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ENGAJAMENTO
RESUMO
O presente artigo traz reflexões sobre o ritmo de leitura e os modos de engajamento que a
linguagem das histórias em quadrinhos suscita. O objetivo principal deste trabalho é fazer
uma aproximação entre a famosa tipologia das transições entre quadros apresentada por
Scott McCloud (1995) e as modulações descritas pela abordagem tensiva da Semiótica
Francesa, preconizada por Jacques Fontanille e Claude Zilberberg. Nessa linha, utilizamos
o conceito de catálise, descrito por Greimas (2008), que pode ser entendido, de maneira
geral, como o preenchimento de lacunas de um texto e traçamos um paralelo com a
tipologia de McCloud, procurando estabelecer quais transições exigem maior ou menor
engajamento do leitor. Em suma, quais transições deixam mais lacunas no texto e
demandam mais atenção. Com isso, propomos uma gradação dessas transições que vai da
que exige um maior preenchimento de lacunas por parte do enunciatário (o leitor previsto
pelo texto) até a que exige menos, associando essa demanda ao andamento do texto, que
pode ser mais acelerado ou mais desacelerado. Nossa proposta busca unir as características
textuais das histórias em quadrinhos aos novos conceitos propostos pela abordagem tensiva
no âmbito do sensível, do ritmo e da percepção. O estudo propõe, assim, uma abordagem
que dinamiza as transições, dispondo-as em um continuum, e permite uma análise rítmica
das estratégias empregadas pelo enunciador dos quadrinhos.
SOBRE LACUNAS
Primeiramente, pensemos na diferença de uma cena apresentada no cinema e nas
histórias em quadrinhos. No cinema, de maneira geral, vemos que é comumente necessário
evidenciar uma referência espacial. Dificilmente veremos dois personagens conversando
em um fundo branco, sem uma paisagem, uma rua, um poste, carros passando ou um
ambiente interno decorado, janelas, portas, estantes ou grandes saguões com passantes ao
fundo, com um figurino específico ligado à situação retratada. Uma cena sem referências no
cinema é muito rara e provavelmente seria construída para causar um efeito de sentido
específico, por exemplo, retratar um sonho ou a consciência de alguém.
Nos quadrinhos, a situação é diferente. A falta de referências espaciais é muito
comum, apesar de não ser obrigatória, e não causa estranhamento ao leitor. É algo já
constitutivo dessa linguagem, que faz parte da estrutura esperada dos quadrinhos. Vejamos
um exemplo da ausência de referentes espaciais na figura 1 da revista em quadrinhos
“Persépolis” (2007), de Marjane Satrapi. O fundo branco não nos informa se os
personagens estão na rua, em casa, na escola ou em qualquer outro lugar. O que interessa é
apenas o diálogo.
De acordo com essa definição, McCloud estabelece seis tipos de transição entre
quadrinhos de acordo com a demanda de "sarjetas", ou seja, o grau de envolvimento
exigido do enunciatário. Tomaremos essa classificação por base, fazendo apenas algumas
modificações1, para adequá-la a uma formulação semiótica e à concepção de catálise.
Estabelecemos, assim, uma gradação da transição que demanda menos catálises até aquela
que demanda mais envolvimento do enunciatário no preenchimento de lacunas:
1
McCloud utiliza a seguinte ordem de transições: movimento-a-movimento; ação-a-ação; tema-a-tema; cena-
a-cena; aspecto-a-aspecto; non-sequitur. Colocamos a transição aspecto-a-aspecto antes de tema-a-tema pois
entendemos que ela demanda menos do enunciatário que as transições tema-a-tema, cena-a-cena e non-
sequitur Além disso, criamos a transição lance-a-lance, que não existe na tipologia de McCloud, para
compreender uma transição mais acelerada que a ação-a-ação, mas que ainda se ampare na mesma
figurativização (diferente da transição tema-a-tema)
Figura 2: exemplos de McCloud para transição movimento-a-movimento
Fonte: MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Makron Books. São Paulo, 1995, p.70.
Fonte: KIRKMAN, R; MOORE, T. "Days Gone Bye", The Walking Dead .Vol #3, Diamond
Comics, 2003, p.8
Fonte: MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Makron Books. São Paulo, 1995, p.70.
