas serem uma forma de arte menor.

Eco, em seu Apocalípticos e Integrados, no ensaio Leitura de Steve Canyon, corrobora a


análise de Evelin Sullerot sobre a eficácia comunicativa das HQs, que diz que a informação que o
leitor retira de uma sequência quadros é aquela mais previsível e que a eliminação da redundância
não despertou no leitor nenhuma motivação para a descoberta.

McLuhan em Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem divide esses meios


em dois tipos: meios quentes e meios frios. Os meios quentes seriam aqueles com alta taxa de
informação ou alta definição, high-definition (HF) para usar o termo atual oriundo do inglês e os
meios frios aqueles com baixa taxa de informação ou baixa definição, low-definition (LF). As HQs
seriam meios frios e com o advento, ou popularização da televisão analógica estariam em declínio
devido à concorrência direta desta.

No entanto, achamos que na realidade as duas teses se complementam, pois ao dizer que a
previsibilidade é uma característica das HQs e a popularização da TV a faria declinar, pressupõe-se
que para a população em geral a TV substituiria as HQs tanto em termos de imagem (baixa
definição), quanto de narrativa (previsibilidade). E talvez para a percepção da população em geral
seja assim. Porém, nós cremos que existem HQs em que tanto a baixa definição não é intrínseca,
nem a narrativa é previsível. E aqueles que são mais intelectualizados deveriam perceber essa
diferença. Não que a população não possa percebê-la também, mas infelizmente no geral não é
assim, pois a população em geral tende a reproduzir o discurso da elite.

No primeiro capítulo tentaremos estabelecer aquilo que acreditamos ser um preconceito


intelectual com relação às HQs, dando exemplos concretos dessa abordagem, assim como
tentaremos abrir uma perspectiva contraria.

No segundo, abordaremos os estudos de Umberto Eco, Marshal McLuhan e Laonte Klawa


& Haron Cohen.

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No terceiro apresentaremos nossa hipótese de porque esta situação se encontra dessa forma.
Para nós esse problema deve-se ao logocentrismo ocidental e a prevalência da escrita sobre outras
formas de comunicação e pela novidade técnica que o cinema representou desde o seu surgimento.

No quarto capítulo apresentaremos obras em HQs, que no nosso entender confirmam nossa
hipótese.

No quinto apresentaremos e explicaremos os elementos da linguagem das HQs de modo a


podermos analisar as obras citadas.

No sexto demonstraremos como ironicamente nas HQs apresentadas podem-se aplicar as


teses que o próprio Eco expõe em Obra Aberta e também as teses que McLuhan aplica aos cineastas
Felini e Bergman.

No sétimo justificaremos a aplicação das Histórias em Quadrinhos em sala de aula.

Concluindo, tentaremos provar que as HQs podem produzir formas de subjetividade que
contrastam com o modelo CMI. Deve-se ter presente que analisaremos a linguagem das HQs no
maior período possível e no maior número de lugares possíveis. Mas nos ateremos às obras que
podem ser reproduzidas tecnicamente, para usar o conceito de Walter Benjamin, pois acreditamos
que é a partir desse período que podemos separar as HQs de outras manifestações artísticas como a
pintura, escultura, etc. Dentro desses limites, o método que seguiremos é o da filosofia conhecida
como pós-estruturalista, principalmente representada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, neste
trabalho.

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1. O reconhecimento das Histórias em Quadrinhos (HQs) como forma de arte

As Histórias em Quadrinhos sempre foram vistas como uma forma de arte menor. Menor
entre suas pares como as Artes Plásticas/Visuais, a Literatura e o Cinema. Dessa forma elas sempre
foram discriminadas. Entre as declarações de autores de outras áreas podemos citar a de Carlos
Argan que analisando a obra de Roy Lichtenstein, diz:

A operação de Lichtenstein é exata como uma análise de laboratório. O objeto da


análise é a estrutura da imagem nas histórias em quadrinhos (comic strips), um dos
meios de comunicação de massa mais consumidos. Essas imagens, divulgadas em
milhões de exemplares pela imprensa diária e periódica, não pretendem ser obras
de arte: comunicam sintética e visualmente um conteúdo narrativo. Sua estrutura
deve atender a duas exigências: serem reprodutíveis com os processos tipográficos
normais, e promover nos leitores (se assim podem ser chamados) um certo
impacto emotivo. … Dessa maneira, recupera a imagem arquetípica, que não é a
que o tipógrafo recebe do desenhista, e sim a tradução dessa imagem-esboço em
outro código de signos que a torna reprodutível com as técnicas tipográficas. O que
ocorre com essa retroversão da imagem, voltando da serialidade ao unicum, de uma
tecnologia industrial a uma técnica artesanal? Para melhor verificar a exatidão do
processo analítico, às vezes Lichtenstein procede a operação contrária: toma um
quadro de Picasso ou Mondrian, isto é, uma imagem esteticamente definida, e
transcreve-a no código sígnico da reprodução tipográfica – branco, preto, uma ou
duas cores, claros e escuros reduzidos a retículos de pontinhos mais ou menos
cerrados … o resultado da análise é claro: não há acréscimo nem redução de valor,
mas a passagem de uma a outra classe de valores. Ademais, é evidente que
Lichtenstein está interessado não no conteúdo da mensagem, e sim na maneira
como ela é transmitida – o medium. Antecipa, em suma, a descoberta de um
conhecido teórico da informação, McLuhan: a verdadeira mensagem é o medium,
isto é, o medium apenas comunica a si mesmo. … mas, afinal, essa imagem tem ou
não tem valor estético? Resposta: não tem em si, adquire-o quando é isolada do
contexto e fruída como pura imagem, ou melhor, como ‘objeto’. … os
consumidores têm a possibilidade e, talvez, a capacidade de fruir esteticamente os
produtos da indústria. Quem ‘faz’ o valor estético, em suma, não é o artista, mas o
consumidor normal de produtos industriais. (ARGAN, 1992, p. 646, grifos nossos.)

Figura 1: As I Opened Fire, Roy Lichtenstein


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/As_I_Opened_Fire

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Moacy Cirne rebate esse tipo de pensamento:

Voltando às etapas informacionais da leitura que se volta para o objeto estético,


notar-se-á que o literato se prenderá à leitura simbólica, enquanto o pintor praticará
a leitura estrutural, mas a praticará até certo ponto, pois uma verdadeira leitura
estrutural dos quadrinhos compreenderá a articulação dos quadros, na página ou na
tira. Seria mais uma leitura pictórico-estrutural específica a cada plano, a do pintor.
E estas duas alternativas não interessam à linguagem dos quadrinhos. Interessa uma
leitura estrutural que nos encaminhe para a leitura criativa capaz de identificar o
seu processo e a sua ideologia. A verdade é que não se pode ler uma estória
quadrinizada como se lê um romance, uma obra plástica, uma gravação musical,
uma peça de teatro, ou até mesmo uma fotonovela ou um filme (ou um desenho
animado, acrescentaríamos nós). São expressões estéticas diferentes, ocupam
espaços criativos diferentes, manipulam materiais orgânicos diferentes. Embora
haja um denominador comum para a leitura que se preocupa com manifestações e
discursos artísticos, existem leituras particulares para cada prática estética. (CIRNE,
1975, p. 15)

Percebe-se no pensamento de Argan, e isso será recorrente entre todos os grandes


intelectuais que analisaram as Histórias em Quadrinhos, uma generalização. Ao falarem de um caso
eles tentam aplicá-lo a todas as produções. Como diz Piercie: “Generalização é aumento de
amplitude e diminuição da profundidade, sem mudança de informação.” (1990, p. 141). Isso os leva
a esquecer, não tentar conhecer, ou reconhecer, que as produções em HQs são tão variadas quanto
na literatura, cinema e nas demais artes. A frase: “não pretendem ser obras de arte: comunicam
sintética e visualmente um conteúdo narrativo.”, aplicada ao cinema revela o absurdo patente, assim
como com uma pequena modificação ao aplicá-la à literatura: “não pretendem ser obras de arte:
comunicam sinteticamente através da escrita um conteúdo narrativo.” É impossível determinar as
possibilidades de uma linguagem com uma amostra tão pequena, apenas a leitura de várias obras
dessa linguagem é capaz de separar o joio do trigo. Pois quem ao ler uma página como a de Litlle
Nemo in the Slumberland, de Winsor McCay (figura 2) pode dizer: “mas, afinal, essa imagem tem
ou não tem valor estético? Resposta: não tem em si, adquire-o quando é isolada do contexto e fruída
como pura imagem, ou melhor, como ‘objeto’. … os consumidores têm a possibilidade e, talvez, a
capacidade de fruir esteticamente os produtos da indústria. Quem ‘faz’ o valor estético, em suma,
não é o artista, mas o consumidor normal de produtos industriais.” (grifo nosso). Pois mesmo
isolada de seu contexto um quadro de Little Nemo possui valor estético. Como dizer que não foi
McCay, quem conferiu valor estético à Litlle Nemo in the Slumberland? Uma obra que pode ser
considerada um Alice no País das Maravilhas em quadrinhos. E como esta uma precursora do
surrealismo.

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Figura 2: Litlle Nemo in the Slumberland de Winsor McCay
Fonte: http://www.comicstriplibrary.org/display/112

Nem mesmo Lichtenstein ousou usar HQs como essas em seu trabalho, pois
provavelmente ele sabia que tais imagens conservariam seu valor estético, mesmos deslocados de
lugar. Assim como não usou o trabalho do quadrinista seu contemporâneo Robert Crumb, o mais
famoso (e dizem, talentoso) dos quadrinistas underground, movimento nos quadrinhos similar ao
conceitualismo e ao cinema underground. Marshal Berman, autor de Tudo o que é sólido se
desmancha no ar, diz que ele veio a fazer companhia no final da década de 60 à Oldenberg, Segal e
outros ao produzir uma arte interessante sobre a rua (e em alguns casos na a rua). (BERMAN, 2081,
p. 376)

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Como todo artista Pop, Lichtenstein, estava interessado nos produtos mais banais e
desprezíveis da cultura de massas, aquilo que na melhor das hipóteses tinha um valor ambíguo, pois
a ironia era uma das marcas da Pop Art. Assim como no trabalho de Crumb, onde se diz na
contracapa da edição brasileira de seu personagem Fritz, the Cat: “Fritz tornou-se um símbolo da
contracultura. Depois dele, nem mesmo os gatinhos e patinhos, foi inocente nos quadrinhos.”
O único ponto onde concordamos com Argan e cremos que Moacy Cirne também
concordaria é:

Para melhor verificar a exatidão do processo analítico, às vezes Lichtenstein


procede à operação contrária: toma um quadro de Picasso ou Mondrian, isto é, uma
imagem esteticamente definida, e transcreve-a no código sígnico da reprodução
tipográfica – branco, preto, uma ou duas cores, claros e escuros reduzidos a
retículos de pontinhos mais ou menos cerrados … o resultado da análise é claro:
não há acréscimo nem redução de valor, mas a passagem de uma a outra classe de
valores."

Ou seja, como Cirne tentava dizer é necessária essa mudança de classe de valores para se
analisar os Quadrinhos.
Observando a tira utilizada por Lichtenstein percebe-se que os quadros se articulam em
uma sequência de planos que formam um zoom-in em relação ao jato militar. Claro que
Lichtenstein o utiliza para criticar o militarismo americano (a guerra do Vietnã estava acontecendo e
os protestos contra ela estavam bem próximos) assim como a relação binária entre os sexos (HQs de
guerra para os homens, românticas para as mulheres).

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2. Os estudos precedentes dos intelectuais mais respeitados em relação às HQs

Nos anos 60 Umberto Eco escreveu um ensaio clássico e seminal para a pesquisa
acadêmica sobre os Quadrinhos ‘‘Leitura de Steve Canyon” em seu Apocalípticos e Integrados
(2011), que apesar de seu elogio a estes, no entanto nos diz que as obras da cultura de massa,
incluindo as HQs, não nos dizem mais do que aquilo que já sabíamos. Umberto Eco se baseia na
suposta “gramática” das HQs que com seu código, não permitiria a comunicação de informação
nova nesse meio. Essa análise se baseia em uma pesquisa de leitores de fotonovela feita por Evelin
Sullerot, citada em nota de rodapé:

Sobre a eficácia comunicativa desse continuum virtual, deteve-se EVELIN


SULLEROT ao analisar a estrutura da fotonovela. … Na verdade, porém, essa
técnica recorre a um código de tal maneira preciso, as redundâncias são eliminadas
em pontos onde a previsibilidade da mensagem é de tal maneira certa, que
fornecem, indubitavelmente, um significado já esperado, e portanto, uma
informação reduzida. Em outros termos, a mensagem surge com redundância
reduzida no que concerne à estrutura interna (e seria, portanto, dotada de um certo
potencial informativo do ponto de vista de uma análise matemática da informação)
mas surge como banal do ponto de vista comunicativo (relação entre estrutura da
mensagem e conhecimentos já de posse do receptor): é em suma como um
telegrama que comunique (eliminando toda a redundância) que o Natal cairá no dia
25 de dezembro. (ECO, 2011, p. 147, grifo nosso.)

Uma análise positiva vem de Shazam!, obra pioneira produzida no Brasil em 1970,
organizada pelo falecido Álvaro de Moya. No ensaio “Os quadrinhos e a comunicação de massa”,
Laonte Klawa e Haron Cohen (figura 3) tentam rebater:

Alguns autores argumentam que essa operação perceptiva não é relevante; só é


permitida porque as ações não descritas são altamente prováveis e, portanto não
implicam participação maior do espectador na construção da cena e nem uma
concepção espacial nova da linguagem. Pensamos que a grande probabilidade do
desfecho da ação não seja uma característica da linguagem das HQs, mas de sua
mercantilização, da mesma maneira que o happy end também não o é no cinema. A
sequência de quadros não é obrigatoriamente provável, como demonstra o desenho
Luna Toon. Cada quadrinho tem, quando isolado, um grau menor de
inteligibilidade e maior quando em conjunto. O grau de maior é conferido pela
continuidade de tempo, espaço e movimento na maneira descrita anteriormente.
(MOYA, 1977, p. 111-2)

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Figura 3: Luna Toon
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/317714948704379079

Essa HQ parece e provavelmente foi feita como resultado do uso de um alucinógeno, LSD,
com muita probabilidade. Lembrando que alucinógenos são indutores de psicose, ou seja,
esquizofrenia. Assim de acordo com Deleuze e Guattari em Anti-édipo, capitalismo e esquizofrenia,
tomo I:

Dir-se-ia que o esquizofrênico passa de um código a outro, que ele embaralha


todos os códigos, num deslizamento rápido, conforme as questões que se lhe
apresentam, jamais dando seguidamente a mesma explicação, não invocando a
mesma genealogia, não registrando da mesma maneira o mesmo acontecimento, e
até aceitando o banal código edipiano, quando este lhe é imposto e ele não está
irritado, mas sempre na iminência de voltar a entulhá-lo com todas as disjunções
que esse código se destina a excluir. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.29) (grifos
nossos)

E mais adiante:

O esquizofrênico situa-se no limite do capitalismo: é a tendência desenvolvida


deste, o sobreproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele mistura todos os
códigos, é o portador dos fluxos descodificados do desejo. O real flui. (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p.54) (grifos nossos)

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Ela também é algo que poderia ser definido como uma “Graphic Poetry”, ou seja, um
Poema Gráfico. Termo que usamos para definir essa obra baseando-nos na expressão “Graphic
Novels”, Romances Gráficos, termo introduzido por Will Eisner para sua obra Contrato com Deus e
outras histórias de cortiço para diferenciar as HQs com pretensões artísticas daquelas mais
comerciais. Como a nossa abordagem é “pós-estruturalista”, não acreditamos em uma relação
necessária entre significante (graphic novel) e um significado (essa arte em particular). Por isso o
termo “Graphic Novel” ou História em Quadrinhos nos é indiferente. Entretanto gostaríamos de
diferenciar obras que estariam próximas daquilo que Aristóteles na Poética chama de poesia épica
(e que se tornou o romance atual) e dramática (o teatro), daquilo que ele chamava de poesia lírica.
Luna Toon seria um exemplo de um quadrinho lírico em comparação com aqueles que seriam
chamados de romances. Poderíamos chamá-lo Poema em Quadrinhos (PQ), mas não vamos
complicar as coisas e continuaremos a chamar de HQs todas as obras independentemente de serem
mais próximas ao romance ou a poesia (isso para não incluirmos aquilo que poderia ser chamado de
Quadrinho no campo expandido e mais ainda de performances ou registros de performances em
HQ).

Complementarmente, ainda no âmbito da linguagem, Marshal McLuhan, no capítulo


“Tipografia como morar no Assunto” (figura 4) de seu Os Meios de Comunicação como Extensões
do Homem, discorre:

Não é irrelevante considerar que as velhas impressões e xilogravuras, tais como as


histórias em quadrinhos e os “gibis” de hoje, poucos dados fornecem sobre épocas
específicas ou aspectos espaciais específicos de um objeto. O leitor é impelido a
participar da contemplação e da interpretação dos escassos vestígios que são
fornecidos pelas linhas de contorno. Semelhante ao caráter de gravar em madeira,
da caricatura e do desenho animado é a imagem da televisão, que apresenta baixo
nível de definição dos objetos, de que resulta um alto grau de participação por parte
do telespectador, no sentido de contemplar o que se apresenta apenas esboçado na
trama mosaica da retícula. Com o advento da televisão, a história em quadrinhos
entrou em declínio. (McLUHAN, 1971, p. 184-5).

E mais adiante, no capítulo “Mad, vestíbulo para a TV” o autor complementa:

O estudo das estórias em quadrinhos, nesta altura, logo após o capítulo dedicado à
Imprensa, visa a chamar a atenção para a permanência de certas características da
imprensa e mesmo da xilogravura nas estórias em quadrinhos do século XX. Não é
fácil perceber como as qualidades da imprensa e da xilogravura podem reaparecer
na trama mosaica da imagem da TV. A televisão é um assunto tão difícil para as

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pessoas letradas que tem de ser abordada de maneira oblíqua. Dos três milhões de
pontos por segundo que bombardeiam o vídeo, o telespectador só consegue captar,
iconicamente, algumas dúzias ou pouco mais de setenta pontos, com os quais
forma a imagem. Esta imagem é tão imprecisa quanto a das estórias em quadrinhos.
É por esta razão que a imprensa e os quadrinhos favorecem uma abordagem
cômoda à compreensão da imagem televisionada, pois fornecem baixa informação
visual ou poucos detalhes em cadeia. Os pintores e escultores, no entanto, podem
facilmente compreender a televisão, pois sentem o quanto de envolvimento tátil se
faz necessário para a apreciação das artes plásticas.

As qualidades estruturais da imprensa, da gravura em madeira e, mesmo, da


caricatura, implicam num caráter participacional, do tipo “faça você mesmo”, que
caracteriza muitas das experiências facultadas pelos meios modernos. A imprensa
serve de pista para os quadrinhos e estes servem de pista para a compreensão da
imagem da TV. (McLUHAN, 1971, p. 188).

Tanto os quadrinhos como o anúncio pertencem ao mundo do jogo, ao mundo dos


modelos e das extensões e prolongamentos das situações que se passam em outra
parte. A revista MAD — mundo da gravura em madeira, da imprensa e da
caricatura — aliou tudo isso a outros jogos e modelos do mundo do entretenimento.
MAD é uma espécie de jornal em mosaico do anúncio entendido como diversão e
da diversão como forma da loucura. Acima de tudo, é uma forma de expressão e de
experiência do tipo imprensa e xilogravura, cujo apelo imediato é um índice seguro
das profundas mudanças que estão ocorrendo em nossa cultura. Precisamos agora
compreender o caráter formal da imprensa (quadrinhos e caricatura), que desafia e
altera a cultura de consumo do filme, da fotografia e do jornal. Não há uma
abordagem única para esta tarefa; nenhuma observação ou ideia isolada pode
resolver um problema tão complexo, qual seja o da mudança da percepção humana.
(McLUHAN, 1971, p. 194)

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Figura 4: KURTZMAN, Harvey; WOOD, Wally. Superducahomem!
Fonte: Mad Nostalgia p. 4. Rio de Janeiro: Editora Vecchi S. A., 1977.

