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UFRN – LETRAS – SEMIÓTICA I – Prof.a.

Christina Ramalho

Sobre a instância de enunciação narrativa e a Semiotização Ficcional do Discurso

... viso, portanto, essencialmente, o texto, isto é, o tecido de significantes que constitui a obra, porque o texto
é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não
pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é o teatro.
(ROLAND BARTHES) 1

A Semiotização Literária do Discurso buscou investigar, a partir do texto, as condições semióticas de


produção de sentido de que resulta o signo literário, ou seja, objetivou desvendar a forma como o signo literário
é construído a partir de um investimento semiológico específico. Contudo, como já foi abordado, tendo na
Língua Natural seu repertório lingüístico, o processo semiológico literário guardará indissolúvel relação com a
Semiótica das Línguas Naturais.
A especifidade discursiva e significativa do processamento semiótico do discurso literário far-se-á possível a
partir da suspensão definida pela semiose literária. A semiose literária configura-se numa lógica operacional,
inerente à produção do signo literário, que tem a capacidade de projetar o investimento semiológico das Línguas
Naturais no plano de expressão da Semiótica Literária, provocando, com isso, o esvaziamento da ação semiótica
das Línguas Naturais, interditando-a a favor de uma condição de produção de sentido própria  a da Semiótica
Literária. No que se refere, especificamente, à manifestação do discurso narrativo, observar-se-á que a semiose
literária incidirá para a elaboração discursiva de um complexo significativo mimeticamente sincronizado com as
articulações lógicas que compõem a dimensão real da experiência humano-existencial. Dessa forma, segundo a
teoria,
...a Semiótica Literária tem seus dois planos investidos semiologicamente, o da expressão, com as
condições naturais de produção de sentido, e o do conteúdo, com as condições literárias de produção
de sentido. Assim, submetidos à condição semiótica de elaboração sígnica, que obriga a relação dos
planos da expressão e do conteúdo, estabelece-se uma sincronia estrutural entre os dois universos
lógicos, o do real e o do ficcional, já que o primeiro é significante do segundo.
(ANAZILDO V. DA SILVA)2

Investindo no discurso, a Semiótica Literária, embora sendo única, originará três semiotizações literárias do
discurso: a ficcional, a lírica e a dramática. O investimento é o mesmo  o literário; entretanto, como esse
investimento se dá no nível do discurso, terá que obedecer às variantes decorrentes das diferenças que há nos
aspectos: instâncias articulatórias e instância de enunciação.
Na narrativa literária sabe-se que a instância de enunciação é assumida por um narrador. A lógica
estruturante da narrativa literária integrará a instância de enunciação, subordinando-a. Assim, o narrador não tem
o poder de determinar qual será a lógica que assumirá a função estruturante da narrativa literária, pois, ao
contrário, ele está submetido a ela, sobredeterminadamente, de acordo com a época em que o texto é produzido.
O narrador, portanto, é sempre um agente da lógica estruturante da narrativa.
Dado o caráter mimético da obra de arte, que a sincroniza estruturalmente com o Universo Real, há também
uma sincronia retórica entre o Universo Real e o Universo Ficcional, ou seja, a função estruturante para a
produção do signo literário, no caso da narrativa literária, será assumida pela lógica ficcional correspondente à
lógica natural que semiotiza a relação homem diante do mundo. Dessa forma, também no percurso da narrativa
literária, teremos períodos abarcados pela Retórica Clássica, nos quais a lógica objetiva assumirá a função
estruturante, períodos estes que conhecemos como Classicismo, Renascimento, Neoclassicismo e Realismo-
Naturalismo; períodos abarcados pela Retórica Romântica, nos quais a lógica subjetiva assumirá a função
estruturante, períodos estes que conhecemos como Idade Média, Barroco, Romantismo e Decadentismo 3; e, por
fim, períodos abarcados pela Retórica Moderna, quando a lógica objetual, ou razão neutra, assumirá a função
estruturante, o Modernismo e o Pós-modernismo.
Como aqui está sob enfoque a manifestação discursiva literária identificada como “narrativa”, é necessário,
ainda, verificar quais são as especifidades semiológicas das lógicas ficcionais envolvidas na elaboração
discursiva.

1
Aula, p. 17.
2
Semiotização literária do discurso, p. 13.
3
O Decadentismo explicita a transição da diáletica razão objetiva/razão subjetiva para a razão caótica, daí a riqueza semântica das obras
inseridas no contexto artístico decadentista.
1
Se, no processo de elaboração do discurso lírico, identificou-se uma relação entre a realidade humano-
existencial e a realidade pressuposta com a qual o Eu-Lírico interage para, então, enunciar o poema, na narrativa,
a realidade humano-existencial servirá de moldura para uma nova realidade  a ficcional  que, por sua vez,
especificará uma imagem ficcional de mundo, oriunda da proposição de um universo lógico ficcional.
Entretanto, assim como o texto lírico guarda as marcas retóricas de seu tempo, igualmente o texto narrativo as
guardará, na organização da imagem de mundo ficcional.
A Semiotização Ficcional do Discurso reconhece as três dimensões que se originam da ação das diferentes
lógicas ficcionais: a dimensão do espaço, “entendendo por espaço uma expressão objetiva de valores codificados
(um mundo objetivo)” 4; a dimensão do personagem, “entendendo por personagem uma expressão subjetiva das
motivações pessoais (um mundo subjetivo)”5, e a dimensão do acontecimento, “entendendo por acontecimento
uma dimensão neutra do estado de coisas (um mundo objetual)” 6. Personagem, espaço e acontecimento,
articulados e integrados a partir da lógica que assume a função estruturante, definem uma situação existencial
imaginária e configuram uma proposição de realidade ficcional. Pode-se, portanto, estabelecer uma relação entre
imagem de mundo real e imagem de mundo ficcional, na qual homem 7 estaria para personagem, como mundo
para espaço e lógica do diante-de para acontecimento.
A cada uma das três lógicas, enquanto passíveis de assumirem a função estruturante, corresponderá um
padrão literário narrativo: a narrativa de semiotização do espaço, a narrativa de semiotização do personagem e
a narrativa de semiotização do acontecimento. O estudo dos padrões narrativos, contudo, só é possível
concretamente não mais no nível da elaboração discursiva, mas a partir da observação de sua realização: a
manifestação discursiva, ou seja, o texto. É no estudo das lógicas manifestas no texto que se verifica o padrão
narrativo nele impresso.
A narrativa de semiotização do espaço é aquela em que a lógica do espaço, ou razão objetiva, integrando a
instância de enunciação narrativa, a partir do fluxo semiotizante dos valores codificados, assume a função
estruturante. Na narrativa de semiotização do espaço, a condição de significação da situação existencial
imaginária é determinada pela lógica objetiva do espaço, isto é, personagem e acontecimento recebem um
sentido a partir da lógica dos valores codificados. Na narrativa de semiotização do espaço, por mais que
um/uma personagem lute para impor sua condição subjetiva significante ao acontecimento e projetar a sua
experiência existencial fora dos limites codificados do espaço, não consegue e acaba invariavelmente sujeitando-
se à ação significante da lógica estruturante, a lógica do espaço.
Na narrativa de semiotização do personagem, a lógica significante subjetiva do/da personagem, ou razão
subjetiva, integrando a instância de enunciação narrativa, a partir do fluxo semiotizante das motivações de ordem
pessoal, assume a função estruturante da proposição de realidade ficcional. Na narrativa de semiotização do
personagem, a logicidade estrutural da proposição de realidade ficcional é determinada pela lógica subjetiva do
personagem, e a ela se submetem o espaço e o acontecimento. Neste tipo de narrativa, por mais que o espaço 
representado pelas mais diversas vozes tradutoras dos valores codificados  lute para impor a sua condição
significante ao acontecimento e sujeitar o/a personagem, não consegue e acaba submetido à logicidade estrutural
da proposição de realidade ficcional.
Na narrativa de semiotização do acontecimento, o acontecimento escapa à imposição significante das
lógicas do personagem e do espaço, os quais, incapazes de sujeitarem-no às suas respectivas lógicas, acabam
subordinando-se à lógica neutra do acontecimento, configurando-se aí uma imagem ficcional de mundo caótica,
absurda, fantástica. Na narrativa de semiotização do acontecimento, o conflito ocorre quando nem personagem
nem espaço conseguem atribuir um significado ao acontecimento. Diante do acontecimento, cada uma das
lógicas tenta impor sua significação para submeter a outra lógica. Por conclusão, para se chegar à identificação
do padrão narrativo é essencial que se identifique e analise o conflito gerado pelo acontecimento, assim como a
forma como o conflito é solucionado, ou não, pela lógica estruturante.
Além da sobredeterminação retórica, incidirão sobre a produção do texto narrativo ou ficcional, a concepção
literária e o estilo da autora ou do autor. Por essa razão, a manifestação discursiva de uma narrativa de
semiotização do espaço no século XVIII implicará uma relação linguagem/realidade diversa de uma narrativa
de semiotização do espaço do final do século XIX.
Voltando a dar destaque à Modernidade, passo a considerar a especificidade da narrativa de acontecimento,
em que a lógica neutra do acontecimento assume a função estruturante da narrativa. Sendo esta uma lógica
esvaziada, ou sem um sentido ditado pelas razões objetiva e/ou subjetiva, já que não é semiotizada nem pela
lógica do personagem, nem pela lógica do espaço, temos configurado um universo ficcional desordenado, ou

