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Masarykova univerzita

Filozofická fakulta

Ústav románských jazyků a literatur

Bakalářská diplomová práce

2010 Šárka Novotná

1
Masarykova univerzita
Filozofická fakulta

Ústav románských jazyků a literatur

Portugalský jazyk a literatura

Šárka Novotná

O mito, origem do conto fantástico?

Bakalářská diplomová práce

Vedoucí práce: Mgr. et Mgr. Vlastimil Váně

Brno 2010

2
Prohlašuji, že jsem diplomovou práce vypracovala
samostatně s využitím uvedených pramenů a literatury.
Tištěná verze se shoduje s verzí elektronickou.

.........................................................................
Podpis autora práce
30. 6. 2010

3
O meu agradecimento
Como o tempo é um dos aspectos mais importantes deste estudo, convém começar por
um agradecimento cronológico, situado no mundo referencial. Por isso, primeiramente
agradeço ao meu orientador, Mgr. et Mgr. Vlastimil Váně, por intermediar-me nas aulas o
conhecimento da literatura brasileira onde tudo parece fantástico. Pertencem-lhe também
outros agradecimentos por todo o tempo em que se ocupou com o presente estudo.
Finalmente, agradeço ao doutor Daniel Vázquez que, nos últimos momentos, quando já
faltava pouco tempo, me ofereceu os seus conselhos valiosos.

4
«Yo me atrevo a pedir unos minutos para su concepto del universo.»
Jorge Luis Borges; Ficciones

5
Índice

1. Introdução .................................................................................................................... 7
2. Noções gerais. Termos descritivos .............................................................................. 10
2.1 A partir de Borges às noções básicas. A hipótese do autor e da palavra ... 10
2.2 O fantástico e a psicanálise ............................................................................. 14
2.3 O fantástico e a ficção ..................................................................................... 16
3. O rio isotópico ................................................................................................................ 22
3.1 A realidade de sonho. Paronominari ............................................................. 23
3.2 O sonho e a morte. O navio das sombras ....................................................... 29
3.3 O desacordo comunicativo. A canoa antropófaga ......................................... 32
4. A materialização ............................................................................................................. 37
4.1 A ampulheta diabólica ...................................................................................... 37
4.2 O espelho. A transgressão entre os níveis de ficção ....................................... 41
4.3 O momento do reflexo. O primeiro Kuarup ................................................... 46
5. Conclusão ........................................................................................................................ 51
6. As referências bibliográficas .......................................................................................... 54

6
1.Introdução
No começo do presente estudo e do nosso interesse pelo fantástico, encontra-se Jorge
Luis Borges, homem que continua a ocupar um lugar eminente no nosso universo literário e
que, portanto, como ponto unificador, permeia todo o nosso texto, cujo tema, embora de
forma muito modesta, se pode aproximar da base da sua criação. Na verdade, Borges, como o
nosso estudo, não só trata dos assuntos ligados ao fantástico, como das capacidades ficcionais
do texto, e ainda dos modos como a linguagem, a mera situação verbal, podem influenciar e
transformar o mundo ficcional e, por conseguinte, a visão do mundo referencial.
Esta situação verbal, já a pretendiam conseguir as primeiras narrações, mitos que
tentavam, com ajuda da linguagem, descrever os fenómenos que os rodeavam. A habilidade
com que foram construídas estas narrações não cessa de surpreender o leitor de hoje. Os mitos
servem-se amiúde de recursos verbais de tal forma interessantes que nos levam a hesitar sobre
a sua verdadeira função. De facto, não se trata, no caso dos mitos, de uma construção
consciente do narrador, de uma ficção intencional, onde a escolha restrita das palavras leva ao
reforço do fantástico, tal como é concebido hoje.
No nosso estudo, consideramos assim como o começo do fantástico as primeiras
narrações, os mitos, afirmando que desembocaram no conto fantástico moderno cujo
fundamento sempre constituem. O que aconteceu foi que, por causa do tempo decorrido, o
narratário mudou e por conseguinte, a narração teve que ser adaptada, sempre conservando no
entanto esta base originária. Tentar provar a identificação possível do mito e do conto
fantástico no espaço da literatura brasileira será o objectivo principal do nosso estudo, visto
que, se esquematizarmos ambos os géneros, obteremos conceitos semelhantes.
Para esta aproximação, vamos apoiar-nos sobretudo na semiótica e, concentrarmo-nos-
emos, apesar da banalidade aparente, na palavra. Na verdade, se considerarmos que o
fantástico é caracterizável e caracterizado pelas dicotomias, a palavra torna-se a unidade
básica dotada da configuração bipolar. A sua dicotomia essencial realiza-se entre o
significante e o significado, logo engendrando a relação entre o mundo referencial e o mundo
ficcional.
Julia Kristeva, em cuja obra nos apoiaremos principalmente, ela mesma recupera a
concepção inicial de Bakhtin, em que a palavra medeia toda a análise literária:

7
A análise actual da estrutura narrativa é de tal forma refinada que é capaz de delimitar as funções
(cardinais ou catalíticas) e as diversas indícias [...] ou de observar como construi-se a narração segundo
um esquema lógico ou retórico. Por mais que admitirmos o valor indiscutível destas investigações, seria
pertinente de fazer-se a pergunta se estes estudos não são excessivamente carregados por diversos «a
priori» duma metalinguagem que é hierarquizante e heterogénea em relação à narração e se a concepção
de Bakhtin que se concentra na palavra como a possibilidade ilimitada do texto [...] não é mais clara e
simultaneamente mais sugestiva.1

Nós indentificar-nos-emos com esta afirmação, visto que a unidade básica


aparentemente banal pode esclarecer os conceitos mais difíceis e tornar a análise mais
explicativa. De resto, a palavra funciona igualmente como a unidade básica da psicanálise,
onde se aborda a representação do inconsciente, espaço intrínseco do sujeito falante.
Igualmente tentaremos abordar esse espaço e demonstrar que qualquer da sua representação
torna-se ficcional e, graças a este carácter, pode entrar na literatura fantástica transformando-
se no seu motivo.
A psicanálise, nas paráfrases de Julia Kristeva e de Tzvetan Todorov, constituirá pois
o outro domínio no qual tentaremos apoiar a nossa argumentação.
Com base nestes dois domínios, pelo estabelecimento dos pontos comuns, tentaremos
chegar à identificação proposta, que completaremos pelos exemplos que julgámos mais
ilustrativos para o esclarecimento da nossa tese. As narrações míticas serão representadas
pelos exemplos retirados dos livros Antologia de lendas do índio brasileiro e Poronominare,
que confrontaremos sempre com os exemplos dos contos fantásticos que provêm sobretudo da
antologia A terceira margem do rio.
A sua análise será introduzida pelo capítulo onde apresentaremos alguns postulados
básicos, tanto do fantástico como da ficção literária, e os nossos próprios termos, utilizados ao
longo do texto. A análise propriamente dita será dividida em dois capítulos, ligados pela
importância dada ao tempo, tanto enquanto símbolo como pela sua interpretação, apoiada na
semiótica. No segundo capítulo, o tempo aparece materializado na sua forma simbólica mais
tradicional: o rio. Não obstante, veremos que o rio pode tornar-se também o símbolo
semiótico do discurso, quando relevarmos a sua superfície; no nível simbólico da água
encontram-se os significantes e na sua profundidade, aparentemente sem fundo, encontram-se
os significados. A possibilidade de metaforizar a materialização do tempo será o assunto do
terceiro capítulo. E, se se materializa um motivo tão abstracto como o tempo, os objectos mais

1
KRISTEVA, Julia ; Polyfonie, pp. 38-39. (A tradução ŠN)

8
concretos devem igualmente ser submetidos a esta transformação, como vamos tentar explicar
também nesse capítulo. De facto, é justamente a transformação, a metamorfose que constitui
um dos traços do mundo fantástico; ainda por cima, a metamorfose é directamente dependente
do tempo, mas simultaneamente o denega, visto que a metamorfose é realizável no sonho e
que o seu efeito pode perdurar depois da libertação do sujeito deste mundo.
Ocupando-nos do sonho, não podemos omitir o «sonho eterno», mas vamos tentar
provar que a morte do mundo fantástico não é trágica. Se pode ser chamada «sonho» no nível
verbal, o mundo ficcional oferece-nos o despertar - a possibilidade de uma segunda vida.

9
2. Noções gerais. Termos descritivos
Este capítulo pretende apresentar uma introdução teorética para a análise que se lhe
seguirá, estabelecendo os termos básicos que vamos utilizar neste estudo.
Para a descrição do fantástico, vamos apoiar-nos sobretudo na obra Introduction à la
littérature fantastique de Tzvetan Todorov. Não só porque essa obra utiliza o termo geral, a
literatura fantástica (o que nos facilita a nossa tarefa, visto que esta denominação contém a
possibilidade de vários géneros tendo como ponto comum o fantástico), mas também porque
Todorov foi o primeiro autor que tentou delimitar o espaço infinito desta literatura. E
julgamos que os seus sucessores se fundamentaram na sua obra.
Como dissemos, o espaço da literatura fantástica tem que ser forçosamente infinito,
porque todo o fantástico se realiza-se no nível verbal 2, onde a realidade quotidiana, ou
realidade visível, forma o marco da primeira leitura. No nível linguístico, esta realidade traz
os denotativos; o fantástico apresenta uma outra realidade, onde são situados os conotativos
da narração, que o leitor é obrigado a procurar.
Vamos dedicar o primeiro subcapítulo à sua derivação e, tendo assim delimitado o
fantástico, nos outros tentaremos contextualizá-lo na sua relação com a psicanálise e a ficção.

2.1 A partir de Borges às noções básicas. A hipótese do autor e da palavra


Para a derivação dos primeiros termos essenciais do nosso estudo, voltemos a Jorge
Luis Borges:

La noche del catorce de marzo de 1939, en un departamento de la Zeltnergasse de Praga, Jaromir


Hladík, autor de la inconclusa tragedia Los Enemigos, de una Vindicación de la eternidad y de un
examen de las indirectas fuentes de Jakob Boehme, soñó con un largo ajedrez. No lo disputaban dos
individuos sino dos familias ilustres; la partida había sido entablada hace muchos siglos; nadie era capaz
de nombrar el olvidado premio, pero se murmuraba que era enorme y quizá infinito; las piezas y el
tablero estaban en una torre secreta; Jaromir (en el sueño) era el primogénito de una de las familias
hostiles; en los relojes resonaba la hora de la impostergable jugada; el soñador corría por las arenas de
un desierto lluvioso y no lograba recordar las figuras ni las leyes del ajedrez. En este punto, se despertó.
Cesaron los estruendos de la lluvia y de los terribles relojes.3

2
Já por este facto, o fantástico apresenta uma mulitidão infinita de possibilidades de expressão, visto que cada
autor traz a sua concepção que se realiza pelo seu vocabulário individual.
3
BORGES, Jorge Luis; Ficciones, Emece Editores, Buenos Aires 1956, pp. 165-166.

10
Escolhemos intencionalmente o incipit do conto «El milagro secreto» visto que neste
fragmento aparece captado tudo o que deveria tornar-se a matéria da nossa investigação
acerca do aspecto temporal. Antes de tudo prestaremos atenção ao aspecto temporal do
fantástico e à sua influência que nos ajudará a conceptualizar a possível identificação entre o
conto fantástico e o mito índio.
Igualmente neste conto, o autor deixa comunicar o seu texto com um outro,
temporalmente anterior, com o Alcorão:

Y Dios lo hizo morir durante cien años y luego lo animó y le dijo:


-¿Cuánto tiempo has estado aquí?
-Un día o parte de un día.4

Com base das citações apresentadas, vemos que o tempo, na ficção, converte-se numa
categoria variável, submetida à relativização pelo seu autor. Trata-se duma certa espécie da
determinação que pode ser comparável com o jogo de xadrez. Mas, porque se trata da ficção,
as regras de cada lance são dadas antes de se começar a jogar e Hladík, como um mero
componente do jogo dos poderes superiores, deve acomodar-se à sua configuração imposta.
No entanto, Borges apresenta ainda um nível temporal em que situa a narração em que
decorre a vida de Hladík – trata-se do sonho. No conto, figura-se assim uma realidade que
pretende imitar o mundo real – o referencial5, e uma segunda realidade paralela, em que é
pertinente a mesma significação, tal como na primeira. Não obstante, esta segunda realidade
chega a ser um reflexo do ânimo do protagonista visto que se situa em «una torre secreta», no
seu inconsciente. E não é a obra do acaso que o escritor, Borges, faça desta figura um outro
escritor. Por esta situação, o protagonista é capaz de exprimir o que viu no sonho, fazendo
assim duma tal experiência a narração verosímil.6 Mas, ao mesmo tempo, a figura torna-se
4
Alcorão, II, 261, in : « El milagro secreto », p. 165.
5
Se utilizamos o termo « o mundo referencial », referimo-nos ao mundo real para o qual o signo linguístico
funciona como a abstracção psicológica. O meio desta abstracção torna-se a significação, que implanta a
experiência do mundo referencial na narração.
6
Não obstante, esta manipulação produz ao mesmo tempo confusão quanto à interpretação. Como já dissemos,
Hladík é submetido às regras duma estrutura textual superior, por isso é conveniente fazer-se a pergunta sobre
quem escreve os seus livros, se é realmente este Hladík. Temos que contentar-nos com a afirmação de que
Hladík é uma abstracção, a hipótese do autor: « Le calcul de l’écriture élimine toute spontanéité. La
préméditation impose le retrait de l’auteur dans un jeu où il est solitaire, car l’exactitude et la ‘nécessité’ du
contingent doit surgir de son fonds autarcique. On s’aperçoit bien que le fantastique de ce récit, le miracle de la
coïncidence des textes, allégorise la lecture considérée comme écriture, dit autrement : l’oeuvre qu’est la
lecture. » LELLOUCHE, Raphaël; Borges ou l’hypothèse de l’auteur, Editions Balland, Paris 1989, p. 200.
Afinal, é um só autor solitário (mais ou menos ficcional) quem se encontra ao tabuleiro de xadrez, e que excluiu
qualquer espontaneidade da escrita. Em suma, a obra do Hladík serve só como uma necessidade descrita, que
forma a percepção verosímil da leitura.