Poderíamos fazer uma comparação entre a MAD americana e o Pasquim brasileiro, onde
mutatis mutatis, encontraríamos o mesmo tipo de humor em um contexto histórico-político
diferente. Assim poderíamos comparar o humor da Mad em relação aos super-heróis com o trabalho
de Ziraldo em Zeróis (figura 5). De acordo com o texto, provavelmente de autoria de Maria Gessy
de Sales, em Zeróis: “Sob o crivo analítico do artista, a série de cartuns dos Zeróis promoveu uma
forma criativa de desmitificar qualquer forma de poder e de reacionarismo.” (Ziraldo, 2012, p. 42).
Fazendo assim também uma comparação entre a Pop Art norte-americana e a Nova Objetividade
brasileira. No caso brasileiro o humor seria mais explicitamente politico, com alvo mais em mira.
Mas nos dois casos haveria baixa informação, no Brasil o clima politico que seria quente.
Poderíamos até estabelecer uma relação entre as diferenças do impacto da televisão nos dois países.

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Nos EUA uma população com um nível de alfabetização alto, enquanto no Brasil com um nível de
analfabetismo altíssimo na época.

Figura 5: Ziraldo, Zeróis


Fonte: ZIRALDO. Os Zeróis: ilustrações do autor. São Paulo: Editora Goblo, 2012.

No mesmo sentido McLuhan compara a Bíblia Pauperum (Bíblia dos Pobres) aos gibis
(figura 6):

Bem antes de Gutenberg desenvolver seus tipos móveis de imprensa, muita


impressão sobre papel já fora executada, utilizando-se a xilogravura. Talvez que a
forma mais popular desta impressão de textos e imagens tenha sido a da Biblia
Pauperum, a Bíblia dos Pobres. Estes impressores xilográficos precederam os
impressores tipográficos. Embora não se possa precisar de quanto tempo, porque
essas publicações baratas e populares, desprezadas pelos eruditos, não foram
preservadas como não o são os “gibis” de hoje. A grande lei da bibliografia se
manifesta nesses trabalhos gráficos pré-Gutenberg: “Quanto mais havia, menos
há.” Ela se aplica a muitos outros itens, além da matéria impressa — aos selos e os
primeiros receptores de rádio.
O homem medieval e renascentista sofria pouco da separação e da especialização
das artes, tais como se desenvolveram posteriormente. Os manuscritos e os
primeiros livros impressos eram lidos em voz alta — e a poesia era cantada ou
declamada. Oratória, Música, Literatura e Desenho estavam intimamente ligados.
No mundo das iluminuras, de maneira especial, as letras ganhavam uma ênfase
plástica que as aproximava da escultura. Millard Meiss, o iluminador de

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manuscritos, ao estudar a arte de Andrea Mantegna, diz que, nas margens floridas e
ramadas da página, as letras de Mantegna “se erguem como monumentos de pedras,
sólidos, finamente entalhados”… Palpavelmente implantadas e maciças, elas
saltam audazes do fundo colorido, sobre o qual, muitas vezes, projetam a sua
sombra. (McLUHAN, 1971 p. 183)

Figura 6: “A Biblia Pauperum contém no mínimo 34 grupos de imagens que se estruturam


da seguinte maneira: no centro se encontra uma cena do Novo Testamento, normalmente um
acontecimento da vida de Jesus, flanqueado por duas cenas do Antigo Testamento” Ingo Walther,
Obras Maestras de la Iluminacón, p. 250 . Também haviam textos que saiam da boca dos
personagens em pergaminhos, que no caso, deram uma prévia dos quadrinhos modernos.
Fonte: https://louvoresdoaltissimo.wordpress.com/2012/03/29/biblia-pauperum-
ilustracoes-para-os-pobres/

É curioso perceber que um processo parecido com o que McLuhan descreve com relação
às impressões em xilogravura antes de Gutemberg (similar a nossa literatura de cordel) se de com
relação às primeiras edições de gibis de personagens populares como o Super-homem. A revista
onde se deu sua primeira aparição, a Action Comics (figura 7), está hoje cotada em milhares de
dólares.

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Figura 7: Superman cronicas, vol 1
Fonte: http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2013/06/superman-cronicas-volume-1.html

De acordo com Marshal McLuhan as Histórias em Quadrinhos seriam meios frios.


Podemos estabelecer uma relação da tese de McLuhan dessa forma: cinema-desenho animado-TV
analógica-fotonovela-HQ. Sendo a sequência definida de alta definição-HD (cinema) até baixa
definição-LD (low definition) (HQ). No entanto, o próprio McLuhan nos diz ainda:

Os filmes de Bergman e Fellini exigem muito maior participação do que os


espetáculos narrativos. Um enredo abrange um conjunto de eventos muito
semelhante à linha melódica, em música. A melodia, melos modos, o “princípio-
meio-fim” é uma estrutura contínua, encadeada e repetitiva, que não comparece na
arte “fria” do Oriente. A arte e a poesia Zen criam o envolvimento por meio do
intervalo, da pausa, e não na conexão empregada no mundo ocidental visualmente
organizado. O espectador se torna artista na arte oriental porque ele mesmo deve
contribuir com todos os elos. (McLUHAN, 1971, p. 10)

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Nesse sentido não poderíamos ter HQs mais “quentes”, com menos “participação”, no
sentido de baixa definição, do leitor? Porem sendo elas “quentes” apenas com relação as imagens e
não em relação ao roteiro, deve forma sendo tão “frias” quanto outras manifestações da arte
moderna.

Moacy Cirne, nos leva nessa direção ao contestar McLuhan. Em vez de uma única
abordagem Cirne propõe dois polos. Um com baixa informação e outro com alta informação:

McLuhan está certo quando afirma que a era pictórica do consumo morreu, sendo
substituída pela era icônica. Mas está errado ao enquadrar todo o quadrinho, como
síntese ou resumo, em imagens imprecisas — que o remetem à televisão. Os
exemplos citados por McLuhan (Outcault, McManus, Capp, Gould, Young, a
revista Mad), além de outros ignorados, são realmente calcados em imagens
imprecisas. Contudo, a alta informação visual está presente em muitos criadores
importantes: Hogarth, Raymond, Foster, Moebius, Gillon, Crepax, Devil. Existe
igualmente um grupo onde a baixa informação visual produz resultados
informacionais de alto significado intelectual: Schulz, Hart, Kelly, Copi, Feiffer.
No mesmo caso, Al Capp. (CIRNE, p. 45)

Desse ponto de vista poderíamos considerar Little Annie Funny, de Kurztman e Wood
(figura 6) como alta definição por seu caráter de pintura ou de baixa definição por seu traço
caricatural.
Ainda assim achamos que a principal diferença reside na relação desenho/artes gráficas e
pintura/fotografia. Assim uma gravura Renascentista de Dürer, possui baixa definição em
comparação com uma pintura do mesmo artista (figuras 8 e 9).

Figura 8: Autorretrato, 1500, Antiga Pinacoteca, Munique.

22
Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Albrecht_D%C3%BCrer#/media/File:Albrecht_D%C3%BCrer_-
_Selbstbildnis_im_Pelzrock_-_Alte_Pinakothek.jpg

Figura 9: O cavaleiro, a morte e o diabo, 1513, Museu Boymans Van Beuningen,


Rotterdam
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Albrecht_D%C3%BCrer#/media/File:Knight-Death-
and-the-Devil.jpg

A não ser é claro que queiramos ver ambas como de alta definição, “quentes” e as gravuras
e pinturas medievais românicas como de baixa definição, “frias”. Sendo o Gótico a passagem de um
a outro (figuras 10 e 11).

23
Figura 10: São João Evangelista, no Evangelário do abade Wedricus.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pintura_do_rom%C3%A2nico#/media/File:%C3%89vangiles
_de_Liessies_-_saint_Jean_-_Avesnes-sur-Helpe.jpg

Figura 11: Fra Angélico: Anunciação, afresco, 1442-1443


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_g%C3%B3tica#/media/File:Fra_Angelico_-
_The_Annunciation_-_WGA00555.jpg

Não notaríamos também um aquecimento das HQs, pelo menos aquelas menos comerciais,
a partir do advento da televisão? Como os exemplos mais abaixo parecem confirmar? Cirne critica
McLuhan também com relação às realidades econômicas e sociais, as quais ele acha que o autor
canadense não dá a devida atenção e propõe uma nova forma participacional para as HQs.

“A imprensa serve de pista para os quadrinhos e estes servem de pista para a


compreensão da imagem da TV”: McLuhan sabe a medida das relações &
colocações exatas. Seu erro fundamental consiste em ver nos meios de
comunicação extensões físicas (ou psíquicas) do homem, desligadas da economia e
da realidade social. Ou, pior ainda, forjando-as historicamente. Nesta
complexidade dialeticamente estruturada, os quadrinhos explodem a tipografia e,
com o avanço tecnológico da imprensa, tendem ao menos literário e ao mais
participacional — não apenas no sentido de baixa informação visual, — enquanto
prestam homenagens arqueológicas aos velhos clássicos (os álbuns luxuosos, em
offset, de Tarzan, Flash Gordon etc). (CIRNE, p. 46)

Também Pierre Lévy em As Tecnologias da Inteligência possui um ponto de vista próximo


do de Cirne, pois diz que McLuhan subestima as dimensões coletivas, dinâmicas e sistêmicas das
relações entre cultura e tecnologias intelectuais, ao tornar a comunicação apenas prolongamentos
dos sentidos, sendo tal analise apenas uma caricatura grosseira dessas relações.
24
Também Deleuze e Guattari, comentando McLuhan, dizem:

Porém, a escrita não deixa de desempenhar tipicamente o papel de um arcaísmo no


capitalismo, sendo a imprensa-Gutenberg o elemento que dá ao arcaísmo uma
função atual. Mas, de direito, o uso capitalista da linguagem é de outra natureza:
realiza-se ou devém concreto no campo de imanência próprio do capitalismo
enquanto tal quando aparecem os meios técnicos de expressão que, em vez de
remeterem ainda de forma direta ou indireta à sobrecodificação despótica,
correspondem à descodificação generalizada dos fluxos. Parece-nos ser este o
sentido das análises de McLuhan: ter mostrado o que era uma linguagem dos
fluxos descodificados, em oposição a um significante que estrangula e
sobrecodifica os fluxos. Primeiramente, tudo serve para a linguagem não-
significante: não há fluxo algum fônico, gráfico, gestual etc., que seja privilegiado
nessa linguagem que permanece indiferente à sua substância ou ao seu suporte
como continuum amorfo; o fluxo elétrico pode ser considerado como a realização
de um tal fluxo qualquer enquanto tal. Mas uma substância é dita formada quando
um fluxo entra em relação com outro fluxo, definindo-se então o primeiro como
um conteúdo, e o segundo, como uma expressão.93 Os fluxos desterritorializados de
conteúdo e de expressão estão num estado de conjunção ou de pressuposição
recíproca, que constitui figuras como unidades últimas de um e de outro. De modo
algum essas figuras são um significante, nem mesmo signos como elementos
mínimos do significante; são não-signos, ou antes, signos não significantes; são
pontos-signos com várias dimensões, cortes de fluxos, esquizas que formam
imagens pela sua reunião num conjunto, mas que não conservam identidade
alguma de um conjunto a outro. Portanto, as figuras, isto é, as esquizas ou cortes-
fluxos, não são de modo algum “figurativas”; elas devêm isso apenas numa
constelação particular que se desfaz em proveito de uma outra. Três milhões de
pontos por segundo transmitidos pela televisão, dos quais apenas alguns são retidos.
A linguagem elétrica não passa pela voz e nem pela escrita; estas são também
dispensadas tanto pela informática quanto por essa disciplina bem denominada
fluídica, que funciona por jatos de gás; o computador é uma máquina de
descodificação instantânea e generalizada.
93
Marshall McLuhan [1911-1980], Pour comprendre les média: les prolongements technologiques de
l’homme (1964), tradução francesa, Paris, Seuil, 1968, p. 24: “A luz elétrica é informação pura. Pode-
se dizer que é um medium sem mensagem enquanto não for utilizada para soletrar uma marca ou uma
publicidade verbais. Este fato característico de todos os media significa que o conteúdo de um meio,
seja ele qual for, é sempre um outro meio. O conteúdo da escrita é a fala, assim como a palavra escrita
é o conteúdo da imprensa, e a imprensa, o do telégrafo”.
(DELEUZE e GUATTARI, 2010, pp. 319-20)

Assim o conteúdo icônico (analógico) da TV seriam os Quadrinhos e o dos Quadrinhos (e


do telégrafo) a imprensa. Nos termos de Deleuze e Guattari dir-se-ia que os fluxos da imprensa se
relacionam com os fluxos dos Quadrinhos, sendo os primeiros o conteúdo e os segundos a
expressão.
Também a relação entre expressão e conteúdo, na HQs pode se dar de maneira que os
fluxos descodifiquem generalizadamente, com uma linguagem de fluxos descodificados contra um
significante despótico, com uma linguagem não-significante de fluxos desterritorializados de

25
conteúdo e expressão, não signos ou signos não significantes, como a história Luna Toon, e as
histórias de Valentina, parecem nos demonstrar.

Entretanto com o surgimento da TV digital de alta definição estamos voltando a um


período em as HQs não competem com um meio de baixa definição como a TV analógica. Assim
HQs tanto de baixa como de alta definição concorrem apenas com meios de alta definição. Talvez
por isso as HQs estejam ressurgindo com o fim da TV analógica de baixa definição.

26
3. O Logocentrismo, a novidade técnica do cinema e os discursos dominantes

Sabe-se que a teoria moderna da linguagem se inicia com a obra de Ferdinand Saussure.
Sua obra é tão importante que ultrapassou as fronteiras da linguagem e chegou às outras ciências
humanas criando a corrente filosófica “Estruturalismo”, que influenciou entre outros: Claude Lévi-
Strauss na Antropologia, Jaques Lacan na psicanálise e Roland Barthes na semiologia. O trabalho
de Saussure, que criou a Linguística moderna, vê os fatos da língua como um sistema.

Para bem compreender tal papel, no entanto, impõe-se sair do ato individual, que
não é senão o embrião da linguagem e abordar o fato social. Entre todos os
indivíduos assim unidos pela linguagem, estabelecer-se-á uma espécie de meio-
termo; todos reproduzirão – não exatamente, sem dúvida, mas aproximadamente –
os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos. (SAUSSURE, 2006, p. 21)

Will Eisner falando dos Quadrinhos diz algo semelhante:

A compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência. Portanto,


para que sua mensagem seja compreendida, o artista sequencial deverá ter uma
compreensão da experiência de vida do leitor. É preciso que se desenvolva uma
interação, porque o artista está invocando imagens armazenadas nas mentes de
ambas as partes. (EISNER, 1989, p.)

O sucesso ou fracasso desse método de comunicação depende da facilidade com


que o leitor reconhece o significado e o impacto emocional da imagem. Portanto, a
competência da representação e a universalidade da forma escolhida são cruciais. O
estilo e a adequação da técnica são acessórios da imagem e do que ela está tentando
dizer. (EISNER, 1989, pp. 13-4)

Saussure continua:

Qual a origem dessa cristalização social? Qual das partes do circuito pode estar em
causa? Pois é bem provável que todos não tomem parte nela de igual modo.
(SAUSSURE, 2006, p. 21)

Saussure nos diz também que:

27
A língua é um sistema de signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à
escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez,
aos sinais militares, etc., etc., etc. ela é apenas o principal desses sistemas.
Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida
social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da
Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeîon, “signo”). Ela
nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência não
existe ainda, não se pode dizer o que será; ela tem direito, porém à existência; seu
lugar está determinado de antemão. A linguística não é senão uma parte dessa
ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Linguística e
esta achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos
humanos. (SAUSSURE, 2006, p. 24)

Assim tentaremos analisar a linguagem das Histórias em Quadrinhos do ponto de vista da


Semiologia e da Semiótica.
Sendo um sistema de signos um fato da vida social pode-se dizer que um dos motivos para
as HQs serem consideradas uma arte menor deve-se ao fato de ser uma minoria. Sobre os conceitos
de maioria e minoria, Deleuze e Guattari dizem:

A noção de minoria, com suas remissões musicais, literárias, linguísticas, mas


também jurídicas, políticas, é bastante complexa. Minoria e maioria não se opõem
apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma constante, de expressão
ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada.
Suponhamos que a constante ou metro seja homem branco-masculino-adulto-
habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual
qualquer (o Ulisses de Joyce ou de Ezra Pound). É evidente que “o homem” tem a
maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres,
os negros, os camponeses, os homossexuais… etc. É porque ele aparece duas vezes,
uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria
supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o metro padrão
e não o contrário. Mesmo o marxismo “traduziu quase sempre a hegemonia do
ponto de vista do operário nacional, qualificado, masculino e com mais de trinta e
cinco anos”34.
34
Yann Moulier, prefácio a Ouvrirs et Capital de Mario Tronti, Bourgois. (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, p. 52)

Mesmo assim Deleuze e Guattari dizem em nota de rodapé:

14
Esse é um tema corrente do romance de terror e da ficção científica: os olhos
estão no buraco negro e não o inverso (“vejo um disco luminoso emergir desse
buraco negro, como se fossem olhos”). As estórias em quadrinho, por exemplo
Circus n.º 2, apresentam um buraco negro povoado de rostos e de olhos e a
travessia desse buraco negro. Sobre a relação dos olhos com os buracos e os muros,
cf. os textos e desenhos de J.L. Parant, especialmente Les yeux MMDVI, Bourgois.
(DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 54)

28
Apesar de cremos que análise deles é acertada, pois com seus vários quadros (quadrinhos),
as HQs realmente parecerem com a figura do pan-óptico, ou do monstro mitológico Argos Panoptes,
e invertendo dialeticamente o conceito diríamos que o cinema apresenta um buraco negro povoado
de um rosto e de um olho e a passagem desse buraco negro, ou do monstro mitológico Ciclope,
parece que Deleuze e Guattari consideram os Quadrinhos um gênero literário como o terror e a
ficção científica. Ou seja, parece que eles consideram, também, as Histórias em Quadrinhos uma
arte menor.
No caso das HQs a minoria é também numérica. O número de leitores de HQ não se
compara ao número de espectadores de cinema e de televisão. O porquê de tal situação é apenas
especulativo. Mas um dos motivos poderia ser que as HQs não são a novidade técnica do cinema e
da televisão. Em relação a estes os Quadrinhos são uma arte mais artesanal.
Também pensamos que o segundo motivo para os Quadrinhos serem considerados uma
arte menor deva-se ao predomínio e a tradição da escrita em nossa sociedade. Aquilo que Jaques
Derrida denomina logocentrismo centrado na escritura, como ele formula em sua obra
Gramatologia. De acordo com a Wikipédia:
Na teoria da desconstrução, logocentrismo é um termo cunhado pelo filósofo
alemão Ludwig Klages nos anos de 1920 e se refere à tendência no pensamento
ocidental de se colocar o logos (palavra grega que significa palavra ou razão) como
o centro de qualquer texto ou discurso. Jacques Derrida usou o termo para
caracterizar boa parte do pensamento ocidental desde Platão: uma busca constante
pela "verdade".