4
Semiotização literária do discurso, p. 13.
5
Semiotização literária do discurso, p. 13.
6
Ibidem, p. 15.
7
Ratifico a decisão de respeitar a nomenclatura do texto original.
2
uma imagem ficcional de mundo caótica, correspondendo à própria imagem real de mundo caótica da
modernidade. Sobre o tema, reflete AVS:

A lógica objetual assume plenamente, com o estruturalismo e o pós-estruturalismo, a função


estruturante da imagem de mundo de realidade do século XX, inaugurando um novo período
histórico, o maquinismo, tão apoteótico como o foram o cientificismo e o humanismo, fundados na
função estruturantes das lógicas naturais do mundo e do homem, respectivamente. Esse novo
segmento histórico assinala a configuração do mundo objetual na imagem de mundo de realidade,
fundada primeiramente na autonomia estrutural, conquistada com o estruturalismo, e,
posteriormente, na automação objetual, conquistada com o pós-estruturalismo, integrada em
expressão e conteúdo por sua própria lógica e razão, daí os conceitos de “inteligência artificial”,
“memória artificial”, “linguagem de máquina”, “realidade virtual”, “humanóide”, “clonagem”,
“hipertexto”, “ciberespaço”, etc., índices dessa realidade instrumentalizada, que se faz e se desfaz
num ligar e desligar de botões.8

A diferença entre a narrativa moderna e a narrativa pós-moderna, a partir da perspectiva da Semiotização


Ficcional do Discurso, dá-se principalmente no nível da atuação da lógica subjetiva do personagem. Ainda que
incapaz de semiotizar a lógica do acontecimento, a lógica do personagem, na narrativa moderna, tentará ordenar
o caos e, através dessa ordenação, buscar o seu sentido, o que, obviamente, não atingirá. Já na narrativa pós-
moderna, a lógica subjetiva tentará semiotizar o caos a partir da própria vivência do mesmo. Como também não
logrará semiotizá-lo, a lógica do personagem será submetida à lógica neutra do acontecimento. 9
Diferenciando, em termos teóricos, a modernidade e a pós-modernidade da narrativa, Anazildo Vasconcelos
da Silva definiu as categorias: autocontextualização e heterocontextualização ficcional:

Se a autocontextualização da imagem de mundo de realidade na proposição de realidade


ficcional modernista gerava o absurdo e o insólito, provocando a desarticulação do personagem com
o espaço e a projeção da experiência humano-existencial no vazio, a heterocontextualização pós-
moderna, ao contrário, elimina o absurdo e o insólito, restaurando a articulação do personagem com
o espaço na cadeia casual do acontecimento. Se a autocontextualização da ficção modernista aponta
para a coisificação do homem, a heterocontextualização ficcional pós-moderna aponta para a
humanização da máquina, através duma degeneração mútua. 10