11
intérprete da ficção, pela sua obra prevê a sua vida, ele mesmo a forma escrevendo e ele
mesmo contribui para o estabelecimento das regras da ficção. Por conseguinte, ambos os
níveis temporais parecem tanto mais paralelos. Mais: consciente deste fenómeno produzido,
Borges ainda incorpora na narração os objetos “físicos” do tempo, para relembrar que não é
assim, que este paralelismo é só o resultado da manipulação ficcional. Nós também
conceberemos estas duas realidades dessa maneira e, para atingir a clara separação entre estas
realidades, vamos denominá-las : a realidade do sonho e a realidade visível.
Contudo, antes de podermos estabelecer estas noções, temos que percorrer um largo
caminho. Voltemos de novo ao seu início, repetindo o que já foi dito: no princípio era a
palavra. Digamos mais precisamente que, antes de tudo, deve aparecer um autor que pretende,
mediante a mimesis (cuja base é a palavra), criar a narração ou a ficção:

O autor é o sujeito da narração; este não é algo nem alguém, mas pela possibilidade da permuta de S por
A7, da história pelo discurso e do discurso pela história. O autor converte-se no anónimo, na ausência,
no espaço branco para que desta maneira possa existir a estrutura como tal. No princípio mesmo da
narração, no momento mesmo em que aparece o autor, encontramo-nos com a experiência do vazio. 8

Já neste ponto, encontramos a primeira identificação possível, visto que o autor torna-
se uma abstracção que, segundo a sua vontade, se encontra mais ou menos fora da ficção. Não
obstante, fica sempre o sujeito da narração, que pressupõe uma dose natural de subjectividade.
A sua subjectividade mostra-se na visão da realidade referencial e nos meios pelos quais esta
é descrita.
Por esta razão, permitimo-nos considerar o criador da narração mítica como o seu
autor. Este autor torna-se realmente uma espécie da ausência que tem que preencher pela sua
narração um espaço vazio que se abre para a interpretação do mundo referencial. Podemos
afirmar que tem que aparecer incorporada uma outra forma de novo mundo, mundo ficcional
que, como vimos no conto de Borges, é inteiramente submetida à configuração que lhe
atribuirá o seu autor. Assim, a narração mítica torna-se mais importante do que o seu autor,
em redor do que se forma o anonimato absoluto. Esta abstracção pelo anonimato leva-nos à
definição que Gérard Genette concebe como o postulado básico da ficção:

A cisão A ≠ N define a ficção, o tal tipo da verdade em que o autor não garante com segurança a
veracidade.9
7
Relembremos que as abreviaturas marcam o sujeito da narração (S) e o autor da mesma (A).
8
KRISTEVA, Julia; Slovo, dialog a román, Sofis, Praha 1999, p. 17. (A tradução ŠN)
9
GENETTE, Gérard; Fikce a vyprávění, Theoretica, Brno 2007, p. 52. (A tradução ŠN)

12
O autor distancia-se assim da veracidade do mundo referencial, pelo recurso que
estabelece uma veracidade nova. A cisão postulada parece-nos igualmente pertinente no caso
do autor contemporâneo porque, aqui, a ficção formada é ainda apoiada na legitimidade
social. O que se pode explicar pelo mero facto de que sai da anomalidade pragmática para que
o autor não seja o sujeito do descrito. Porém, por tudo o que descreve, o autor consegue criar
na mente do leitor o vazio branco, semelhante àquele com que foi confrontado o autor dos
mitos, que o pretende encher pelas palavras.
No caso do autor dos mitos, este fenómeno é ainda acentuado pelo facto de que ele se
esforçava por preencher a insegurança provocada pela realidade visível mas jamais
representada pela mimesis através da narração.
Se utilizarmos os conceitos de Bakhtin, a palavra mais potente de tal narração é a
palavra directa:

A palavra directa faz referência ao seu objecto, expressa a última instância do sujeito do discurso nos
determinados contextos; trata-se da palavra do autor que lhe deve garantir a compreensão directa e
objectiva. A palavra conhece-se somente a si mesma e o seu objecto e, na relação com este objecto,
tenta ser adequada (não é «consciente» das influências das outras palavras). 10

Parafraseemos que a palavra directa apresenta o primeiro marco do conhecimento da


narração, apresenta os seus denotativos, a superfície narrativa. Mas, ao mesmo tempo, este
tipo de palavra é susceptível de veicular a quebra da coerência lógica no interior da narração.
O que engendra a sua relação estreita com o referente: a palavra forma em seu redor um
círculo fechado em que se encontra sozinha com a sua referência e, após a sua introdução na
narração, a sua inconsciência das outras palavras causa uma trangressão.
Esta transgressão pode ameaçar a linearidade da narração. Porém, simultaneamente,
pela mesma causa, as palavras directas dispõem de um número limitado de conotativos. E,
sendo ligadas na narração, a incompatibilidade com outras palavras, no seu fundo, provoca a
incoerência no interior da narração, provocando indirectamente a necessidade de formação de
outros conotativos.
Digamos mais obviamente que um objecto, que as palavras directas designam, é
claramente descrito, mas que, no seu fundo, abre-se um espaço vazio, no qual estão contidos
os conotativos da toda narração. As palavras emprestam ao leitor uma segurança falsa. Por

10
A citação é de Julia Kristeva, Slovo, dialog a román, p. 16. (A tradução ŠN)

13
conseguinte, descobrindo que os conotativos que lhe atribuiu se referem ao vazio, o leitor
encontra-se num estado da hesitação – e não só sobre a narração.
Passemos directamente a este estado. A sua causa primária é devida ao fenómeno
descrito, que podemos simplificar afirmando que, se buscarmos os conotativos do fantástico,
encontraremos conotada toda a realidade. Por conseguinte, uma noção conotada tão extensa
provoca no leitor o sentimento de insegurança. É Tzvetan Todorov quem chama a este estado
a hesitação - e é exactamente esta hesitação que define o fantástico. Para Todorov, esta
hesitação toma tal importância que a postula como a condição essencial do fantástico 11 (nós
identificamo-nos com este postulado).
Esta hesitação realiza-se entre diversas dicotomias: a básica realiza-se no nível do
natural e do antinatural12; outra, vemo-la justamente entre a realidade de sonho e a realidade
visível.

2.2 O fantástico e a psicanálise


Se falamos do sonho, convém delimitar a relação entre a psicanálise e o fantástico,
pois o sonho é um assunto de ambos. Aliás, foi justamente Tzvetan Todorov quem perguntava
se o fantástico não perderia o sentido com o desenvolvimento da psicanálise.13
Neste subcapítulo tentaremos responder esta sua pergunta e aproveitar as possíveis
respostas para tirar já algumas conclusões acerca da ficção para o subcapítulo seguinte.
Se falamos do sonho, não podemos fazer deixar de mencionar Sigmund Freud, que se
ocupou do inconsciente, activado durante o sono. O espaço fantástico e desconhecido é
justamente aberto pelo sonho. Analogamente funciona a literatura fantástica. Visto que o
sonho, como acontece no género literário, se quer ser transmitido a um interlocutor, tem que
ser transformado em mensagem com a ajuda das palavras. Por este processo simples, o sonho
torna-se narração, transmitida a um psicanalista e, desse modo, o paciente-narrador forma
uma ficção. A narração, transformação do sonho em palavras, é forçosamente ficcional, visto
que o narrador tenta reproduzir as imagens do seu inconsciente, as suas experiências

11
« ... la première condition du fantastique, l’hésitation entre réel et illusoire ou imaginaire. », TODOROV,
Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, Editions du Seuil, Paris 1970, p. 77.
12
Analogamente, no nível linguístico encontraremos as outras dicotomias, como já mencionámos: a antinomia
entre significante e significado ou entre conotação e denotação. A dicotomoia baseada na divisão básica do signo
linguístico reflecte-se logo na designação das estruturas superiores, como na realização das experiências
intrínsecas do sujeito falante : « On désignerait aujourd’hui l’opposition entre ‘expression verbale’ et ‘idées’ par
les termes signifiant et signifié. » TODOROV, Tzvetan; Théorie du symbole, Editions du Seuil, Paris 1977, p.
290. Esta designação revela-se mais clara e explicativa do que a dicotomia antes proposta por Freud entre «a
expressão verbal» e «as ideias».
13
Cf. TODOROV, T.; Ibid., pp. 167-170.

14
intrínsecas, que são muitas vezes à miúdo indescritíveis e assim, elas são logicamente
adaptadas.
Pelo seu carácter ficcional, o sonho torna-se um dos símbolos da literatura fantástica.
Ou digamos que serve como atributo da ficção que reforça 14, emprestando-lhe assim a
verosimilhança aparente (servindo-se de motivos conhecidos pelo leitor). Não obstante, no
fim de ambas as «narrações», o leitor é confrontado com a dicotomia entre a irrealidade e a
realidade. No caso do género literário, o leitor faz-se a pergunta seguinte: é o sonho a
explicação suficiente para a história ficcional (para o conteúdo da narração)? Ou
simplesmente: onde está a verdade? O narrador do sonho vive a mesma experiência: se as
imagens evocadas pelo sonho foram tão vivas (e elas tornam-se ainda mais vivas sendo
narradas), ele duvida se elas não podiam ter origem no mundo real.
Neste ponto exacto, vemos a hesitação postulada por Todorov. Ela é a mesma nos dois
casos, mas o processo e os atributos ficcionais, que nos levaram a este estado, são diferentes.
E apesar da banalidade desta afirmação, o único ponto comum é a palavra. Se apoiamos a
nossa argumentação na significação da palavra, inclusivamente no contexto da psicanálise,
convém repetir as palavras de Sigmund Freud: «Au reste, toute langue a sa langue de rêve.»15
Assim, vemos provado que a palavra psicanalítica – as experiências do sonho transmitidas
pelas palavras – podem tornar-se num meio da linguagem literária.
Neste contexto, acrescentemos ainda um exemplo mais concreto da relação recíproca
entre a psicanálise e a literatura fantástica, realizada com a ajuda dos símbolos.
Primeiramente, apresentemos a característica explícita da literatura fantástica: ela serve-se de
numerosos símbolos, tanto para os factos como para os sentimentos intrínsecos e íntimos, que
Todorov resume pela denominação «thèmes tabous»16 (cujo exemplo mais ilustrativo é o
diabo).
Expliquemos que o diabo tem o poder de encarnar, de conceber no nível verbal, todo o
desejo carnal, frequentemente perverso. O diabo serve também como meio do narrador
representar as as paixões que a sociedade consideraria condenáveis. Contudo, Todorov
expressa uma dúvida; se, na nossa época, a literatura (em geral) já conheceu todos os tipos de
representação sexual, será necessário servir-se de tais símbolos? Por que continuar a atribuir
os sentimentos perversos à conta do diabo?
14
Falando do reforço, podemos explicar que este fenómeno torna a narração (que se serve do espaço fantástico
do sonho) mais complexa e, por conseguinte, mais verosímil e assim mais persuasiva para o leitor.
15
Citado por Julia Kristeva, Le langage cet inconnu, Editions du Seuil, Paris 1981, p. 267.
16
Cf. TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, p. 167. No quadro da literatura fantástica,
Todorov designa dois tipos principais de temas: ao lado dos « thèmes tabous », o outro tipo é estabelecido por
« thèmes du regard ».

15
A resposta impõe-se imediatamente e é bastante simples: porque, desse modo, a
narração torna-se fantástica. Voltamos à confrontação entre o inconsciente e a realidade
visível, que decorre já no nível verbal. O símbolo, as palavras que o formam e que revelam
assim o interior espiritual do narrador, adquirem um valor terapêutico ou, podemos
directamente dizer, psicanalítico:

Il s’agit d’expériences personnelles et traumatisantes : tel écrivain névrosé projettera ses symptômes
dans son œuvre.17

Tendo introduzido estas expêriencias (do inconsciente) na narração, o autor chega a


suscitar a necessidade do leitor de lhes atribuir novos conotativos. O leitor é convidade a à
hesitar sobre o verdadeiro valor do símbolo consultando as suas próprias experiências do
inconsciente 18 e, por esta razão, um tal símbolo assegura o fantástico literário.
E assim podemos concluir este subcapítulo afirmando que os dois domínios
apresentam pontos comuns, visto que, sendo tranferidos através das palavras, formam as
narrações. Acentuemos que a linguagem torna-se o objecto de ambos porque os dois
pretendem encontrar os significados com os significantes que se mostram frequentemente
insuficientes por causa da extensão do inconsciente. Contudo, com base neste carácter
linguístico, podemos responder à pergunta todoroviana, dizendo que a literatura fantástica não
perde o seu sentido. Pelo contrário, é justamente a psicanálise que lhe traz novos pontos de
vista, que podem tornar a literatura fantástica ainda mais fantástica.

2.3 O fantástico e a ficção


A delimitação mais exacta do fantástico do ponto de vista puramente literário parece
muito mais difícil. Não obstante, será inevitável tentá-la, porque tal delimitação é susceptível
de provar da maneira mais relevante a identificação dos géneros literários. Começando este
subcapítulo:

Il faut d’abord remarquer que le conte n’appartient pas originairement à la littérature écrite savante,
mais bien à la tradition orale. A cet égard, la littérature latino-américaine offre un exemple singulier de
branchement [...]19

17
Ibid., p. 160.
18
Estas experiências podem ser representadas tanto pelos sonhos, como pelas paixões secretas.
19
LELLOUCHE, Raphaël; Borges ou l’hypothèse de l’auteur, p. 270.

16
Se o conto é em geral considerado como o resultado directo da tradição oral, esta
declaração torna-se ainda mais pertinente no caso do mito e do conto fantástico:

Le genre fantastique est inséparable de la narration orale qui est d’essence mythologique et
incompréhensible hors d’elle.20

O ponto de vista sincrónico contemporâneo possibilita-nos realmente colocar o mito


como o início da literatura fantástica 21, porque hoje já podemos avaliar que o mito introduz na
literatura um esquema que se torna a base do conto fantástico moderno. Este esquema passa
pela tradição literária e cada época acrescenta as suas próprias estruturas superficiais, que
serão ou conservadas, mais ou menos adaptadas, ou completamente mudadas.22
Se ambos os géneros que aqui comparamos estão ligados pelo seu carácter ficcional, a
sua tarefa primária consiste em criar a sua própria veracidade, de modo que o leitor acredite
nela. E dado que, com o decorrer do tempo, muda naturalmente o destinatário, os meios com
os quais esta veracidade é atingida têm que ser adaptados. Simultaneamente, nem as
mudanças temporais nem o mundo referencial se perdem; desse modo, a significação torna-se
a categoria variável trazendo os denotativos correspondentes à época respectiva. Em
consequência, a narração resultante reflecte na sua estrutura todas estas mudanças. Não
obstante, o regresso à forma narrativa originária pode ajudar-nos a esclarecer os sentidos
escondidos que são amiúde perdidos sob a significação complicada. A comparação entre as

20
Ibid., p. 271.
21
Por este começo comum e pela extensão imensa que o fantástico cria pelo vazio misterioso a que se dirigem os
conotativos da narração, recomendamos manter para ambos os géneros a comum denominação todoroviana – a
literatura fantástica. Visto que se trata de uma estrutura complexa, baseada em fundamentos comuns, a
introdução de outros termos explicativos poderia, em vez de clarificar, ainda complicar o seu conhecimento. Por
esta razão, propositadamente omitimos as noções de maravilhoso ou de estranho introduzidas por Todorov. Nos
termos referidos, a única diferença consiste na medida da explicabilidade, que consideramos como insuficiente.
A explicablidade é uma noção bastante vaga porque, por exemplo, a decomposição da qualquer narração com a
ajuda dos componentes básicos do signo linguístico, oferece-nos igualmente uma certa explicabilidade. Um
exemplo é o caso do de Jorge Luis Borges, que introduz na sua narração o objecto, real e explicável, que para o
personagem se torna fantástico pela mera razão de nunca o ter visto. Assim, por um lado poderíamos afirmar que
é da intrusão do elemento desconhecido que provém do fantástico, do atributo estranho que quebra a
compatibilidade da narração; mas, por outro lado, basta desenvolver a descrição do objecto pelos outros atributos
e tornará-se desmitizado: «Entre ellas –con un perceptible y tenue temblor de pájaro dormido- latía
misteriosamente una brújula. La princesa no la reconoció. La aguja azul anhelaba el norte magnético; la caja
de metal era concava […] Tal fue la primera intrusión del mundo fantástico en el mundo real.» BORGES, Jorge
Luis; Ficciones, p. 33.
22
Neste contexto, convém de novo citar as palavras de Borges que percebe toda a literatura como uma possessão
comum em que o autor apresenta a ausência anónima e o único sujeito, hiperónimo absoluto, é a literatura: «En
los hábitos literarios también es todopoderosa la idea de un sujeto único. Es raro que los libros estén firmados.
No existe el concepto del plagio: se ha establecido que todas las obras son obra de un solo autor, que es
intemporal y es anónimo.» Ibid., p. 28.