De acordo com Jair Ferreira dos Santos em O que é pós-moderno (SANTOS dos, 2000, p.
79): “O logocentrismo acaba com as diferenças entre as coisas reais ao reduzi-las à identidade no
conceito”. Diriamos então que os Quadrinhos restauram a diferença das coisas.
Os Quadrinhos são, nesse sentido, uma forma de arte eminentemente pictográfica, próxima
aos ideogramas e aos hieróglifos. Uma “literatura” pictográfica, hieroglífica ou ideogramática.
Acreditamos inclusive que a grande aceitação deles no Oriente (Japão, Coreia do Sul, China, etc.)
deve-se a esse fato.
Também acreditamos que o outro motivo seja a novidade técnica que o cinema representou.
Apesar da linguagem das HQs estar sempre presente na história da arte, desde as pinturas nas
cavernas, passando pelas ânforas gregas, a coluna de Trajano, a Tapeçaria de Bayeux, O teto da
Capela Sistina, a Paixão de Cristo de Dürer, a Captura do bandido maragato pelo monge Pedro de
Zaldivia de Goya e outras. No entanto, para nós as HQs só se tornam disciplina autônoma quando
foram reproduzidas tecnicamente, para usar o conceito de Walter Benjamin. Ele diz:

29
Com a xilogravura, as artes gráficas tornaram-se pela primeira vez tecnicamente
reproduzíveis; elas já o eram tempos antes de também a escrita sê-lo por meio da
imprensa. São conhecidas as monstruosas modificações que a impressão – a
reprodução técnica da escrita – provocou na literatura. Mas deste fenômeno, que é
analisado aqui da perspectiva da história mundial, elas são apenas um caso
particular, embora especialmente importante. Durante a Idade Média somam-se à
xilogravura também a gravura em cobre com ponta seca e a água-forte, assim como
a litografia, no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica reprodutiva atinge um patamar fundamentalmente novo.
O procedimento muito sucinto, que distingue a aplicação do desenho sobre uma
pedra de um talhe em bloco de madeira ou de fresagem em uma placa de cobre,
deu às artes gráficas pela primeira vez a possibilidade de trazer sua produção ao
mercado não apenas massivamente (como até então), mas também em variações
diariamente renovadas. Por meio da litografia, as artes gráficas tornaram-se
capazes de acompanhar o dia a dia de maneira ilustrativa. Elas começaram a
acompanhar o ritmo da impressão. Nisso, porém, já foram superadas, poucas
décadas após a invenção da impressão sobre pedras, pela fotografia. Com a
fotografia, a mão foi pela primeira vez aliviada das mais importantes obrigações
artísticas no processo de reprodução figurativa, as quais recaíram a partir daí
exclusivamente sobre o olho. Como o olho apreende mais rápido do que a mão
desenha, o processo de reprodução figurativa foi acelerado de modo tão intenso
que agora ele podia acompanhar o ritmo da fala. Se a litografia encerrava
virtualmente o jornal ilustrado (e a HQ, diríamos nós), também o cinema falado
encontra-se latente na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no final
do século passado. (BENJAMIM, 2017, p. 54-5)

McLuhan diz que o processo de mecanização do cinema aproxima-se da escrita, na medida


que é preciso ser altamente letrado para compreender o cinema. Assim como a tipografia, o cinema
serializa o olhar, assim sua ilusão de realidade é facilmente aceita pelos povos letrados ocidentais.
Como exemplo ele cita povos da África que ao depararem-se com as projeções cinematográficas
não conseguiam colocar os objetos em perspectiva achando que a medita que o objeto se aproxima
da câmera, este está crescendo e vice-versa, assim como quando um objeto desaparece do quadro
eles querem saber o que aconteceu com ele. Não estamos é claro desprezando as implicações
filosóficas do cinema. Como McLuhan aponta, Henri Bergson, que em 1911, no livro Evolução
Criativa, associou o processo mental com a forma do cinema. Dando início a técnica narrativa
chamada fluxo de consciência, usada por Proust, Joyce entre outros. Deleuze em seus dois livros
sobre o cinema enfatiza as relações nem sempre amistosas, entre o pensamento Bergson e o cinema.
Infelizmente nossos conhecimentos nessa área ainda são escassos mas é um caminho de pesquisa a
seguir.
Deleuze em Foucault, livro escrito logo após a morte deste, diz que este abandona certos
postulados da esquerda, sendo um o de modulação, onde em A História da Sexualidade I, A Vontade
de Saber, não há mais uma critica a uma repressão sexual atuando na linguagem sem extrairmos os
enunciados dominantes, pois a repressão e a ideologia, não explicam nada, operando sempre num
agenciamento ou “dispositivo” e não o inverso. A ideologia e a repressão, seguindo Nietzsche, são a
30
poeira levantada pelo combate das forças.
A partir dai chegamos ao conceito de produção de subjetividade, esboçado, primeiramente
por Foucault, em A História da Sexualidade II, O Uso dos Prazeres, onde ele explica o seu novo
projeto de buscar as formas de relação consigo que levam o individuo se constituir como “sujeito”,
através de quais “jogos de verdade”:

… o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando
se olha como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser e ser
trabalhador, quando ele se julga e se pune enquanto criminoso? (FOUCAULT,
2014, p.11-2)

Dirianos então, seguindo Deleuze em sua leitura de Foucault, que a linguagem das HQs
não foi reprimida ou recalcada, mas sim que os enunciados dominantes consideraram essa
linguagem uma forma menor, uma forma de arte menor. Enunciados estes que seriam o
logocentrismo ocidental e a novidade técnica do cinema, tão bem analisada no ensaio clássico de
Walter Benjamin: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Ou seja, o motivo das
HQs terem sido durante tanto tempo considerados como uma forma de arte menor e assim
marginalizada deve-se a esses jogos de verdade a que Foucault se refere. Como exemplo máximo
desses enunciados podemos citar a criação do famigerado Comics Code, que entre suas cláusulas,
possuía estas:

Parte A

Cláusula 3

“Policiais, juízes, membros do governo e de instituições respeitadas nunca deverão


ser apresentadas de maneira que se possa colocar em suspeita autoridades
estabelecidas.”

Parte B

Cláusula 3

“Não será permitida nenhuma cena de horror, derramamento de sangue, crimes


violentos, depravação, luxúria, sadismo e masoquismo.”

Parte C

Sobre costumes

31
“Qualquer forma de nudez é proibida, assim como qualquer exposição indecente ou
excessiva.”

“As fêmeas devem ser desenhadas sem exagero em relação a quaisquer de suas
características físicas.”

Sobre o casamento

“O tema do divórcio não deve ser tratado humoristicamente nem como algo
desejável.”

“Sedução e estrupo nunca deverão ser mostrado ou sequer insinuados.”

“Perversões sexuais ou qualquer inferência a respeito são estritamente proibidas.”


(CRUMB, 2013. p. 7-8)

Este código foi criado sob influência do livro Sedução dos inocentes do psiquiatra Fredric
Wertham, que gerou um clamor moralista, passando por uma recomendação do Congresso
Americano. Tudo isso no clima do Macartismo que chegou até as outras artes em artigos como o do
deputado George A. Dondero, intitulado “A Arte Moderna acorrentada ao comunismo”, onde,
seguindo os ensinamentos de Hitler no discurso de inauguração da “Grande Exposição de Arte
Alemã”, chama a arte moderna de degenerada sendo usada como arma do comunismo. (CHIPP,
1996, p. 504-5) Não que arte não possa ser usada como arma para o comunismo, ou qualquer outro
sistema, no entanto acreditamos que as HQs nesse período, dada a sua fragilidade ocasionada por
esses enunciados dominantes e jogos de verdade, sofreram um golpe mais violento que todas as
outras artes. Por não possuírem a legitimação necessária como as outras. No Brasil apareceu um
selo similar que dizia que os gibis eram autorizados pelo código de ética.

No entanto, apesar desses enunciados dominantes acreditamos que as HQs são capazes de
discursos estéticos elaborados. Capazes de comunicar informação nova ao seu leitor.

32
4. Releitura de “Steve Canyon” I – A linguagem da história em quadrinhos

No primeiro capítulo tentamos estabelecer aquilo que acreditamos ser um preconceito


intelectual com relação às HQs. Assim sendo daremos início agora a análise dos elementos da
linguagem das HQs de modo a confirmar nossa hipótese.

4.1. O desenho na HQ

Nas HQs o desenho, até a invenção da fotografia, foi um instrumento primordial para a
construção da linguagem. Como diz Umberto Eco: o signo gráfico requerido pela HQ pede uma
estilização que tende ao hieroglifo. Nesse caso já discorremos acima sobre como a relação existente
entre as HQs e formas de escrita não alfabéticas. Para relembrar diremos que existem duas formas
de escrita: a não-alfabética e a alfabética. A alfabética é aquela em que os signos reproduzem os
sons das palavras faladas. Na não-alfabética os conceitos se relacionam diretamente com a imagem
apresentada. Exemplos dessas escritas são os próprios hieroglifos e os ideogramas chineses.
Modernamente temos os pictogramas, que de acordo com a Wikipédia, tem sua origem nos
hieroglifos e na escrita cuneiforme. São símbolos que representam objetos ou conceitos. Tendo sido
modernamente criados movimento ISOTYPE, “projetado por Otto Neurath e ilustrado por Gerd
Arntz para comunicar informação de forma simples, valorizando a linguagem não-verbal.”
ISOTYPE significa International System of Typographic Picture Education (sistema internacional
de educação tipográfica pictórica). Chris Ware em Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do
mundo, chama, com certa dose de ironia sua obra de “romance” pictográfico. Retomamos a ideia
das HQs serem uma forma de “literatura” ideogramática. E por conseguinte um motivos de sua
discriminação seja o fato de elas de certa forma ameaçarem a “escrita” alfabética e o logocentrismo
ocidental, ou seja a tendência ocidental de colocar “Logos”, a razão a frente de tudo. Sobre isso
Deleuze e Guattari dizem:

Como Klossowski diz no seu profundo comentário a Nietzsche, uma forma de


potência, pela sua própria absurdidade, confunde-se com a violência que ela exerce,
mas só pode exercer essa violência se estabelecer para si objetivos e sentidos dos
quais participem até mesmo os elementos mais sujeitados: ‘As formações
soberanas não terão outro propósito que não o de mascarar a ausência de objetivo e

33
de sentido da sua soberania com o fim orgânico da sua criação’, convertendo assim
o absurdo em espiritualidade. Eis por que é em vão que se procura distinguir o que
é racional do que é irracional numa sociedade. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.
458-9)
Eisner nos diz:

As palavras são feitas de letras. Letras são símbolos elaborados a partir de imagens
que têm origem em formas comuns, objetos, posturas e outros fenômenos
reconhecíveis. Portanto, à medida que seu emprego se torna mais refinado, elas se
tornam mais simplificadas abstratas.
No desenvolvimento dos pictogramas chineses e japoneses ocorreu um amálgama
de imagem visual e símbolo derivado uniforme. (EISNER, 1989, p. 14)

Em seguida ele nos diz (figura 12):

34
35
Figura 12: EISNER, 1989, p. 15

Fonte: EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Saussure ao falar da representação da língua pela escrita, diz:

Mas como se explica tal prestígio da escrita?

1º Primeiramente, a imagem gráfica das palavras nos impressiona como um objeto


permanente e sólido, mais adequado do que o som para constituir a unidade da
língua através dos tempos. Pouco importa que esse liame seja superficial e crie uma
unidade puramente fictícia: é muito mais fácil de apreender que o liame natural, o
único verdadeiro do som.
2º Na maioria dos indivíduos, as impressões visuais são mais nítidas e mais
duradouras que as impressões acústicas; dessarte, eles se apegam, de preferência,
às primeiras. A imagem gráfica acaba por impor-se à custa do som. (SAUSSURE,
2006, p.35)

Dizendo-nos que existem dos sistemas de escrita:

1º O sistema ideográfico, em que a palavra é representada por um signo único e


estranho aos sons de que ela se compõe. Esse signo se relaciona com o conjunto da
palavra, e por isso, indiretamente, com a ideia que exprime. O exemplo clássico
deste sistema é a escrita chinesa.
2º O sistema dito comumente ‘fonético’, que visa a reproduzir a série de sons que
se sucedem na palavra. As escritas fonéticas são tanto silábicas como alfabéticas,
vale dizer, baseadas nos elementos irredutíveis da palavra.
Além disso, as escritas ideográficas se tornam facilmente mistas: certos ideogramas,
distanciados de seu valor inicial, terminam por representar sons isolados.
Dissemos que a palavra escrita tende a substituir, em nosso espírito, a palavra
falada: isso é verdadeiro quanto aos dois sistemas de escrita, mas tal tendência é
mais forte no primeiro. Para o chinês, o ideograma e a palavra falada são, por
idêntico motivo, signos da ideia; para ele, a escrita é uma segunda língua, e na
conversação quando duas palavras faladas têm o mesmo som, ele recorre amiúde à
palavra escrita para explicar seu pensamento. Essa substituição, porém, pelo fato de
poder ser absoluta, não tem as mesmas consequências deploráveis que a nossa
escrita; as palavras chinesas dos diferentes dialetos que correspondem a uma
mesma ideia se incorporam igualmente no mesmo signo gráfico. (SAUSSURE,
2006, p. 36)

Os Quadrinhos estão mais próximos do sistema ideográfico. Nos Quadrinhos a substituição


da fala pela grafia se realiza da mesma forma que na escrita ideográfica. Assim as imagens são

36
signos da ideia. Os Quadrinhos são nesse sentido uma forma de “literatura” (entre aspas pois eles
não são uma forma de literatura no sentido estrito) hieroglífica, ideogramática, pictográfica.
No entanto, ao se referirem à Derrida em seu Anti-édipo, capitalismo e esquizofrenia, tomo
I, Deleuze e Guattari dizem:

Em suma, o grafismo se põe a depender da voz num mesmo movimento em que


induz uma voz muda das alturas ou do além que se põe a depender do grafismo. É à
força de se subordinar à voz que a escrita a suplanta. Jacques Derrida tem razão
quando diz que toda língua supõe uma escrita originária, se ele entende com isso a
existência e a conexão de um grafismo qualquer (escrita em sentido amplo). Ele
tem razão também quando diz que não se pode estabelecer cortes, na escrita em
sentido estrito, entre os procedimentos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos:
há sempre e já ajustes à voz, ao mesmo tempo que uma substituição da voz
(suplementaridade), e o “fonetismo nunca é todo poderoso, mas desde sempre já
começou também a trabalhar o significante mudo”. E ele tem ainda razão ao ligar
misteriosamente a escrita ao incesto. Porém, não vemos nisto motivo algum para
concluir pela constância de um aparelho de recalcamento ao modo de uma máquina
gráfica que procederia tanto por hieróglifos quanto por fonemas.56
56
Jacques Derrida, De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967; e L’Écriture et la différence, Paris,
Seuil, 1967, “Freud et la scène de l’écriture”.
(DELEUZE e GUATTARI, 2010)

Dessa forma, não há uma estreita diferenciação precisa entre a fonética de um lado e a
grafia de outro.
Mesmo que Deleuze e Guattari ao se referirem a Derrida nos digam que a diferença entre
fonetismo e grafismo não possa se estabelecer com cortes precisos podemos ir assim além de um
temor logocêntrico com relação ao desenho na HQ substituir a escrita e argumentar que essa
redução hieroglífica, também reduziria a capacidade de uma HQ comunicar conteúdos mais
complexos, servindo assim ao mass media. No entanto Umberto Eco elimina essa preocupação ao
dizer: “Há um limiar, além do qual a estilização recupera toda a possibilidade de gradações
expressivas: é o caso das personagens de Schulz ou de Feifer.” (ECO, 2011, p. 153)
Com relação à Feifer gostaríamos de assinalar que sua estética pode ser considerada
minimalista. Dessa forma, se devidamente usado desenho mesmo estilizado pode servir a propósitos
poéticos e produção de subjetividade.
Também há a questão levantada por McLuhan da baixa definição da HQ por sua relação
com a gravura. Porém como Cirne rebateu desenhos nas HQs não necessariamente de baixa
informação, com algumas tendo inclusive alta capacidade informativa. Podemos incluir nesse caso
as fotonovelas. Elas são produzidas a partir de fotografias. A fotografia ao contrário do desenho
(gráfico ou não) possui grande quantidade de informação, mas como diz McLuhan é uma forma de
expressão sem sintaxe.

37
4.2. O balão

Também com relação ao cinema podemos pensar o balão. Eco (2011, p. 145) diz sobre ele
que se trata de elemento fundamental (grifo nosso) da semântica da HQ, um signo convencional,
um símbolo. E que de acordo com o traço de diversas convenções (lâmina que indica o rosto do
falante, bolinhas unidas ao rosto do falante, etc.) pode significar “discurso expresso”, “pensado”, etc.
Nessa semântica os termos da linguagem assumem significados que na maioria das vezes só valem
no código das HQs, podendo ser dessa forma um elemento de metalinguagem. Ou, melhor ainda,
diz ele, um sinal preliminar que força para a decodificação dos signos em seu interior a referência a
um código específico.
Klawa e Cohen em “Os quadrinhos e a comunicação de massa” de Shazam!, em 1970, obra
organizada por Álvaro de Moya, dizem:

No momento em que Richard Outcault, na sua história The Yellow Kid, colocou
textos dentro do quadrinho e encerrou-o dentro do balão, estava fazendo mais do
que mudar a localização das palavras em relação às figuras. De fato, a inclusão de
palavras no campo imagístico implicou numa transformação do seu uso,
acrescentando conotações e algumas vezes alterando seu significado. As palavras
sofreram um tratamento plástico; passaram a ser desenhadas; o tamanho, a cor, a
forma, a espessura., etc., tornaram-se elementos importantes para o texto. Quando
uma personagem diz: - Oba! E isto é escrito no balão com letras pequenas e miúdas
significa ‘falando baixo, com cuidado’. Ao contrário, desenhada com letras grandes
quer dizer ‘falando alto, exaltado’. Dois sentidos diversos são dados pela mesma
palavra através de tratamentos formais diferentes. É evidente que o desenho da
palavra existe também fora do campo das imagens, mas nesse caso de existir uma
conexão e uma síntese que se estabelece entre (e ao mesmo tempo) a linguagem
analógica das imagens e a digital das palavras. É exatamente nessa concomitância
que está a importância dos mencionados transporte e tratamento do texto, nessa
relação organizada entre informação analógica e a abstrata que criam um conjunto
novo, possibilitando um conhecimento rápido e preciso. (MOYA, 112-3)

Deste modo o balão fez com as palavras o oposto que a imagem dos quadrinhos fez.
Enquanto no desenho há uma tendência à escrita, no caso da escrita do balão há uma tendência ao
desenho.
Porém ao contrário de Umberto Eco, não achamos que os balões são elementos
fundamentais para a HQ pois, seguindo Cirne (CIRNE, s.d.), existem HQs que não utilizam balão

38
como Príncipe Valente de Hal Foster. Assim como todas as anteriores a The Yellow Kid de 1886 de
Richard Outcault.
Lendo recentemente Escuta só: do clássico ao pop, de Alex Ross, em um capítulo sobre a
invenção do fonógrafo (Máquinas infernais: Como as gravações mudaram a música; título bem
Deleuze-guatarriano, apesar de o livro não ser) e vendo a imagem do primeiro balão em Imageria, o
nascimento das histórias em quadrinhos, criado por Outcault (figura 13), percebemos que a criação
do balão ou seu ressurgimento de uma nova maneira no séc. XIX deve-se a esse invento. Mesmo
que Outcault fale dele com ironia, afinal são quadrinhos (comics), ele percebe a paisagem a sua
volta e as mudanças na percepção, para falar como McLuhan, que essa “máquina desejante” traria.
Como o fonógrafo permitiu a fusão entre imagem e som que o cinema falado traria criando uma
nova forma de ver as imagens, a criação do balão, não imitando, mas devindo o fonógrafo permitiu
uma nova relação entre imagem e palavra que não existia antes. Pode-se comparar o quadrinho com
balão ao cinema falado, e aí mais uma vez as HQs “influenciaram” o cinema antecipando algo que
no cinema só seria possível com o aperfeiçoamento da tecnologia (mais ou menos como talvez os
filmes de super-heróis de qualidade, onde as imagens já existem há décadas nas HQs mas só foram
possíveis de se realizar no cinema com as tecnologias atuais. Talvez no futuro com o barateamento
da tecnologia os cineastas produzam trabalhos como os quadrinhos de hoje). Assim como pode-se
comparar o quadrinho sem balão ao cinema mudo, sendo a relação entre imagem e palavra entre os
dois parecida. O balão essa máquina desejante infernal. Voltando ao artigo de Ross, talvez possa se
dizer que o balão virtualizou o som e criou uma nova relação entre imagem e palavra. Dessa forma
não cremos que o retorno do balão seja simplesmente uma volta aos antigos manuscritos da Idade
Média. E sim uma forma das HQs reagirem ao novo meio circundante.

39
Figura 13: O menino amarelo e seu novo fonógrafo, Richard Outcault

Fonte: CAMPOS, Rogério de. Imageria, o nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo:
Veneta, 2015.

4.3. Onomatopeia

Na HQ a onomatopeia torna-se um signo gráfico, ou melhor como diz Eco (, p. 145) existe
um signo gráfico usado com função sonora que amplia os recursos onomatopaicos da língua.
Existem vários ruídos como “crack”, “ploff”, etc. Em certas ocasiões ao transferem-se para países
que não os de origem e perdem seu significado transformando-se em equivalente visual do ruido e
voltando a ser signo nas convenções da HQ.

Acrescentaríamos apenas que as onomatopeias, assim como o balão, tendem a tornar a


escrita em desenho. Além de lhe dar características escultóricas, espaciais. No mais as
onomatopeias tendem a comportarem-se como os balões.

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4.4. Conceitos visuais

Os conceitos visuais são manifestação em imagens de expressões como: ver estrelas, ter o
coração em festa, etc. Eles acabam se tornando um repertório simbólico que cria uma semântica das
HQs.