A análise semiológica de narrativas literárias tem por objetivo identificar o processamento semiótico da
situação existencial imaginária. Metodologicamente, esse tipo de análise considera que a narrativa literária
subdivide-se em seqüências que correspondem aos momentos do processamento semiótico: um primeiro, que
ocorre dentro ou fora da narrativa, a depender de sua extensão, em que “o personagem está identificado com o
espaço através da condição de significação da situação existencial imaginária, fruindo da normalidade
existencial”11; um segundo, no qual um acontecimento rompe com a identidade personagem/espaço, instaurando,
pela semiotização unilateral ou diversa que recebe de ambos, o conflito, que “obriga personagem e espaço a se
defrontarem, no nível da elaboração significante de suas lógicas, até a submissão de uma lógica à outra” 12
(narrativas do espaço ou do personagem), ou de ambas à lógica neutra do acontecimento (narrativa de
acontecimento); e, por fim, “um terceiro momento, no qual a relação de identidade e o processamento da
normalidade existencial”13 são restabelecidos, ou não, pela imposição da lógica estruturante. É nesse terceiro
momento que a narrativa do acontecimento ganha traços específicos, segundo os quais, definem-se,
criticamente, as categorias específicas conhecidas como narrativa do absurdo, narrativa fantástica e narrativa
de realismo mágico. Note-se que são categorias críticas por estarem relacionadas não mais à condição de
produção de sentido, mas à “operacionalização de semelhanças e diferenças dentro de um mesmo padrão teórico,
o da narrativa literária de semiotização do acontecimento” 14, ou seja, “especificam três diferentes modos de
desarticulação do personagem com o espaço, sob a ação estruturante da lógica do acontecimento” 15. Também é
8
“Referenciação poética e contextualização narrativa”, pp. 76-77.
9
As posturas “ordenar o caos” e “vivenciar o caos” serão retomadas no decorrer das análises que compõem os capítulos 9 e 10 desta
pesquisa.
10
“Referenciação poética e contextualização narrativa”, p. 81. Não sendo a narrativa o objeto específico desse estudo, considero, nesse
momento, improdutivo o aprofundamento na questão modernidade X pós-modernidade ficcional. Essa relação, entretanto, no que
concerne ao épico, será igualmente retomada no capítulo 3.
11
Semiotização literária do discurso, p. 17.
12
Ibidem, p. 18.
13
A semiotização literária do discurso, p. 19
14
Ibidem, p. 20.
15
Ibem, ibidem,.
3
importante salientar que, em algumas narrativas, a desarticulação personagem/espaço poderá ser lida
dubiamente, ou seja, pode parecer fantástica ou absurda a partir de pontos de vista diferentes, logo, para
fundamentar uma visão crítica neste aspecto a leitora ou o leitor terá que se valer da sua subjetividade, ou
intuição crítica.
Como essas categorias são conhecidas e difundidas por muitos críticos, e considerando que as estruturas
narrativas moderna e pós-moderna também integram as manifestações épicas do discurso produzidas,
respectivamente, nas fases moderna e pós-moderna da Literatura Ocidental, faço, a seguir, um levantamento das
diferenças apontadas por AVS, por meio das quais se define a relação de desarticulação personagem/espaço na
narrativa do acontecimento.
A narrativa do absurdo caracteriza-se como aquela em que o personagem, ao vivenciar o insólito, e por não
lograr semiotizá-lo, acaba por se submeter à sua lógica, desarticulando-se definitivamente do espaço, e, por isso,
inscrevendo-se no mundo objetual. Ou seja, a lógica do personagem é destruída pela experimentação do insólito,
“assumindo a consciência neutra da consciência objetual, o personagem submete-se à condição inarticulada do
estado de coisa”.16
A narrativa fantástica caracteriza-se por estar limitada a uma circunstância temporal. A desarticulação
personagem/espaço se dá dentro de um determinado espaço de tempo. O acontecimento não é semiotizado, mas
a situação humano-existencial ficcional volta à normalidade, apesar de o fato ocorrido não poder ser explicado.
Normalmente este tipo de narrativa é feita em flashback, o que revela uma tentativa de semiotizar o
acontecimento, e só se torna fantástica por continuar sendo ambígüa, apesar de circunstancial. Assim, “a
narrativa fantástica se define como uma narrativa de recodificação que depende, todavia, para ser fantástica, do
fracasso dessa recodificação.”17
A narrativa do realismo mágico define a desarticulação personagem/espaço como decorrência da interseção
recorrente de um plano real ficcional e um plano mágico, em que personagens de ambos os planos convivem
harmonicamente, sem que ocorra o estranhamento entre eles, até que um acontecimento desarticulador se impõe.
Esse plano real mágico, ou realidade mágica, simula articular uma lógica própria para o acontecimento, ou seja,
a existência paralela de um universo mágico objetual daria ao acontecimento uma lógica própria que substituiria
a neutra. Entretanto, ao entrar na dimensão real ficcional, o/a personagem mágico/a, para se integrar a ela, busca
tornar-se humano/a, e, para isso, acaba tendo que perder sua característica mágica. O conflito se dá, portanto, no
nível da impossibilidade de semiotização do mágico pelas lógicas do personagem e do espaço ficcional, ou seja,
o/a personagem mágico/a somente age no real ficcional sem causar estranhamento se mantiver sua característica
mágica. Também é importante dizer que a situação inversa pode ocorrer, ou seja, o/a personagem da realidade
ficcional pode transitar por um universo mágico, sem estranhamento, mas, da mesma forma, sem a possibilidade
de perder sua humanidade, e adquirir uma “lógica mágica de personagem”. O acontecimento, ou seja, a
interseção de duas realidades, uma ficcional, outra mágica, fica, então, ainda esvaziado em seu sentido.
Dividindo os romances, novelas ou contos em seqüências que identificam momentos específicos no
desenvolvimento do fio narrativo, podem-se definir os momentos determinantes para o reconhecimento do tipo
de narrativa, pois, na determinação dessas seqüências, ficam evidentes as articulações entre
personagem/espaço/acontecimento e o entrelaçamento suas respectivas lógicas. A divisão em seqüências
implica, portanto, a compreensão da articulação das três lógicas e a averiguação do predomínio de uma delas
sobre as outras duas, fator que, como foi dito, distingue as narrativas de acordo com a concepção literária que
contamina o texto analisado.
Dando continuidade aos procedimentos até então adotados para reforçar a operacionalidade da teoria
enfocada, proponho, a seguir, a análise de três narrativas, respectivamente relacionadas aos padrões narrativos
semiológicos: de personagem, de espaço e de acontecimento. Os textos escolhidos, Senhora, de José de Alencar,
“Um apólogo”, de Machado de Assis, e “A professora”, de Helena Parente Cunha, serão divididos em
seqüências, por meio das quais serão dimensionadas as relações entre as lógicas ficcionais presentes nos textos.
A metodologia envolve também: o reconhecimento do narrador e da lógica de que seu discurso está investido, a
identificação do/da personagem ou personagens principais, a identificação de agentes (personagens secundários)
e sua relação com o desenvolvimento semiológico da narrativa. 18 Convém, todavia, esclarecer que essa
operacionalização teórica tem como objetivo não só discriminar os modos de investigação crítico-semiológica da
manifestação discursiva narrativa, mas aclarar procedimentos mais adiante utilizados na análise semiológica da
epopéia, que, por ser lírica e narrativa, contém elementos semiológicos de ambos os gêneros, além, obviamente,
dos seus próprios.

16
Semiotização literária do discurso, p. 26.
17
Ibidem, p. 28.
18
A título de facilitar a leitura da análise semiológica e possibilitar posterior versão do estudo para outro idioma, inseri, como anexos, os
contos na íntegra e uma síntese de Senhora.
4
Senhora, de José de Alencar: uma narrativa de semiotização do personagem

Senhora19, o mais célebre dos romances urbanos de Alencar, descrevendo a sociedade fluminense de meados
do século XIX, traz como personagem principal Aurélia Camargo, mulher que, desejosa de se vingar do homem
que no passado a abandonara movido pela ambição de ascender socialmente através de um possível casamento
com moça de status privilegiado, compra-o como marido. O romance, tendo como instância de enunciação uma
3ª. pessoa onisciente, desenvolve a história dessa “compra” em quatro partes: “O preço”, “Quitação”, “Posse” e
“Resgate”. O romance enfatiza, pois, o casamento como um negócio. A narrativa inicia-se por “O preço”, que dá
destaque à transação comercial que se delineia: a compra de um marido. A partir de “A quitação”, parte seguinte,
toda a trama anterior à “compra” do marido é revelada. “Posse” e “Resgate” referem-se às relações entre marido
e esposa e o desfecho da “transação comercial’.

Análise semiológica de Senhora

As quatro partes em que o romance se divide tratam respectivamente de: a compra do noivo, o passado de
Aurélia, a convivência com o marido comprado e o resgate da dívida que Fernando tinha para com Aurélia.
Como a segunda parte é um flashback que explica a origem da primeira, o romance traz sempre um mistério a
ser desvendado pelo leitor. A terceira parte também não deixa clara a intenção de Fernando ao mudar seu
comportamento, o que gera uma expectativa sobre o desenlace do romance. Todo o clímax da narrativa reúne-se
na quarta parte, na qual, finalmente, todos os esclarecimentos são feitos. Senhora trata, portanto, do tema
“amor”, sob o ponto de vista da decepção, da vingança e do reencontro. Todos os acontencimentos da narrativa,
entretanto, a partir do que coloca o narrador, são semiotizados pela lógica subjetiva, ou seja, terão como função
possibilitar que a subjetividade amorosa, inicialmente fragmentada em duas subjetividades  Aurélia e
Fernando , possa reintegrar-se.
Aurélia é a heroína sofrida, inteligente, sedutora e apaixonada, que canta como uma prima-dona, toca piano
como Artaud, conversa com ministros e diplomatas, deixando todos enfeitiçados. O narrador, descrevendo-a,
ressalta-lhe uma característica incomum (ao menos no ponto de vista patriarcalista da época):

Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da
estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência.
Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração,
para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem. 20