17
estruturas narrativas permite-nos igualmente descobrir que às vezes o fantástico que pretende
ser criado apresenta somente o engenho do seu autor e nada mais.
Sem embargo, à evocação do fantástico basta a significação adequadamente escolhida;
porém:

[...] se o conto fantástico, respectivamente o seu autor, pretende atingir o fantástico, deve ter em conta o
marco referencial da época.23

Do mesmo modo como é possível caracterizar o nível linguístico pela sua unidade
básica, o signo, a ficção, com o mesmo grau de abstracção, pode ser concretizada pelo
atributo. O atributo24 é o indício ficcional que caracteriza a ficção e concretiza a significação,
incluindo os seus elementos, desde os objectos concretos até às categorias miméticas que
entram no serviço da ficção.
Se a suposição da ficção da literatura fantástica é criar a totalidade verdadeira que é
apresentada ao leitor e se se torna o único requisito para que o leitor aceite o fantástico, os
atributos têm que ser adaptados a este fim. Mesmo que perdure o esquema dado pelo mito, se
ficassem também os seus atributos míticos, a narração perderia o efeito convincente o até
resultaria ridícula.
O escritor espanhol Javier Tomeo baseia neste contraste todo seu livro El Canto de las
tortugas cujo protagonista provém do universo mítico e como o índio de antanho passeia pela
aldeia e fala com os animais, que lhe respondem, como era natural no mito; e, da mesma
maneira como o índio de antanho, o personagem é dotado de uma eloquência pouco habitual
no discurso ordinário. A antinomia entre o protagonista, atributo mítico, e os representantes
do campo rude completamente contemporâneo, realiza-se de modo ostensivo no nível
discursivo. Como é apresentado no fragmento, o homem segue os procedimentos discursivos
pertinentes no mito: as figuras de repetição, a enumeração supérflua dos animais, em suma, a
citação explícita de todas as categorias miméticas, de cujo valor o índio sentia a necessidade
permanente de assegurar-se:

- Un momento, un momento –le interrumpo para que las cosas queden muy claras desde el principio y
no haya luego malentendidos-, lo único que quiero hacer en este pueblo es hablar con los animales. Para
eso vine aquí. Para hablar con las vacas, con las gallinas, con las cabras, con las ovejas y con todos loS
animales que viven en este pueblo y sus alrededores.
23
LUKAVSKA, Eva; «Hispanoamerická fantastická povídka», in: Had, který se kouše do ocasu, Host, Brno
2008, p. 15. (A tradução ŠN)
24
Trata-se do nosso termo.

18
- Ya –susurra el alcalde, rascándose la barbilla.
- Lo que yo pretendo –continúo explicándole- es que los animales me cuentan sus problemas. Puedo
entrevistarles por las mañanas, y por las tardes pasar las entrevistas a limpio.25

Pelo uso dos atributos míticos e pelo seu contraste com os contemporâneos, o autor
pretende, de certa forma, manipular ou causar efeito sobre o leitor - pela transgressão
temporal entre atributos atrair a sua atenção sobre o protagonista que, na perspectiva do leitor,
no melhor caso, será considerado ridículo, ou, no pior, louco.
Uma manipulação idêntica, mas com o efeito oposto, aparece apresentada pela frase:

No me parece justo que los poetas sean mirados con tanta indiferencia por los perros .26

Tal afirmação confirma a importância do narrador de ficção visto que forma em seu
redor uma aura de veracidade que lhe empresta o direito de considerar-se por exemplo como
poeta27, se o julgar pertinente. Por esta «auto-identificação» refere-se à tradição literária, cujo
sucessor pretende tornar-se e que, ao mesmo tempo, tem que prestar-lhe a legitimidade dos
narradores míticos que gozavam de tal estima que inclusive os animais lhes manifestavam
veneração. A ficção que ele mesmo cria possibilita-lhe fazer tais afirmações, as quais, numa
situação quotidiana, causariam, pelo menos, algumas dúvidas sobre a saúde mental do falante.
Ao invés, na ficção, o leitor é conduzido ao estado de hesitação acerca da causa por que os
cães são tão indiferentes.
Pressupomos que o autor de antigamente tentava explicar os elementos que o
rodeavam e para os quais não havia nenhuma explicação; criava, assim, a ficção, uma
narração baseada na sua própria veracidade, esquema no que criam os seus sucessores.
Todos estes sucessores são dotados de um poder ilimitado, dependendo somente de
cada autor o que fazer com este esquema, porque com cada narração é formado um novo
mundo28, que se parece com o mundo referencial, mas que na verdade trata-se de uma
construção com as suas próprias regras – regras que, sendo forçosamente influenciadas pelo

25
TOMEO, Javier; El Canto de la tortugas, Editorial Anagrama, Barcelona 1998, p. 10.
26
Ibid., p. 24.
27
«Aprovecho la oportunidad para decirle que también soy poeta.» Ibid., p. 12.
28
A narração, a sua história pode afinal ser um facto qualquer emprestado do mundo referencial; sendo narrado,
este facto, factum, converte-se em fictum, o universo subjectivo do seu criador. Neste universo funcionam as
regras linguísticas que estabelecem a sua existência no seu próprio tempo, nas dimensões do seu hic et nunc
interior:« l’histoire qui est un fait réel, avec son propre ‘univers fictionnel’, le monde où se déroule ce qui est
raconté – qui est un fictum. Pour comprendre le rapport ordinaire entre un texte et l’univers fictionnel qu’il
déploie, l’on peut prendre modèle sur l’expression de linguistique de la croyence . » LELLOUCHE, Raphaël;
Borges ou l’hypothèse de l’auteur, p. 214.

19
mundo referencial, são também marcadas pela subjectividade de autor, pelo mundo interior da
fantasía:

Podemos decir que la fantasía es, para estos autores, una forma de expresar la nostalgia de un mundo
estructurado y jerarquizado. Así, lo fantástico se define no por la presencia de elementos sobrenaturales
en la realidad representada, sino por la creación de mundos maravillosos, autónomos y alternativos, con
estructura propia.29

O mundo assim criado funciona como uma estrutura fechada com as suas regras, onde
o autor representa a instância superior que, juntando nessa sua construção a sua experiência
subjectiva, multiplica a intersecção das palavras 30 - um labirinto em que há muitos caminhos
rumo à sua interpretação:

será un laberinto, pero es un laberinto urdido por hombres, un laberinto destinado para que lo descifren
los hombres.31

Entre as regras próprias da ficção sobressai o seu tempo interior, cujo decorrer é
medido pelo autor. A manipulação temporal, impossível no mundo referencial, na maioria dos
casos provoca o fantástico. Dado que o autor está situado no mundo referencial, e não tendo a
experiência directa desta manipulação, pode continuar desenvolvendo a sua narração (e a
transgressão produzida torna-se mais ou menos desejada); ou pode abandoná-la e esta, com a
ajuda de conotativos incompatíveis, provoca o efeito de fantástico.
Apesar deste fenómeno, a manipulação do tempo quebra a linearidade da narração 32 e
a sua consequência pode ser a representação de um sono com uma duração excessiva. O sono
mesmo pode veicular várias dicotomias na narração: se, na ficção, a manipulação do tempo se
compatibilizar com o nível verbal, ela é facilmente comutável com o «sonho», fenómeno
dotado da sua própria linguagem; se, pelo reforço verbal, ela se aproximar do «sono eterno»,
sendo assim denominada ela implicitamente presta ao autor o direito de falar sobre o
despertar.

29
RODERO, Jesús; La Edad de la Incertidumbre, Peter Lang, New York 2006, p. 12.
30
« A palavra literária não apresenta um ponto (um significado fixo), mas funciona como a intersecção dos
espaços dos textos, como o diálogo das várias espécies da escritura.» KRISTEVA, Julia; Slovo, dialog a román,
Sofis, Praha 1999, p. 7. (A tradução ŠN)
31
BORGES, Jorge Luis; Ficciones, p. 35.
32
Na ficção podem inclusivamente coexistir dois tempos interiores que se denegam reciprocamente, o que
conduz à manipulação desejada do leitor ou à provocação dos transgressões na narração: «Le confieso que hasta
este año nunca había visto una primavera sin golondrinas y Roque me dice que no estamos en primavera, sino
en invierno, y que faltan sólo unas cuantas semanas para que sea Navidad. Es un gato bromista, que le gusta
tomar el pelo a la gente.» TOMEO, Javier; El Canto de la tortugas, pp. 16-17.

20
Não obstante, outras considerações teóricas ultrapassam a intenção deste estudo e, por
isso, passaremos já às provas concretas da proposta identificação.

3.O rio isotópico

21
O tema do presente capítulo é o rio; por conseguinte, também o nosso capítulo será
isotópico. Além desta razão secundária, atribuímos-lhe este título porque o rio, nas narrações
escolhidas, constitui um motivo isotópico.33 O estabelecimento do motivo dominante, a que
se referem todos os motivos parciais, 34 caracteriza estas narrações, fazendo delas uma
totalidade complexa mas de certo modo unificando a sua interpretação.
Para esta interpretação, nos dois primeiros exemplos tentaremos apoiar-nos também
nos conhecimentos que a psicanálise nos oferece acerca da linguagem. 35 Como vimos no
capítulo precedente, tanto a linguagem como o sonho são descritíveis pelas regras sintácticas
baseadas na unidade essencial da palavra - o signo linguístico – que, pelo seu carácter
bipolar, entra nas construções mais complicadas com a mesma configuração.
Como bipolar funciona também a relação entre a realidade visível e a realidade de
sonho, e também a relação entre as palavras pelas quais são estas realidades descritas. Freud
divide-as em «palavras de espírito» e «palavras de pensamento». 36 A palavra de espírito na
narração concreta, alcança um poder superior ao do sonho, porque interpreta o visto,

33
« Les sèmes contextuels ou classèmes, définissent, dans un texte donné, l’(ou les) isotopie(s) qui granti(ssen)t
son homogénéité : une séquence discoursive quelconque sera dite isotope si elle possède un ou plusieurs
classèmes récurrents. [...] Le concept fondamental d’isotopie [...] rend possible la lecture uniforme du récit,
telle qu’elle résulte des lectures partielles des énoncés et de la résolution de leurs ambiguïtés, qui est guidée par
la recherche de la lecture unique. » COURTES, Joseph; La sémiotique narrative et discoursive, Hachette,
Baume-les-Dames 1993, p. 50.
34
Joseph Courtés parafraseia A.-J. Greimas: « L’isotopie peut se définir comme ‘la permanence d’une base
classémantique hiérarchisée, qui permet, grâce à l’ouverture des paradigmes que sont les catégories
classématiques, les variations des unités de manifestation, variations qui, au lieu de détruire l’isotopie ne font au
contraire que la confirmer (GR 1966, 96). » Ibid.
35
Entre ambos os domínios, psicanálise e a linguagem, podemos observar uma relação extremamente estreita: «
Le problème des rapports étroits entre psychanalyse et langage est complexe. ». A base com a qual os dois
domínios trabalham é a palavra, o discurso de matiz pessoal do sujeito falante. No caso da psicanálise, a
instância narrativa é o paciente: « Soulignons d’abord le fait que la psychanlyse voit son objet dans la parole du
patient. » A palavra permanece a unidade básica, visto que nem psicanalista nem leitor encontram outro meio
que intermedeie o conhecimento do consciente, quanto mais o inconsciente do paciente-narrador: « La
psychanalyse n’a pas d’autre moyen, d’autre réalité à sa portée pour explorer le fonctionnement conscient ou
inconscient du sujet que la parole, ses structures et ses lois; c’est là que l’analyste découvre la posture du sujet .
» O espírito humano tem a tendência natural à generalização. Por esta razão, o sonho amiúde enfoca um único
motivo que ocupa o consciente do paciente. Analogamente, o narrador tende a adoptar um motivo, uma isotopia,
que faz a sua narração mais clara e persuasiva. O motivo, da mesma maneira como o ponto ao qual é atraído o
paciente-narrador, torna-se «o sintoma» da narração: « En même temps, la psychanalyse considère tout
symptôme comme langage: elle en fait donc une espèce de système signifiant dont il faudrait repérer les lois qui
sont semblables à celle d’un langage. » O sintoma não abandona o nível linguístico porque lhe presta a
interpretabilidade pelas regras linguísticas. O sintoma logo conduz às entidades mais complicadas, cuja
interpretação é possibilitada pelas regras linguísticas: « Le rêve que Freud étudie est également considéré avant
tout comme un système linguistique à déchiffrer, mieux, comme une écriture, aux règles semblables à celles des
hiéroglyphes. » KRISTEVA, Julia; Le langage cet inconnu, p. 264.
36
FREUD, Sigmund; Nouvelles conférences sur la psychanalyse.

22
enriquecendo-o pelas associações do narrador.37 Tendo a estrutura socialmente ancorada, esta
palavra adquire uma certa legitimidade que traz consigo uma dose da veracidade automática.
Esta palavra funciona como a palavra directa e

n’intéresse pas la psychanalyse en lui-même, mais seulement en tant que moyen de connaître
l’inconscient (ou le psychisme humain en général).38

De de facto, ela descreve o referente desconhecido. Ou seja, o referente é conhecido,


mas são desconhecidas as suas relações contextuais; se a palavra funciona como a palavra
directa, essas relações podem ser reciprocamente incompatíveis e, por esta razão, se não
forem intermediadas não são interpretáveis.
Se chamámos já ficção a essse processo, a narração pode liberatar-se da mera
representação subjectiva e alcançar maior ficcionalidade. Desse modo, o espírito, já
inteiramente situado no consciente, pode fazer a sua narração tornar-se ainda mais ficcional.
A palavra directa deixa de ser directa, é substituída pelos seus sinónimos. Já não se trata da
palavra do espírito39, mas do jogo de espírito intencional que, complicando a sintaxe,
complica também a significação. Esta transformação mescla a realidade visível com a
realidade de sonho.
Se o fim da ficção é criar a totalidade de veracidade, o mito coloca na tradição literária
o esquema em que ambas as realidades são situadas no mesmo nível. Esta aproximação
possibilita inteiramente que se a narração se desenvolva nas duas realidades que se
interpenetram. E, através desta nivelação, impossível no mundo referencial, é assegurado o
fantástico.

3.1 A realidade de sonho. Paronominari

37
A divisão freudiana e o seu funcionamento são parafraseados por Todorov : « Le fonctionnement du mot
d’esprit est analogue à celui du rêve ; c’est ce qui amène Freud, après avoir étudié l’un, à se tourner vers
l’autre. Le mot d’esprit a cependant un privilège sur le rêve [...] dont on semble pas s’être beaucoup aperçu :
c’est qu’il est plus facilment accessible à l’observation. Alors que, pour le rêve, on doit se reposer sur les
interprétations et associations du rêveur – qu’on du mal à côntroler -, avec le mot d’esprit on dispose d’une
matière verbale fixe et incontestable ; et du témoignage social, commun au sujets d’une même culture, sur la
manière dont ces mots doivent être interprétés. » TODOROV, Tzvetan; Théorie du symbole, p. 286.
38
Ibid.
39
« La double racine du plaisir spirituel – jeu avec les mots, jeu avec la pensée – et par conséquent, la
distinction principale entre l’esprit des mots et l’esprit de la pensée rendent difficile la mise en formules courtes
et précises des propositions générales relatives à l’esprit. » Ibid., p. 290.