3) lance-a-lance: Essa transição não existe na sequência estipulada por McCloud, mas
sentimos necessidade de acrescentá-la para termos um intermediário entre a transição ação-
a-ação e as demais. Assim, dentro do mesmo universo figurativo, a transição lance-a-lance
vai mostrar o desenvolvimento de uma ação, mas deixando mais lacunas entre as ações. Na
figura 5, temos um exemplo do que seria essa transição nos quadrinhos de "The Walking
Dead"(2003). Vemos que no segundo quadrinho, o policial está tentando abrir a grade e no
terceiro já aparece de volta ao carro, indo embora depois de ver um zumbi. Na transição
lance-a-lance estamos no mesmo plano, no que diz respeito à figurativização, mas não
vemos todas as ações, passo-a-passo, apenas o lance. Não vemos como é a passagem do
segundo ao terceiro quadrinho. O policial tenta abrir a grade, o zumbi aparece, o assusta e
ele corre, pega o carro e vai embora? É o enunciatário que terá de deduzir isso tudo, porque
os elementos apresentados não mostram essas ações. Se o enunciador tivesse usado uma
transição ação-a-ação, veríamos o zumbi surgindo e assustando o policial e esse pegando o
carro para ir embora. É por isso que essa transição é mais acelerada, ela deixa mais lacunas
a serem preenchidas.
Figura 5: Exemplo de transição lance-a-lance
Fonte: KIRKMAN, R; MOORE, T. "Days Gone Bye", The Walking Dead .Vol 1 #2, Diamond
Comics, 2003, p. 24
Fonte: MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Makron Books. São Paulo, 1995, p.72
Fonte: MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Makron Books. São Paulo, 1995, p.72
Fonte: MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Makron Books. São Paulo, 1995, p.72
De acordo com essas especificações, dividimos as transições em uma gradação que
vai da que tem um andamento mais desacelerado para a que tem um andamento mais
acelerado. Isso pode ficar mais claro no esquema a seguir
- catálise movimento-a-movimento
(mais desacelerado) ação-a-ação
lance a lance
aspecto-a-aspecto
tema-a-tema
cena-a-cena
+ catálise non-sequitur
(mais acelerado)
Aqui trabalhamos com algumas categorias e uma tipologia de transições para fins de
análise. Mas é importante termos em mente que a passagem de um quadrinho a outro se dá
em um processo e que outras categorias seriam possíveis. Esse contínuo dos tipos de
transição estabelecido a partir de uma maior ou menor demanda do texto por catálises é um
esforço de conferir à tipologia de McCloud (1995) um caráter operacional.
Podemos adaptar o esquema acima à solução gráfica que a abordagem tensiva nos
propõe para representar as modulações do campo perceptivo, de acordo com o ritmo mais
acelerado (mais impactante) ou menos acelerado (menos impactante) de constituição de
valores para o sujeito. Com isso, imprimimos uma dinamização dos tipos estabelecidos por
McCloud, entendendo-os como balizas de um processo dinâmico de transformações, uma
vez que essa abordagem entende os valores "mais como gerúndios que como particípios,
mais como vetores que como traços" (ZILBERBERG, 2011, p. 261).
A partir da relação já apresentada entre intensidade e extensidade, a Semiótica
Tensiva representa graficamente as dimensões em dois eixos coordenados, podendo, assim,
instrumentalizá-los. A relação inversa entre os eixos se estabelece na grande maioria dos
textos, como vemos no Gráfico 1. Nela, quanto maior é a intensidade, menor é a
extensidade (ascendência) e, assim, o sujeito estaria mais impactado, numa zona de
arrebatamento (cf. MANCINI, 2007). Na mesma linha, quanto menor é a intensidade, maior
é a extensidade (descendência), o que criaria mais e mais uma zona de conforto para o
sujeito:
impacto do insólito
INTENSIDADE
Andamento
Tonicidade
conforto do conhecido
-
Temporalidade
EXTENSIDADE +
Espacialidade
Assim, um texto que preza pela concessão e que demanda mais de seu enunciatário
trabalha com a predominância da intensidade. Podemos pensar a tipologia das transições
nesse esquema, de forma que quanto mais catálises uma transição demanda, mais acelerado
é seu andamento e mais elevada é sua intensidade – sendo o andamento uma das
subdimensões da intensidade. Seguindo essa lógica, estabelecemos as posições esperadas
das transições no gráfico de acordo com sua proposta enunciativa. Notamos que as
primeiras transições manipulam o enunciatário por uma lógica implicativa e as últimas na
gradação apelam para o impacto de uma lógica concessiva. Isso está representado no
Gráfico 2:
+
non-sequitur
INTENSIDADE cena-a-cena
tema-a-tema
Tonicidade
Andamento
Andamento aspecto-a-aspecto
lance-a-lance
ação-a-ação
movimento-a-movimento
-
Temporalidade
EXTENSIDADE +
Espacialidade
PARA CONCLUIR
REFERÊNCIAS