Fernando é o herói cujo caráter deveria ser moldado, através do sofrimento, para torná-lo merecedor do amor
que lhe era devotado:
Seixas era um homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das selas, sua honestidade
havia tomado essa têmera flexível de cera que molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da
ambição.
Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança; mas professava a
moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente em nossa sociedade.
Segundo essa doutrina, tudo é permitido em matéria de amor; e o interesse próprio tem plena
liberdade, desde que transija como a lei e evite o escândalo. 21

Deixar de freqüentar a sociedade; não fazer figura entre a gente do tom; não ter mais por alfaiate
o Raunier, por sapateiro o Campas, por camiseira a Gretten, por perfumista o Bernardo? Não ser de
todos os divertimentos? Não andar no rigor da moda?
Eis o que ele não concebia. Sentia-se com ânimo para matar-se; mas para tal degradação
reconhecia-se pusilânime.22

Os dois personagens  Aurélia e Fernando  reproduzem o ideal romântico do merecimento como forma
de conquista da felicidade.
Obra romântica, Senhora é um texto literário cujo padrão narrativo está determinado pela lógica estruturante
do personagem. A aferição dessa sobredeterminação da lógica subjetiva às outras, parte do reconhecimento da

19
O romance foi publicado, pela primeira vez, em 1875.
20
Senhora, p. 28.
21
Senhora, p. 65.
22
Ibidem, p. 69.
5
concepção literária à qual o romance está vinculado, ou seja, como todo romance romântico, Senhora está
contaminado pela concepção literária romântica que, na ficção, caracteriza-se como a narrativa em que a lógica
subjetiva do personagem é a lógica que articula o processamento das três lógicas ficcionais: a lógica do espaço, a
lógica do acontecimento e a própria lógica do personagem. Espaço e acontecimento, portanto, estão submetidos
à lógica subjetiva do personagem, no caso representada por Aurélia Camargo. Contudo, somente a análise
semiológica propriamente dita poderá confirmar esse processamento.
O romance apresenta-se, como já foi dito, dividido em quatro partes. Apesar da divisão, a apresentação dos
fatos não é cronológica. A primeira parte – “O preço” – refere-se à ação da personagem que, na busca de realizar
uma vingança que lhe traga serenidade ao espírito, arma a compra do marido. A segunda parte é um flashback
que explica os motivos que levaram a personagem a tal atitude. A terceira parte mostra o relacionamento entre a
personagem e o marido comprado e a última parte refere-se ao resgate da dívida por parte do marido. O recurso
da divisão metodológica do romance em seqüências narrativas sustenta-se pelo reconhecimento dos principais
acontecimentos estruturados no corpo do romance. A divisão feita por Alencar, contudo, já põe em evidência
esses acontecimentos. Por essa razão, tomei como critério obedecer à divisão do próprio autor.
Como todos os acontecimentos da narrativa giram em torno de Aurélia e Fernando, passarei a distingui-los,
respectivamente, como PERSONAGEM 1 e PERSONAGEM 2. Ambos representam a lógica subjetiva do
personagem que, fragmentada em duas identidades antagônicas, somente alcançará a integridade após a diluição
dos impedimentos que a fragmentam: a vingança, que caracteriza a subjetividade da personagem 1, e o interesse,
que caracteriza a subjetividade do personagem 2.

Seqüência 1 – O PREÇO

Em “O preço”, temos a atenção voltada para Fernando Seixas. Fernando não tem a franqueza e o caráter
desejáveis a um personagem romântico típico. Contudo, o desejo de vingança de Aurélia iguala-os. Assim, a
lógica subjetiva do personagem ganha uma dualidade e, ao mesmo tempo, uma incompletude: tanto heroína
quanto herói precisam superar seus próprios defeitos para possibilitarem a realização plena do amor. Os valores
codificados do espaço, entretanto, estarão sempre pondo à prova os dois personagens. Submetendo o marido ao
sofrimento causado por sua própria ambição, Aurélia estará contribuindo diretamente para o resgate do homem
amado e, ao mesmo tempo, estará impondo a si mesma uma situação desgastante através da qual poderá livrar-se
do sentimento de vingança.
A vida de Fernando também estava cercada de acontecimentos. Vivendo com a mãe e as duas irmãs, e sendo
paparicado pelas três, ele, contudo, não tinha a mesma obstinação de Aurélia. Deixava-se levar pelos valores
codificados do espaço, buscando para si um casamento de conveniência, de modo a solucionar seus problemas
financeiros. Para isso, camuflava a própria realidade, fazendo-se passar por um homem da corte. Com seu jeito
galante, sem ser pedante, e sua boa conversa, Fernando atraía as mulheres, buscando alcançar seu objetivo. O
surgimento do amor, na seqüência seguinte, evidenciará, contudo, um foro íntimo diverso do que a exterioridade
simula. A paixão por Aurélia resulta num conflito interior para o personagem, mas, vencido pela própria
fraqueza de caráter, submete-se ao arranjo promovido por Lemos e pelo pai de Adelaide Amaral e se afasta de
Aurélia. Todavia, enquanto o rompimento causa o desequilíbrio entre Aurélia e o espaço, será a grande herança
que dará a ela a possibilidade de promover um desequilíbrio também para Fernando.
Nesta seqüência teremos, portanto, o início do duplo conflito gerado pela compra, acontecimento promovido
por motivações pessoais de Aurélia, com a ajuda de agentes da personagem (Lemos e Torquato Neto, que nesse
momento da trama se reaproximará de Adelaide, facilitando o afastamento de Fernando). Aqui, a lógica objetiva
do espaço, com seus valores codificados, parece estar submetendo a lógica do personagem (já bi-partida entre
Aurélia e Fernando), já que tanto Aurélia quanto Fernando fazem uso do “casamento por interesse” (no caso de
Aurélia, o interesse é a vingança; no de Fernando, a ambição).
Resumo assim a primeira seqüência23:
1. PERSONAGEM 2 (Fernando) X ESPAÇO
acontecimento: compra

Situações de conflito geradas:

A) PERSONAGEM 1
X
PERSONAGEM 2

O casamento por conveniência (vingança e ambição) não permite que os personagens alcancem a plenitude.

23
O uso de (X) indica oposição, conflito; o uso de (=) indica equilibro, harmonia.
6
B) PERSONAGEM 1 X PERSONAGEM 1
(conflito interno de Aurélia = desconforto pelo desejo de vingança)
PERSONAGEM 2 X PERSONAGEM 2
(conflito interno de Fernando = desconforto pela ambição denunciada)

Acontecimentos: compra e casamento


Efetivada a compra, os personagens tomam consciência da natureza negativa de suas motivações pessoais
(vingança e ambição), natureza esta que impede uma identificação mútua e a conseqüente integração das duas
lógicas numa só.