23
Numa abordagem cronológica, damo-nos conta de que já desde a criação do mundo
ocorre a confrontação entre a realidade de sonho e a realidade visível. O sonho adquire aqui o
sentido da realidade paralela em que são, ou têm que ser, cumpridas várias tarefas.
A realidade, que estabelece o sonho, é percebida pelos índios como natural, de tal
forma independente e submetida às suas próprias regras que na narração mítica é ligada ao
motivo de nascimento.
O nascimento já de si mesmo apresenta uma estrutura semelhante, com as suas
próprias regras consideradas como misteriosas. Em redor da inexplicabilidade misteriosa do
nascimento cria-se o segredo que pode parecer natural no espaço com as regras implícitas,
embora não exactamente delimitáveis.
O nascimento e o sonho unem a sua origem mítica. Caso se convertam no motivo da
narração, podem conferir-lhe dimensões ilimitadas, que atingem o céu e até o universo donde
provêm os outros motivos. Por esta razão, nos mitos de índios encontramos uma quantidade
considerável de paráfrases, quando a lua desce do céu para visitar a mulher escolhida ou, sem
mais explicações, a nova vida nasce no sonho. De facto, neste caso a lua deve estar
implicitamente presente para vigiar o segredo desta realidade.40
Como exemplo citemos o mito «Poronominari»: quando à mulher «apareceu-lhe uma
sombra de homem»41, que, chegamos a saber mais tarde, partiu «subindo da terra para o
céu». Notemos que a aparição da lua forma a ancoragem temporal da história:
40
Neste contexto, convém acentuar o significado simbólico da lua e acrescentar que nas narrações o sono é
directamente ligado à noite, a fase temporal em que a lua tem o maior poder. Porém, o mito «Como a noite
apareceu» inicia-se: «No principio não havia noite – dia sòmente havia em todo tempo. A noite estava
adormecida no fundo das águas.» Assim, foi aí violado o equilíbrio que tem que reinar entre a realidade de
sonho e a realidade visível e forçosamente não se podia realizar o segredo do nascimento: «A filha da Cobra
Grande –contam- casara-se com um moço. [...] Um dia esse moço disse: ‘Minha mulher não quer dormir
comigo.’ [...] A filha da Cobra Grande respondeu-lhe: ‘Ainda não é noite.’ O moço disse-lhe: ‘Não há noite;
sòmente há dia.’ A moça falou: ‘Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, manda buscá-lo, pelo grande rio.»
(COSTA E SILVA, Alberto da; Antologia de lendas do índio brasileiro, p. 10.) Ainda convém mencionar que o
significado da lua como portadora do segredo perdura até literatura moderna. Como muda a ancoragem
referencial, a sua significação aparece ligeiramente adaptada. O nascimento pode tornar-se abstracto,
representando o nascimento de novos valores. Tal acontece, por exemplo, na peça teatral Bodas de sangre de
Federico García Lorca, onde a lua é promovida a personagem, que muda conforme a ambientação tornando-se
quase uma máscara carnavalesca que conota a fugacidade do tempo. A Lua aparece ligada ao sangue («¡Llena de
jazmines de sangre!»), e por isso à ameaça («¡Ay luna mala!/Deja para el amor la oscura rama.») A lua
lorquiana é tão reforçada pela tradição literária que pode ser considerada como o símbolo com significação
biunívoca («LUNA – Cisne redondo en el río/ojo de las catedrales,/alba fingida en las hojas/soy; ¡no podrán
escaparse!/[...]/La luna deja un cuchillo/abandonado en el aire,/que siendo acecho de plomo/quiere ser dolor de
sangre./!Dejadme entrar! ¡Vengo helada/por paredes y cristales!/ ¡Abrid tejados y pechos/donde pueda
calentarme!»), que traz a morte (formando assim a ancoragem da vida de determinados personagens).
Analogamente, a lua personificada aparece frequentemente no conto fantástico, como o atributo fatídico da noite
que profetiza a morte. (LORCA, Federico García; Bodas de sangre,
http://es.wikisource.org/wiki/Bodas_de_sangre:_Tercer_Acto, consultado 25 de Abril 2010.)
41
COSTA E SILVA, Alberto da; Antologia de lendas do índio brasileiro, Instituto Nacional de Livro, Rio de
Janeiro 1957, p. 138.

24
Quando ele já estava na margem do rio, a Lua saiu faceira no céu.
Fria luzia, clara como o dia.
Quando, dizem, já ela se sentava, olhou direito para ela, viu sair do meio dela um vulto.
Aquêle vulto vindo, descendo para a terra.
Aí já mesmo dizem, um sono grande a fêz dormir. Quando ela acordou de manhã cedo, a Lua já pedia-
se de outro lado do céu, vermelha agora resplendia.42

Na citação precedente, o traço marcante apresenta o uso repetido da forma verbal


«dizem» e sublinhemos que o narrador utiliza este recurso apesar da segurança do seu
anonimato e a sua situação narrativa fora da diegesis atribuindo-lhe o alcance aparente fora da
narração. Assim, podemos conjecturar que se trata da busca da consolidação da sua
veracidade. Uma manipulação ficcional semelhante é visível no uso dos inidcadores
temporais: a ligação das frases pelo «quando» anafórico pretende prestar à narração a
linearidade, a coerência que evoque o decorrer do tempo no mundo referencial.
O «quando» torna-se um meio adequado para a manipulação ficcional, vistas as suas
qualidades sintácticas: o indicador temporal introduz geralmente uma oração subordinada e,
assim, a atenção do leitor é concentrada na frase principal onde aparece a Lua.
Apesar do predomínio temporal, a Lua adquire uma importância sintáctica. Sendo o
sujeito da frase principal, debilita a influência narrativa do sujeito da frase subordinada. Ou
directamente suscita a impressão de que pode substituir-se-lhe, sendo expressa somente como
«ela».
Sob este «ela» elíptico esconde-se a protagonista que, como única personagem, não é
dotada do nome. Por conseguinte, atinge o significado da personalização da feminilidade
inteira e a sua concretização poderia enfraquecer esse seu significado simbólico.43
Reparemos que os períodos compostos introduzidos pela expressão «quando» rodeiam
a frase: «Fria luzia, clara como o dia.» Podemos afirmar que é justamente por esta frase que é
confirmada a relevância da influência da Lua - não só pela sua situação temporal (anafórica),
mas também pelo sujeito elíptico (a Lua domina a percepção do leitor de tal forma que já não
é necessário mencioná-la explicitamente). A seguir, destaca-se pela estrutura rítmica da frase
(que a separa por esta maneira do resto do texto) e verifica-se a comparação da Lua com o dia
(a comparação não se realiza no nível esperado, comparando-a com o Sol que apresenta o
antónimo lógico, mas ao dar-lhe o equivalente do período inteiro do «predomínio do sol»).
42
Ibid. (sublinhado por nós )
43
Se afinal a denominação da mulher («ela»), aparece mais explicitada, acontece assim somente no contexto
geral, sublinhandoo seu papel feminino. É o caso por exemplo da denominação filha.

25
Se temos o poder da Lua assegurado no nível narrativo (ou digamos que o leitor já
adquiriu essa falsa segurança44), a Lua pode abandonar o conceito da verosimilhança da
ficção. Então, as suas qualidades reais podem ser transformadas sem afectar a ficção e a sua
funcionalidade. Concretamente, a Lua pode aparecer a outra hora, fora do tempo que lhe é
reservado, sempre guardando a sua possibilidade fantástica de manipulação do sonho:

Sua filha, contam, foi descendo o rio de madrugada. Naquele dia ela ficou em cima de uma serra, a Lua
saiu mais bonita para ela, agora a sua luz dançava nos olhos. Porque ela estava cansada, dizem, dormiu
logo. Quando foi meia noite, sonhou que paria um menino macho, dono de tôdas as coisas. O seu corpo
era transparente, a sombra do dia aparecia de um para outro lado. Quando acordou, dizem já vinha
vermelho o dia, a água fazia barulho.45

Na citação apresentada, notemos que o narrador junta o novo meio de ficção a ambas
as realidades: alcança a plasticidade pelas cores. Este meio da ficção (ou dimensão do mundo
da ficção) facilita a personificação da Lua. Mais concretamente: com a sua luz (Cf. «Fria
luzia, clara como o dia.»), cresce de novo o seu poder e assim se torna mais viva («a sua luz
dançava nos olhos») e por conseguinte mais real (ou digamos mais verdadeira na ficção). Ao
invés, o dia perde gradualmente o seu poder («já vinha vermelho o dia»). E notemos de novo,
no fragmento, o quadro temporal que contém a gradação na ficção: já não bastam os recursos
verbais usados e o narrador completa a ficção pelo motivo do rio. Trata-se de um símbolo
dotado de enorme produtividade de interpretações, de conotações que automaticamente
surgem no mente do leitor.
O rio é susceptível de metaforizar o fluxo do inconsciente (referimo-nos à concepção
freudiana, portanto a uma construção abstracta que, segundo a nossa terminologia, não
pertence à realidade visível, encontrando-se ainda atrás da realidade de sonho), ou a corrente
forte ligada ao tempo. E trata-se do tempo submetido às suas próprias regras.
É de novo Freud quem designa a corrente do inconsciente, dividindo o sonho (o
espaço pelo qual esta corrente deve passar) em três fases ou operações. 46 Não é de estranhar
que, na terceira fase final da lenda «Poronominari», nasça o dono da terra; contudo, para a
apoteose narrativa, tem que ser ultrapassada a corrente de rio. Por este motivo, o feiticeiro

44
Com a revelação da artimanha narrativa, o leitor seria forçosamente lançado na hesitação postulada por
Todorov.
45
COSTA E SILVA, Alberto da; Antologia de lendas do índio brasileiro, p. 138.
46
Que Julia Kristeva resume: « En analysant le travail du rêve, Freud en dégage trois opérations fondamentales
qui marquent le fonctionnement de l’inconscient comme une « langue » : déplacement, condensation et
figuration. », KRISTEVA, Julia; Le langage cet inconnu, p. 267 e Cf. Ibid., p. 268-270.

26
«paié» e o seu neto «Logo, contam, êles embarcaram na canoa e desceram o rio.»47 Veja-se
que o narrador serve-se da expressão temporal «logo» e do verbo «descer», ambos recursos
linguísticos que semanticamente evocam o prosseguimento: a expressão temporal não é só
interessante pela sua vaga designação mas também por ser o primeiro atributo que não é
ligado à Lua. Ou, dito de outra maneira, a Lua é substituída pelo símbolo do tempo mais forte,
visto que já cumpriu a sua missão e perdeu a sua importância. A seguir, por esta penetração
no nível verbal, os símbolos do dia predominam: o Sol e o desejo de esclarecer o significado
do sucedido.
Neste contexto, voltemos ao verbo «descer», que evoca o avanço nos níveis freudianos
(em direcção à profundidade do inconsciente), mas também evoca o regresso, a descida nos
níveis temporais. Neste caso, o regresso à mulher e ao seu segredo. Se o encontramos no
mundo de ficcional, este regresso afecta logicamente o nível verbal:

Paizinho, sonhei muitas coisas bonitas, bonitas são elas mesmo, vou contar elas para ti. Sonhei êste meu
filho que está em mim, eu o pari em cima de uma grande serra.48

Advirtamos que a mulher relata que «o pari em cima de uma grande serra» - ou seja,
num lugar situado fora da potente corrente simbólica da água. Ou por outras palavras ainda,
num lugar onde o tempo parou (sendo situado fora da água que metaforiza o tempo) e, por
este facto, deve causar uma transgressão na narração, cuja fluidez e linearidade é assim
afectada. Encontramo-la igualmente na curta enunciação da moça: «êste meu filho que está
em mim», não obstante já sabemos que «o pari». Esta confusão é de novo encoberta pela noite
e pelo sonho:

Quando eu o paria, os animais vinham perto alegrá-lo. Se fêz a noite [...] êle chorava. Logo êle calou-se,
seu rosto se fêz alegre, os animais o lambiam de alegria. Como eu estava cansada, logo deitei meu filho
perto, adormeci. Quando acordei no outro dia, meu filho estava longe de mim ao comprimento de uma
flecha.49

Se o segredo do nascimento é ligado ao sonho, quando a mulher é o seu intermediário


(com o significado simbólico assegurado pelo mero «ela») e ela mesma é um elemento
misterioso (tacteando as regras do sonho) - para o narrador é melhor que saia da narração.
Tendo cumprido a missão narrativa, o outro contacto com a realidade de sonho poderia
47
COSTA E SILVA, Alberto da; Antologia de lendas do índios brasileiro, p. 140.
48
Ibid., p. 140.
49
Ibid., p. 141.

27
ameaçar a narração. Visto que a protagonista intermedeia as experiências vividas no sonho,
serve-se para a sua descrição das palavras de espírito. A narração restante, incorporando-as,
decorre nas palavras de pensamento.
Quando a mulher é excluída da narração, a narração pode prosseguir e a atenção pode
ser concentrada no dono da terra. Reparemos nas circunstâncias em que o encontra o leitor:

Já de madrugada, contam, o velho50 acordou espantando por ouvir barulho grande, preguntou aos
animais: - O que então se passou no meio de vocês?
Todos responderam: - Eis nascido Poronominare, dono da terra, dono do céu.51

Resumamos que o feiticeiro é tirado do sonho pelo barulho das palavras, visto que a
língua dos animais é baseada no código de comunicação 52 que, no mundo da ficção, se torna
facilmente compreensível. É, de novo, mediante a palavra que é concedida a decifração da
adivinhação53 ligada à interpenetração com a realidade do sonho.
Se resumirmos ainda mais, no esquema da narração mítica, encontrámos várias
discrepâncias (por exemplo na interpenetração temporal mencionada no discurso da mulher).
No entanto, a narração é sempre capaz da sua nivelação porque contém o motivo do rio que
corre ao longo da narração, acompanha todas as mudanças e constitui a sua ambientação.
Se o fantástico se baseia nas dicotomias, o rio é susceptível de as diluir e atenuar
qualquer transgressão no interior da ficção, porque «l’eau se situe toujours à mi-chemin des
deux termes polarisés».54

3.2 O sonho e a morte. O navio das sombras


Se, no mundo mítico, o sonho é ligado ao nascimento, no conto fantástico pode sê-lo à
morte. Se o fantástico se baseia nas dicotomias, ao nascimento opõe-se a morte; sendo a
mulher a personificação do segredo do nascimento, a morte pode oferecer várias formas. As
narrações míticas consideravam-na primeiramente como o sono, mas a tradição literária foi-
lhe atribuindo novos significados, cada vez mais horripilantes, podendo finalmente
50
Sob a denominação de velho, esconde-se o feiticeiro, avô do dono da terra.
51
Ibid., p. 141.
52
Cf. KRISTEVA, Julia; Slovo, dialog a román, pp. 49-50.
53
Esta decifração é confirmada e reforçada pelo discurso polifónico: na narração, vemos «barulho grande»
provocado pela palavra e o verbo «responderam». Além disso, o narrador recorre a outro código de comunicação
(o dos animais) e por todos estes recursos tem que ser de novo confirmada a validez da narração. Se usamos o
termo da adivinhação, referimo-nos assim à comparação de Freud (Cf. FREUD, Sigmund; Le travail du rêve) do
sonho com o hieróglifo (percebido como sistema de signos com referência à realidade visível) que possui a sua
própria «escrita» interpretável - sendo então possível expressá-la pelas palavras e encontrar a solução para a
adivinhação.
54
GREIMAS, A.-J.; Sémantique structurale, Librairie Larousse, Paris 1966, p. 232.

28
materializar-se na forma do navio. Do navio fantasma que ultrapassa o rio e se dirige à
segunda margem.
O motivo unificador torna-se o rio que liga a morte e a vida, branco e preto, narração a
representação.55 Em todas as dicotomias56 o rio traz nas suas águas a neutralização.57
De mesma forma, o rio atenua a oscilação entre dois níveis narrativos paralelos, tal
como acontece no caso do conto «O navio das sombras» de Érico Veríssimo. Liga-os assim
na corrente fluida que torna o leitor hesitante sobre o espaço em que se encontra.58
Mas, sobretudo, são desdobrados o espaço e o tempo. 59 «É noite escura.» A noite
torna-se o espaço em que é lançado o protagonista, condenado a tactear na sua escuridão. Os
pontos certos na opacidade da noite são o cais deserto (o cais representa a ancoragem
terrestre, a vida, e está deserto devido à realidade de sonho a que pertence, do sonho
individual do personagem) e o rio. O rio corre debaixo do cais somente para o homem e
marca os minutos que lhe ficam. («Os minutos que passam.»).
O rio torna-se assim o símbolo que delimita o tempo da vida do protagonista e o limite
entre a vida e a morte. Mas a expressão em minutos revela que já não falta muito para que a
morte sobrevenha - como testemunha também o espaço inteiramente dominado pela escuridão
e pelos outros atributos fatídicos que profetizam a morte. Ao espaço são emprestadas as
dimensões ilusórias onde se materializa o silêncio («o silêncio enorme e hostil») e apresenta a
ameaça («o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo.») que com o silêncio, torna-se
cada vez mais física («No entanto, reina o mais espesso silêncio...»).