4.5. Planos/enquadramentos/quadro

Os planos das HQs são basicamente os mesmos do cinema. A saber: Grande Plano Geral
(GPG): tem como função descrever o cenário, é quase impossível perceber a ação ou os
personagens; Plano Geral (PG): é um plano descritivo e serve, principalmente para mostrar a
posição dos personagens na cena. Percebe-se a figura humana, porém é difícil reconhecer os
personagens e a ação; Plano Conjunto (PC): apresenta o personagem ou um grupo no cenário e
permite reconhecê-los, não se visualiza a ação nos mínimos detalhes; Plano Médio (PM): é aquele
que enquadra o personagem em toda sua altura. O cenário não está em destaque, tendo assim uma
função narrativa; Plano Americano (PA): é o que enquadra o personagem acima dos joelhos ou
acima da cintura. Ele privilegia a ação em relação ao cenário; Primeiro Plano (PP): corta o
personagem na altura do busto. Mostra suas emoções, tem um carácter mais psicológico que
narrativo; Primeiríssimo Plano (PPP): o rosto ou uma parte do rosto do personagem ocupa todo o
quadro. Não se percebe a ação, a atenção do leitor é canalizada para o lado emocional, transmitido
pela expressão facial do personagem. Pode ter uma função descritiva, quando foca p. ex. a mão do
personagem; Plano Detalhe (PD): destaca um pormenor do rosto ou do corpo do personagem,

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resultando em uma imagem de grande impacto emocional e visual. Pode ter uma função indicativa,
como através de um objeto ou detalhe importante da história.

Deleuze em Cinema 1 A imagem-movimento define o enquadramento assim:

Partamos de definições muito simples, sob pena de corrigi-las mais tarde.


Chamamos enquadramento a determinação de um sistema fechado, relativamente
fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem, cenários,
personagens, acessórios. O quadro constitui, portanto, um conjunto que tem um
grande número de partes, isto é, de elementos que entram, eles próprios, em
subconjuntos. (DELEUZE, 1985, p. 22)

E mais adiante: “A decupagem é a determinação do plano, e o plano a determinação do


movimento que se estabelece no sistema fechado, entre elementos ou partes do conjunto.”
(DELEUZE, 1985, p. 30)

Achamos que não há diferença básica entre o enquadramento, o plano e a decupagem no


cinema e nas HQs.

4.5. Montagem

mon.ta.gem sf. 1. Ato ou efeito de montar. 2. Operação de reunir peças num dispositivo,
mecanismo, etc., de modo que funcione ou preencha seu fim. 3. Encenação (2). [Pl.: - gens.]

Ao analisar a página de Steve Canyon (figura 14) Umberto Eco fala em uma sintaxe
específica, uma lei da montagem na HQ, mas com a ressalva de que essas leis não seriam as
mesmas do cinema pois:

… a montagem da estória em quadrinhos não tende a resolver uma série de


enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma
espécie de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. A estória em
quadrinhos quebra o continum em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir,
solda esses elementos na imaginação e os vê como continum… (ECO, 2011, p. 147)

42
Figura 14: Steve Canyon, Milton Caniff

Fonte: ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2011.

Como dissemos no começo desta monografia, as HQs sempre foram consideradas uma
forma de arte menor e um dos motivos seria a baixa capacidade informativa destas. Baixa
informação pois o código da linguagem das HQs apesar de eliminar as redundâncias da mensagem a
elimina onde ela é mais previsível. Retornemos à análise de Evelin Sullerot citada por Umberto Eco:

Sobre a eficácia comunicativa desse continuum virtual, deteve-se EVELIN


SULLEROT ao analisar a estrutura da fotonovela. … Na verdade, porém, essa
técnica recorre a um código de tal maneira preciso, as redundâncias são eliminadas
em pontos onde a previsibilidade da mensagem é de tal maneira certa, que
fornecem, indubitavelmente, um significado já esperado, e portanto, uma
informação reduzida. Em outros termos, a mensagem surge com redundância
reduzida no que concerne à estrutura interna (e seria, portanto, dotada de um certo
potencial informativo do ponto de vista de uma análise matemática da informação)
mas surge como banal do ponto de vista comunicativo (relação entre estrutura da
mensagem e conhecimentos já de posse do receptor): é em suma como um
telegrama que comunique (eliminando toda a redundância) que o Natal cairá no dia
25 de dezembro. (ECO, 2011, p. 147, grifo nosso.)

43
Para compreender esta afirmação devemos analisar o conceito de código. Eco, em Obra
Aberta, diz:

Definiremos – para concluir – o código como sendo o sistema que estabelece 1) um


repertório de símbolos que se distingue por oposição recíproca; 2) suas regras de
combinação; 3) e, eventualmente, a correspondência termo a termo entre cada
símbolo e um dado significado (sem que um código deva necessariamente, possuir
juntas estas três características) (ECO, 2008, p. 105)

Em Apocalípticos e integrados ele define “código” como:

… um sistema de convenções comunicativas que constituem as regras de uso e


organização de vários significantes. … um código pode propor apenas repertório
semântico dentro do qual escolher os signos a usar. Ou pode propor um sistema de
regras combinatórias dos elementos escolhidos. Isto é, pode orientar para os fins
da seleção ou da combinação. Em outros termos, que assumimos como
equivalentes: pode ser paradigmático ou sintagmático. (ECO, 2011, p. 372)

Também em Apocalípticos e integrados ele define para a televisão (mas podemos adaptá-lo
para as HQs) um subcódigo da montagem.

Se os códigos precedentes ofereciam um paradigma de imagens selecionáveis, este


oferece uma série de sintagmas prefixados. Estabelece regras combinatórias das
imagens segundo as regras cinematográficas e televisionais, tanto na ordem do
enquadramento como no da sequência. O selvagem não habituado com a
linguagem cinematográfica não compreende que uma pessoa revista em
contracampo é a mesma vista anteriormente, ou não compreende a função de
coligação de uma fusão. Por exemplo, com base no subcódigo da montagem,
compreende-se através de cortes sucessivos o encontro entre um menino e um
velho, enquanto que, com base no subcódigo iconólogico, compreende-se a relação
avô-neto. (ECO, 2011, p. 377-8)

Analisemos então cada uma dessas definições dentro do sistema que estabelece o código e
apliquemo às HQs. Em primeiro lugar o código é um repertório de símbolos, signos que se
distingue por oposição recíproca. A HQ analisada por Sullerot se compõe de dois quadros, dois
signos, dois índices: pelotão de execução disparando, condenado caído no chão. Assim a sequência
se enquadra na primeira definição, pois os dois signos se distinguem por oposição recíproca. Claro
que na página de Steve Canyon essa oposição é mais complexa, pois ali são oito signos que se
opõem. Mesmo assim Eco faz a ressalva que se esta montagem fosse realizada não em uma HQ mas
em filme estarreceria o espectador de 1947 (ano de publicação da HQ). Dando o exemplo do estilo
de Goddard em Vivre sa vie ou de Chris Marker em La jetée. Ou seja, a HQ promoveria um discurso
fílmico. No entanto, essa ressalva não nos satisfaz pois apesar dela a montagem na própria HQ não
resultaria em um discurso original em sua própria semiótica, só sendo possível em outra semiótica.

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Em segundo lugar o código é o repertório de signos com suas regras de combinação. É
nesse ponto que cremos que Umberto Eco se equivoca, pois nada diz que existam quaisquer regras
de combinação para os signos em uma HQ. Não existe uma sintaxe específica e imutável na HQ. A
fotonovela mencionada por Eco, a partir de Sullerot, composta de dois quadros: pelotão de
execução, condenado caído no chão, poderia ser composta ao contrário, ou seja: condenado caído
no chão, pelotão de execução. Não existe uma regra de combinação para os quadros. Mudando a
combinação muda-se o significado da sequência. No caso teríamos uma narrativa não linear.
Aplicando o mesmo conceito em Steve Canyon teríamos uma narrativa totalmente não linear e até
uma não narrativa. Curiosamente nenhum dos conceitos que o próprio Umberto Eco aplica a todas
as outras artes, em sua obra mais famosa, Obra Aberta, escrita imediatamente antes de
Apocalípticos e Integrados, não poderiam ser aplicados as HQs. Por exemplo:

De outro lado, ainda existe o risco de um defeito elétrico faça acender A em lugar
de B, ou vice-versa; para eliminar este risco, deverei complicar ulteriormente as
possibilidades combinatórias do código. Introduzirei mais duas lâmpadas e
disporei de uma série ABCD, com base na qual poderei estabelecer AC = nível de
segurança e BD = nível 0. Terei assim reduzido as possibilidades de que uma série
de distúrbios no canal possa alterar minha mensagem. (ECO, 2008, P. 96) (grifo
nosso)

Aplicando esses conceitos aos Quadrinhos fica a dúvida, porque a série ABCD (quadrinhos
ABCD) não poderia se transformar na série (quadrinhos) AC ou BD?

Assim como a frase de Laonte Klawa e Haron Cohen:

A sequência de quadros não é obrigatoriamente provável, como demonstra o


desenho Lunna Toon. Cada quadrinho tem, quando isolado, um grau menor de
intelegibilidade e maior quando em conjunto. O grau de maior é conferido pela
continuidade de tempo, espaço e movimento na maneira descrita anteriormente.

Não poderia ser vertida como:

Todo acontecimento, toda palavra, encontra-se numa relação possível com todos os
outros e é da escolha semântica efetuada em presença de um termo que depende o
modo de entender todas as demais. (ECO, 2008, p. 48)

Também em Obra aberta ele diz:

… comunicativamente, tenho informação quando: 1) no seio da desordem original


recortei e constitui uma ordem como sistema de probabilidades, isto é, um código; 2)
no seio deste sistema, sem voltar aquém (antes dele), introduzo – através da
elaboração de uma mensagem ambígua em relação as regras do código – elementos
de desordem, que, numa tensão dialética, se contrapõem à ordem de fundo (a
mensagem põem em crise o código). (ECO, 2008, p. 121)

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Voltemos ao próprio Eco, que mais uma vez em Apocalípticos e integrados diz:

Do ponto de vista – ao contrário – de uma “teoria da comunicação”, a mensagem é


um complexo objetivo dos significantes, enquanto elaborada com base em um ou
mais códigos para transmitir certos significados, e enquanto interpretada e
interpretável com base nos mesmos códigos ou em outros. (ECO, 2011, p. 371)

Sobre a estrutura da mensagem:

Ao realizarem algumas funções e envolverem alguns níveis de significado, as


várias mensagens se estruturam de modo diverso (de um máximo de organicidade a
um máximo de desarticulação), dando vida a uma dialética comunicativa entre
probabilidade e improbabilidade (isto é, entre obviedade e novidade –
conclusivamente e em termos mais técnicos, entre significado e informação).

Uma mensagem será tanto mais provável e óbvia quanto mais se ativer as regras do
sistema de significação em que se inspira.

Uma mensagem óbvia comunica um significado claro e compreensível para todos


(comunica o que já sei).

Uma mensagem improvável comunica uma taxa de informação (o que ainda não
sei) que, superado certo limite de improbabilidade, redunda em pura desordem e
“ruído”.

Na mensagem deve-se, portanto, estabelecer-se uma dialética entre obviedade e


novidade. (ECO, 2011, p. 382-3)

Não poderíamos aplicar essa análise à Luna Toon? Devemos entrar dessa forma na questão do
enredo, no plot. Naquilo que é conhecido como narrativa aristotélica, conhecida também por NRI.
Steve Canyon e a fotonovela analisada por Sullerot, enquadram-se nesse tipo de narrativa. Várias
obras podem ser enquadradas nesse tipo de narrativa, mesmo aquelas que a nosso ver não poderem
ser definidas estritamente como HQs, pois não são reproduzíveis tecnicamente, como as já citadas
anteriormente: a coluna de Trajano, a Tapeçaria de Bayeux, O teto da Capela Sistina (figura 15), a
Paixão de Cristo de Dürer, a Captura do bandido maragato pelo monge Pedro de Zaldivia de Goya1.
Incluiremos duas outras que são reproduzíveis tecnicamente, As Aventuras de Nho-Quin (Rio de
Janeiro, 1869; Primeiro capítulo), do artista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini e Como Hob e Nobb,
voltando para casa da festa de Natal foram assaltados (Londres, 1856), de Charles H. Bennett
(figura 16).

Fazendo a ressalva de apenas a Captura do bandido maragato pelo monge Pedro de Zaldivia de Goya pode ser
considerada um romance, ou seja, uma narrativa em que a princípio nem o narrador ou os personagens sabem o que
acontecerá, enquanto as outras são narrativas mitológicas, ou seja, onde os fatos já aconteceram e portanto não
passíveis de mudança,

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Figura 15: Teto da Capela Sistina

Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Teto_da_Capela_Sistina#/media/File:CAPPELLA_SIS
TINA_Ceiling.jpg

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Figura 16: Como Hob e Nobb, voltando para casa da festa de Natal foram assaltados
(Londres, 1856), de Charles H. Bennett

Fonte: CAMPOS, Rogério de. Imageria, o nascimento das histórias em quadrinhos. São
Paulo: Veneta, 2015.

Todas elas comungam com a característica de serem narrativas com a sequência aristotélica
de começo, meio e fim, onde: “Assim também uma pessoa pratica muitas ações, que não compõem
nenhuma ação única.”. (Poética, 1451a 15). Sendo a narrativa aristotélica a tentativa de dar unidade
a ação, a torná-la uma única ação. Mas Eco nos diz que:

… a narrativa contemporânea tem-se orientado cada vez mais rumo a uma


dissolução do enredo (entendido como estabelecimento de nexos unívocos entre
aqueles eventos que resultam essenciais ao deslace final) para construir pseudo-
histórias baseadas na manifestação de fatos “estúpidos” e inessenciais… são os
fatos que acontecem a Leoplod Bloom, à Sra. Dalloway, às personagens de Robbe-
Grillet…. A natureza desse discurso… é o que podemos definir como “abertura” de
uma obra narrativa: na recusa do enredo realiza-se o reconhecimento do fato que o
mundo é um nó de possibilidades e de que a obra de arte deve reproduzir essa
fisionomia.

Ora, enquanto o romance e o teatro (Ionesco, Beckett, Adamov…) enveredaram


decididamente por esse caminho, outra arte fundamentada no enredo, o cinema,
parecia preferir disso abster-se. Abstenção motivada por numerosos fatores, não
sendo seu destino social o menos importante deles, mesmo porque o cinema,
enquanto as outras se enfurnavam no laboratório da experiência sobre estruturas
abertas, era no fundo obrigado a manter relações com o grande público e a fornecer
aquela contribuição de dramaturgia tradicional que constitui uma exigência
profunda e razoável de nossa sociedade e cultura… (ECO, 2008, P. 192-3)

Eco lembra que as poéticas da abertura não seriam as únicas possíveis em nossa
sociedade e cita Stagecoach (“No tempo das diligências”) de John Ford como exemplo de altíssimo
nível de um filme “aristotélico”. Após ele cita L’Aventura e La Notte de Antonioni como exemplos
de narrativas cinematográficas “abertas” e relaciona seu aparecimento à transmissão direta
televisional. Dessa forma poderíamos perguntar: as HQs como outra arte também fundamentada no
enredo não teriam se abstido por motivos similares? Sua relação com o grande público não as teria
obrigado a manter aquela dramaturgia tradicional? Acrescentando a estes fatos também os outros
que elencamos anteriormente: o Logocentrismo ocidental e a novidade técnica que o próprio cinema
representou. Eco diz que a transmissão direta da TV teria motivado os diretores à criarem narrativas
mais distanciadas do modelo aristotélico, por que fato similar não poderia ter ocorrido com as HQs
(e se começarmos a catalogar os enredos das HQs posteriores à TV provavelmente a resposta seria

48
afirmativa. Ao acaso pensamos apenas no underground norte-americano, em Moebius e Crepax),
em vez de, como preconizava McLuhan, elas entrariam em declínio?

Como exemplo podemos analisar uma sucessão de imagens de O cão andaluz, 1929, filme
de L. Buñel em colaboração com S. Dalí (figura 17). Podemos observar que a sequência nesse caso
torna-se uma fotonovela. “… o resultado da análise é claro: não há acréscimo nem redução de valor, mas a
passagem de uma a outra classe de valores.” (ARGAN, 1992, p. 646.)

Figura 17: O cão andaluz, 1929, filme de L. Buñel em colaboração com S. Dalí

Fonte: MAINERI, Flávio. O olho e a lua. In: PONGE, Robert. (Org.) O surrealismo. Porto Alegre:
Ed. da Universidade/UFRGS, 1991.

Entramos assim, na terceira definição de código que fala da eventual correspondência termo a
termo entre cada signo e um dado significado.

A montagem na HQ, assim como no cinema é determinada não por leis específicas, mas
pela vontade do artista de realizar a obra que lhe aprouver, incluindo o enredo. Pois que lei de

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montagem, ou de sintaxe uma HQ como a já citada Luna Toon possui? O que importa no final das
contas é a relação entre os signos e seu significado.

Gilles Deleuze, em seu Diferença e repetição, em uma nota de rodapé citando o Obra
aberta de Eco, diz:

Eco mostra que a obra de arte “clássica” é vista sob várias perspectivas e passível
de várias interpretações, mas que cada ponto de vista ou interpretação não
corresponde ainda uma obra autônoma, compreendida no caos de uma grande obra.
A característica da obra de arte “moderna” aparece como ausência de centro ou
convergência (cf. cap. I e IV) (Deleuze, 2006, p. 109)

Acreditamos, mais uma vez citando Deleuze e Guattari, que:

Não se trata, certamente, de outorgar a supremacia a tal ou qual arte em função de


uma hierarquia formal ou de critérios absolutos. O problema, mais modesto, seria o
de comparar as potências ou coeficientes de desterritorialização dos componentes
sonoros e dos componentes visuais. (DELEUZE; GUATTARI, p. 175, 2012) (no
nosso caso diríamos dos componentes de movimento e repouso)

Sendo a principal diferença o fato de em um haver movimento e no outro não haver. Pois
acreditamos como Cirne, que a principal diferença entre o cinema e as HQs seja que: “A … leitura
da revistinha ou do álbum pressupõe uma descontinuidade espacial que se faz temporal, ao
contrário da leitura de um filme: a sua temporalidade se faz espacial.” (CIRNE, 2004). Para
demonstrar essa afirmação usaremos como exemplo quatro HQs que foram transformadas em
filmes na década de 2000: Sin Citty e 300 de Esparta de Frank Miller e V de Vingança, Watchmen e
Do Inferno de Alan Moore e outros. No caso das de Frank Miller as adaptações foram bem-feitas
sem prejuízo na qualidade original, houve apenas passagem de uma a outra classe de valores, nas de
Alan Moore infelizmente as adaptações não respeitaram os originais e na passagem de uma para
outra classe de valores houve um decréscimo na qualidade, não de um meio para o outro, mas de
uma leitura do original que a nosso ver foi deturpado. Para mais informações sobre essas adaptações
sugerimos as críticas a estes filmes na revista eletrônica Cinética. Em outras palavras, um sistema
de signos não é apenas um sistema de significantes mas também um sistema de significados. (ECO,
2011, p. 366)

Com relação ao conceito de continnum virtual que Eco lança, gostaríamos de citar Levy,
que em O que é virtual? diz:

… o virtual não se opõem ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível,


estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de
tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um

50
objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a
atualização. (LÉVY, 1996, p. 16).

Para finalizar, acrescentaríamos que os balões e as onomatopeias também podem ser


“montados” na página.

4.6. “Movimentos de câmera e da objetiva”

No cinema os movimentos de câmera são:

A panorâmica (PAN): é o movimento em que a câmera gira ao redor de um eixo imaginário,


sem deslocar-se, mostrando, por exemplo, uma paisagem ou cenário.

O travelling: é o movimento em que a câmera se desloca em qualquer direção. Em inglês


travel quer dizer viajar.

O movimentos da objetiva é o ZOOM. Quando o movimento de zoom sai de um


enquadramento aberto para outro mais fechado, tem-se ZOOM-IN. Já o movimento contrário do
ângulo mais fechado para o enquadramento mais aberto é o ZOOM-OUT.

Como dissemos não há movimento nas HQs, sendo estas essencialmente uma arte de
imagens em repouso. Logo não há “movimentos de câmera e de objetiva”, pelo simples fato de não
haver movimento, nem câmera, nem objetiva. Pois ao apoiarmos a afirmação de Cirne queríamos
dizer que as HQs são uma arte espacial de imagens em repouso enquanto o cinema é uma arte
temporal de imagens em movimento. O “movimento de câmera e de objetiva” nas HQs se dá como
Umberto Eco diz: como um continuum virtual; e diagramaticamente como solução gráfica no
espaço quadrinístico.

51
4.7. Diagrama

di:a.gra.ma sm. 1. Representação gráfica de um fenômeno. 2. Bosquejo.

di:a.gra.mar v.t.d. 1. Edit. Determinar a disposição de (os espaços a serem ocupados pelo
texto, ilustração, etc., de livro, jornal, etc.) 2. Dispor, de acordo com estrutura predeterminada, o
que vai ser impresso. [C.: 1] di:a.gra.ma.ção sf.