Seqüência 2 – QUITAÇÃO

A “Quitação” dá-nos o histórico da vida de Aurélia. Filha legítima de um pai ilegítimo, Pedro Camargo,
Aurélia cresce separada de Pedro na maior parte do tempo, porque o mesmo tentava construir um
relacionamento sólido com o próprio pai, Lourenço, que, apesar de não tê-lo reconhecido como filho, recebeu-o
em sua casa como tal. A extrema preocupação em não decepcionar o pai com a verdade sobre a família já
constituída fez com que Pedro se mantivesse afastado da família, embora a amasse e fosse amado por ela.
Quando o pai de Aurélia morre, o avô, rico fazendeiro, não aceita a família do filho como verdadeira. Assim, o
acontecimento falecimento de Pedro traz a Aurélia, sua mãe e irmão, maiores dificuldades financeiras do que já
tinham. A mãe de Aurélia era costureira e seu irmão, Emílio, um rapaz de dezoito anos com dificuldades
mentais. Toda essa carga negativa não abalou o caráter da personagem. Bela, decidida, firme, inteligente e boa,
Aurélia é o protótipo da heroína que não se deixa corromper. Os acontecimentos, até aqui, não são suficientes
para provocar o desequilíbrio na relação da personagem com o espaço. Ao contrário, fazem com que Aurélia
amadureça e se torne ainda mais firme em seu caráter.
Nesse primeiro momento (referenciado através do flashback), a personagem flui da normalidade existencial.
Ela integra os acontecimentos e os explica através de sua lógica subjetiva, ou seja, semiotiza subjetivamente os
acontecimentos por meio de seu bom caráter, paciência, disposição para o trabalho, etc... Assim, todos os
acontecimentos dessa seqüência – falecimento de Pedro, deficiência mental de Emílio, rejeição do avô paterno,
rejeição da família da mãe – serão reforçadores da lógica do personagem.
Chegando à “idade de se casar”, Aurélia preocupa a mãe, que deseja ver a filha bem casada (valor codificado
da lógica do espaço). O irmão de Aurélia havia morrido e a mãe, temente pela futura solidão da filha, submete-a
a ficar na janela de modo a se deixar admirar pelos rapazes transeuntes. Aqui se dá um conflito entre personagem
e espaço. A lógica do espaço tem como valor codificado o “casamento arranjado”, com o qual a mãe de Aurélia
parece compactuar, ainda que por imposições sérias. Contudo, a obstinação e a rigidez do caráter de Aurélia
impedem-na de compactuar com esse tipo de “arranjo”. Aurélia deseja um casamento “por amor”.
Por sua beleza e impassibilidade, Aurélia torna-se conhecida pelos rapazes que tentam seduzi-la. Mais um
acontecimento é submetido à lógica subjetiva: cortejada por um rapaz da corte – Eduardo Abreu – Aurélia
rejeita-o como pretendente por não amá-lo. É a lógica objetiva do espaço testando a firmeza da moça. Se ela
cedesse à corte, estaria também cedendo à lógica do espaço, na qual dificuldades financeiras e casamentos por
interesse se adequam.
Outro teste para Aurélia será o aparecimento do tio Lemos, que vê na sobrinha uma fonte de lucros através
de uma possível prostituição. O caráter de Aurélia impossibilita qualquer tentativa por parte do tio em prosseguir
na intenção de explorar a beleza da sobrinha.
Um último acontecimento, contudo, provocará o reequilíbrio entre personagem e espaço: o surgimento do
amor. Através de Fernando Seixas, Aurélia se descobre capaz de amar e o casamento com ele passa a fazer parte
de seus sonhos.
Lemos, nessa parte ainda um agente da lógica do espaço, sabedor do sentimento que une o casal, manipula os
acontecimentos para que Fernando realize seus sonhos de riqueza e status social casando-se com outra moça,
Adelaide Amaral, cujo pai tinha o interesse de ver separada de um namorado ainda mais pobre do que Fernando
 Torquato Neto. O jogo é armado e Fernando cai nele. Conhecedora dos motivos que levaram Fernando a
abandoná-la, Aurélia tem uma grande decepção com o amado e consigo mesma, por haver amado um homem
fraco. A partir daí, a história tomará outro rumo. Aurélia, contra todas as evidências da lógica objetiva do
espaço, submeterá o amado a diversas provas para que ele se torne novamente merecedor de seu amor.
Como a lógica do personagem, no desempenho da função estruturante, tem como fluxo semiotizante as
motivações de ordem pessoal, um novo acontecimento virá auxiliar Aurélia no seu desejo de vingança: o avô
finalmente reconhece a família do filho. Aurélia perde a mãe e, em seguida, o avô, que, tendo reconhecido a neta
como única herdeira legítima, deixa grande herança para ela.

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Aurélia aceita por tutor o próprio tio Lemos que, por sua vez, ver-se-á obrigado a atuar como agente da
personagem, auxiliando a sobrinha em seu projeto de vingança. O ex-agente do espaço é, portanto, totalmente
subjugado pela lógica estruturante da narrativa. Lemos, que outrora fora o manipulador da separação de
Fernando e Aurélia, será agora o instrumento que a personagem utilizará para realizar o seu desejo de vingança.
Esta segunda seqüência poderia ser organizada da seguinte forma:
1. PERSONAGEM 1 = ESPAÇO
acontecimentos: morte do pai, deficiência mental do irmão, dificuldades financeiras da família, rejeição do
avô paterno, rejeição da família da mãe, morte do irmão.
2. PERSONAGEM 1 X ESPAÇO
acontecimento: exposição na janela
3. PERSONAGEM 1 = ESPAÇO
acontecimento: surgimento do amor
4. PERSONAGEM 1 X ESPAÇO
acontecimentos: rompimento com Fernando, grande herança

Seqüência 3 – POSSE

Desarticulados entre si, nova motivação de ordem pessoal demonstra a supremacia da lógica subjetiva do
personagem, ainda que bipartida: tanto Aurélia quanto Fernando descartam a hipótese de uma separação. Mas
será a partir de Fernando que a unidade da lógica do personagem caminhará para ser alcançada. Rompendo com
a lógica do espaço, ou seja, com os valores que a nova condição social lhe trouxe, Fernando demonstra desprezo
pelos termos do casamento e recusa as mordomias oferecidas por seu novo status social. Dedica-se ao trabalho,
como nunca houvera feito antes, restringe-se ao uso de objetos pessoais por ele mesmo comprados e troca
amabilidades com D. Firmina. Esta representará a agente da lógica subjetiva, tornando-se um elo que contribuirá
para a integração entre Fernando e Aurélia. Todos os acontecimentos nesta seqüência servirão para consolidar o
amadurecimento dos personagens, embora o único meio possível de se chegar à unidade definitiva seja o amor –
a maior das motivações de ordem pessoal, aquela que no início do romance uniu os personagens. Assim, nesta
seqüência, tanto o conflito externo entre os personagens, quanto o conflito interno de cada um vai sendo
atenuado a partir das atitudes de Fernando.

1. PERSONAGEM 1 X/= PERSONAGEM 1


(conflito interno sendo atenuado pela ação do outro)
PERSONAGEM 2 X/= PERSONAGEM 2
(conflito interno sendo atenuado por ação própria motivada pelo desejo de se libertar
da situação criada pela a ambição)
Acontecimentos: diversos, podendo ser lidos como convivência
2. PERSONAGEM 1
X /= X/= ESPAÇO
PERSONAGEM 2