55
Referimo-nos à divisão todoroviana que descreve a realidade linguística « la réalité linguistique est recouverts
par les mots ‘narrations’ et ‘représentation’. », que engendra outras dicotomias nas suas sub-estruturas : « Les
visions du récit concernait la façon dont l’histoire était perçue par le narrateur ; les registres de la parole
concernent la façon dont ce narrateur l’expose, la présente. C’est à ces registres qu’on réfère lorsqu’on dit
qu’un écrivain ‘montre’ les choses, alors que tel autre ne fait que les ‘dire’. » TODOROV, Tzvetan; Littérature
et signification, Larousse, Paris 1967, p. 83.
56
Nas dicotomias enumeradas é baseado o conto que será analisado a seguir. O preto e o branco funcionam
como os atributos da vida e da morte, mas simultaneamente descrevem o espaço, emprestam-lhe as dimensões
ilusórias que podem diluir o limite entre tempo e espaço. Este contraste de cores parece uma fotografia a branco
e negro que é um espaço limitado, mas também a lembrança que pode ser misteriosa, encoberta pelo tempo
remoto.
57
O rio é introduzido como o motivo da neutralização por A.-J. Greimas com base na ligação dos semas aos
classemas conforme ao tipo da narração. O objectivo é a descrição dos motivos e o estabelecimento da
designação exacta que especifique o termo vago, mas predilecto na teoria literária, o ambiente (le milieu) que
contém em si várias subdivisões: « Nous avons déjà eu l’occasion d’insister sur l’ambiguïté du lexème milieu,
qui désigne à la fois le centre de quelque chose et ce quelque chose qui entoure le centre. Cette notion est, en
effet l’exemple typique de la lexicalisation d’une structure déictique complexe, que l’on pourrait désigner, en
utilisant la terminologie de Jaspers, comme celle de englobant vs. englobé, que nous préférons à l’oppostion
‘contenant’ et ‘contenu’. » GREIMAS, A.-J.; La sémantique structurale, p. 226.
58
Assim são causadas outras dicotomias que Todorov resume nas perguntas : « L’ambigüité se mantient jusqu’à
la fin de l’aventure: réalité ou rêve ? vérité ou illusion ? » TODOROV, Tzvetan; L’introduction à la littérature
fantastique, p. 29.
59
Trata-se das categorias miméticas básicas que prestam ao leitor a segurança da ancoragem da narração.

29
O silêncio tem que predominar, porque aqui, como no sonho, já não se devem cumprir
nenhumas tarefas, aqui o homem passa aos lugares onde «O sonho vai-se realizar.». Aos
lugares entre o sonho e a morte. Se o sonho dava a possibilidade de realização do discurso,
aqui primeiramente morre a voz60:

Ivo quer lançar ao ar uma palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som morre com o eco. O
silêncio persiste.61

Se morre a voz, o homem começa a aproximar-se da morte, que, como «pavorosa


sombra envolve tudo» e começa a adquirir o predomínio convertendo-se duma vaga sensação
(«o grande transatlântico se desenha sem contornos certos») num barco fantasma.62
O barco pretende encher todo o espaço do silêncio («O navio apita. Um som soturno,
grave e prolongado, enche a grande noite.») e assim libertar completamente o homem da
realidade de sonho e assegurá-lo da sua importância, privando-o dos seus pensamentos («Fica
mais tranquilo e encorajado. Pode embarcar. Deve embarcar. Seria decepcionante perder o
navio...»). Ora, os seus próprios pensamentos possibilitam-lhe a passagem ao sonho que
estabelece a realidade em que os pensamentos predeterminam todos os seus elementos
(«chacun des éléments du rêve est surdétérminé, comme représenté plusieurs fois dans les
pensées du rêve»)63. E a fase na qual o homem guarda os seus pensamentos - cuja mera
imagem lacónica é o sonho64- encontra-se mais próxima do despertar.
O pólo oposto da dicotomia aproveitará da fraqueza deste momento, deixando soar a
voz de mulher na narração: primeiro, só fracamente, quando o homem, decidido, começa a
embarcar («Dirige-se para a prancha. Hesita uns instantes de partir, porque a seus ouvidos
soa, muito fraca, muito abafada a voz amiga.»). Logo soa mais alta («- Ivo, Ivo querido, não
me abandones.»), embora o protagonista não possa explicar a sua origem («Inexplicável. De
onde veio a voz?»), a voz ressoa mais alto que o som lúgubre do navio que agora percebe
como uma ameaça:

60
Notemos que o protagonista pronuncia o seu nome, que, como som, morre. Assim, ao nível verbal, já se
condena si mesmo à morte.
61
VERÍSSIMO, Érico; « O navio das sombras », Projeto Releituras, http://releituras.com/everissimo_navio.asp,
consultado 28 de Junho 2010.
62
Pela denominação « barco fantasma », o navio é promovido a objecto fantástico ambivalente, capaz de unir
(estando situado no rio, comunga da sua capacidade de neutralização) o significado do navio como atributo da
morte e simultaneamente encarnar «um fantasma» onírico que possa ser atribuído ao sonho.
63
KRISTEVA, Julia; Le langage cet inconnu, p. 269.
64
« Le rêve est bref, pauvre, laconique, comparé à l’ampleur et à la richesse des pensées du rêve. » Ibid.

30
É uma queixa, quase um choro e apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito rouco Ivo sente

o pavor do oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos navios perdidos a pedirem socorro, a
aflição dos náufragos, o horror das profundezas do mar. O apito uivante e áspero parece feito de todos
os afogados.65

A voz fá-lo voltar de novo ao nível de sonho, onde é obrigado de passar por todas as
três fases do sonho freudiano (que se realiza como a subida simbólica a uma torre que o afasta
da terra, da segurança provisória que lhe empresta o sonho. E o homem, atraído pela morte, é
vencido pela sua omnipresença: «Começa a subir.»). Não obstante, a morte e o sonho ligam-
se de novo no vago espaço comum. E se o homem volta à primeira fase do sonho, volta
simbolicamente também ao início da vida que ruma inevitavelmente à morte («Lembra-se de
um trecho de antologia da sua infância.»). O avanço para a segunda fase já apresenta a
condenação à morte (começa a libertar-se da sua auto-consciência e os pensamentos trazer-
lhe-ão a lembrança dum homem conhecido, também condenado à morte: «André Chenier
subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado.» No entanto, se a
primeira fase é caracterizada pela união do sonho com os pensamentos, as outras fases os
abandonam e predominam as sensações). E o protagonista sente a inevitabilidade da morte
(«Ivo começa a tiritar. [...] Sente uma fraqueza, uma tontura.»). A fase final já não fica longe:

Subiu apenas sete degraus o cais está tão longe de seus pés, que ele tem sensação de se encontrar no alto
duma torre altíssima. O vento sopra gelado como a face dum morto.66

E finalmente, o homem embarca. Sente que já está perdido; apesar desta sensação, o
facto de que o navio fica sempre no rio, dá-lhe a esperança do regresso, que se manifesta
também pelos desejos terrestres: «- Pode me dizer onde fica o bar? Sim, precisa tomar uma
bebida qualquer» e pelos achaques terrestres: «Deve ser o frio que o deixa assim tão sem
memória, tão fraco e trêmulo.»
O rio é de facto capaz de salvá-lo, de nivelar pelas suas qualidades neutrais os pólos da
dicotomia; contudo, na narração intervém um outro elemento com consistência semelhante à
da água, mas com uma forte significação unívoca: «Será sangue? Sim, deve ser...».
Depois deste momento vem a ruptura na narração. O conto situado no escuro com
leves fantasmas brancos é desde o começo acompanhado pelo desejo da luz e finalmente esta

65
VERÍSSIMO, Érico; « O navio das sombras », Projeto Releituras, http://releituras.com/everissimo_navio.asp,
consultado 28 de Junho 2010.
66
Ibid.

31
é trazida pela voz feminina. A voz liberta a narração de tactear na escuridão da incerteza e
traz o seu esclarecimento: «- Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste
isso? Por que foi?».67
Para primeira vez, a mulher explicita a ligação do homem à morte. No momento em
que o protagonista está definitivamente perdido, a narração volta, por intermédio da mulher,
à vida (da realidade de sonho à realidade visível). A celebração da vida representa a ruptura
nos procedimentos narrativos, que se convertem num diálogo polífono (relembremos que o
diálogo polífono acompanhava igualmente o nascimento do dono da terra Paronominari), que
se torna uma resposta à réplica da mulher.
A narração é agora concentrada nela e, sendo a mulher a personificação do
nascimento, a morte deve abandonar o espaço narrativo («O transâtlantico vai partir.»). A
morte tenta soar mais alto que a voz da mulher («o tansatlântico apita»), mas finalmente sai
derrotada («É um gemido rouco, longo, doloroso, desesperado, irremediável»).68 E como a
morte, afasta-se também o protagonista que se torna uma sombra. Uma lembrança:

Debruçado à amurada, Ivo olha o vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O
vento do grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas.69

3.3 O desacordo comunicativo. A canoa antropófaga


Neste subcapítulo voltaremos de novo a enfrentar a corrente do rio, evocando pela
última vez os possíveis significados deste motivo que, sendo unidos, podem terrivelmente
influenciar os objectos que chegarão ao contacto com as suas águas.
O rio não metaforiza apenas o tempo, mas pode também adquirir o valor simbólico do
discurso. Enquanto exactamente corrente de significantes, o significado esconde-se nas
profundidades diáfanas do rio. Como entre o nível da água e as suas profundidades funcionam
as relações físicas, assim se passa também na linguagem. Por isso, o primeiro nível, o nível
superficial, representa os significantes.
Não obstante o seu predomínio, a ignorar as profundidades da água pode levar à
perturbação da hierarquia natural na linguagem. 70 Por exemplo, a evocação das novas
conotações pode levar à evocação do fantástico.
67
Ibid.
68
A sequência dos adjectivos imita o movimento das ondas, no qual é visível a gradução (que cresce como o
navio se afasta do cais) que expressa a derrota da morte que foi vencida pelo motivo mais forte.
69
Op. cit.
70
« Le principe de la primauté du signifiant instaure dans le langage analysé une syntaxe qui saute le sens
linéaire de la chaîne parlée, et relie des unités signifiantes localisées dans divers morphèmes du texte, suivant
une logique combinatoire. » KRISTEVA, Julia; Le langage cet inconnu, p. 274.

32
Se o fantástico gosta das dicotomias, o mito «Canoa mágica» 71 apresenta um exemplo
extraordinário. Por um lado, aparece aqui a canoa – mensageiro da morte; por outro lado, a
mulher, que traz à narração o motivo do nascimento. E o campo de batalha adequado torna-se
o rio que, sempre guardando o significado do símbolo do tempo, liga ambos os pólos de modo
propício. E, caso um outro elemento entre na narração, encontrando-se dentro desta oposição,
tem que ser eliminado. É o que acontece ao homem, quando se afasta da canoa, atributo da
morte, para dedicar-se à sua mulher, quebrando o equilíbrio provisório entre os pólos
divergentes.
Mas voltemos ao início: um homem (denomindo somente como um homem – o
personagem é de novo limitado a ser um mero intermediário tipificado) fabrica a canoa (esta
facto é expressado já pela primeira frase). Imediatamente se segue a informação: «Mal o
fabricou, a sua mulher pariu.»72 Por causa deste acontecimento, o homem esqueceu a sua
canoa e deixou-a no rio.
Acentuemos ainda que, como o homem é o criador da canoa, automaticamente
pressupomos que provém da mesma ficção, construído pelo código de comunicação. Apesar
deste facto, o homem prevê a ameaça possível proveniente da sua canoa (a sua potencialidade
de adquirir outra realidade ficcional):

Provavelmente a minha canoa já não servirá para nada, mas apesar disso, vou ver em qual estado se
encontra.73

Posteriormente encontra a sua canoa, mas comete o erro74 de promover a embarcação à


categoria de ser vivo, justamente pela comunicação. Começa por uma exclamação, em que lhe
atribui o código dos animais: «O que é que passa com a minha canoa? Já é quase um
animal!»75 Mais exactamente, por esta exclamação lhe impõe um código de comunicação; e,
até o momento da realização desta frase, a canoa apresentou somente um dos atributos

71
Cf. Poronominare, pp. 56-57.
72
Ibid., p. 56.
73
Ibid.
74
Usando a palavra «erro» não se trata de exageração, mas do verdadeiro erro que denomina a semiótica e
resume os outros actos da canoa. Como o homem abordou o objecto, evocou as novas conotações: «La
signification connotative s’applique aux objets, par conséquent, elle ne relève pas de la linguistique, bien que
celle-ci doive en tenir compte. D’autre part, cette signification secondaire n’est pas arbitraire, elle ne dépand
pas de la volonté d’un individu. Dans toute société, qu’elle soit imaginaire ou réelle, les objets forment un
système significatif, une langue, et c’est à l’intérieur d’elle qu’apparît la connotation.» TODOROV, Tzvetan;
Littérature et signification, p. 30. A significação recém-adquirida não é arbitrária – o leitor é automaticamente
obrigado a perguntar-se donde provém. Ora, caso se trate do objecto, às suas qualidades fantásticas ligam-se as
conotações da narração.
75
Op. cit.

33
ficcionais. Não obstante, o homem gradua o seu erro: «Quando se assentou na canoa, pediu:
‘Levar-me-ás?’»76 Tornando-se interlocutor do discurso realizado no código de comunicação
considerado como mais desenvolvido, o objecto é definitivamente mudado. Quando se
encontra no rio, fora da margem, na narração está-lhe automaticamente atribuído o nome
Igaranha. E, se se aproxima do homem pelo nível verbal, deseja compartilhar com ele
também dos atributos do mundo de ficção – aqui, os peixes.
No primeiro dia, a canoa contenta-se em tragar silenciosamente os peixes pescados.
Mas a canoa fica durante a noite no rio, de que (sendo o símbolo do discurso) deriva o seu
poder superior, que lhe empresta autonomia. 77 Esta autonomia realiza-se primeiramente no
seu movimento (no rio) e depois na capacidade de comunicação. Então, a canoa tenta
comunicar com o homem por sons incompreensíveis para ele. Por causa do desacordo de
comunicação, o homem é devorado pela sua canoa.
Afinal, o homem torna-se a vítima do objecto que criou e que promoveu pelo discurso.
Mas, simultaneamente, violou as regras dadas da linguagem 78 e assim a ordem estabelecida. A
canoa desenvolveu o seu código de comunicação no outro nível, que vista, a sua proximidades
dos peixes, tem que ser significante (de resto a canoa não abandona o nível da água que
simboliza os significantes). Como uma tentativa da compreensão recíproca pode ser
considerado o acto violento:

A antropologia que se ocupa da vítima, como parece, é capaz de mostrar que todas as religões narram
do acto único – do único acontecimento thético que termina a violência 79 pelo acto violento formando
assim um certo sistema ou a estrutura do intercâmbio, da comunicação, e por conseguinte significante. 80

E aqui termina a narração e o leitor pode só conjecturar o que se passou com o objecto,
dotado não só do seu próprio código de comunicação, mas também do poder superior com
que nem o narrador sabia o que fazer. Por isso, é melhor, tanto para o narrador como para o
76
Ibid.
77
No entanto, a canoa já é promovida a objecto fantástico que entra na dicotomia fantástica. Assim ocorre pela
intervenção no nível discursivo que engendra a significação conotativa. Em resultado, o objecto já não pode ser o
mesmo nem pode voltar no seu estado inicial: «On parlera de connotation chaque fois qu’un objet est chargé
d’une fonction autre que sa fonction initiale.» TODOROV, Tzvetan; Littérature et signification, p. 30.
78
« ... le langage dont l’homme a depuis toujours maîtrisé la pratique – qui ne fait qu’un avec l’homme et la
société, auxquels il est intimement lié -, ce langage [...] est susceptible de nous introduire non seulement aux lois
de son propre fonctionnement, mais aussi à tout ce qui relève de l’ordre du social. » KRISTEVA, Julia; Le
langage cet inconnu, p. 9.
79
No mito analisado, a violência pode ter numerosas interpretações. Sobretudo pode referir uma violação das
regras da língua, um desequilíbrio entre dois pólos da dicotomia fantástica que foi provocada quando o homem
esqueceu da canoa pela sua mulher. Sendo promovida a ser superior, a canoa sente «ciúme», a violência que lhe
foi causada.
80
KRISTEVA, Julia; Polyfonie; p. 56. (A tradução ŠN)

34
leitor, que o objecto desapareça da mesma maneira súbita com que se manifestaram os seus
poderes fantásticos.
Portanto, a canoa já teve tempo para deixar um vestígio na tradição literária. E os seus
sucessores materiais aparecem no conto fantástico. Como se trata de uma ficção com a
significação mais elaborada, os objectos não devoram só os personagens (mais ou menos
simbolicamente), mas também as categorias narrativas.
Espreitando a sua ocasião, eis os :

Objectos que enchem o mundo das histórias e formam o inventário material, são as coisas-partes do
conhecido mundo quotidiano. As coisas ordinárias que sob a aparência banal escondem a natureza
inquietante, misteriosa, horripilante, são essência do conto fantástico e potenciam a oscilação entre os
níveis das realidades inconciliáveis.81

Simultaneamente, os objectos são susceptíveis de estimular o efeito da hesitação


todoroviana e, por este facto, obrigam o leitor a procurar os novos conotativos que, na
narração na qual se introduzem, podem adquirir. Daí se infere que o objecto é portador de
outra configuração ficcional que possui a narração.