Acreditamos ter descoberto um elemento novo na linguagem das HQs. Ou melhor estamos
dando uma definição nova e/ou uma nova metologia para um elemento que na Europa, notadamente
na França, alguns teóricos usam para pensar as HQs como colocação espacial de seus elementos na
página. Um dos principais é Thierry Groensteen. A partir de um artigo publicado em Ler BD, blog
de crítica de Quadrinhos, sobre o livro de outro teórico, Renaud Chavane, Composition de La bande
dessinée e entrevista publicada em Internacional Journal of Comic Art, Groensteen procura
responder a incorreções na discussão havida. No artigo Resposta de Thierry Groensteen a Renaud
Chavane, Groensteen (2012) diz:

Para começar, permito-me apontar o quão surpreendente é que Renaud Chavanne,


no seu livro, jamais faça referência aos conceitos propostos pelos seus
predecessores que já haviam estudado a questão da ocupação do espaço da página,
em particular Benoît Peeters e eu mesmo. (grifo nosso)
Já havia escrito em Bande dessinée et narration (2011) que achava lamentável que
Chavanne tivesse escolhido o termo ‘composição’ para designar aquilo que é
usualmente chamado em francês de mise en page [lit. “construção da página”].
Essa escolha lexical leva, com efeito, ao inconveniente de tornar essa palavra,
composição, indisponível para designar a disposição de motivos no interior da
imagem, a oposição de massas, a organização de linhas de força, etc., que é o seu
emprego usual.
Na entrevista com Pedro Moura, Chavanne dá a impressão de acreditar que
“composição” é o equivalente daquilo que eu havia chamado de “espácio-topia”
[spatio-topie], e que a “mise en page” é, nos meus escritos, a transcrição concreta,
para cada prancha, das escolhas que revelam da espácio-topia. Essa apresentação,
porém, não é de todo exacta. Para começo, a espácio-topia não é, nos meus escritos,
um conceito operacional. É tão-simplesmente uma palavra composta, uma
categoria abstracta que se propõe num momento preciso, para ter em conta em
conjunto duas dimensões que são de diferente natureza: aquela do espaço
(caracterizada por um formato e uma superfície) e aquela de um lugar (que designa
uma colocação precisa na página e no livro). Como tentei demonstrar que essas
duas dimensões eram complementares, precisava de um termo que permitisse frisar
essa articulação. Daí, espácio-topia. Mas para tudo aquilo que revela da
organização da página (a que Chavanne chama de composição), o meu conceito é

52
realmente, desde o início, o da mise en page, o qual entra num paradigma coerente
com os outros dois conceitos que são a découpage [o “corte”] e a tressage [o
“entraçamento”].
Eu falo do sistema espácio-tópico quando examino, uma a uma, as unidades
espaciais da linguagem da banda desenhada: a vinheta, o balão, a página, porque
com efeito estas unidades, quando juntas, fazem um sistema.
Em suma, na sua apresentação das minhas propostas teóricas, Chavanne procura
introduzir confusão onde ela não existe.

A nosso ver aquilo que Thierry Groensteen chama de mise en page poderia ser vertido para
outra linguagem e ser chamado de diagrama. O conceito de diagrama é caro a Deleuze e Guattari. O
conceito de diagrama é desenvolvido por Deleuze e Guattari no Platô 5: 587 a. C. - 70 d. C. - Sobre
Alguns Regimes de Signos, do vol. 2 de Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Eles nos dizem
que o diagrama:

É a desterritorialização absoluta, positiva, da máquina abstrata. É nesse sentido que


os diagramas devem ser distinguidos dos índices, que são signos territoriais, mas
igualmente dos ícones, que são de reterritorialização, e dos símbolos, que são de
desterritorialização relativa ou negativa. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 100).

E em nota de rodapé Deleuze e Guattari nos explicam melhor:

A distinção dos índices, ícones e símbolos vem de Peirce, cf. Ecrits sur le ligne, Ed.
Du Seuil. Mas ele os distingue pelas relações entre significante e significado
(contigüidade para o índice, similitude para o ícone, regra convencional para o
símbolo); o que o leva a fazer do “diagrama” um caso especial de ícone (ícone de
relação). Peirce é verdadeiramente o inventor da semiótica. É por isso que podemos
retomar seus termos, mesmo mudando sua acepção. Por um lado, índices, ícones e
símbolos nos parecem se distinguir pelas relações territorialidade-
desterritorialização, e não pelas relações significante-significado. Por outro lado, o
diagrama nos parece conseqüentemente ter um papel distinto, irredutível ao ícone e
ao símbolo. Sobre as distinções fundamentais de Peirce e o estatuto complexo do
diagrama, reportaremos à análise de Jakobson, “A la recherche de 1'essence du
langage”, em Problèmes du langage, Gallimard, col. Diogène. (Idem).

Vemos que o estudo dos diagramas remonta à Peirce. Este diz deles:

277. Os hipoícones, grosso modo, podem ser divididos de acordo com o modo de
Primeiridade de que participem. … os que representam as relações, principalmente
as diádicas, ou as que são assim consideradas, das partes de uma coisa através de
relações análogas em suas próprias partes, são diagramas … também o todo o
diagrama, ainda que não haja semelhança sensível alguma entre ele e seu objeto,
mas apenas uma analogia entre as relações das partes de cada um. (PEIRCE, 1990,
p. 64 e 65).

53
Dito de outro: modo nenhum quadrinho vale por si ou em si, ele só vale nas relações que
estabelece com os outros quadrinhos da história.
Anos depois o linguista, e consequentemente estruturalista, Roman Jakobson, como citado
por Deleuze e Guattari, em seu ensaio À procura da essência da linguagem, retoma a tese de Peirce
e diz:
A correspondência que existe quanto à ordem entre significante e significado
encontra o lugar que lhe cabe no quadro das “variedades fundamentais da semiosis
possível” esboçada por Peirce. Este distinguia entre os ícones duas subclasses
diferentes: as imagens e os diagramas. Na imagem, o significante representa as
“qualidades simples” do significado, enquanto que no diagrama a semelhança entre
significante e significado “concerne apenas às relações entre suas partes”. Peirce
definia um diagrama como “um representamen que é, de maneira predominante,
um ícone de relação, que convenções ajudam a desempenhar esse papel”. Um
exemplo deste gênero de “ícone de relações inteligíveis” é dado por um par de
retângulos de tamanhos diferentes, que ilustram uma comparação quantitativa entre
a produção de aço dos Estados Unidos e da União Soviética. As relações no seio do
significante correspondem às relações no seio do significado. Num diagrama típico
como as curvas estatísticas, o significante apresenta com o significado uma
analogia icônica no que concerne às relações entre as partes. Se, num diagrama
cronológico, a taxa de crescimento de uma população é representada por uma linha
pontilhada contínua, estas são, na linguagem de Peirce, traços “simbólicos”
(Symbolide features). A teoria dos diagramas ocupa um lugar importante na
pesquisa semiótica de Peirce; este lhe reconhece méritos consideráveis, devido ao
fato de que eles são “verídicamente icônicos, naturalmente análogos à coisa
representada”. O exame crítico de diferentes conjuntos de diagramas o conduz ao
reconhecimento de que “toda equação algébrica é um ícone, na medida em que
torna perceptíveis, por meio de signos algébricos (os quais não são, eles próprios
ícones), as relações existentes entre as quantidades visadas”. Toda fórmula
algébrica aparece como um ícone, e “aquilo que a torna tal são as regras de
comutação, de associação e de distribuição de símbolos”. É assim que “a Álgebra
não é outra coisa senão uma espécie de símbolo”. Peirce via nitidamente que, “por
exemplo, para que uma frase possa ser compreendida, é mister que a colocação das
palavras no seio dela tenha a função de ícone”. (JAKOBSON, s.d. p. 105-6.)

Adiante, Jakobson, explica mais detalhadamente:

1. O estudo dos diagramas encontrou a oportunidade de um novo


desenvolvimento na teoria moderna dos gráficos (grafes). Lendo o interessante
trabalho de F. Harary, R. Z. Norman e D. Cartwright, Structural models (1965), que
descreve de maneira profunda os gráficos dirigidos de dimensões múltiplas, o
linguista se impressiona por suas analogias manifestas com os esquemas
gramaticais. A composição isomórfica do significante e do significado mostra,
num e outro domínio semiológico, dispositivos inteiramente similares, que
facilitam uma transposição exata das estruturas gramaticais, em particular
sintáticas, para gráficos. Propriedades linguísticas como a conexão essencial
das entidades linguísticas entre si e com os limites inicial e final da sequência,
a vizinhança imediata e a distância, o caráter central e o caráter periférico, as
relações simétricas e assimétricas e a supressão elíptica de uma parte de
componentes, encontram equivalentes muito exatos na constituição dos

54
gráficos. A tradução literal de um sistema sintático inteiro em um conjunto de
gráficos nos permite destacar as formas diagramáticas, icônicas, dos traços
estritamente convencionais, simbólicos, de tal sistema.

Figura 18: Histograma


Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A1fico#Histograma

Não há motivo para não associar a tese de Jakobson sobre as relações entre o
diagrama e a gramática com os Quadrinhos. Cremos que o conceito de diagrama, assim como os
aparentados, como o de layout, pode ser aplicado a maneira como os planos são agenciados na
página e no conjunto de páginas que forma a história.
Mais adiante:

O capítulo final dos Amours enfantines de Jules Romains se intitula Rumeur de la


rue Réamur. O próprio nome da rua, diz-nos o autor, “assemelha-se a um canto de
rodas e de muralhas” e evoca diversos outros ruídos da cidade: “trepidação”,
“vibração”, “zumbido”. Estes motivos, estreitamente unidos ao tema do fluxo e
refluxo que é a base do livro, encarnam-se na forma sonora rue Réamur. No
número e fonemas consonânticos deste nome, encontram-se somente soantes; a
sequência consiste em quatro soantes (S) e quatro vogais (V): SVSV-VSVS,
simetria em espelho, com o grupo ru no começo e sua forma inversa ur no fim. A
sílaba inicial e a sílaba final do nome são três vezes refletidas em eco pela
vizinhança verbal: rue Réamur, rumeur, roues… murailles, trépidation d’
immeubles.

O hábil entrelaçamento dos traços idênticos e dos traços contrastantes neste “canto
de rodas e de muralhas”, sugerido por um trivial nome de rua, responde de
maneira concludente à palavra de ordem de Alexandre Pope: “O som deve fazer
eco ao sentido”.

O que podemos concluir dessas afirmações? O seguinte: que a partir da leitura de um


diagrama podemos descobrir a sintaxe deste. Pois o significado de um diagrama depende das

55
relações entre suas partes. Sua sintaxe. Veja bem, estamos falando apenas de sintaxe e não “leis da
sintaxe”. Ou seja, a partir da relação entre os vários quadrinhos (imagens) pode-se estabelecer, na
página e entre as páginas, na obra toda, uma relação sintática. Uma relação dos quadrinhos entre si
na página e das páginas entre si na obra. Como se os quadrinhos fossem palavras em uma frase na
página e esta fosse a frase tendo estas uma relação lógica entre si que originaria o discurso da obra.
Não nos esqueceremos que, com esse conceito em mente, no ensaio Os quadrinhos e comunicação
de massa, Haron Cohen e Laonte Klawa, discorrem sobre a relação entre os quadrinhos e a página
dos jornais (ambos arquitetos, como Crepax e se minha tese estiver correta, não por coincidência).
Nesse ensaio eles dizem: “O exame de uma página de jornal é elucidativo. Pequenos blocos de
textos organizados sobre a folha fornecem informações autônomas e independentes entre si.”
(COHEN; KLAWA, IN: MOYA, 1977, p. 105).

Claro que nos quadrinhos as informações não são autônomas e independentes, ao contrário,
mas a ideia, ou melhor, o conceito de blocos de textos organizados sobre a folha permanece. Mesmo
que no nosso caso a informação e os blocos de texto sejam os quadrinhos.

Sem esquecer, é claro, o saudoso Moacy Cirne que em Para Ler os Quadrinhos: da
narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada nos apresentou o conceito de unidades
significantes e blocos significacionais. No final do capítulo “O primeiro plano e as dimensões da
tela e do quadro”, Cirne nos diz:
A função significante do primeiro plano (e os demais planos, inclusive o plano-
sequência) no filme é determinada pela estrutura sintagmática de sua narrativa; nos
quadrinhos, esta função significante do primeiro plano (ou de outro plano qualquer)
é determinada pelos mecanismos comunicacionais da página como um todo
articulado. (CIRNE, 1977, p. 58)

Assim como da história toda acrescentaríamos nós. No próximo capítulo, “Unidades


significantes e blocos significacionais”, onde ele realmente define o conceito, Cirne fala:

Precisemos, agora, a instalação do bloco. Trata-se de uma área da página


constituída em um espaço mais ou menos compacto da narrativa mediante o
comportamento posicional dos quadros. Ou seja, uma área definida no espaço de
sua extensibilidade, cujos limites gráficos indicam o papel da leitura. O bloco é
intrínseco às propriedades materiais da página e nela se completa. (CIRNE, 1977,
p. 60-1)

Cirne chegava dessa forma próximo ao conceito tanto de diagrama como de mise en page.
Ele inclusive em A explosão criativa dos quadrinhos cita a diagramação da página do Tarzan de
Hogarth. (CIRNE, s.d., p. 52)
56
Gostaríamos apenas de acrescentar que tudo o que foi dito sobre os quadros e
consequentemente sobre os planos também pode ser aplicado aos balões. Em determinadas
situações os balões e as onomatopeias adquirem características diagramáticas.

57
5. Releitura de “Steve Canyon” II – Análise das mensagens

Temos como exemplos HQs que acreditamos, entre outras, serem capazes de discursos
estéticos elaborados. As HQs de Robert Crumb e sua esposa Aline Kominky-Crumb. Valentina de
Guido Crepax. V de Vingança de Alan Moore e David Lloyd, Watchmen do mesmo Alan Moore e
Dave Gibbons, Do Inferno, mais uma vez de Alan Moore, dessa vez em parceria com Eddie
Campbell. Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo de Chris Ware. Chiclete com Banana
de Angeli, Laerte e Glauco. Overman, de Laerte. Cachalote de Daniel Galera e Rafael Coutinho. A
estas contraporemos Crise nas Infinitas Terras de Marv Wolf e George Peréz, clássica HQ que
remodelou a continuidade do universo DC. Também analisaremos As Aventuras de Nho-Quim de
Ângelo Agostini, como exemplo de uma HQ anterior a criação do cinema e da narrativa de
vanguarda moderna.

Ângelo Agostini é importante não somente para os quadrinhos brasileiros mas também
para a própria história da arte em nosso país, pois já sua publicação a “Revista Ilustrada” (figura 19)
criticava o academicismo na arte brasileira, abrindo assim caminho para o Modernismo. Em As
Aventuras de Nho-Quim (figura 20) Agostini conta as desventuras do personagem-título que sai do
interior e vai para a corte. Pelo período em que foi realizada podemos inseri-la no movimento maior
da literatura e das artes em geral conhecido como Romantismo, no entanto cremos que como outras
obras literárias (Memórias de um Sargento de Milícia), pode ser considerada uma percussora do
Realismo/Naturalismo. Mesmo que nas artes brasileiras, estes movimentos não tenham ganho força
em decorrência do forte predomínio do academicismo. Talvez Nho-Quim como personagem não
tenha a força de um Brás Cuba de Machado de Assis ou dos personagens de um romance como “O
Cortiço” de Aluízio de Azevedo, no entanto a sátira, bem machadiano está presente. O desenho de
Agostini é realista/naturalista. Não há balões nem onomatopeias, pois estes ainda não haviam sido
inventados, no caso dos balões “reinventados”, nem conceitos visuais, pois provavelmente também
ainda não haviam sido inseridos no contexto das HQs. Os planos, no entanto são equivalentes a
todos os cinematográficos (lembrando que essa história foi realizada em 1869, vinte anos antes da
invenção do cinema), inclusive há um quadro totalmente negro no momento em que o trem entra
em um túnel. A montagem é linear, aristotélica, bem aos moldes das narrativas de 1869. Não há
“movimentos de câmera” pelo mesmo motivo. Nem diagramação, pois de acordo com nossas

58
pesquisas, esta era extremamente rara até meados do séc. XX. Predominando a simples tira ou
encadeamento de quadrinhos.

Figura 19: Revista Ilustrada

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Revista_Illustrada

59
Figura 20: As Aventuras de Nho-Quin (Rio de Janeiro, 1869; Primeiro capítulo), Ângelo Agostini

Fonte: CAMPOS, Rogério de. Imageria, o nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo:
Veneta, 2015.

Robert Crumb tem uma vasta obra que combina autobiografia com personagens ficcionais.
Suas HQs sempre tem algum conteúdo sexual, assim como as de sua esposa Aline Kominky-Crumb,
que centra sua poética mais em autobiografia. Consideramos os “Crumbs” como pertencentes à
estética típica dos anos 60/70 denominada nas artes visuais como Conceitualismo, mas que em
outras artes denominas-se preferencialmente como underground. O underground também possui
uma poética que se assemelha à arte pobre. Por sua preferência por aspectos considerados
repugnantes da existência humana. No Brasil essa estética ficou conhecida como “arte marginal” e
um dos seus principais representantes é Gus.

De Robert Crumb destacaremos:

60
“Cuidado, meninas!! Os mãos bobas atacam!” (figuras 21-22). Analisando a página inicial
temos o traço de Crumb que apesar de caricato é extremamente belo e rigoroso esteticamente. Os
balões são em formato quadrados e as caixas de dialogo quadrados com curvas convexas, os traços
são feitos como se fossem à mão, sem o auxílio de réguas, o que confere uma expressividade ao
trabalho. Há três enquadramentos, o primeiro uma cidade caricatural ao fundo de uma profusão de
Snords que avançam. Trata-se de um Plano Médio (PM), depois há três Planos Detalhes (PD) com
os Snords apalpando as personagens femininas. A montagem é linear e previsível, aparentemente
confirmando a análise de Umberto Eco em Apocalipticos e integrados. Crumb não usa movimentos
de câmeras na narrativa. A diagramação tem em seu limite inicial um grande quadro que ocupa mais
de metade da página seguido de três quadros circulares, sendo o central em altura pouco superior
aos demais. A relação significante se dá entre essa diagramação e seu significado, ou seja, a
narrativa. O primeiro quadro por seu tamanho cria um espanto no leitor, enquanto os outros três por
sua foram circular e disposição criam uma sensação de uma dinamismo.

Figuras 21-22: Cuidado, meninas!! Os mãos bobas atacam!!, Robert Crumb

Fonte: CRUMB. Robert. A mente suja de Robert Crumb. São Paulo: Veneta, 2013.

61
“Horny Harriet Hotpants” (figuras 23-24). A análise da história é similar à da anterior,
com exceção da diagramação. Nesta Crumb usa três linhas de quadros por página, com exceção da
primeira página, na qual ele funde as duas primeiras linhas. Por exemplo na prancha quatro (p. 101)
na primeira linha temos dois quadros com o primeiro sendo um pouco menor que o seguinte, na
segunda os dois quadros têm tamanhos equivalentes. E na última os três quadros têm tamanhos
equivalentes também. Achamos que essa disposição espacial reflete o andamento da narrativa, onde
os Snords conversam Horny Hotpants, a levam para fora do consultório e finalmente entram em luta
física após uma discussão.

Figuras 23-24: Horny Harriet Hotpants, Robert Crumb

Fonte: CRUMB. Robert. A mente suja de Robert Crumb. São Paulo: Veneta, 2013.

Em “E agora, uma palavrinha pra vocês, feministas” (figura 25) retrata si mesmo olhando
para fora do quadro enquanto discursa, ou seja, quebrando a “quarta” parede. Alternando planos
abertos e fechados. A diagramação inicia e termina com a repetição um quadro de mesmo tamanho
dezesseis vezes, quatro na horizontal e quatro na vertical. Dando uma característica “minimalista”
ao discurso.

62
Figura 25: E agora, uma palavrinha pra vocês, feministas; Robert Crumb

Fonte: CRUMB. Robert. Viva a revolução. São Paulo: Veneta, 2015.

“Meus problemas com as mulheres”, (figura 26) a montagem se dá aos saltos, tendo o
leitor que preencher aquilo que é omitido. A diagramação também é minimalista com dois quadros
horizontais e três verticais.

63
Figura 26: Meus Problemas com as Mulheres, Robert Crumb

Fonte: CRUMB, Robert. Meus problemas com as mulheres. São Paulo: Editora Conrad do
Brasil, 2010.

De Aline Kominsky-Crumb, destacaremos:

“A jovem Bunch em uma desventura nada romântica” (figura 27) onde podemos perceber
que seu traço não tem o refinamento de Robert Crumb, mesmo assim tem seu valor. Em uma
história posterior ao lado de Crumb ela define seu traço como “primitivo”. Aline usa balões
circulares clássicos e recordatórios para voz “em off”. Ela utiliza seis quadros de tamanhos iguais,
sendo dois horizontais e três verticais, criando uma estética minimalista para a diagramação.