A busca pela unidade da lógica bipartida do personagem leva ambos a uma relação de indiferença com o
espaço. Os valores codificados começam a perder o domínio para as motivações de ordem pessoal. O casamento
por interesse, embora dado concreto e visível, tem importância menor diante do desejo de mudança de Fernando
e a conseqüente reação de Aurélia a essa mudança.
2.3.1.1.4 Seqüência 4 – RESGATE
“Resgate” vai tornando clara para o leitor a verdadeira intenção de Fernando, ou seja, devolver os cem
contos de réis à sua “dona”, comprando de volta sua liberdade, o que encerraria definitivamente a suposta
supremacia de um valor codificado – o casamento por conveniência. Um acontecimento vem favorecer a
reaproximação entre os personagens: a presença de Eduardo Abreu. A presença de um ex-rival reaviva o
sentimento de Fernando por Aurélia. Nesse momento, o amadurecimento do herói é claro.
Por outro lado, a presença de Adelaide Ribeiro vai gerar o ciúme de Aurélia e também o conseqüente
reaquecimento do amor. O ciúme recíproco identifica os personagens.
O último e decisivo acontecimento será o pagamento da dívida, somente possível através de um dinheiro
inesperado que chega às mãos de Fernando, resultado de um investimento antigo. Assim, se a grande herança
permitiu a realização de um projeto de vingança, o pagamento da dívida possibilitará a redenção de Fernando.
Livre do conflito interno, Fernando encontra-se também livre para o amor, resta a Aurélia despir-se de sua
amargura e espírito vingativo, cedendo lugar ao primeiro sentimento que a uniu a Fernando – o amor.
O restabelecimento da relação de identidade se faz, então, finalmente, mediante o alcance da plenitude
individual dos dois personagens e a união de ambos através do amor. A lógica subjetiva do personagem (Aurélia
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e Fernando unidos pelo amor), através da realização de suas motivações de ordem pessoal, impõe-se ao espaço e
a situação final é de plenitude.
Assim resumo as relações entre os personagens nessa parte da obra::
1. PERSONAGEM 1 = PERSONAGEM 2 (identidade promovida pelo ciúme)
Acontecimentos: presença de Eduardo Abreu
presença de Adelaide Amaral

2. PERSONAGEM 1 = PERSONAGEM 2 (identidade promovida pelo amor)


Acontecimentos: dinheiro inesperado, pagamento da dívida, arrependimento de Aurélia
PERSONAGEM 1/PERSONAGEM 2 = ESPAÇO (PLENITUDE)

Atuam como agentes da lógica subjetiva do personagem: Emília (que, embora tenha cedido à lógica do
espaço desejando um casamento conveniente para a filha, acaba respeitando o desejo da filha de não se casar
com Eduardo Abreu); Lourenço Camargo (quando, arrependido, torna-a sua única herdeira); dona Firmina (por
razões já expostas); Emílio (que, por suas dificuldades mentais, obrigou Aurélia a desenvolver seu raciocínio
matemático e domínio sob as finanças); Torquato Neto, fiel amigo de Aurélia (ao ajudar a separar Fernando e
Adelaide); Lemos (ao ser subjugado pela sobrinha e obrigado a atuar como um agente dela); Adelaide
Amaral/Ribeiro e Eduardo Abreu (por despertarem, embora involuntariamente, o ciúme que reacenderá o amor
entre os personagens).
Atuam como agentes da lógica objetiva do espaço: Lourenço Camargo (antes de reconhecer a família do
filho como legítima); a família da mãe de Aurélia (que a rejeita por causa do casamento); o tio Lemos (quando
promove a separação dos noivos Aurélia e Fernando); o pai de Adelaide Amaral (que arranja um casamento para
a filha); a família de Fernando (que estimula sua fraqueza de caráter).
A lógica subjetiva, representada, portanto, por Aurélia e Fernando, enfrenta todos os agentes do espaço
chegando mesmo a subjugá-los, tornando-os seus agentes. O conflito mais marcante na estrutura narrativa não
foi, todavia, do tipo personagem X espaço, mas um conflito inter-personagens, para os quais a situação de
normalidade existencial só poderia ser alcançada após o restabelecimento da relação amorosa entre ambos.
Típica narrativa de personagem, Senhora, após essa análise semiológica, abre temas interessantes para a
análise crítica, principalmente àquelas de naturezas psicológica e sociológica, por estarem em evidência
aspectos relacionados às convenções sociais e às máscaras usadas por homens e por mulheres para o
enfrentamento das imposições sociais. A análise semiológica presta-se, portanto, ao reconhecimento inicial da
estrutura textual, e permite um domínio mais efetivo das temáticas que o texto oferece como ponte para a
abertura dele mesmo sobre qualquer realidade, visto o aspecto universalizante da obra de arte.