D’habitude, lorsque les personnages ou les objets se métamorphosent, l’action se complique, le


dénouement s’éloigne.82

Assim, surge a necessidade de criar um novo código de signos (de signos linguísticos),
o que, na maioria dos casos, não é possível 83, produzindo-se o estado que podemos chamar o
vazio de comunicação, em que se obriga automaticamente o leitor a procurar os conotativos
do fantástico.84

81
HAZAIOVÁ, Lada; Skryté tváře fantastična, Univerzita Karlova, Praha 2007, p. 238. (A tradução ŠN)
82
DINU, Mihai; « Métamorphose et généalogies mythiques », in : La sémiotique formelle du folklore, Editions
Klincksieck, Paris 1978, p. 245.
83
Em particular se se trata do objecto que percebe e conhece o código de comunicação inicial; porém, não é
capaz de responder através dele ou responde pelo código próprio - como vimos no mito analisado.
84
Mihai Dinu acrescenta: «Le changement ne concernait donc que les relations de l’individu avec le monde
extérieur puisque la faculté de communiquer avec l’entourage se trouvait altérée par la métamorphose.» Op.
cit., p. 250.

35
4. A materialização
Tendo esboçado o carácter do fantástico nos capítulos precedentes, passemos
directamente aos exemplos. O seu ponto comum será a materialização, a metamorfose
directamente ligada ao tempo. No caso do primeiro conto, o tempo materializa-se por
intermedio da ampulheta, o que não seria para estranhar, se o relógio não fosse promovido,
com a ajuda das referências verbais, a objecto do desejo perverso. Este desejo pode tornar-se
igualmente a causa do encarceramento entre os níveis temporais que sempre reflectem a
imagem do sujeito, afectado de tal modo que não está certo da sua situação - como se
apresentará no segundo exemplo. O reflexo de espelho conduzir-nos-á de novo ao mundo
mítico onde, tal como o espelho abre o espaço aparentemente infinito, o mito calcula com a
mesma infinidade o espaço temporal. Como veremos na última narração analisada, a morte é
percebida como o momento do reflexo e os narradores tentam, pelos recursos verbais, enganar
o tempo delimitado da morte.

4.1 A ampulheta diabólica

36
No conto moderno «O homem da ampulheta», as dimensões fantásticas são
estabelecidas de novo, como acontecia no caso do mito, pela situação excepcional do objecto.
Não obstante, neste caso, o narrador já desde o início pretende impor ao leitor a sensação da
coincidência dos atributos temporais entre dois mundos ficcionais que influenciam a narração.
O primeiro deles é o mundo próprio da narração, que podemos chamar como
principal, visto que apresenta o marco da primeira leitura, a estrutura superficial da ficção
apresentada. No fundo desta estrutura narrativa, encontra-se o segundo mundo, que é
construído na base das outras narrações diversas. Trata-se das referências hipertextuais
incorporadas ao conto que introduzem neste primeiro mundo as concepções tradicionais e
simbólicas que têm que distrair a atenção da narração principal. Este nível narrativo é
formado pelas palavras directas, que são ligados ao referente pela relação estreita; contudo,
justamente o segundo nível tenta quebrar esta relação pela incorporação de uma significação
diferente.
A título de exemplo, mencionemos que o narrador faz contrastar só e justamente no
nível verbal duas durações: a necessária para fazer ferver os ovos, que não apresenta mais do
que um breve tempo condicionado pela vontade do sujeito e a duração da vida humana. Esta
comparação contrastante, coexistindo no mesmo nível verbal, traz-nos o resultado de que,
igual e logicamente, a vida é condicionada pelo tempo medido por um relógio. Disso logo
resulta que o tempo é ligado ao objecto, ao atributo físico do tempo, e desta maneira são
prestadas a um objecto banal qualidades aparentemente fantásticas.
Estas transgressões intencionais na coerência lógica têm que servir ao narrador como
um alibi hipertextual, que pretende ainda reforçar pela aglomeração das novas palavras. O
narrador tenta assim conduzir o leitor ao raciocínio análogo na continuação da narração. Este
efeito é produzido pela comparação do utensílio de cozinha vulgar com o relógio: sendo um
simples relógio, não obstante, pelo facto que o narrador o chama como «o aparelho diabólico
do destino»85, o relógio torna-se aparente e tendencialmente algo mais. Esta tendência
influencia também os elementos mais complicados da narração e, desta maneira, pode
também ser modificado o tempo, como ocorre no caso mencionado do relógio da cozinha. O
narrador impõe a regra de que, tal como depois do aviso do prazo do necessário para deixar

85
Cf. SCLIAR, Moacyr ; «O homem da ampulheta», in: Třetí břeh řeky, Dauphin, Praha 1996, p. 47. (A
tradução ŠN) E acrescentemos as palavras de Todorov que designa este fenómeno – a construcção do fantástico
aparente ou digamos do fantástico no nível verbal com os conotativos descifráveis: «Le surnaturel naît du
langage, il en est à la fois la conséquence et la preuve: non seulement le diable et les vampires n’existent que
dans les mots mais aussi seul le langage permet de concevoir ce qui est toujours absent: le surnaturel. Celui-ci
devient donc un symbole du langage, au même titre que les figures de rhétorique, et la figure est, on l’a vu, la
forme la plus pure de la littéralité.» TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, p. 80.

37
ferver a água, podemos continuar fervendo os ovos, assim depois do prazo destinado para a
vida, podemos continuar vivendo.
Em resumo: pela comparação inicial, o narrador concede-nos a chave para toda a
leitura. De facto, podemos ler toda a história como um alibi hipertextual, como a construção
completamente fictícia que faz referências aos outros textos – ou, então, como um conto
fantástico horripilante em que o objecto condena inevitavelmente todos os seus proprietários à
perdição.
Afinal, o narrador induz a esta última concepção já pelo começo tendenciosamente
escolhido: «O coleccionista das ampulhetas testou ao seu filho justamente isso: a
ampulheta.»86 Já pela primeira frase, pelo reforço com a ajuda do advérbio «justamente» e
pela separação sintáctica bem marcada, o narrador atrai a atenção do leitor para o objecto e,
pelos recursos verbais, empresta-lhe uma importância exepcional. Esta importância suscita no
leitor uma insegurança87 ansiosa a tudo o que poderá causar este objecto no desenvolvimento
da narração. E tal é a intenção do narrador: fazer da ampulheta um objecto aparentemente
fantástico e desviar a atenção de uma possível interpretação psicanalítica.
Caso não nos deixemos enganar, podemos designar o objecto como um fetiche: trata-
se dum segredo que passa do pai ao filho, excluindo as mulheres. O que é sublinhado já pelo
facto de que o pai aparece apresentado apenas como coleccionista e, na narração, desempenha
assim o papel do mero intermediário da paixão excessiva.
Mesmo que esta paixão tenha passado inteiramente ao filho, que inclusivamente se
deixa devorar por ela («As vezes ficava horas inteiras no desvão e na meia sombra observava
como a fina areia ...»88 - notemos o adjectivo atribuído à areia, dotado do matiz sentimental),
o narrador tenta repetidamente esconder este facto pela aglomeração das palavras pretendendo
conseguir que em vez da prova do sentimento perverso, a relação com o relógio se torne
misteriosa. Para o mesmo fim, é introduzida a paixão de outra índole, a relação com as
mulheres, que seja capaz de afastar não só o protagonista como a atenção do leitor do objecto
idolatrado:

Terminou os seus estudos na universidade, casou-se e levou a mulher à sua casa. Mas não lhe disse nada
da ampulheta; era uma moça sensitiva e parecer-lhe-ia mórbido. Em contrapartida a ele não, a ele não
lhe parecia nada mórbido.89

86
Ibid. (a tradução SN)
87
Referimo-nos à insegurança ligada à hesitação todoroviana.
88
Op. cit. (A tradução ŠN)
89
Ibid. (A tradução ŠN)

38
Apesar de ser usado o motivo do casamento, que na psicanálise é percebido como a
supressão do desejo,90 o objecto adquire tal influência no protagonista que exclui qualquer
outra forma da paixão. Com esta exclusão, a paixão de homem deixa de ser escondida pelos
diversos recursos verbais e é directamente designada como «mórbida», o que
simultaneamente conota a perversidade da relação implícita com a morte. Esta sensação
culmina com a afirmação de narrador:

Esta foi a invenção diabólica que lhe destruía a vida ou o resto da vida que lhe ficava. 91

quando percebe e chama o objecto «a invenção diabólica» - segundo os esquemas dos temas
fantásticos proposto por Todorov92, o diabo é a concretização mais frequente e mais forte da
paixão excessiva e carnal.

Como o tempo passava – e muito tempo tinha passado – tornou-se obssessionado com a ampulheta. 93

A gradação da paixão, a sua promoção à categoria de mania, mostra-se primeiramente


na estrutura superficial do nível verbal com a ajuda das figuras de repetição. A primeira é
semântica, atingida pela repetição dos motivos: concretamente se trata do tempo e do seu
decorrer (verbo «passar») e da ampulheta. A segunda é a repetição formal do verbo «passar»,
contendo além disso a gradação (pelo uso do advérbio «muito» e a mudança nos tempos
verbais que aludem à longa duração da inclinação perversa). A importância da duração do
período da paixão, generalizadamente da relação com o decorrer do tempo, aparece também
graficamente acentuada com a ajuda dos travessões. Ao mesmo tempo, os travessões nos
possibilitam saltar a enunciação. Se o fizermos, obteremos a oração: «Como o tempo passava,
tornou-se obssessionado com a ampulheta.», que testemunha a paixão crescente pelo objecto.
Neste contexto, citemos ainda:

90
Se estamos no conceito da psicanálise, deduzimos que o casamento tenha que servir para a supressão de Eros
(sendo como a cerimónia litúrgica consagrada ao culto da mãe – da Santa Virgem). No caso do protagonista do
conto, por influência deste fenómeno, é acentuado o predomínio de Thânatos. Repitamos que o Thânatos
apresenta a categoria oposta, que domina a parte escura da alma e é ligada à morte. Quando o personagem
principal conta o tempo, é afinal «o casamento com a morte» que se torna a sua paixão escura (a idolotração da
ampulheta, objecto fetiche) e o que simultaneamente exclui os outros sentimentos (como acontece no caso do
conto).
91
Op. cit. (A tradução ŠN)
92
Cf. TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, pp. 144-146.
93
Op. cit. (A tradução ŠN)

39
E ele ficou sozinho. No lugar da sua esposa, outras mulheres vieram mas só temporariamente; e a
nenhuma delas, não mostrou a ampulheta, não a mostrou a ninguém.94

A relação maníaca do homem é mostrada e demonstrada pelas primeira e última frase.


O homem fica sozinho com a sua paixão. E esta paixão é inteiramente exclusiva. Devora
somente o homem e simultaneamente exclui outras formas de paixão (o narrador sempre
insiste na relação com as mulheres) que possam debilitá-la. Acrescentemos que é tão
exclusiva que devora também o nível verbal: a vida do protagonista é descrita por tais
recursos verbais que mesmo inclusivamente já o nível verbal é dominado pelo relógio.
Primeiramente se trata do advérbio «temporariamente». Este recurso explícito da curta
duração da sua influência ligada ao tempo, faz logo a referência implícita à comparação 95 que
as mulheres se sucedem na sua vida de mesma maneira como se sucedem as horas; ou seja:
que as mulheres estavam ligadas ao tempo.
Dediquemos ainda a nossa atenção ao final do conto:

Podemos perguntar-nos: ocorreu alguma vez ao homem inverter a ampulheta? Invertê-la, virar é assim

para que tudo começe de novo? Parece que não lhe ocorreu. E caso sim, não atrevia a experimentá-lo.

Mas se o experimentou, não logrou; este relógio era pesado, bastante pesado para o homem que este dia
cumpriu exactamente sessenta anos.96

Quer o relógio fique como objecto físico, quer seja a representação da instância
superior ligada ao tempo, o final confirma a entrega inteira do protagonista à paixão. Mesmo
que o narrador tenha levado o leitor ao fim esperado - à morte inevitavelmente ligada ao
tempo - estabelece ainda o sentimento final da insegurança que, como a inversão simbólica da
ampulheta, nos deixa volver ao início e impõe a pergunta: a quem pertence a voz narrativa
cuja argumentação se apoia na ficção (no alibi hipertextual na forma das perguntas e nas
enunciações da potencialidade: «Parece que ...»)? A única certeza que nos fica é apresentada
pelo facto de que se trata de um demiurgo astuto (que é consciente da hesitação do leitor: Cf.
«Podemos perguntar-nos»), que por todos os recursos usados nos condena a errar. Agora,
também nós somos obrigados a voltar ao início da nossa análise, entre dois mundos: o mundo
94
Ibid. (A tradução ŠN)
95
Esta comparação funciona como a inicial, entre a duração da vida e a duração da ebulição da água. Não
obstante, pelo adiantamento na ficção e pela introdução da percepção psicanalítica dos símbolos, confessamos
que nos encontramos na confusão de interpretação. Este nosso estado é devido à insegurança sobre se ao objecto
tem que ser atribuída a função aparentemente superior com o motivo de influenciar a percepção do leitor, ou se o
objecto é a representação simbólica por algo mais (quando este vago «algo» pode referir-se aos numerosos
conotativos). Em consequência, encontramo-nos no estado da hesitação (mais ou menos) todoroviana.
96
Op. cit.(A tradução ŠN)

40
da primeira leitura e o segundo que faz da narração a intersecção de vários textos. Em
consequência, afinal, nos é impossibilitada a interpretação completa, tacteando assim um dos
tópicos do fantástico: o círculo vicioso.