64
Figura 27: A jovem Bunch em uma desventura nada romântica, Aline Kominsky-Crumb

Fonte: KOMINSKY-CRUMB, Aline. Essa Bunch é um amor! São Paulo: Conrad Editora do Brasil,
2010.

Valentina (figura 28) de Guido Crepax é uma série protagonizada por uma personagem
feminina que envolvia-se em várias histórias com conotação sexual. Refletindo a era da liberação
sexual ocorrida na década de 60. Um dos diferenciais da série, que era editada por Umberto Eco na
revista Linus, era que os personagens envelheciam a medida que o tempo passava. Ao contrário do
que acontece com a maioria das séries em quadrinhos. Poderíamos a nosso ver colocar Valentina ao
lado do movimento do Novo Realismo europeu, movimento análogo à Pop Art Americana. As
histórias de Valentina mesclavam elementos da cultura de massa com elementos da alta cultura. O
desenho de Crepax, apesar de correto, não pode ser definido como clássico. E sim como um
clássico-moderno. Apesar de correto nota-se um modernismo nele. A priori não existe na arte
moderna mais que três linguagens de desenho: expressionismo, cubismo e futurismo. As outras são
o dadaísmo e o surrealismo que não se centraram em novas formas de desenho e o abstracionismo

65
que dispensa a figuração. Assim o desenho nunca foge de um padrão clássico ou expressionista. Por
isso classificamos seu desenho dessa forma. O balão de Crepax muda de acordo com sua evolução
gráfica, mas ele chega ao ponto de torna-se uma fumaça sinuosa que poderia denotar certo
esgotamento. Crepax utiliza onomatopeias de forma parcimoniosa, sem grandes invenções nesse
sentido. Não há uso de muitos conceitos visuais em sua obra. A montagem de Crepax é
extremamente sofistica, alternando vários planos em uma mesma página. Ele utiliza “panorâmicas”,
principalmente verticais, em “corte” intercalada com outros planos. Mas é na diagramação que
Crepax se destaca. Como a página analisada mostra, há uma complexidade na diagramação de
Crepax incrível. Vejamos: a página se inicia com um plano cortado pelo nome de Valentina, o que
pode significar que a história foi publicada em capítulos. Ao lado desse plano existem mais três,
sendo o primeiro maior que os dois seguintes. Depois temos uma sequência de seis planos na
mesma linha, com pouca variação de tamanhos entre eles sendo os dois menores uma
“panorâmicas” horizontal e na última linha três planos com pouca variação de tamanhos, com um
deles em “panorâmicas” vertical com o da linha anterior. Na página cria-se uma diagramação
extremamente rica que serve para articular esses planos como palavras em uma frase. Relacionadas
com desenvolvimento da narrativa.

66
Figura 28: Valentina, Guido Crepax

Fonte: CREPAX, Guido. Valentina no Metro. Porto Alegre: L&PM, 1991.

V de Vingança (figura 29) de Alan Moore e David Lloyd é uma reflexão sobre o
autoritarismo na década de 80. Uma “graphic novel” ou romance gráfico. Em uma Inglaterra que
sucumbiu ao fascismo após uma guerra nuclear. Também mescla elementos da alta cultura com
elementos de cultura de massa. Porém de acordo com estética dos países desenvolvidos da década.
Sem o humor característico da Pop Art nos anos 60, tendendo mais ao trágico. O desenho de David
Lloyd é realista, de um realismo clássico do séc. XIX. Mas combina com o clima trágico da história.
Além de dar um ar de realismo fantástico ao combinar elementos realistas com as ações quase
inverossímeis da narrativa. Revelando uma certa dose de ironia. Os balões seguem o modo clássico,
com exceção do personagem V, cujo balão realmente é “esfumaçado”, dando um ar de um
personagem de voz esgotada. Alan Moore não usa onomatopeias, forçando-nos a completar o som
ambiente. Nem conceitos visuais, pois isso provavelmente quebraria o clima “realista” da narrativa.

67
Na página destacada a montagem alterna planos dos diálogos dos personagens V e Evey, com os
mesmos descendo uma escada em espiral com uma panorâmica vertical. A diagramação também é
com três linhas de quadros. Nesse caso na primeira linha há dois quadros praticamente do mesmo
tamanho, na segunda há três sendo o central menor que os laterais e na terceira mais uma vez dois
quadros praticamente do mesmo tamanho. Essa diagramação reflete o dialogo entre as personagens.

Figura 29: V de Vingança, Alan Moore e David Lloyd


Fonte: MOORE, Alan; LLOYD, David. V de vingança. Barueri, SP: Panini Books, 2012.

Watchmen (figuras 30 à 32) é uma análise também um pouco trágica e amarga, mas com
sutil ironia, do mito moderno dos super-heróis. Com um certo “realismo mágico brutalista”. Assim
como V de Vingança, também mescla elementos de alta cultura e cultura de massas. Lida também
com o pânico de um uma guera nuclear nos anos 80. Trata-se de uma desconstrução, no sentido
literal referente à filosofia do filósofo Jaques Derrida, que consiste em mostrar aquilo que está
dissimulado em um texto. Desmontar, decompor os elementos de uma escrita, no caso os super-
68
heróis. “… não é destruí-lo, nem mostrar como foi construído, mas pôr a nu o não-dito por trás do
que foi dito, buscar o silenciado (reprimido) sob o que foi falado” (SANTOS dos, 2000, p. 71)
Watchmen pode se enquadrar no movimento Neo-Pop, surgido nos anos 80. O desenho de Dave
Gibbons também tende ao realismo. Acreditamos, mais uma vez, que com uma certa dose de ironia,
que combina com clima de realismo fantástico da narrativa, pois como representar ações fantásticas
de forma realista, sem uma certa dose de ironia? Os balões possuem recortes de ângulos retos, que
ao longo da narrativa percebemos se tratar de balões do tempo presente, pois os “flashbacks”
possuem balões mais arredondados, ou seja, mais clássicos. Na página em questão há um
recordatório que simula páginas arrancadas e ao mesmo tempo define uma voz “em off”. Alan
Moore não utiliza onomatopeias ou conceitos visuais em Watchmen. A montagem se funde com um
“movimento de câmera” (movimento virtual) em zoom-out. A diagramação consiste em uma
sequência de quadros de mesmo tamanho em três linhas horizontais e três verticais, sendo a última
linha fundida em um quadro só. Dando um certo minimalismo a diagramação. Toda a diagramação
da narrativa se baseia nesse conceito de nove quadros de mesmo tamanho e suas combinações.
Tratando-se de um “zoom-out” produze-se na página uma imagem gráfica de repetição em vários
espaços do “face smile” com uma gota de sangue no olho direito. Imagem esta já usada na capa do
original. O mesmo procedimento é feito na última página do capítulo, com outros personagens e
outra situação. Porem o zoom começa não ao nível do bueiro da rua, mas do alto de um prédio de
luxo em Nova Iorque. O “face smile” foi limpo e a gota de sangue retirada, mas sua imagem retorna
com um balão que por sua angulação refaz o signo da gota de sangue no boton.

69
Figuras 30, 31 e 32: Watchmen, Alan Moore e Dave Gibbons

Fonte: MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Ed. Abril, 1999. 12 vols.

70
Do Inferno (figura 33) é a análise e desconstrução dessa vez de um mito real. O assassino
Jack, o estripador, que no final do século XIX assassinou cinco prostitutas em Londres sem ser
capturado. A história não pretende ser uma reconstituição histórica dos crimes, mas uma análise dos
conceitos, ideias que estavam em voga na época e que podem ser assimilados aos assassinatos, uma
meta-ficção historiográfica. Lidando assim com a fronteira entre ficção e realidade. O desenho de
Eddie Campbell tende ao impressionismo, o que é perfeito para a história que se passa próximo ao
período onde este movimento nasceu. Os balões tendem ao clássico arredondado, mesmo assim é
sempre oportuno notar a fonte que o desenhista usa na história. Neste caso a fonte lembra letras
feitas à mão com maiúsculas e minúsculas. Também gostaríamos de destacar que a história se passa
em um período em que o uso de balões nas HQs ainda não estava consolidado. Assim como nas
demais obras de Alan Moore não há a utilização de onomatopeias ou conceitos visuais. Na página
analisada a montagem é eximia, mas não há grandes novidades em seus termos, assim como em
relação à diagramação, que segue o minimalismo de Watchmen de nove quadros de igual tamanho
em divididos em três linhas horizontais e três verticais, sendo o último uma fusão de três.

Figura 33: Do Inferno, Alan Moore; Eddie Campbell


71
Fonte: MOORE, Alan; CAMBPELL, Eddie. Do Inferno. São Paulo: Via Lettera, 2000-2001. 4 vols.

Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo (figura 34) de Chris Ware, foi um
marco nos anos 2000, equivalente à Watchmen nos anos 80. É a história de um homem de meia
idade, filho de mãe solteira e que nunca conheceu o pai. Tem um emprego sem perspectivas e seus
relacionamentos amorosos são reduzidos a zero. Até o dia em que recebe uma carta do pai pedindo
para que eles se encontrem. O desenho de Chris Ware é “malfeito”, quase infantil. No entanto, essa
simplificação condiz com seu estilo que busca emular essa comunicação pictográfica. Ele utiliza um
balão retangular, o que a nosso ver transmite uma certa frieza e mecanização das relações. Ware usa
onomatopeias com parcimônia assim como conceitos visuais, geralmente estes são usados nas
fantasias do personagem principal. A montagem na página analisada é mais linear, no entanto ela se
desdobra na narrativa. Chris usa poucos movimentos de câmera, geralmente apenas “panorâmicas”
verticais, à maneira de Crepax. No entanto, é na diagramação que ele se destaca. Sendo ela muito
smelhante à de Crepax, mas talvez um pouco mais complexa. Nesta página ele usa três quadros
horizontais de tamanhos iguais intercalados por quadros verticais em dois por conjunto. Na outra
linha há um quadro grande que preenche a página até a base, tendo de largura uma vez e meia a dos
quadros superiores e novamente a sequencia de quadros horizontais e verticais, dessa vez em duas
linhas. Na primeira o quadro maior é intercaldo com dois menores verticais e na última existem
quatro quadros pequenos entre os dois maiores.

72
Figura 34: Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo; Chris Ware
Fonte: http://www.blogclubedeleitores.com/2014/04/the-adventures-of-jimmy-corrigan.html

Chiclete com Banana de Angeli, Laerte e Glauco é um marco da geração 80 nas HQs
brasileiras. Vivendo o rescaldo da ditadura militar é exemplo do desbunde que aconteceu nas artes
brasileiras naquele período. Era uma revista com várias histórias de vários personagens dos três
artistas principais: Angeli, Laerte e Glauco.

De Chiclete com banana destacaremos “O sexo das bactérias” (figura 35), com a
personagem Mara Tara de Angeli. O desenho de Angeli é extremamente caricatural, sem
preocupações com correções realistas ou miméticas. Também ele utiliza um balão “clássico” ou seja,
arredondado. Usa onomatopeias básicas como: zap e splat. A montagem começa com um flash-back,
um momento posterior da narrativa é colocado no começo, ou seja, uma forma não linear de narrar.
Não há movimentos de câmera. A diagramação é composta de quatro linhas com números de
quadros variáveis em cada uma. Na página em questão porém temos três linhas, sendo a central o
título da história. Na primeira linha um quadro inteiro possui um quadrinho circular em sua parte
interna. Enquanto na terceira e última linha há dois quadrinhos de tamanhos semelhantes.

73
Figura 35: Mara Tara, Angeli

Fonte: ANGELIl. Mara Tara. Antologia Chiclete com Banana, São Paulo, n. 2, p. 5, jul. de 2007.

Também destacaremos a personagem “Rê Bordosa” (figura 36), também de Angeli. A


diagramação por se tratar de uma tira reduz-se a uma média de três quadrinhos de tamanhos
variados. Em alguns casos Angeli usa apenas um.

Figura 36: Rê Bordosa, Angeli

74
Fonte: ANGELI. Toda Rê Bordosa. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

Em especial de Laerte daremos destaque a Overman (figura 37), super-herói brasileiro que
satiriza todos os outros. Mesmo não tendo sido publicado na Chiclete com Banana, e sim no Jornal
Folha de São Paulo nos anos 90, faz parte da mesma estética do desbunde. O desenho de Laerte
também é extremamente caricatural, porém ao contrário do de Angeli possui maior preocupação em
retratar a realidade de forma mais precisa ou mimética. Não há muitas diferenças entre o uso dos
balões e das onomatopeias em um ou outro. Por se tratar de uma tira a montagem é mais linear. Sem
o uso de movimentos de câmera. Assim como em Rê Bordosa, a diagramação por se tratar de uma
tira reduz-se a no máximo quatro quadrinhos de tamanhos variados. Em alguns casos Laerte usa
apenas um.

Figura 37: Overman, Laerte

Fonte: LAERTE. Overman. São Paulo: Devir: Jacaranda, 2003.

75
Cachalote (figura 38) de Daniel Galera e Rafael Coutinho representa a virada que as HQs
conseguiram nos anos 2000. As HQs agora estão presentes em qualquer livraria, mesmo que seu
espaço seja reduzido. De certa forma é um reconhecimento e uma vitória para uma geração, a nossa,
que nunca aceitou a ideia que HQ era coisa de criança. Apesar da concorrência de “Graphic Novels”
de super-heróis, títulos com pretensões artísticas estão cada vez mais presentes nas prateleiras.
Sendo dessa forma um reflexo do ocorre com a própria literatura em que obras de qualidade
disputam público com obras mais comerciais. E igualmente no cinema. Escrita pelo renomado
escritor Daniel Galera e desenhada pelo filho de Laerte, Rafael Coutinho cremos que essa HQ,
assim como outras publicadas no Brasil nos últimos anos se nivelam com o melhor que foi
produzido nas artes, cinema, literatura, teatro e etc, nesse período no país. O desenho de Rafael
Coutinho é extremamente realista, porém não de um realismo exato, mais tendendo a um neo-
realismo expressionista. O balão também é clássico. Há pouco uso de conceitos visuais. Os quadros
são feitos sem auxílio de instrumentos. A montagem parece focar em elementos sem muita
importância na narrativa, banais. Sem movimentos de câmera. Nessa história em particular a
diagramação é composta de dois quadros horizontais e quatro verticais, criando uma estética
minimalista. Sendo que nesta página a primeira linha é composta da fusão de dois quadros.

Figura 38: Cachalote, Daniel Galera; Rafael Coutinho


76
Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/cachalote/

Crise nas Infinitas Terras (figura 39) de Marv Wolf e George Peréz, remodelou a
continuidade do universo DC. O desenho de Peréz é extremamente realista mas sem a ironia que
supomos haver em Watchmen. Os balões no mais são clássicos. E as onomatopeias são as
comumente utilizadas em histórias de super-heróis, geralmente se referindo a golpes de destruição
de objetos. HQs de super-heróis geralmente não usam conceitos visuais, pois isso quebraria o
“realismo”. A montagem apesar de ágil é linear, remetendo a ou influenciando os filmes de ação. No
entanto, a diagramação de Pérez é primorosa e parece refletir o clima de caos da narrativa. Na
página em questão inicia-se com quadros que justapõem sobre um maior. Essa justaposição se
alterna em quadros maiores e menores até culminar na sequência de quadros verticais de mesmo
tamanho que termina no close up do olho de Flash. A diagramação parece não manter um padrão
fixo.

Figura 39: Crise nas Infinitas Terras, Marv Wolf e George Pérez
77
Fonte: WOLF, Marv; PÉREZ, George. Crise nas Infinitas Terras. São Paulo: Panini Brasil LTDA,
2003.

78
6. O discurso estético nas Histórias em Quadrinhos

Em As Aventuras de Nho-Quim temos uma narrativa clássica, linear, aos moldes da


narrativa oitocentista. Note-se que assim como a literatura da época, Nho-Quim era publicado em
capítulos periódicos em um jornal, sendo a única diferença entre os romances o fato de ser contado
com imagens. Essa é provavelmente a origem das tiras e das histórias em quadrinhos publicadas em
jornais. As HQs foram publicadas neste formato até a invenção das revistas (ou comic books, em
inglês). E somente recentemente o formato “graphic novel”, ou seja a compilação de uma história
em um único livro foi adotado. Coisa que acontece na literatura há séculos. Tendo apenas o período
logo após a popularização do jornal que trouxe a narrativa seriada. Porem estas logo foram
adaptadas para a forma livro. Mais uma vez acreditamos que isso deve-se ao Logocentrismo e a
novidade técnica do cinema.

A narrativa dos Crumb é bem linear, porém como sempre satírica (ou ninfítica no caso de
Aline?), irônica, paródica, mas, adaptando aos quadrinhos, como o próprio Eco diz em Obra aberta,
a propósito do sistema tonal: “… Stravinsky, até certo ponto, e num determinado momento de sua
produção, aceita-o, mas da única forma possível, parodiando-o, pondo-o em dúvida no momento
que o glorifica.” (ECO, 2011, p. 250). Também podemos dizer, seguindo mais uma vez Eco, que as
histórias dos Crumbs são uma sátira precisa, não podem mais ser exorcizada e trabalham em
silêncio uma vez lidas. Ao mesmo tempo que não funciona sozinha, mas só adquire sabor na
sequência das histórias uma após a outra da repetição cambiante dos esquemas, apesar de em
Crumb existirem maiores diferenças e desenvolvimentos entre uma história e outra, de forma que
pode se dizer que a obra dos Crumb funciona como uma “obra em progresso” para usar um termo
das artes plásticas. E citando Deleuze:

Queríamos apenas indicar três exemplos, por mais diversos e disparatados que
sejam: a maneira pela qual todas as repetições coexistem na música moderna (já no
aprofundamento do leitmotiv no Wozzeck, de Berg) a maneira pela qual, em
pintura, a Pop-Art soube compelir a cópia, a cópia da cópia etc., até o ponto
extremo em que ela se reverte e se torna simulacro (têm-se, assim, as admiráveis
séries "serigênicas", de Warhol, nas quais todas as repetições, de hábito, de
memória e de morte encontram-se conjugadas) a maneira romanesca pela qual as
repetições brutas e mecânicas do hábito deixam-se extrair pequenas modificações,
que, por sua vez, animam repetições da memória para uma repetição mais
fundamental em que a vida e a morte estão em jogo, mesmo que venham a reagir

79
sobre o conjunto, nele introduzindo uma nova seleção, sendo que todas estas
repetições coexistem e, todavia, estão deslocadas umas em relação às outras (A
modificação, de Butor, ou então O ano passado em Mariembad, de Robbe-Grillet,
dão testemunho de técnicas particulares de repetição de que o cinema dispõe ou
que ele inventa).

Em “Cuidado, meninas!! Os mãos bobas atacam!” Crumb utiliza um personagem que


simboliza em sua iconografia pessoal o Id, ou melhor o inconsciente machista da América, Mister
Snord. É aquilo que poderíamos chamar de “short story graphic”, ou seja um conto gráfico, um
conto absurdo. Nela mulheres são bolinadas por profusões desse personagem, inclusive uma
encarnação negra, para no final termos a imagem de uma mulher correndo atrás desses Snords com
os dizeres em uma caixa de dialogo: “Façam a mesma coisa que eles, meninas!”. Poder-se-ia dizer
que a história é machista, mas a nosso ver não é isso que acontece. Ela pode ser imoral, ir contra a
moralidade habitual, o puritanismo anglo-saxão. Afinal há uma simetria de comportamentos entre
homens e mulheres dentro da história. Afinal porque as mulheres não poderiam fazer a mesma coisa
que os homens, não teriam o direito? O machismo recusa a ideia de igualdade, ou não hierarquia, de
direitos entre homens e mulheres. Crumb trabalha em suas histórias exatamente com aquilo que
Michel Foucault, em sua História da sexualidade I, A vontade de saber chama de sexualidades
desviantes, anormais, perversas. Relacionando o exame de consciência com o aparecimento das
tecnologias médicas do sexo. Repetindo o que diz Deleuze:

É A Vontade de Saber que mostrará, tomando a sexualidade enquanto caso


privilegiado: como podemos crer numa repressão operando na linguagem, se nos
atemos às palavras e às frases; mas não se extrairmos os enunciados dominantes, e
notadamente os procedimentos de confissão praticados na igreja, na escola, no
hospital, e que buscam a um só tempo a realidade do sexo e a verdade no sexo;
como a repressão e a ideologia não explicam nada, mas sempre supõem um
agenciamento ou “dispositivo” no qual elas operam e não o inverso. (DELEUZE,
2005, p. 38)

Como a história “Horny Harriet Hotpants” em que a personagem ninfomaníaca, após


várias aventuras sexuais acaba se “regenerando” e casando com Jesus Cristo! Antecipando de certa
forma o filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier. Igualmente em “E agora, uma palavrinha pra
vocês, feministas”, “Meus problemas com as mulheres”, e também a história de sua esposa Aline “A
jovem Bunch em uma desventura nada romântica”. Poderiamos dizer da obra de Robert e Aline que
eles trabalham no conceito de corpo-sem-órgãos (CSO) que Deleuze e Guattari retiraram de Antoni
Artaud e mais recuadamente ainda no de Nietzsche em “Assim falou Zaratustra” no capítulo
“Dos desprezadores do corpo” onde ele diz: “Eu não vou por vosso caminho, ó dpreciadores do
corpo! Não sois para mim uma ponte para o super-homem-” (NIEZSTCHE, 2015, p. 53)

80
A propósito de excessos que Crumb pode cometer em algumas histórias podemos dizer o
que em As três ecologias, Félix Guattari diz:

Que lugar dar, por exemplo, aos fantasmas de agressão, de assassinato, de violação,
de racismo no mundo da infância e da vida adulta regressiva? Ao invés de acionar
incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes
princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma,
que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias
de expressão. É obviamente legítimo que uma repressão se exerça com relação às
“passagens ao ato”! Mas antes disso, é necessário que se arranjem modos de
expressão adequados às fantasmagorias negativistas e destrutivas, de modo que
elas possam, como no tratamento da psicose, ab-reagir de maneira a recolar
Territórios existenciais que estão à deriva.