Aglaia, de Murilo Rubião: uma narrativa de semiotização de acontecimento

O conto Aglaia, de Murilo Rubião, aborda o relacionamento conjugal, principalmente nos aspectos sexual e
financeiro: Colebra e Aglaia, ao se casarem, compactuam de uma mesma idéia: não terem filhos. Colebra, por
ser pobre e estar desempregado, aceita o regime de separação de bens, imposto pelo pai da moça. O casamento
transcorre normalmente, com exceção de uma inversão de papéis que fica clara desde o início: Aglaia assume as
responsabilidades financeiras e, na noite da lua-de-mel, é ela quem toma a iniciativa, enquanto Colebra se sente
inibido. A inversão de papéis, entretanto, não impede o bom relacionamento entre os dois. De repente, Aglaia
engravida,apesar de ter feito uso da pílula anticoncepcional. Contra o médico, Aglaia e Colebra decidem-se pelo
aborto e vão a uma clínica, onde o mesmo é realizado. Aglaia tem complicações e, no pós-operatório, quase
morre. Colebra se sente incomodado pelos problemas de saúde da mulher e, ao mesmo tempo, demonstra
preocupação com sua situação financeira e posição social, caso a mulher venha a falecer. Tratada pelo mesmo
médico, contra a vontade do qual havia feito o aborto, Aglaia melhora e volta a cercar-se de cuidados para não
engravidar. Apesar desses cuidados ( pílula, DIU, tabelas, preservativos, etc...), e não mais podendo, por razões
de saúde, realizar abortos, Aglaia engravida seguidamente. A medicina não consegue explicar o processo
desencadeado no corpo de Aglaia. Colebra e Aglaia desesperam-se com a quantidade de crianças nascendo e
resolvem abster-se de sexo, o que, absurdamente, não impede que os bebês continuem nascendo. O
relacionamento entre eles torna-se insuportável. Mesmo as gestações tornam-se mais curtas, até que os bebês
nasçam em ninhadas de quatro ou cinco crianças, após períodos de apenas vinte dias de gestação. Colebra não
pode ter desconfiança de sua mulher, pois todos os filhos se parecem com ele. Quando a convivência chega ao
máximo do rancor, Aglaia propõe o divórcio, acompanhado de uma generosa pensão mensal para o marido.
Colebra simula certo desinteresse, mas está ansioso pela separação. Algum tempo depois, Aglaia concede-lhe o
divórcio. Aglaia começa a dar a luz a filhas com olhos de vidro e, na hora da partida do marido,implora a ele
que não a deixe sozinha com as crianças estranhas que está gerando. Colebra não se sensibiliza e parte, passando
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a viver pelos bares bebendo e a dormir com mulheres diferentes a cada noite. Junto com o cheque da pensão,
Colebra recebe as fotografias de seus filhos mais recentes. Certa noite, após ser deixado, por uma moça, bêbado
e inconsciente no seu quarto, Colebra recebe a visita de seus meninos. Eles ocupam todo o espaço livre do
quarto, e, após isso, começam a subir uns nos ombros dos outros para permitir a entrada dos que ficaram no
corredor. Quando Colebra recupera a consciência, vê-se esmagado por uma massa de carnes, ossos, fezes e
urina. Não consegue ao menos gritar. Sufocado por toda essa massa, Colebra vomita.
A partir do resumo da estória, torna-se clara a relação sexo/reprodução enfocada no conto. Colebra e Aglaia
simbolizam o casal que compartilha de um grande desejo sexual e uma grande repulsa à
paternidade/maternidade. A procriação acontece em suas vidas contra a vontade de ambos e contra a verdade
científica, uma vez que não pode ser controlada pelos cuidados médicos conhecidos. O relacionamento entre os
dois, por essa razão, desmorona, desfaz-se, ficando como elo para uni-los os filhos e o dinheiro de Aglaia, que
continua a sustentar o marido após a separação.
A estória passada entre Colebra e Aglaia é contada numa seqüência de 9 partes que explicam o início do
conto onde Colebra já está separado, vivendo bêbado e cheio de mulheres. A explicação vem logo após o
momento em que Colebra é sufocado pelos filhos no quarto. Assim, dentro da estrutura do conto há a utilização
do “flashback”.
Um outro aspecto interessante que merece ser comentado é a utilização da epígrafe bíblica, recurso
característico de Murilo Rubião, que funciona como um resumo da estória a ser narrada, além de dar indícios de
seu desfecho. Em Aglaia, Murilo utilizou-se da passagem bíblica extraída do Gênesis III, 1 b, que diz: “Eu
multiplicarei os teus trabalhos e os teus partos” (p. 73). Essa citação ganha, no decorrer do conto, um caráter de
maldição, maldição esta que recairá sobre Colebra e Aglaia que, desejosos de não terem filhos, ver-se-ão
cercados por inúmeros filhos, provenientes de gestações absurdas, que geram uma total impossibilidade de
controle do planejamento familiar.
Durante a análise semiológica do conto, a organização formal do mesmo será utilizada, sob a forma de
seqüências, para explicar as diversas lógicas presentes, que definem a sua natureza.
Conforme a formulação teórica utilizada, a narrativa de semiotização de acontecimento caracteriza-se
pela imposição da lógica neutra do acontecimento que, integrando a instância de enunciação, assume a função
estruturante da proposição de realidade ficcional. Assim, no decorrer da narrativa, resultarão falhas as tentativas
das lógicas do personagem e do espaço em atribuírem um sentido para o acontecimento, subordinando o mesmo
ou à lógica subjetiva do personagem, ou à lógica objetiva do espaço. Todo esse processo poderá ser observado
em Aglaia.
Fugindo da seqüência começo/meio e fim, Aglaia, em seu início, marca o momento do caos absoluto, onde
espaço e personagem são submetidos à lógica do acontecimento. Nessa primeira parte, Colebra é apresentado
como um ser já em desequilíbrio com o espaço, vivendo de bebidas e mulheres, estando a lógica do personagem
já submetida à lógica do acontecimento. Sabe-se que ele está separado da mulher, e que dela recebe uma
pensão, através de um cheque mensal que lhe é enviado. Juntamente com o cheque, Colebra recebe fotos atuais
dos filhos. A respeito dos filhos ele diz: São meus filhos. Os da última safra (p. 73). O signo safra, esvaziado de
seu sentido, metaforiza o processo ao qual o personagem está submetido: ter filhos em safras. Essa safra de
filhos gera nele um sentimento de ódio. O acontecimento decisivo, que aniquila o personagem, é a invasão dos
filhos no seu quarto de hotel. A quantidade de filhos é tão absurda que eles se amontoam, transformando-se
numa coisa viscosa (p.74), que sufoca Colebra. A partir daí, o conto divide-se em nove passagens que,
funcionando, como já se disse, como um “flasback”, irão tanto explicar a forma como Colebra chegou àquela
situação insólita, como tentar semiotizar o próprio acontecimento. As nove partes serão associadas sob a forma
de seqüências, que definem as correlações entre as três lógicas ficcionais.
As partes 1 e 2 referem-se ao casamento de Colebra e Aglaia e definem uma seqüência que poderíamos
intitular seqüência hegemônica inicial. Personagens e espaço estão em harmonia e todos os acontecimentos que
poderiam gerar uma situação de conflito são submetidos à lógica ficcional do personagem, ou seja, as
motivações de ordem pessoal determinam o processamento normal da realidade ficcional. Apesar de
contrariarem as regras impostas pela lógica do espaço, Colebra e Aglaia concordam com o tipo de vida que irão
levar após o casamento e essa concordância, ou pensamento compactuado, anula qualquer conflito possível. Esse
conflito poderia ocorrer em razão de Aglaia ser rica e Colebra, um pobre desempregado. Ele aceita a separação
de bens, ela aceita a situação financeira dele. O conflito, então, não existe. Uma família, segundo as leis bíblicas,
forma-se para que homem e mulher, através da procriação, dêem continuidade à existência humana. Aglaia e
Colebra concordam: não desejam filhos. Mais uma vez, anula-se um conflito possível. As leis, os códigos e
valores morais do espaço não afligem os personagens, que têm uma maneira própria de organizar sua vida. Na
noite de lua-de-mel, os papéis invertem-se: Colebra fica tímido e sua mulher toma a iniciativa. Também essa
situação não traz conflito. O relacionamento do casal é, portanto, nesta seqüência, equilibrado pela função
estruturante da lógica subjetiva do personagem.