4.2 O espelho. A transgressão entre os níveis de ficção


Este tópico torna-se o tema do conto «Nunca é tarde, sempre é tarde». Antes de nos
ocuparmos da sua análise, reparemos no mesmo termo «círculo vicioso» que, em português,
apesar do primeiro significado do encarceramento no tempo, pode evocar outros.
Especialmente o «vício», que designa não somente um defeito, mas pode atingir também o
significado do pecado. Então, já no nível verbal, este termo contém a transgressão na
dicotomia eterna do corpo e da alma que assim provoca «la mise en question de la limite entre
matière et l’esprit»97, que se torna o princípio do desdobramento da personalidade, susceptível
de mudar a configuração da ficção respectiva quebrando os seus limites estabelecidos que
consequentemente podem engendrar a perturbação dos atributos temporais:

Ce principe engendre plusieurs thèmes fondamentaux: une causalité particulière, le pan-déterminisme ;


la multiplication de la personnalité ; la rupture de la limite entre sujet et objet ; enfin, la transformation
du temps et de l’espace.98

Afinal, todo o conto é construído no círculo vicioso. Esta estrutura condena todos os
seus componentes à oscilação entre os valores, provoca a ruptura no quadro das categorias
narrativas. Do mesmo modo, é quebrada a oposição binária do tempo e do espaço que presta
no conto as dimensões ilusórias: o círculo faz coincidir estas categorias, para que formem um
espaço aparentemente infinito. Não obstante, quando o personagem 99 tenta aproveitar estas
qualidades, é de novo volvido ao círculo e forçado à oscilação entre várias dicotomias. A
primeira delas abrange toda a narração, dividindo-a na dicotomia entre a história enquadrada
(a vida da protagonista – a realidade visível) e da história enquadrante (o afã de desvincular-se
do sonho – o afã de abandonar a realidade de sonho). A outra dicotomia acontece de novo no
nível da voz narrativa.100 Notemos logo no incipit:

97
TODOROV, Tzvetan ; Introduction à la littérature fantastique, p. 124.
98
Ibid.
99
O atributo ficcional tenta às fronteiras da ficção e já esta intenção prova a incompatibilidde da ficção num dos
seus pontos. Apesar desta disfuncionalidade, a estrutura inferior não pode ultrapassar a superior e esta
transgressão deve ser condenada.
100
Poderíamos afirmar que a voz narrativa nos introduz «in medias res»; não obstante, relembremos que o conto
é submetido à ciclicidade do tempo fantástico, de que não é possível escapar. Tendo isso em conta, podemos
expressar mais exactamente que nos introduz no círculo sem o centro suposto – o ponto da segurança.

41
Apressurou-se, mas já não tinha o tempo para arrumar os produtos cosméticos espalhados no toucador.
Mirou no espelho. Nem bonita, nem feia. A secretária. Sou secretária, pensou para si no afã de auto-
conscientização. No escritório, não posso ser nem bonita, nem feia.101

O conto começa pela delimitação da distância narrativa, intermediada pela focalização


externa e pela situação do sujeito designado por «ela» elíptico. Não obstante, a ruptura
acontece no momento em que o narrador, sempre distante pela sua posição heterodiegética e
extradiegética, introduz na narração o motivo do espelho. Este espelho reflecte a visão do
leitor sobre a delimitação esperada das categorias miméticas, através da importância do nível
verbal: a frase em que aparece o motivo do espelho acelera a narração. Após o período
composto, segue a frase simples que contém o espelho e as sequência frásicas seguintes são
cada vez mais simples, até ao momento em que entra na narração o novo sujeito narrativo. No
decurso da narração acontece a nivelação que possibilita o outro desenvolvimento do discuro
do sujeito falante. A transgressão é equilibrada e a narração pode continuar.
Usando o motivo do espelho, na narração acontece a sua repercussão, depois da qual
se mantém o espaço aparentemente idêntico ao que era antes; no entanto, agora está um pouco
mudado, sendo enfocado pelo monólogo interior. Como todas as imagens repercutidas pelo
espelho são ligeiramente transformadas, a mudança na narração engendra, como uma sua
manifestação secundária, a novo dicotomia: a ruptura entre o objecto e o sujeito. O
personagem converte-se do objecto da narração, no sujeito que aparentemente a forma. Esta
aparência é de novo relembrada pelo círculo vicioso: parece que os pensamentos desvelados
pelo monólogo interior circulam no seu próprio círculo vicioso, não podendo liberar-se do
aspecto carnal. Como resume Todorov: «La connaissance de la chair s’ajoutera à celle de
l’esprit.»102 Porém, simultaneamente prestam ao personagem a esperança no seu vaivém
carnal.
Então, a errância tem que conduzir ao achado de alguns valores espirituais – até pelo
facto que o sujeito que se vê ao espelho adopta na sua percepção a visão dos outros. Reflecte
tal como se reflecte nos olhos alheios.
A protagonista, sempre influenciada pela percepção carnal, primeiramente é levada ao
fenómeno submetido ao tempo – à beleza física. 103 Como o Narciso mítico, observa o reflexo
da sua beleza na superfície da água. Contudo, tal atenção excessiva à auto-contemplação é
101
FIORANI, Sílvio; «Nunca é tarde, sempre é tarde», in: Třetí břeh řeky, p. 41. (A tradução ŠN)
102
TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, p. 132.
103
Este fenómeno é ainda reforçado pela ancoragem da «beleza» no (repetido) contexto temporal: «Deixar-se a
beleza ao fim-de-semana.» Cf. Třetí břeh řeky, p. 41. (A tradução ŠN)

42
condenável. De facto, como a superfície da água em que se contempla Narciso, a narração
seria condenada à estagnação:

L’amour charnel, intense, sinon excessif, et toutes ses transformations, sont condamnés [...] mais
l’opposition est toujours la même, avec l’esprit religieux, la mère, etc.104

Tanto a passagem na narração, como a passagem na percepção mesma do personagem,


têm que ser intermediadas por outra instância narrativa, pelo personagem de carácter
dicotómico. No conto, a mãe constitui o segundo complemento da oposição binária. A mãe 105,
que apresenta tradicionalmente o sentimento da segurança 106 e valores completamente
diferentes dos da sua filha, é como a única pessoa susceptível de aproximar-se do centro do
círculo vicioso e acordar a filha, e por conseguinte evitar a transgressão violenta na narração.
Para que salve a filha e a narração, mãe é dotada da voz narrativa. Assim, torna-se a
terceira instância narrativa e se, segundo Freud, são três as fases do sonho pelas quais passa o
homem, o despertar deveria trazer também a mãe.
A sua voz ressoa primeiramenta na cabeça da Su: assim é atenuado o efeito da
transgressão entre narradores e, logo, a mãe é capaz de desenvolver o seu próprio discurso.
Apesar tudo isso, nem o personagem nem o leitor não experimentarão o despertar
esperado. A protagonista é deixada ali onde o narrador, que abriu o conto, a encontrou. E se
no começo deste subcapítulo dissemos que o conto era construído no círculo vicioso, no final,
o narrador provou a sua funcionalidade. A narração torna-se por si mesma o círculo fechado
da ficção, mero arbítrio do seu criador que, pela manipulação extrema do tempo interior da
ficção, suscita várias dicotomias que são o resultado das transgressões em diversos níveis da
narração – e que finalmente servem de prova da funcionalidade da construção do círculo.
Apesar disso, o narrador não deixa de se divertir, proporcionando ao leitor diversos
recursos de segurança ilusória. Concretamente, introduz os atributos materiais que pela sua
denominação precisa têm que suscitar a sensação da ancoragem no mundo referencial, a
sensação de que são prestados pela quotidianidade conhecida. Mas trata-se somente de outro
truque, visto que:

104
TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littératute fantastique, p. 145.
105
A mãe serve aqui como personificação do fenómeno abstracto chamado por Todorov «espírito religioso», que
apresenta a oposição ao «amor carnal», no caso do conto, a celebração geral da corporalidade.
106
No concieto da piscanálise, a mãe torna-se a representação do Eros absoluto. Como o seu amor é espiritual,
exclui automaticamente todo o aspecto carnal.

43
O texto de ficção não tende a nenhuma realidade situada fora do texto. Tudo, que presta
(incessantemente) da realidade converte-se imediatamente na ficção. 107

Além disso, reparemos num fenómeno particular: a designação pelo nome concreto é
outorgada somente ao despertador (sendo a materialização do tempo), o perfume 108 e à
protagonista Su. A esta, sendo colocada pela sua denominação no nível dos objectos, é assim
comunicada a sua função na ficção. Tem que converter-se na prova física da funcionalidade
da ficção, que é ainda demonstrada pelo facto de que, se é emprestada voz narrativa à
protagonista, isso possibilita-lhe o esclarecimento da significação usada, pelo mero facto de
poder usar o discurso. Torna-se a prova mais convincente do carácter ficcional da narração
porque:

o monólogo interior ou o estilo indirecto livre é o indício de ficção mais impressionante e o mais típico
de todos outros indícios existentes visto que, no caso extremo, penetra em todo o discurso que é
aleivosamente atribuído à consciência do personagem e que, entre outras coisas, explica a coexistência
dos tempos passados e dos elementos deicticos de espaço situados nas frases [...]109

Em suma, o conto «Nunca é tarde, sempre é tarde» serve-nos como a prova da força e
da funcionalidade da ficção, que afinal forma o seu próprio círculo fechado, cujos limites são
reforçados pela palavra. Ao narrador, que dispõe deste espaço, é dada a liberdade ilimitada de
realizar no seu espaço tudo o que lhe pareça adequado. Igualmente, esta liberdade possibilita-
lhe a gestão dos vários níveis da ficção, pelo que podem ser causadas diferentes transgressões,
dependendo apenas do narrador repará-las, ou não. Da medida destes reparações, depende
também o fantástico que, no caso da conservação das transgressões, se torna a sua
consequência secundária.
Observando o carácter geral do conto, convém mencionar ainda o espelho, que adquire
uma grande relevância e que leva as considerações acerca de toda a narração. Se oferece uma
contemplação superficial, o reflexo primário de si mesmo, também induz a convicção do
leitor acerca da incompatibilidade entre a realidade de sonho e a realidade visível. Se se trata

107
GENETTE, Gérard ; Fikce a vyprávění, p. 29. (A tradução ŠN)
108
Sendo o perfume dotado do nome, apesar desta capacidade se referirao mundo referencial, pode também
apresentar a lembrança efémera levada dali; simultaneamente, o perfume é também a substância que pode provir
da realidade de sonho e encarnar assim a fugacidade dasua lembrança. Tal como acontece no texto de Monserrat
Roig: «Traté de volver a ver el verde brillante de las enredaderas y fue inútil. Los contornos de las hojas no
eran precisos y no percebía el olor exacto, sin un esbozo, una sombra. El recuerdo estaba hecho de un conjunto
de colores, de olores, que formaban forma según mi voluntad. Construía el recuerdo según mis propias
sensaciones…» ROIG, Monserrat; La hora violeta, Visual E.G.A.P, Barcelona 1992, p. 13.
109
Ibid., p. 48.

44
de tal contemplação, como no caso de Su, ela logo chega à busca dos valores profundos da
alma. A esta submersão convida também o texto de Monserrat Roig:

¿Has intentado alguna vez mirarte al espejo sin analizar si todavía luces o bien si eres joven? Quiero
decir, ¿has intentado mirarte al espejo y sólo ver en él tus ojos, tus miradas? Inténtelo: es difícil
aguantarte a ti misma, desnuda de todo, durante mucho tiempo […]110

O interesse pela adoração narcisista do próprio corpo deve ou deveria ser


acompanhado pela procura do absoluto, pela libertação do aspecto carnal, que pela sua
fugacidade condena à errância.
A submersão na profundidade da alma pode conduzir à profundidade do fantástico.
Visto que o espelho reflecte o espaço aparentemente infinito, pela sua substância aproxima-se
do fantástico111:

En el zaguán hay un espejo, que fielmente duplica las apariencias. Los hombres suelen inferir de ese
espejo que la Biblioteca no es infinita (si lo fuera ¿a qué esa duplicación ilusoria?); yo prefiero soñar
que las superficies bruñidas figuran y prometen el infinito […]112

O espaço de ficção realmente oferece tal sonho. E se é capaz de engendrar a sensação


do infinito com a ajuda do espelho, este espelho de ficção pode igualmente alcançar a mesma
flexibilidade na manipulação do tempo. Esta capacidade é susceptível de inverter o momento
da morte e de conceder aos sujeitos da narração a ressurreição sucessiva. O que
simultaneamente provoca a necessidade de certas manifestações no nível da conotação.
Simbolicamente, a análise seguinte voltará atrás no tempo, porque, como exemplo do
fenómeno descrito, iremos servir-nos de uma narração mítica.

4.3 O momento do reflexo. O primeiro Kuarup


Se o tema comum deste capítulo é uma forma das mudanças ligadas à materialização,
este caso não será excepção. Tal metamorfose, o reflexo simbólico da vida, é percebida como
possível no caso da vida depois da morte e encarnada em outra substância, isto é,
rematerializada. Esta substância tem que ser diferente da originária, pois tem de conter na sua

110
ROIG, Monserrat; La hora violeta, p. 14.
111
Como revela o carácter do espelho referencial, tal como a visão repercutida do espelho, devem mudar
ligeiramente os denotativos que formam a narração. Esta mudança engendra forçosamente transformações mais
ou menos importantes na compatibilidade dos signos que formam a narração. Em consequência, os conotativos
podem ser situados no espaço desconhecido pelo que é, na maioria dos casos, assegurado o fantástico.
112
BORGES, Jorge Luis; Ficciones, pp. 89-90.

45
configuração a experiência da morte e adaptá-la de tal forma que não perturbe a narração. No
nível linguístico, podemos dizer que os conotativos do sujeito metamorfoseado deveriam ficar
idênticos, efectuando as mudanças adequadas no nível denotativo.
Se nos encontramos no mito, este fenómeno pode ser simplificado com a ajuda do
modelo actancial de Propp e toda a narração pode ser generalizadamente concebida como
signo narrativo:

La fonction narrative est le signe d’un ensemble d’actions similaires du point de vue de leur contenu,
bien qu’accomplies par des acteurs différentes. 113

O signo narrativo é percebido como uma entidade superior que é formada pelos outros
signos considerados como inferiores. O que em nenhum caso se refere à sua importância
inferior, visto que tais signos apresentam todas as acções 114, que, sendo reciprocamente
compatíveis, formam, pela sua sucessão linear, o conteúdo da narração. Esta compatibilidade
assegura a funcionalidade115 da narração, que assim pode ser transmitida como uma espécie da
veracidade.
O mito «O primeiro Kuarup, festa dos mortos» não foi escolhido apenas pela
aplicabilidade ilustrativa do modelo actancial, mas também pela ênfase posta na omnipotência
da palavra na narração, visto que a metamorfose não é somente descrita pelas palavras, mas
justamente provocada e condicionada por elas.

113
SALOMON, Marcus; La sémiotique formelle du foklore, p. 282.
114
Esta relação pode ser simplificada pela equação simples: acções = narração. «Si l’on rappelle que les
fonctions, selon la syntaxe traditionnelle, ne sont que des rôles joués par les mots – le sujet y est ‘quelqu’un qui
fait l’action’ ; l’objet, ‘quelqu’un qui subit l’action’, etc. – la proposition, dans une telle conception, n’est en
effet qu’un spectacle que se donne à lui-même l’homo loquens. Le spectacle a cependant ceci de particulier,
c’est qu’il est permanent : le contenu des actions change tout le temps, les acteurs varient, mais l’énoncé -
spectacle reste toujours le même, car sa permanence est garantie par la distribution unique des rôles.  »
GREIMAS, A.-J.; Sémantique structurale, Librairie Larousse, Paris 1966, p. 173. A narração é sempre ligada
pelas regras estruturais, pela eminência da sintaxe e pelos outros recursos verbais que formam a narração visto
que estes delimitam o sujeito – o signo que provoca a acção (logo tornando-se o seu componente) e o objecto
que é atingido pela acção e que, igualmente, se torna a sub-estrutura que pode (ou não) engendrar outra acção.
De novo depende do arbítrio do narrador, do sujeito falante, qual configuração atribuirá aos elementos usados.
Greimas vê a frase como «espectáculo» em que as palavras tornam-se os intermediários das mudanças dinámicas
e, por conseguinte, a narração é percebida como a successão dos espectáculos que não cessam de mudar, assim
como a estrutura actancial.
115
A funcionalidade prova directalmente a compatibilidade de todas as estruturas e sub-estruturas que formam a
narração respectiva. Sob a estrutura dos signos encontram-se ainda os elementos parciais que, pelo facto de que
exprimem a relação com o referente, são igualmente signos. (Trata-se dos elementos que chamámos os atributos
ficcionais). « À première vue, le fonctionnement du discours, par exemple, consiste à poser un certain nombre
d’entité (personnage, objets, lieux, etc.) et à leur attribuer progressivement un certain nombre des propriétés :
on aurait ainsi d’abord des actants auxquels on conjoindrait ensuite des prédicats ; ce qui correspond au faire
syntaxique au moment même de son déploiement hic et nunc. » Ibid. (Greimas prova a relação da
compatibilidade interior no nível da acção – do discurso).