Sade e Céline esforçaram-se, com maior ou menor felicidade, por tornar quase
barrocos seus fantasmas negativos. Por essa razão, eles deveriam ser considerados
como autores-chave de uma ecologia mental. Na falta de uma tolerância e de uma
inventividade permanente para "imaginarizar" os diversos avatares da violência, a
sociedade corre o risco de fazê-los cristalizar-se no real. (GUATTARI, 1990, p. 42-
3)

Parafraseando Guattari: Crumb esforçou-se, com maior ou menor felicidade, por tornar quase
barrocos seus fantasmas negativos. Por essa razão, ele deveria ser considerados como autor-chave de uma
ecologia mental. Na falta de uma tolerância e de uma inventividade permanente para "imaginarizar" os
diversos avatares da violência, a sociedade corre o risco de fazê-los cristalizar-se no real.

Infelizmente o Brasil parece não ter percebido isso nesse ano de 2018, pois com a eleição
de Bolsonaro realiza-se o que Guattari diz de Le Pen:

Vê-se isso, no entanto, de modo muito mais inquietante sob a forma de um caolho
ao mesmo tempo repugnante e fascinante que, melhor que ninguém, sabe impor o
implícito racista e nazi de seu discurso no cenário da mídia, assim como no seio
das relações de forças políticas*. É preferível não tapar os olhos: a potência desse
tipo de personagem vem do fato de que ele consegue se fazer de intérprete de
montagens pulsionais que assombram, de fato, o conjunto do socius.

*N.R.: O autor refere-se provavelmente, a Jean Marie Le Pen, hoje deputado europeu e
líder do Front National, partido de extrema direita na França. Esse partido obteve 10% dos
votos nas eleições parciais de novembro de 1989 (ano da escrita deste texto).
(GUATTARI, 1990, p. 43)

Rogério de Campos em “Viva a revolução” (coletânea de trabalhos de Crumb, organizada


por ele) diz:

… afinal tudo o que Crumb fizera até então era uma subversão dos mais íntimos e
reconfortantes símbolos da nostalgia americana vendida pela publicidade da

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Madison Avenue. Crumb foi ao coração daquela mítica América, onde as avozinhas
assavam tortas de maçã, ao lado de coelhinhos sorridentes, enquanto Jim, o
negrinho ingênuo e servil, fazia mais uma trapalhada para riso de todos. Crumb
tomou tudo aquilo, alterou os balões, inverteu os sinais, revelou a violência e o
racismo, derrubou a fachada de normalidade que escondia as psicoses da sociedade
capitalista. Foi um exemplo poderoso do “détournement” de que tanto falavam os
situacionistas.

Podemos comparar o trabalho de Gus (figura 40), com as devidas mudanças, quadrinhista
“udigrud”, marginal brasileiro, com o de Crumb. De Gus, Moacy Cirne diz:
Determinadas obras (sejam discursos literários, sejam discursos cinematográficos,
sejam discursos musicais, etc.) podem ser pensadas como sólidas construções
semiotizantes que buscam uma progressiva meta estético-informacional. No Brasil,
em termos de quadrinhos, dois jovens paulistas têm mobilizado obras que
perseguem objetivos bem definidos: Luiz Gê (Luiz G. Martins) e Gus (Guido). No
caso desses dois, os objetivos definem-se sob a voltagem do político, o que nos faz
pensar – através de caminhos narracionais diferentes – nas obras de Henfil, Edgar
Vasques e Ziraldo." ....
“Já os quadrinhos de Gus envolvem um aparato temático que se centra numa única
possibilidade semantizável: a do pesadelo kafkiano. Um pesadelo kafkiano que,
mais do que em Kafka, se projeta socialmente. Uma única possibilidade, dissemos.
Mas uma possibilidade que contém as matrizes de sua abertura, visto que fundada e
repensada no social.” (Moacy Cirne, em “Vanguarda: Um Projeto Semiológico”, pp.
134, 137; ed. Vozes, 1975) (apud, GUS homepage [Huffes, Quadrinhos, Desenhos]
- LCS – USP, disponível em: http://www.lcs.poli.usp.br/~gstolfi/gus_hqs.html
Acesso em 19 de out de 2018.)

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Figura 40: Os Huffes, Gus
Fonte: http://www.lcs.poli.usp.br/~gstolfi/gus_hq_files/huffes_B4_1.jpg

Valentina de Guido Crepax, assim como os personagens de Crumb, ou Peanutz de Schulz,


também é uma série que só adquire total sentido em sua continuação, história a história. No entanto,
ao contrário de Peanutz e afim à Crumb, Valentina envelhece. Como o teórico Francesco Casetti
diz:

Conto após conto, Valentina redescobre a inevitável passagem do tempo e, com ela, o desvanecer
das coisas que pareciam nos pertencer para sempre. Essa descoberta porém, não desperta medo
em Valentina: o passar das horas e dos dias não deve ser exorcizado. (apud Silveira, in CREPAX,
2014, p. 3)

E Alvaro de Moya em As taradinhas dos Quadrinhos, artigo de Shazam!:

... é a figura mais tipica de filmes de Antonioni dentro dos fumetti, tendo até uma história
de Crepax, baseado num trecho de filmagem de Ingmar Bregman. As aventuras de
Neutron, em que a moça da alta sociedade de Milão, passa por um sanatório para
tratamento dos nervos, é testemunha de um crime cometido por uma cópia cibernética de
uma amiga sua, toda atividade sexual é sugerida, insinuada, tratada como fronteira entre o
fato e o sonho, a realidade e o onirismo, em passividade total. (MOYA, IN: MOYA, 1977,
p. 181-2)

Tudo mesclado com referências pops, principalmente dos clássicos dos quadrinhos. Tudo
isso quebra a expectativa linear e aristotélica da narrativa. Assim como na história analisada, onde
ao final descobrimos que na realidade Valentina era apenas um gibi lido por um passageiro do metro!
Num claro exemplo de metanarrativa e metalinguagem.

V de Vingança de Alan Moore e David Lloyd também poderia ser analisada como uma
obra que parodia a narrativa clássica, apesar de seu tom trágico, pois utiliza conceitos da alta e
baixa cultura em sua narrativa. Mas a principal argumento pela sua ironia seria que as ações do
personagem V, referência ao romance V do escritor norte-americano Thomas Pinchot, desencadeiam
o caos no regime autoritário da história. Caos evidenciado pela cena em que V monta um conjunto
de dominós que formam seu nome. Essa cena remete à então recente teoria do caos, mais
especificamente ao efeito borboleta. De acordo com a Wikipédia:

Efeito borboleta é um termo que se refere à dependência sensível às condições


iniciais dentro da teoria do caos. Este efeito foi analisado pela primeira vez em
1963 por Edward Lorenz. Segundo a cultura popular, a teoria apresentada, o bater
de asas de uma simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e,
assim, talvez provocar um tufão do outro lado do mundo.

83
Também há nessa história referência a algo que poderíamos chamar de CSO como nessa
passagem (figura 41):

Figura 41: V de Vingança, Alan Moore e David Lloyd


Fonte: MOORE, Alan; LLOYD, David. V de vingança. Barueri, SP: Panini Books, 2012.

Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons em termos narrativos é uma pérola pois sua
narrativa ao usar o conceito de fractal consegue ser linear e alinear ao mesmo tempo. Assim como V,
também usa conceitos de alta e baixa cultura em sua narrativa. Desconstruindo o conceito dos
super-heróis, essa mitologia moderna. A narrativa se estrutura como um imenso fractal. Mesmo
sendo linear, de começo, meio e fim, a narrativa alterna a principal, a saber a investigação do
assassinato de um dos super-heróis, ou seja, um pastiche do romance policial, com biografias ou
capítulos centrados nos personagens principais. No entanto, no meio da narrativa, nos capítulos seis
e sete, a alternância com a narrativa dos personagens se altera para a narrativa sobre dois

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personagens consecutivamente e voltando a alternância. Criando uma narrativa em simetria, ou seja,
usando o conceito de simetria/assimetria presente nos fractais. Lidando também dessa maneira com
os conceitos da teoria do caos. Sua estética se assemelha com trabalho do artista Haim Steinbach.

Acrescente-se que o final da narrativa é em aberto, reproduzindo o dialogo de dois


personagens: Dr. Manhatan e Ozymandias.

“Ozymandias: - Eu agi certo, não? Deu certo no fim.

Dr. Manhatan: No fim? Nada chega ao fim Adrian, nada.”

Dentro da montagem, Watchmen, se revela como uma preciosidade, visto que uma
imagem vista, por exemplo, no primeiro capítulo da narrativa, vai ter significados nos capítulos
subsequentes. Essa história demonstra aquilo que Klawa e Cohen conceituaram em Shazam! e
confiamos que seja o exemplo mais pujante daquilo que Eco chama de obra aberta já realizado nos
Quadrinhos. Poder-se-ia dizer dela o que Umberto Eco diz de Finnegans Wake:

Em Finnegans Wake (Watchmen) encontramos-nos enfim, verdadeiramente, na


presença de um cosmo einsteiniano, curvado sobre si mesmo – a palavra (imagem)
inicial une-se à palavra (imagem) final – e portanto acabado, mas por isso mesmo
ilimitado. Todo acontecimento, toda palavra (imagem), encontra-se numa relação
possível com todos os outros e é da escolha semântica efetuada em presença de um
termo que depende o modo de entender todos os demais. (ECO, 2008, p. 48)
(parênteses nossos).

Do Inferno, mais uma vez de Alan Moore, dessa vez em parceria com Eddie Campbell,
narra, como já foi dito, os crimes de Jack estripador. Alan Moore considera esse fato sintomático
para aquilo que seria o séc. XX. Basicamente os crimes seriam um ritual mágico para impedir a
ascensão do lado feminino do ser humano na modernidade, representado em parte, por exemplo,
pelos escritos de Marx entre outros fatos. Para Alan Moore a magia é uma forma diríamos de
semiótica primitiva. A narrativa não pretende ser uma versão real dos fatos como em um “romance”
(no caso HQ) histórico padrão. Mas uma ficção que por seu caráter ficcional poderia se não revelar
o que realmente ocorreu ao menos revelar as ideias, a ideologia, a subjetividade do período. Mais
uma vez, como em Watchmen e V de Vingança, é uma narrativa policial e como tal linear. Porem ao
contrário de outras narrativas do mesmo gênero, o criminoso não é capturado no final, como não foi
na realidade história. No entanto, além disto Moore em um apêndice em quadrinhos que funciona
como um docudrama da história nos diz que os crimes são como uma figura fractal, ou seja, sempre
haverão de surgir novas configurações para explicar os motivos do crime indefinidamente. Assim

85
aquilo que seria uma narrativa linear, mesmo que comprometendo a expectativa do leitor surge
como uma narrativa em que em sua profundidade existem conceitos não-lineares.

Crise nas Infinitas Terras de Marv Wolf e George Peréz narra a destruição apocalíptica do
chamado “multiverso DC”. Este multiverso consiste em uma pluralidade de mundos ficcionais que
se entrecruzam, lembrando a teoria dos mundos possíveis do filósofo Leibniz. A origem desse
universo remonta à década de 50, quando os super-heróis estavam em crise após a II Guerra. Criou-
se dessa feita, versões mais jovens dos heróis originais. Essa narrativa se enquadra naquilo que
Umberto Eco, em O mito do Superman, de Apocalípticos e integrados chama de narrativa sem
desenvolvimento. No fundo Crise nas Infinitas Terras foi uma tentativa de restaurar essa falta de
desenvolvimento nas narrativas de super-heróis que existiam desde a década de 40. Note-se que em
Watchmen o drama do personagem deus (equivalente do Super-Homem) Dr. Manhathan consiste em
não envelhecer a medida que todos os outros personagens envelhecem. Dando uma forma realista
ao conceito de Umberto Eco, mesmo que Alan Moore não tenha lido diretamente a obra de Eco.

Chiclete com Banana de Angeli, Laerte e Glauco é o equivalente nas HQs do desbunde que
houve nas artes brasileiras com o fim da ditadura. Como a arte do período era repleta de ironia,
sarcasmo e sátiras. Retiraremos dela duas personagens de Angeli que a nosso ver refletem a
liberalização da sexualidade da mulher no período. “O sexo das bactérias”, com a personagem
Mara Tara narra a história de uma cientista, de óculos (ecos do Super-Homem e da Mulher-
Maravilha) que após pesquisar a vida sexual de bactérias é contaminada pelo vírus “ninfus manicus”
e após uma tentativa de estupro acaba se tornando Mara Tara, uma super-mulher com roupas
fetichistas sadomasoquistas que inverte a relação e estupra os homens. Não acreditamos que isso
seja uma apologia ao estupro como alguns pensariam, mas aquilo que Reich em A irrupção da
moral sexual repressiva fala das tribos das ilhas Trobriands na Oceania onde de acordo com
Malinowski mulheres saiam em excursões para forçar os homens de outras tribos a terem relações
sexuais com elas (REICH, s.d., p. 132-4). Reich o explica dessa maneira:

Esse costume leva-nos a crer tratar-se de uma sobrevivência da auto-defesa das


mulheres na pré-história, as quais teriam aprendido ao longo dos tempos a
protegerem-se a si mesmas contra os invasores das tribos estrangeiras. A forma que
assume sua vingança é um reflexo do que lhes acontecia; pagavam ao homem na
mesma moeda: violando-o. (REICH, s.d., p. 134)

Mesmo que Angeli não tenha conscientemente lido ou se referido à Reich, esse trabalho se
encaixa perfeitamente nesse fato. Já em Rê Bordosa, Angeli parece ir ao polo oposto ao mostrar as
aventuras sexuais sempre culpadas da personagem. Mais uma vez não acreditamos que Angeli

86
queira condenar essa a atitude de sua personagem, mas mostrar como a nossa sociedade condena a
sexualidade feminina. Isto é demonstrado pelo final “trágico” da personagem. Nos dizeres de
Angeli: “as pessoas estão se casando pra fugir da vida mundana. … Eu não contra o casamento, …
mas o que eu não suporto é essa onda moralista, como se o casamento fosse a grande solução pra
tudo”. (ANGELI, 2012, p. 190)

Finalmente de Laerte temos Overman, sátira aos super-heróis americanos. Bem


antropofagicamente Laerte o localiza no Brasil, mostrando o ridículo da adaptação de um mito
tipicamente americano para a sociedade brasileira. Tendo o “super-herói” que conviver com a
realidade brasileira e não norte-americana.

Os três exemplos enquadram-se dentro da daquilo que Eco, dizia: são sátiras precisas, que
não podem mais ser exorcizadas e trabalham em silêncio uma vez lidas. Ao mesmo tempo que não
funcionam sozinhas, mas só adquirem sabor na sequência das histórias uma após a outra, em sua
repetição.

Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo de Chris Ware estrutura-se como uma
narrativa em que a história do personagem principal, seu reencontro com o pai ausente se alterna
com a narrativa de seu avô e sua complicada e dolorosa relação com seu pai, bisavô de Jimmy.
Chris brinca com a noção hieroglífica do desenho de HQ ao mostrar as semelhanças físicas entre os
três Corrigans: filho, pai e avô, com exceção do bisavô, muito diferente dos três. O bisavô de
Jimmy lutou na Guerra de Secessão, assim a narrativa ganha uma dimensão também histórica.

Finalmente temos Cachalote de Daniel Galera e Rafael Coutinho. Trata-se uma obra em
que seis histórias se alternam mas não se cruzam. Todas as histórias são interrompidas por cortes ao
final das páginas ímpares e a próxima história começa, sem anúncio. Dessa forma não temos certeza
de quando terminará uma e começará a outra. Como em outras narrativas de Daniel Galera, todas as
histórias têm finais abertos. Narrativas estas que transitam entre o realismo e o fantástico.

Pode-se dizer assim com relação ao enredo que a maioria das HQs apresentadas foge ao
modelo aristotélico, enquadrando-se nas narrativas modernas que a literatura, o cinema e teatro já
haviam realizado. Percebe-se que partindo de As Aventuras de Nho-Quim temos narrativas que se
libertam cada vez mais do modelo aristotélico. As narrativas dos Crumbs afastam-se dele pela
recorrência de motivos e personagens, mesmo que os personagens sejam os próprios autores e pela
ironia. V de Vingança afasta-se pelo conteúdo, mais que pela forma. Watchmen pela forma e

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conteúdo. Do Inferno por seu subtexto. Mara Tara, Rê Bordosa e Overman pela sua repetição e
ironia. Jimmy Corrigan, assim como também Cachalote pela sua forma e conteúdo. Nota-se
igualmente que aquelas que mais se afastam ou saem das limitações que Eco pensava ter encontrado
foram aquelas que mais se aproximam do formato “graphic novel”, ou seja do formato clássico do
livro (V de Vingança, Watchmen, Do Inferno e Jimmy Corrigan). Mesmo que originalmente elas
não tenham sido publicadas como livro, foram pensadas como narrativas fechadas. Dessa forma
essas são as que mais se aproximam da dialética entre obviedade e novidade na mensagem.
Enquanto as outras o fazem de outra forma. Com exceção de Crise nas Infinitas Terras onde a narrativa
é extremamente linear e aristotélica, ao narrar uma mitologia moderna, em uma geração do romance.

Podemos dizer, seguindo Umberto Eco a propósito de Peanuts, que estas HQs mostram
suas versões da condição humana.

88
7. A produção de subjetividade na sala de aula a partir das HQs

Relacionaremos a linguagem das HQs com conceitos que Félix Guattari expõem em seu
livro Micropolíticas: cartografias do desejo. Para ele o conceito de código diz respeito tanto a
sistemas semióticos quanto a fluxos sociais e materiais e o de sobrecodificação a uma codificação
de segundo grau. Corte é o corte de fluxo das “máquinas desejantes”. Interação semiótica e
diagramática:
opõem-se as redundâncias semiológicas. As interações diagramáticas fazem os
sistemas, de signos trabalharem diretamente com as realidades as quais elas se
referem, operando uma produção existencial de referente, enquanto que as
redundâncias semiológicas só representam, proporcionando “equivalentes” de tais
realidades, sem qualquer a1cance operatório. Exemplo: os algoritmos matemáticos,
os planos tecnológicos, as programações informáticas participam diretamente do
processo de engendramento de seu abjeto, enquanto que uma imagem publicitaria
não poderá dar de seu objeto senão numa representação intrínseca (mas, no caso,
produtora de subjetividade). (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 320)

Produção de subjetividade:
a subjetividade não está sendo encarada aqui, como coisa em si, essência imutável.
Existe esta ou aquela subjetividade, dependendo de um agenciamento de
enunciação produzi-la ou não. (Exemplo: o capitalismo moderno, através da mídia
e dos equipamentos coletivos, produz, em grande escala, um novo tipo de
subjetividade). Atrás da aparência da subjetividade individuada, convêm procurar
situar o que são os reais processos de subjetivação. (GUATTARI; ROLNIK,1996, p.
322)

Redundância:
termo forjado pelos te6ricos da comunicação e pelos linguistas. Chamamos de
redundância a capacidade inutilizada de um c6digo. G. Deleuze, em Difference et
Repetition (PDF, Paris 1969), distingue a “repetição vazia” da “repetição
complexa”, sendo que esta última não se deixa reduzir a uma repetição mecânica
ou material. Acrescento a essa distinção uma outra: a que existe entre uma
"redundância significante", privada de qualquer acesso à realidade, e uma
“redundância maquínica”, produtora de efeito no real. (GUATTARI; ROLNIK,
1996, p. 322)

Vimos que para Umberto Eco as HQs se caracterizavam por um sistema de signos cujo
código era redundante. Porém demonstramos utilizando o próprio Eco que as HQs podem utilizar
um código não redundante. Podendo até mesmo entrar na dialética entre obviedade e novidade da
mensagem. Dessa forma podemos dizer que o código da HQ é seu sistema semiótico. Podendo ser
ou não redundante, dependendo do caso, inclusive trabalhando com a redundância de forma criativa,
como em Peanuts, Crumb, etc, ou seja, produzindo efeito no real. Tendo uma interação semiótica
em sua diagramação. Assim acreditamos que elas podem produzir subjetividade, pois elas também
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são um agenciamento de enunciação. O conceito de produção de subjetividade, foi esboçado,
primeiramente por Foucault, em A História da Sexualidade II, O Uso dos Prazeres, onde ele explica
o seu novo projeto de buscar as formas de relação consigo que levam o individuo se constituir como
“sujeito”, através de quais “jogos de verdade”. A produção de subjetividade opõem-se a ideologia
pois:
A noção de ideologia não nos permite compreender essa função literalmente
produtiva da subjetividade. A ideologia permanece na esfera da representação,
quando a produção essencial do CMI não é apenas a da representação, mas a de
uma modelização que diz respeito aos comportamentos, a sensibilidade, a
percepção, a memória, as relações sociais, as relações sexuais, aos fantasmas
imaginários, etc. (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 28).