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As partes 3, 4 e 5 relacionam-se ao processamento inicial do acontecimento que irá romper a relação de
identidade entre personagens e espaço, principalmente entre os primeiros, daí intitularmos esta seqüência
seqüência de enfraquecimento da lógica subjetiva do personagem. Ocorre uma gravidez inusitada, visto que
Aglaia utilizava a pílula como anticoncepcional. Doutor, tudo o que o senhor diz é vago e reticente. Como estar
grávida, se tomei a pílula? (p. 75) Nesse ponto, a lógica do espaço é questionada na tentativa de se semiotizar o
acontecimento. Provavelmente você não observou a prescrição do anovulatório. Conheço vários casos iguais
ao seu (p. 75). O médico, como agente do espaço, satisfaz-se com sua explicação objetiva sobre o
acontecimento. A personagem assimila a explicação e resolve tomar a atitude que cessará o acontecimento - um
aborto. Contra a vontade do médico, os personagens buscam no aborto o equilíbrio anterior. O aborto será,
portanto, a tentativa da lógica do personagem em impor-se ao acontecimento, anulando-o e reestabelecendo a
normalidade existencial ficcional. O resultado do aborto é uma infecção séria (septicemia) que abala a saúde de
Aglaia  útero perfurado (p. 76)  e, por conseqüência, o relacionamento do casal. Colebra já preocupa-se
com o dinheiro - ... pensou ter descoberto uma saída, a única: pedir à esposa que fizesse o testamento (p. 77).
Essa preocupação mostra a fragilidade de Colebra em relação ao compromisso firmado no casamento, quando
aceitou a separação de bens. Personagem e espaço têm agora um conflito, pois Colebra já deseja o dinheiro da
esposa, apesar de não ter direito a ele. No momento exato em que Aglaia iria assinar o tal testamento, o médico
intervém e expulsa o tabelião e o marido do quarto. As visitas estavam proibidas. Nessa seqüência, parece ser a
lógica do espaço quem impõe-se como função estruturante. É ela quem explica o acontecimento - a gravidez
indesejada, e é ela quem impede a realização do desejo do personagem, através de uma medida médica - As
visitas estavam proibidas. Também é interessante observar que, nessa seqüência, a lógica do personagem que, na
seqüência anterior impunha-se pelo pacto e associação dos ideais de dois personagens, perde sua força pela
anulação de um deles em razão do acontecimento. Colebra passa a traduzir isoladamente a lógica do
personagem, enquanto Aglaia está imobilizada pelo estado doentio. Apesar, contudo, da intervenção do médico,
parece que a situação inicial voltará a se recompor, já que Aglaia dá sinais de melhora e, voltando à normalidade,
poderá reforçar a lógica do personagem.
Na parte 6, entretanto, será o acontecimento que ganhará nova força: surgem novas situações de gravidez.
Desta vez, a lógica do espaço, através de seu agente - o médico, tentará explicar e impedir o acontecimento
(novas marcas de pílulas, dispositivo intra-uterino, tabelas, preservativos sob forma de condons, espermicidas,
esponjas, supositórios), mas Não obstante os filhos continuavam a vir (p. 77/78). Fica clara nessa seqüência, que
intitularemos instauração definitiva do conflito a total impossibilidade da lógica objetiva do espaço explicar a
impedir o acontecimento. Assim como torna-se inútil a submissão dos personagens à lógica do espaço.
Personagens tomam, então, a decisão de evitarem o contato sexual. Decepcionam-se, entretanto, ao constatar
que nem isso impede novas gestações, ou seja, a lógica subjetiva do personagem perde definitivamente o
poder de sustentar-se pelo pacto de ideais dos dois personagens.
O absurdo do acontecimento, impondo a lógica neutra do acontecimento como estruturante da proposição de
realidade ficcional, tem seu ápice nas partes 7 e 8, que definem a seqüência vivência do insólito. Começa a
acontecer o nascimento de quatro ou cinco crianças até mesmo vinte dias após a suposta “fecundação”, crianças
estas que nasciam no tamanho de cobaias e que cresciam com rapidez, logo atingindo o desenvolvimento
normal. Além disso, as crianças não se prendiam ao corpo materno pelo cordão umbilical (p. 78), o que
prenuncia que a incapacidade de controlar o próprio processo reprodutor levaria Aglaia e Colebra a perderem a
própria identidade humana. Neste momento também a lógica ficcional do espaço está totalmente destruída: Os
amigos pediam-lhes calma, os médicos insistiam que todo um processo de fecundação fora violentamente
alterado e a medicina não podia explicar o inexplicável (p. 78). Os personagens, submetidos à lógica do
acontecimento vêem no sexo a maldição, a origem do caos. Esse posicionamento está em oposição direta à
aquela inicialmente adotada pelo casal, na seqüência hegemônica inicial, quando Colebra subiu as mãos pelas
coxas dela e pensou satisfeito que nenhum filho nasceria para deformar aquele corpo (p. 74) e quando Colebra e
Aglaia pela madrugada, insaciados, abrigavam-se em casa e prosseguiam o ritual orgíaco até a explosão final
do sexo (p. 75). Consumindo-se agora pelo rancor mútuo, Aglaia e Colebra decidem-se pela separação. Colebra,
entretanto, por desejar vantagens econômicas, decide forjar uma hesitação para obter uma pensão maior do que a
oferecida. Essa atitude reforça a completa desarticulação dos personagens com a lógica subjetiva inicialmente
única pela fusão dos ideais dos dois personagens. Na continuação da narrativa, evidencia-se a sujeição dos
personagens à lógica estruturante do acontecimento. Um batalhão de empregadas é contratado. A desordem
dominava a casa: Em meio a móveis quebrados, fraldas molhadas e pedaços de brinquedos, os pequenos
destruidores se divertiam em jogar para o ar as bolas e os urinóis nem sempre vazios (p. 79). Colebra joga os
próprios filhos contra a parede, o que caracteriza a perda da própria identidade humana em favor de uma
identidade animal, própria do mundo objetual de que se constitui a lógica do diante de, observada pela
semiotização retórica do discurso, que define a retórica moderna como aquela onde a lógica do diante de assume
a função estruturante do processamento da realidade humano-existencial. Neste ponto, portanto, podemos já
atestar a evidente presença da retórica moderna no processamento das lógicas ficcionais em Aglaia. A identidade
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animal é sugerida pelos próprio nome do personagem: Colebra = cobra; da mesma forma que a identidade
vegetal é sugerida em Aglaia = planta da família da meliáceas.
A parte 9 define a seqüência final instauração definitiva do insólito a partir da separação do casal, tentativa
última dos personagens de buscar uma situação equilíbrio pelo distanciamento. Ou seja, a partir da separação,
acreditavam poder fruir de uma existência normal, ainda que submetidos à lógica do acontecimento, que toma,
nessa parte, formas ainda mais inusitadas: o nascimento, por exemplo, das primeiras filhas com olhos de vidro.
Aglaia também perde sua identidade: ... não me deixe sozinha a parir essas que nem ao menos se parecem
comigo! Por favor, não me abandone! (p. 79). A tentativa de Aglaia, em face dessa nova manifestação do
acontecimento, ao suplicar que o marido não parta, contradiz a aceitação anterior de Aglaia às condições para a
separação, ou seja, torna clara a impossibilidade de Aglaia fruir de qualquer normalidade existencial a partir da
separação, o que a leva a suplicar a Colebra que ao menos vivencie como cúmplice a situação absurda que é a
instauração definitiva do insólito. Com a partida do marido, a situação caótica se estabelece para Aglaia, sem
possibilidade de retorno à hegemonia inicial. Retornando aos dois primeiros parágrafos, constatamos a situação
de total desarticulação e desequilíbrio físico e mental dos personagens, que vivem separados, mas perdidos num
vácuo negro de acontecimentos absurdos. Os filhos continuam a vir e, apesar de Colebra nunca ter duvidado de
sua paternidade: E o marido não podia suspeitar dela porque as crianças só pareciam com ele: os mesmos
cabelos loiros, as sardas, os olhos esverdeados, a pele clara, enquanto a mãe era morena (p.78), ele se
encontrava espacialmente distante do acontecimento, o que lhe permitia um certo conforto físico, apesar da
perda do equilíbrio existencial do personagem caracterizado em sua constante embriaguez. A busca do sexo,
através da relação com várias mulheres, denota a última tentativa do personagem em, ao menos, resgatar sua
identificação inicial com o sexo enquanto fonte de prazer, mas a invasão dos filhos ao seu quarto sela o destino
do personagem. Fica claro que a lógica estruturante do acontecimento não domina inteiramente apenas Aglaia,
enquanto mãe, mas também a Colebra, enquanto pai. O que tornou-se Aglaia, senão uma planta que reproduz-se
sem contato direto? Perde-se a natureza humana, ganha-se uma natureza vegetal. O que tornou-se Colebra, senão
um animal, dado o impedimento de usar o raciocínio que a letargia alcoólica lhe impunha? Perde-se a natureza
humana, ganha-se uma natureza animal. A parte inicial do conto, portanto, ratifica a última seqüência, inserindo
Colebra definitivamente no insólito.
Em Aglaia, portanto, o acontecimento se liberta da imposição significante das lógicas do espaço e do
personagem, estabelecendo sua própria lógica como estruturante da proposição de realidade ficcional. Com isso,
personagens e espaço são lançados no vazio. Cabe ainda, agora a título de avaliação crítica, situar a narrativa de
acontecimento no caso de Aglaia, na categoria de “narrativa do absurdo”, caracterizada por uma situação inicial
de integração entre personagens e espaço, integração esta que é rompida quando os mesmos são atingidos por
acontecimentos ilógicos que introduzem o caos, impondo sua condição estruturante de uma forma irreversível,
desarticulando personagens e espaço. A nova lógica impede o restabelecimento da relação de identidade,
projetando a experiência existencial no vazio e promovendo a “coisificação” dos personagens. O conflito não
tem solução, porque não tem explicação.
Quanto ao narrador, no momento em que é onisciente e não-personagem, fica evidente que sua atuação
restringe-se à condução do fio narrativo na qualidade de agente da lógica estruturante.

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