46
Observemos o incipit do mito que pretende pela situação narrada colocar a verdade
irrefutável que tem de estabelecer a sensação da veracidade em toda a narração: «Mavutsinim
queria que os seus mortos voltassem à vida.»116 Por esta situação, é criada a comunicação
entre a parte inicial e a final, cujo fim consiste em estabelecer a ancoragem do texto e causar
um equilíbrio ilusório. Pelo facto de que a narração concede uma segurança falsa, é
possibilitado ao narrador que situe no espaço restante da narração qualquer coisa e o leitor
enganado não deveria apereceber-se, sequer, da sua incompatibilidade.
Este fenómeno pode ser causado pela insegurança do narrador mesmo quando se
apercebeu que no vazio narrativo situara estruturas incompatíveis: e a narração é a errância, a
procura no vazio, que se tenta esconder pelas outras estruturas. O que é seguro é a sua
situação no início deste vazio narrativo e, portanto, o final, o resultado que pretende
comunicar com o mundo referencial, adquirir dele a segurança perdida.
Quer se trate do jogo ficcional do narrador quer da insegurança do sujeito narrativo
descrita pelas palavras, o leitor, se descobrir este carácter da narração, é entregue à hesitação.

Nous avons ici un équilibre initial et un équilibre final parfaitement réalistes. L’événement surrnaturel
intervient pour rompre le déséquilibre médien et provoquer la longue quête du second équilibre. 117

O desequilíbrio anunciado é provocado logo pela segunda frase: Mavutsinim, homem


sentindo a saudade natural causada pela morte dos seus próximos, converte-se em feitiçeiro:

Foi para o mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de
pintar, adornou-os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeira de penas de arara. Feito
isso, Mavutsinim mandou que ficassem os paus na praça da aldeia, chamando que fincassem os paus na
praça da aldeia chamando em seguida o sapo-cururu e a cutia (dois de cada), para cantar juntos dos
Kuarup.118

Se voltarmos ao modelo actancial, Mavutsinim é o actante, 119 o signo principal que é


susceptível de suscitar a acção na narração, ou de configurar os outros signos para que
efectuem a acção em vez dele. Como actante, necessita de ajudantes ou, na terminologia

116
Poronominare, p. 48 ou Lenda do primeiro Kuarup, http://pt.shvoong.com/humanities/1684999-lenda-
primeiro-kuarup/, consultado 1 de Maio.
117
TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, p. 173.
118
Poronominare, p. 48 ou Lenda do primeiro Kuarup, http://pt.shvoong.com/humanities/1684999-lenda-
primeiro-kuarup/, consultado 1 de Maio.
119
Greimas acrescenta que o personagem é designável como actante «en considérant son activité comme
mythique, l’inscrit d’un univers idéologique; la seconde le situe comme un des actants à l’aide desquels se
conceptualise une axiologie collective.» GREIMAS, A.-J. ; Sémantique structurale, p. 172.

47
proppiana, de adjuvantes que formam a totalidade da axiologia colectiva. Então, caso não
participam na sua situação no contexto das outras acções.
No mito analisado, gozam deste privilégio somente a madeira e o sapo e, por esta
razão, estão situados no mesmo nível verbal. Ou, se passarmos no nível linguístico: trata-se
dos signos que vinculam o conotativo (a metamorfose) com os denotativos inferiores (os
resultados da metamorfose): a madeira é o objecto da metamorfose, (o significante da
metamorfose) e o sapo é o ajudante do signo, então mero significante arbitrário.
A reresentação de todas as categorias do modelo actancial confirma a possiblidade da
realização da metamorfose, a passagem dos mortos ao reino dos vivos:

Par l’intermédiare des métamorphoses, des éléments seront transférés d’un règne à l’autre. 120

Observando o mito mais detalhadamente, damo-nos conta de que, no nível verbal, a


morte é comparada com o sono. Visto que a metamorfose consiste numa forma do despertar,
baseia-se no número três - número, que muitos séculos mais tarde, Freud designará como
próprio à linguagem do sonho:

Les métamorphose délibérées 121 sont regulièrement précédées d’un triple saut périlleux accompagné ou
non, de la récitation d’une formule magique.122

Mihai Dinu relembra que o processo se realiza em três fases. Aplicando-as ao mito
analisado, generalizemos que a primeira fase é representada pela morte.123 Tratando-se de uma
construção verbal ficcional, a morte, sendo introduzida ao início da narração e pelo facto de
que a ficção funciona como a estrutura circular, permanece sempre implícita na narração e
assim influencia a configuração da ficção.
A seguir, a segunda fase é a reanimação ligada à fórmula mágica. Visto que a narração
funciona como a busca da explicação, é o único meio que possibilita a transgressão entre os

120
DINU, Mihai; La sémiotique formelle du folklore, pp. 248-249.
121
Se a metamorfose é designada como «délibérée», a denominação refere-se à sua origem desconhecida; por
este processo, à narração são introduzidos os signos com um valor conotativo vazio que logo se vão formando
com a ajuda de outras e diversas acções. Em consequência, pode produzir-se uma incompatibilidade interior
irreversível na narração, e como sua manifestação secundária nasce o fantástico.
122
Op. cit., p. 245.
123
A morte é explicitamente mencionada em ambas partes que enquadram a narração e, por esta razão, a morte é
promovida ao motivo principal que, apresentando a única certeza, conforme à sua situação na narração, é contida
na configuração de todos os signos da narração.

48
níveis do círculo ficcional. Não obstante, porque a essência da metamorfose é a transgressão
temporal, afinal se apresenta como incompatível com a ficção.124
A terceira fase, a final, já deveria estabelecer a nova vida. Porém, apesar da
confirmação do rigor de todos os componentes pelo modelo actancial, a metamorfose não é
inteiramente possível - por causa da insuficiência narrativa.
Mesmo que o narrador (inseguro embora astuto) promova o sono à morte e tente
esconder este recurso pela ligação a outra substância, a intenção não surte efeito porque « De
telles métamorphose temporaires dilatent et emmêlent la trame épique.»125 Para que a
narração adopte a metamorfose, a refêrencia no nível verbal não basta. Visto que esta
metamorfose não manipula só o tempo, veicula outras acções, deixando de poder ser descrita
pelo modelo actancial, que é sobretudo ligado ao nível verbal (no qual a narração funciona
como o signo narrativo perfeito).
Por conseguinte, depois da descrição da metamorfose malograda, o narrador prefere
voltar ao nível do início, ao ponto seguro que lhe confirma que criou pelo menos o esquema:

Mavutsinim depois mandou que retirassem dos buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os
efeitos, mas Mavutsinim não deixou. «Tem que ficar assim mesmo», disse. E em seguida mandou que
os lançassem na água ou no interior da mata. Onde os deixaram, ninguém sabe, mas ficam ali em
Morená até nossos dias.126

E até aos nossos dias também persiste este esquema, que a passagem pela tradição
literária enriqueceu de tal forma que serve como base para novas narrações - para os contos
fantásticos modernos.

124
A metamorfose, pelo facto de ser situada na totalidade narrativa instável e de ter uma origem desconhecida,
pode ser facilmente negada por outro signo que se mostre mais compatível. No caso do mito, trata-se de outro
tópico mítico – a mulher.
125
Ibid., p. 246.
126
Poronominare, p. 48 ou Lenda do primeiro Kuarup, http://pt.shvoong.com/humanities/1684999-lenda-
primeiro-kuarup/, consultado 1 de Maio.

49
5. Conclusão
No nosso estudo tentámos delimitar o espaço aparentemente inifinito da literatura
fantástica. Intencionalmente escolhemos este termo, visto que o nosso objectivo foi apresentar
a proposta da identificação entre o mito e o conto fantástico moderno, que é possível unir sob
este termo com o elemento comum do fantástico.
Esta identificação é possibilitada por uma perspectiva sincrónica contemporânea,
graças à qual já podemos observar e avaliar as manifestações literárias e afirmar que as
narrações míticas dos índios podem ser designadas como fantásticas. Considerámos, assim,
essas primeiras narrações, os mitos, como o início do fantástico, afirmando que constituem
um fundamento, um esquema que desembocou no conto fantástico moderno.
Este esquema passa pela tradição literária e cada época enriquece-o pelas estruturas
superficiais que, com o decorrer do tempo, serão ou conservadas, mais ou menos adaptadas,
ou completamente mudadas. Estas mudanças são submetidas às mudanças naturais do mundo
referencial, o qual pressupõe mudanças de significação, visto que, se o fantástico quer ficar
fantástico, tem que adaptar-se ao quadro referencial da época.
Não obstante, sempre é válido que no início de cada narração se encontra um autor que
tem que confrontar-se com a experiência do vazio. E este espaço vazio, que se abre para a
interpretação do mundo referencial, ele tenta-o encher pelas palavras. Apesar de pretender que

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a sua interpetação seja mimética, o autor sempre pressupõe uma dose natural da
subjectividade, que se mostra na sua visão na realidade referencial e nos meios pelos quais
esta é descrita. O autor forma assim a sua própria veracidade, por conseguinte do vazio nasce
um novo mundo, mundo semelhante ao referencial mas que é forçosamente ficcional.
A regra superior deste mundo consiste em estabelecer uma totalidade da veracidade;
no resto, o autor dispõe de poderes ilimitados para criar as suas próprias regras.
Entre estas regras ficcionais, sobressai o seu tempo interior submetido à relativização
por parte do autor. A manipulação temporal, impossível no mundo referencial, na maioria dos
casos provoca o fantástico.
Na nossa parte analítica tentámos abordar estes casos. O tempo torna-se o tópico da
literatura fantástica que, por exemplo, possibilita a passagem entre a realidade de sonho e a
realidade visível, a quotidiana. Para atenuar esta transgressão temporal, o fantástico encontra
o motivo do rio. O rio é capaz de unir as dicotomias que definem o fantástico e também é
capaz de trazer a neutralização e, assim, até de diluir as rupturas da corência lógica no interior
da narração. O que acontecia em ambos os géneros comparados e o rio (que é afinal o símbolo
do tempo), corre até aos nossos dias e permanece constituindo o símbolo temporal mais usado
na literatura em geral.
Mas o rio também se associa a outros objectos, que graças a ele adquirem qualidades
fantásticas. E, muito frequentemente, trata-se das embarcações. Ainda não dispondo de
significação desenvolvida, o mito tinha que safisfazer-se com a mera canoa, da qual a tradição
literária fez o atributo horripilante da morte. Não obstante, o papel de qualquer tipo do navio
continua o mesmo: provém duma outra margem desconhecida tornando-se o mensageiro da
morte.
Os objectos fantásticos relacionados com o tempo estiveram no centro da nossa
atenção também no segundo capítulo analítico; chamámos-lhes meterializações; não se
tratava somente de materializações temporais, mas também tentámos materializar os
procedimentos narrativos astutos que caracterizam tanto os mitos como o conto fantástico. A
descrição destes procedimentos levou-nos ao outro tópico do fantástico – o círculo vicioso.
O mesmo círculo vicioso duma paixão cega pode-se formar em redor do objecto
fantástico, em que erra uma personagem no seu vaivém carnal. Também o círculo pode
encarnar a estrutura narrativa, o que prova a astúcia do autor mítico que é consciente de que
qualidades pode a ficção adquirir caso seja manipulada de modo adequado. Esta astúcia
narrativa pode ser de tal forma desenvolvida que engana mesmo os modelos analíticos
contemporâneos, cujas categorias são aparentemente todas cumpridas.

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Como caracterizámos a literatura fantástica como um espaço infinito, tendo em conta
que sempre fica construída pelas palavras e que primeiramente se manifesta pelo nível verbal,
tentámos atar as suas forças desconhecidas pelas regras estritas da semiótica.
Como o fantástico estabelece uma categoria especial que pretende descrever o que
acontece no fundo das palavras, quer sair ilusoriamente do domínio da linguagem. Não
obstante, este efeito fica sempre ligado à palavra. Por isso, voltámos a ela, como ao elemento
básico, que nos empresta a segurança no fantástico, cujo objectivo é sobretudo privar o leitor
deste sentimento entregando-o ao estado de hesitação permanente.
Logo, a palavra, como unidade básica, entra nas estruturas mais complexas e pode
tornar-se o intermediário da diferente significação. Assim encontra o lugar pertinente na
psicanálise que, querendo obter a descrição do «indescritível», do inconsciente, tem que
referir-se só e justamente à palavra.
Estes dois domínios ajudaram-nos à aquisição dos conhecimentos descritos e abriram-
nos os caminhos que rumavam ao conhecimento do fantástico – caminhos que agora tendem
ao seu fim. E damos-nos conta que não escolhemos caminhos que mostrassem o fantástico
como algo apaixonante ou que fossem sempre agradável para o leitor. Apesar disso, cremos
que a contribuição do nosso estudo consiste na nossa tentativa de provar que o fantástico é
uma construção ficcional engenhosa, descritível pelas regras linguísticas e que tem a sua
origem das primeiras narrações, funcionando na mesma base até nossos dias. Foi, portanto,
também, uma tentativa de demonstrar os espaços extraordinários abertos pela mera palavra.

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6. As referências bibliográficas

6.1 A literatura activa


6.1.1 As narrações míticas
COSTA E SILVA, Alberto da; Antologia de lendas do índio brasileiro, Instituto Nacional de
Livro, Rio de Janeiro 1957.
Lenda do primeiro Kuarup, http://pt.shvoong.com/humanities/1684999-lenda-primeiro-
kuarup/, consultado 1 de Maio.
Poronominare, Dauphin, Liberec 1995.

6.1.2 O conto fantástico moderno


Třetí břeh řeky, Dauphin, Praha 1996.
VERÍSSIMO, Érico; « O navio das sombras », Projeto Releituras,
http://releituras.com/everissimo_navio.asp, consultado 28 de Junho 2010.

6.2 A literatura passiva


6.2.1 O fantástico
HAZAIOVÁ, Lada; Skryté tváře fantastična, Univerzita Karlova, Praha 2007.

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LUKAVSKÁ, Eva; «Hispanoamerická fantastická povídka», in: Had, který se kouše do
ocasu, Host, Brno 2008.
RODERO, Jesús; La Edad de la Incertidumbre, Peter Lang, New York 2006.
TODOROV, Tzvetan; Introduction à la littérature fantastique, Edition du Seuil, Paris 1970.

6.2.2 Os recursos semióticos e outra bibliografia teorética


COURTES, Joseph; La sémiotique narrative et discoursive, Hachette, Baume-les-Dames
1993.
GENETTE, Gérard; Fikce a vyprávění, Theoretica, Brno 2007.
GREIMAS, A.-J.; Sémantique structurale, Librairie Larousse, Paris 1966.
KRISTEVA, Julia; Le langage cet inconnu, Editions du Seuil, Paris 1981.
KRISTEVA, Julia; Slovo, dialog a román, Sofis, Praha 1999.
KRISTEVA, Julia; Polyfonie : významy, pohlaví, světy, Malovaný kraj, Břeclav 2008.
LELLOUCHE, Raphaël; Borges ou l’hypothèse de l’auteur, Editions Balland, Paris 1989.
SALOMON, Marcus; La sémiotique formelle du folklore, Editions Klincksieck, Paris 1978.
TODOROV, Tzvetan; Théorie du symbole, Editions du Seuil, Paris 1977.
TODOROV, Tzvetan; Littérature et signification, Larousse, Paris 1967.

6.2.3 Os recursos complementários


BORGES, Jorge Luis; Ficciones, Emece Editores, Buenos Aires 1956.
TOMEO, Javier; El Canto de la tortugas, Editorial Anagrama, Barcelona 1998.
LORCA, Federico García; Bodas de sangre, http://es.wikisource.org/wiki/Bodas_de_sangre,
consultado 25 de Abril 2010.
ROIG, Monserrat; La hora violeta, Visual E.G.A.P, Barcelona 1992.

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