Pois de acordo com um marxismo mais ortodoxo, a infraestrutura econômica influencia


mecanicamente a superestrutura ideológica, ou seja, a ideologia (ideias) depende da posição
econômico-social. Guattari fala de modos de produção capitalísticos, em vez de capitalistas, pois
para ele em nada se diferem as sociedades capitalistas de setores do “Terceiro Mundo” e as ditas
socialistas, vivendo todas em uma espécie de dependência e contradependência, uma mesma
economia libidinal-politica.
Félix Guattari, com o conceito de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) procura explicar
as relações de servidão em nossa sociedade, que ele contrapõe ao termo globalização, que de acordo
com Suely Rolnik:

… ele considerava demasiado genérico e se presta a ocultar o sentido


fundamentalmente econômico e especificamente capitalista e neoliberal do
fenômeno de transnacionalização que começou naquela época. …
(tradução nossa).

Segue o texto original:

… él consideraba demasiado genérica y se presta a ocultar el sentido


fundamentalmente económico y específicamente capitalista y neoliberal del
fenómeno de trasnacionalización que comenzó a instalarse en aquella época. …
(ROLNIK, 2018)

Pois como Guattari declara em “Da produção de subjetividade”, texto presente em A


Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual, organizado por André Parente, falando sobre as
novas tecnologias:
O que irá permitir que estas potencialidades desemboquem enfim numa era pós-
mídia, que as livre dos valores capitalísticos segregativos e crie condições para o
pleno desabrochar dos esboços atuais de revolução da inteligência, da
sensibilidade e da criação? (PARENTE, 1993, p. 187.)

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Pois para Guattari, apesar de seu imenso potencial emancipatório as novas tecnologias que
surgiam na época de escrita deste texto (1989) eram assimiladas aos mass media e não haviam
garantias de uma virada pós-mídia que proporcionaria amplos Agenciamentos de auto-referência
subjetiva.
E adiante:

A subjetividade permanece hoje massivamente controlada por dispositivos


de poder e de saber que colocam as inovações técnicas, científicas e
artísticas a serviço das mais retrógradas figuras da sociabilidade. Essas
formas alternativas de reapropriação existencial e de autovalorização podem
tornar-se, amanhã, a razão de viver de coletividades humanas e de
indivíduos que se recusam a entregar-se à entropia mortífera, característica
do período que estamos atravessando. (Op. cit., 1993, p. 190-1)

Guattari insiste que as “máquinas” tecnológicas de informação e comunicação influem em


nossa subjetividade (memórias, afetos, sensibilidade, fantasias inconscientes). Guattari apela para
uma metamodelização como forma de escapar dos modelos dominantes, pois para ele: “O que
distingue uma metamodelização de uma modelização é, assim, o fato de ela dispor de um termo
organizador das aberturas possíveis para o virtual e para a processualidade criativa.” (GUATTARI,
2012, P. 43)
Em As Três Ecologias ele diz que o capitalismo pós-industrial (CMI):

(…) tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de
produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e
de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a
mídia, a publicidade, as sondagens etc. (GUATTARI, 1990, p. 30-1).

Sendo um de seus principais regimes semióticos:

d) as semióticas de subjetivação, das quais algumas coincidem com as que acabam


de ser enumeradas mas conviria acrescentar muitas outras, tais como aquelas
relativas à arquitetura, ao urbanismo, aos equipamentos coletivos etc. (idem.)

Em O Que é Filosofia, com Deleuze, ele diz que os rivais da filosofia seriam a informática,
o marketing, o design, a publicidade e todas as disciplinas da comunicação, ao se apropriarem do
conceito e se dizerem os criativos, colocando-o em computadores; juntando informação e
criatividade, conceito e empresa. Transformando o conceito em mercadoria.
Chegaremos assim à utilidade da arte ou seu valor. No mesmo O Que é Filosofia, eles
dizem:

Precisamente, é a tarefa de toda arte: e a pintura, a música não arrancam menos das
cores e dos sons acordes novos, paisagens plásticas ou melódicas, personagens
rítmicos, que os elevam até o canto da terra e o grito dos homens — o que constitui
o tom, a saúde, o devir, um bloco visual e sonoro. Um monumento não comemora,
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não celebra algo que se passou, mas transmite para o futuro as sensações
persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos
homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada. Tudo seria vão porque o
sofrimento é eterno, e as revoluções não sobrevivem a sua vitória? Mas o sucesso
de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações, nos enlaces,
nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia, e que compõem
em si um monumento sempre em devir, como esses túmulos aos quais cada novo
viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste
nos novos liames que instaura entre os homens, mesmo se estes não duram mais
que sua matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão, à traição.
As figuras estéticas (e o estilo que as cria) não tem nada a ver com a retórica. São
sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires. (DELEUZE e
GUATTARI, 1992, p. 228-9).

As HQs analisadas fogem a esse padrão, pois de diversas formas buscam fugir ao modelo
do CMI, seja pela sexualidade, com Crumb, seja pela desconstrução dos super-heróis enquanto
modelos de controle social no capitalismo (Watchmen). Unindo expressão e conteúdo. Assim ao
discutirmos essas obras em sala de aula poderemos trabalhar formas de subjetividades
desvinculadas desse sistema. Produzir novas formas de subjetividade. E acreditamos levam os
afetos adiante, sendo figuras estéticas.
Nosso método também se baseia no conceito de Paulo Freire de partir da realidade
existencial dos educandos, como ele desenvolve em Educação com prática da liberdade.
Dessa forma gostaríamos a partir dessa premissa proporcionar aos educandos outras leituras
de mundo dentro do pensamento de Nietzsche, analisado por Jorge Larrosa em Nietzsche & a
educação, que propõem várias leituras de um texto, no nosso caso os Quadrinhos em particular.
Assim como também, seguindo mais uma vez Larrosa levar a liberdade aos educandos, além do
conceito filosófico de sujeito. Pois: “O sujeito - tanto o sujeito da razão como o sujeito moral – é o
grande invento no qual o próprio sujeito assume a dupla tarefa de vigiar e de ser vigiado, de
dominar e ser dominado, de julgar e ser julgado, de castigar e de ser castigado, de mandar e
obedecer. (LARROSA, 2004, p. 113)”
E igualmente relacionar as práticas pedagógicas com a leitura de Foucault realizada por
Alfredo Veiga-Neto que em Foucault & a educação relaciona os três períodos ou domínios de
Foucault à prática pedagógica. A saber: o ser-saber, onde através da arqueologia, são
problematizados os enunciados, os enunciados verdade, neste caso os relacionados à educação e
arte; o ser-poder, que através da genealogia, ou seja, da busca da origem procura descobrir os
mecanismos que deram origens as várias tecnologias de disciplinarização dos corpos e sua
consequente normalização e finalmente o ser-consigo, que através da ética do ser consigo, busca
novas formas de subjetivação. Também a forma como Foucault trata temas como linguagem,
discurso, enunciado. Lembrando que ele segue Nietzsche que em: Sobre verdade e mentira no

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sentido extra-moral, revela o caráter arbitrário e não-natural da linguagem e também da moral.
Assim como Nietzsche, Foucault critica o conceito de sujeito na filosofia; chegando finalmente a
conceituação de Foucault de poder-saber. Que pode ser resumida, como assinala Veiga-Neto (2007,
p. 126), a partir de Deleuze, assim:

… o poder não é essencialmente repressivo (já que “incita, suscita, produz”); ele
se exerce antes de se possuir (já que só se possui sob uma forma determinável –
classe – e determinada- Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos
dominantes (já que passa por todas as forças em relação) (DELEUZE, 1991, 79)

E ainda usar a leitura de Deleuze realizada por Sílvio Gallo de uma educação menor, aquela
que sai da macro e vai para a micropolítica. Uma educação rizomática. Denunciando a avaliação
escolar como mecanismo de controle na sociedade. Conceito este desenvolvido por Deleuze em
textos como “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”.

No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a


ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de
qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis
de escolaridade. (DELEUZE, 1992, P. 225)

Também usaremos os conceitos do psicanalista freudo-marxista dissidente de Freud,


Willhelm Reich, da repressão sexual como causa do fascismo. E finalmente as ideias pedagógicas
de Paulo Freire.
Pois de acordo com o que Gilles Deleuze e Félix Guattari dizem em O Anti-édipo,
capitalismo e esquizofrenia, tomo I, traçar paralelos entre Freud e Marx se torna estéril enquanto se
interiorizar e projetar os termos excludentemente, como na equação dinheiro = merda. Pois o campo
social é percorrido pela libido, pelo desejo, sem precisar de mediação alguma, de sublimação
alguma. Sendo todas as formas de repressão social, mesmo as mais mortíferas, produzidas pelo
desejo. O que nos leva a perguntar: “Por que os homens combatem por sua servidão como se se
tratasse da sua salvação?”. Assim, seguindo Wilhen Reich, negam-se a explicar o fascismo por
desconhecimento ou ilusão das massas, mas pelo desejo: “Não, as massas não foram enganadas,
elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isso que é
necessário explicar, essa perversão do desejo gregário.”
Reich, em seu Psicologia de Massas do Fascismo, diz que a repressão material cria o desejo
de revolta, porém a repressão sexual, ao contrário inibe essa revolta tornando essa inibição
inconsciente, tendo como resultado o medo da liberdade, o conservadorismo, a mentalidade

93
reacionária. Pois, ainda seguindo Reich, se as massas, podiam avaliar as propagandas dos diferentes
partidos políticos, porque não descobriram que Hitler ao mesmo tempo em que este dava garantias
de não expropriação aos capitalistas, prometia a expropriação dos meios de produção quando se
dirigia aos trabalhadores. Inclusive, em seu A Revolução Sexual, Reich relaciona a ascensão de
Stalin ao poder na extinta União Soviética ao refreamento da revolução sexual ocorrida no período
imediatamente posterior à revolução.

Na verdade a sexualidade está em toda parte: na maneira como um burocrata


acaricia os seus dossiês, como um juiz distribui justiça, como um homem de
negócios faz circular o dinheiro, como a burguesia enraba o proletariado etc. E não
há necessidade de recorrer a metáforas, tal como a libido não recorre a
metamorfoses. Hitler dava tesão nos fascistas. As bandeiras, as nações, os exércitos
e os bancos dão tesão em muita gente. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 386).

No entanto, como salientam Deleuze e Guattari, ainda no Anti-édipo, capitalismo e


esquizofrenia, tomo I, Reich não dá uma resposta suficiente, pois separa o racional no processo
social do irracional do desejo. Deixando à psicanálise a análise do “negativo”, do “subjetivo” e do
“inibido” no campo social. Retornando necessariamente a um dualismo entre o objeto real
racionalmente produzido e a produção fantasmática irracional.
Também Paulo Freire em Pedagogia do oprimido diz algo semelhante, ao referir-se a
dependência emocional dos oprimidos, levando àquilo que Fromm chama de manifestações
necrófilas. Apenas quando descobrem o opressor e se engajam na sua libertação superam a sua
conveniência com o regime opressor. Por isso Freire critica o anti-diálogo, a sloganização, pois isso
leva à “domesticação”, a torná-los objetos, a fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em
massa de manobra.
Em Introdução à vida não fascista, prefácio de Anti-édipo, Michel Foucault fala que este
livro tem três adversários: os ascetas políticos, os burocratas da revolução; os técnicos do desejo,
psicanalistas e semiólogos; e o maior inimigo o fascismo, mas não somente o fascismo histórico de
Hitler e Mussolini, mas o que está em nós, o cotidiano, o que nos faz amar o poder.

Alguns podem questionar o uso de obras com conteúdo sexual em sala de aula, no entanto
de acordo com os PCNs:

Com a inclusão da Orientação Sexual nas escolas, a discussão de questões


polêmicas e delicadas, como masturbação, iniciação sexual, o “ficar” e o namoro,
homossexualidade, aborto, disfunções sexuais, prostituição e pornografia, dentro de
uma perspectiva democrática e pluralista, em muito contribui para o bem-estar das
crianças, dos adolescentes e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual e
futura. (PCN, 1998, p. 293)

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Orientação Sexual em sentido amplo e não restrita à problemática LGBT. Com relação à
prostituição podemos ainda complementar com o que disse Reich em A revolução sexual:

Combate às causas da prostituição. As causas são o desemprego e a ideologia da


castidade da moça da pequena-burguesia. Para combater isso é preciso mais do que
medidas sanitárias. Quem deverá tomá-las? A mesma sociedade reacionária que
não pode extinguir o desemprego e destruir a ideologia da castidade?

Não é possível atingir a miséria sexual com tais meios, ela representa peça
importante da estrutura social existente! (REICH, s.d., p. 93)

Ou ainda o que diz Simone de Beauvoir em O Segundo sexo II, a experiência vivida, em
nota de rodapé, em termos semelhantes:

(1)
Não é evidentemente com medidas negativas e hipócritas que se pode modificar
a situação. Para que a prostituição desapareça, são necessárias duas condições: que
uma profissão decente seja assegurada a todas as mulheres; que os costumes não
oponham nenhum obstáculo à liberdade do amor. É somente suprimindo as
necessidades a que atende que se suprimirá a prostituição. (BEAUVOIR, s.d, p.
334)

Também não podemos aceitar argumentos já refutados por Sigmund Freud:

Que propósito se visa atingir negando as crianças, ou aos jovens, esclarecimento


desse tipo sobre a vida sexual dos seres humanos? Será por medo de despertar
prematuramente seu interesse por tais assuntos, antes que o mesmo irrompa de
forma espontânea?

(…)

Na verdade ignoro em qual dessas proposições se deve procurar o motivo de se


ocultar das crianças aquilo que é sexual, ocultação que de fato é levada a cabo. Sei
apenas que são todas absurdas e indignas de uma contestação judiciosa. (FREUD,
1996, 123-4)

Ou ainda seguindo Reich:

Pedimos a quem acha que estamos exagerando que nos acompanhe por mais um
trecho para convencer-se de que a questão da nudez e a educação sexual —
esclarecidos racional e adequadamente— por enquanto levam educando e educador
à cadeia. (REICH, s.d., p. 101)

O próprio educador deve ter tido uma educação sexual negativa; casa paterna,
escola, igreja e todo o meio ambiente conservador o imbuíram de conceitos
sexualmente negativos; estes entram em choque com seus próprios pontos de vista
afirmativos da vida. Apesar disso, ele tem de se libertar da visão reacionária, se

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quiser educar positivamente e não hostilmente à vida, tem de formar sua própria
conceituação fundamental e impô-la na educação das crianças. (REICH, s.d., p.
298)

Como exemplo das consequências de tal educação reacionária daremos o exemplo da


blogueira Nádia Lapa, autora do livro Cem homens em um ano, as aventuras sexuais de uma mulher
bem resolvida, que após relatar essas aventuras em seu blog foi vítima, alvo de cobranças e
xingamentos. Como ela própria relata:

Com o tempo … percebi que aqueles xingamentos não eram direcionados a mim:
eu era a Geni. Jogavam pedras. Mas eu e a personagem de Chico Buarque eramos
só duas dos milhões de mulheres oprimidas o tempo todo. O problema daquelas
pessoas não era eu (poderia dizer que o problema delas… são elas, mas isso era
bem óbvio). Wilhelm Reich já dissera no início do século passado: ‘A questão é o
controle, e não a moral’. …

não basta pagar salários 30% mais baixo ou estipular um padrão … de beleza: é
preciso dizer como cada uma de nós pode usar o próprio corpo (mesmo que entre
quatro paredes). Controle. (LAPA, 2012, p.135)

Uma prova que nossa sociedade continua moralista, puritana, hipócrita e machista. Mesmo
que tenhamos citado Freud, não concordamos em tudo com ele, pois como dizem Deleuze e
Guattari em O anti-édipo, capitalismo e esquizofrenia 1:

Recusamos o golpe do “é pegar ou largar”, golpe que invoca o pretexto de que a


teoria justifica a prática, já que nasceu desta, ou que só se pode contestar o
processo da “cura” a partir de elementos tirados dessa mesma cura. Como se toda
grande doutrina não fosse uma formação combinada, feita de peças e de pedaços,
de diversos códigos e fluxos misturados, de parciais e derivadas, que constituem
sua própria vida ou seu devir. (DELEUZE; GUATTARI, , p. 160)

Pois concordamos com eles quando dizem:

… que Freud tinha repudiado a posição sexual tanto quanto Jung e Adler: com
efeito, a consignação do instinto de morte priva a sexualidade do seu papel motor,
pelo menos num ponto essencial que é o da gênese da angústia, dado que esta
devém causa autônoma do recalcamento sexual, em vez de resultado; com isto, a
sexualidade como desejo deixa de animar uma crítica social da civilização; esta é
que, ao contrário, acha-se santificada como a única instância capaz de se opor ao
desejo de morte — e como? voltando em princípio a morte contra a morte, fazendo
dela uma força de desejo, pondo-a a serviço de uma pseudovida por meio de toda
uma cultura do sentimento de culpabilidade. não há por que recomeçar esta história,
em que a psicanálise culmina numa teoria da cultura que retoma a velha tarefa do
ideal ascético, nirvana, caldo de cultura, julgar a vida, depreciar a vida, medi-la

96
pela morte e só guardar da vida o que a morte da morte nos deixar, sublime
resignação. (idem, , p. 349-350)

Figura 42: HQ de estudante de ensino médio, oriunda de estágio não concluido

Fonte: Arquivo pessoal

97
Conclusões

Concluímos então que as HQs apesar de marginalizadas durante a maior parte de sua
existência são uma forma de arte capaz de produzir elaborados discursos estéticos. A tese de
Marshal McLuhan que sustentava que as HQs seriam necessariamente de baixa informação foi
refutada antes de nós por Moacy Cirne em A explosão criativa dos quadrinhos ao dar exemplos de
autores como Moebius e Crepax. No entanto, discordamos um pouco de Cirne, pois acreditamos
que as HQs são de baixa definição, no entanto podem ser “esquentadas” como os autores citados
por Cirne demonstram. Assim como cinema pode ser “esfriado” como McLuhan demonstra a
propósito de Fellini e Bergman.

Quanto a Umberto Eco demonstramos que o código na HQ não depende de uma sintaxe
específica e pode se combinar de qualquer maneira como em um poema dadaísta. Dessa forma
pode-se dizer que dependendo da obra a combinação das imagens pode tender desde a redundância
óbvia até a novidade incompreensível. Dessa forma tentamos levar o problema para a relação do
enredo, onde um mínimo de redundância é requerida, mas pode ser contrabalanceada pela novidade.

Assim conseguimos demonstrar a relevância da aplicação dos quadrinhos como forma de


arte no ensino de arte. Acreditamos que sua prática pode ser aplicada como a da literatura, onde a
leitura se faria fora do ambiente escolar como com livros, desde que hajam obras disponíveis aos
educandos. Obras que a nosso ver podem contrabalancear aquelas que acreditamos estão afinadas
com a produção de subjetividade do Capitalismo Mundial integrado (CMI). Proporcionando aos
educandos novas formas de ver/ler o mundo a sua volta.

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