Você está na página 1de 14

Anais do IX FELIN e I Congresso de Semiótica - 2007

TEXTOS MIDIÁTICOS: UMA INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA DISCURSIVA

Regina Gomes (UFRJ)


Renata Mancini (UFF)

Não é novidade que muitas pessoas interessadas em análise de textos nem sequer chegam
a ter contato com a teoria semiótica por acharem que a incursão em suas discussões teóricas é
uma tarefa árdua demais. Assim, uma teoria que apresenta ferramentas de trabalho muito
consistentes e operativas para a análise textual muitas vezes deixa de ser explorada por aqueles
que poderiam tirar bom proveito de noções já solidamente estabelecidas. O intuito deste
minicurso é mostrar, de maneira breve, alguns conceitos da semiótica francesa e como estes
podem auxiliar numa reflexão mais aprofundada sobre textos midiáticos, notadamente, textos
jornalísticos e publicitários.

Comecemos por apresentar o que entendemos por texto. Não podemos nos esquecer que
essa é uma noção que abrange não só os textos verbais (textos literários, artigos de jornais e
revistas etc.), mas também, os visuais (pinturas, esculturas, fotos etc.), os musicais (canções,
jingles etc.) entre outros. Há também aqueles que são construídos a partir da mistura desses
diferentes “tipos textuais”, como é o caso do cinema, dos clips e dos textos publicitários, por
exemplo. Ou seja, a noção de texto apresentada aqui é bastante abrangente e é isso que nos
permite propor a análise de textos publicitários e midiáticos em sua totalidade.

A semiótica francesa parte do pressuposto de que os textos possuem uma lógica


subjacente geral. Isso quer dizer que, independentemente das características que individualizam
um texto, há esquemas de organização comuns a todos eles e é precisamente desses esquemas
gerais que nasce a metodologia proposta pela semiótica greimasiana, cujo nome homenageia
seu fundador Algirdas Julien Greimas. Foi ele, no final dos anos 1960, o responsável por
estabelecer os alicerces da teoria que se sempre se caracterizou como uma metodologia de
análise que procura entender e explicitar os mecanismos de construção de sentido no texto. O
simulacro metodológico proposto pela semiótica francesa ou greimasiana parte de grandes
linhas gerais, as quais salientamos brevemente a seguir.

Todo enunciado tem como pressuposto necessário um sujeito da enunciação (um


“alguém que diz”). Esse sujeito da enunciação se desdobra em um enunciador (quem fala) e
um enunciatário (para quem se fala). Isso implica dizer que todo enunciado tem como
pressuposto uma interlocução entre ambos. Precisamente esta interlocução constrói as
1
especificidades de cada texto, dado que o sujeito da enunciação, ao se projetar no enunciado,
deixa suas marcas nele. Vale sempre a ressalva de que quando falamos de sujeito da enunciação
na semiótica – seja pela perspectiva do enunciador seja pela do enunciatário – estamos nos
referindo a uma voz que emana do texto e não a pessoas reais. Uma ilustração rápida deste
argumento é o fato de que todo texto infantil, por exemplo, carrega em si as marcas que nos
indicam que seu enunciatário é uma criança, independentemente de sabermos ou não os dados
biográficos ou anedotas circunstanciais que envolvem a obra. Ou seja, a análise imanente (que
não ultrapassa os limites do texto) garante não apenas uma rica fonte de informações sobre as
relações internas do texto e seus mecanismos de construção da significação, mas também aponta
– respeitando a “voz do texto”, por assim dizer – para sua ancoragem ideológica. Trataremos
essa questão um pouco mais em detalhes logo adiante.

No que diz respeito ao enunciado propriamente dito, a semiótica propõe uma divisão da
análise em diferentes graus de abstração, o que estabelece três níveis de análise que compõem
o percurso gerativo do sentido. São eles:

(i) Nível discursivo: o nível mais superficial e de maior concretude, onde se situam as
estratégias de projeção do sujeito da enunciação, mais especificamente no que tange à projeção
das categorias dêiticas de pessoa, espaço e tempo (sintaxe discursiva). Neste mesmo nível,
devem ser enquadradas as relações entre temas e figuras (semântica discursiva) determinadas
pela mesma enunciação.

(ii) Nível narrativo: este é um nível mais abstrato, em relação ao primeiro, em que se situa
a sintaxe narrativa (base comum do enunciado narrativo). Esta sintaxe prevê uma estruturação
mínima que, a princípio, serviria de base para qualquer enunciado e que se baseia nas relações
juntivas estabelecidas entre um sujeito e um objeto de valor (o que será mais bem explicado
mais abaixo).

(iii) Nível fundamental: nível em que se estabelece o eixo semântico sobre o qual o texto
se constrói e em que, através do quadrado semiótico, representa-se graficamente a sintaxe
sumária das transformações que ocorrem entre os termos de uma categoria semântica. Tal
sintaxe funda-se em relações de contrariedade, contradição e implicação, que são as
responsáveis pelas articulações mínimas de uma narrativa.

Se analisarmos historicamente, nos seus primórdios, as discussões semióticas


concentraram-se no nível narrativo, mais precisamente na formação de uma sintaxe narrativa,
ou seja, na caracterização de elementos comuns presentes nas relações estabelecidas entre

2
seus actantes. Essa sintaxe reinterpretava, em termos mais rigorosos, um extenso conjunto de
funções utilizadas por V. Propp para a descrição do conto popular russo. Sua ideia central ou o
elemento nuclear era o enunciado narrativo – a unidade mínima da descrição semiótica do texto.
Através do enunciado narrativo, formulado abstratamente em termos de relações juntivas entre
sujeito e objeto, Greimas logrou uma descrição estrutural aplicável, em princípio, a qualquer
texto. Façamos uma breve pausa para ilustrar o que acabamos de dizer. Para a semiótica, uma
narrativa sempre se constrói baseada nas noções de sujeito, antissujeito e objeto valor. Esses
conceitos da semiótica podem ser entendidos da seguinte forma: há sempre um sujeito que se
coloca em busca de um objeto que representa um valor para ele. Quando falamos em objeto não
estamos necessariamente nos referindo a algo palpável, mas sim à meta do sujeito, àquilo que
ele quer alcançar. Não importa se estamos contando a história de um príncipe em busca do
casamento com a princesa, de um universitário em busca do diploma, de um empresário em
busca da melhoria dos lucros da sua empresa etc. Todas essas narrativas têm em comum um
sujeito que busca um objeto-valor. A ideia é alcançar essa meta que, em termos semióticos,
significa entrar em conjunção com o objeto-valor. O caminho trilhado por essas ações
constituirá a narrativa desse sujeito. Esta, portanto, partirá sempre de uma necessidade de busca
do objeto-valor pelo sujeito, ou seja, de uma situação de disjunção. E não importa se está sendo
contada em um livro, em uma canção, em um clipe musical, em um filme, pois esse esquema
geral vale para qualquer tipo de texto. O anti- sujeito, que ainda não mencionamos, representa
os obstáculos que cada um desses sujeitos vai encontrar em seu caminho de busca. Assim, o
antissujeito pode ser um dragão “terrível” que tenta impedir o príncipe de resgatar a princesa,
pode ser um professor muito incompetente ou injusto no caso do universitário, pode ser uma
crise financeira no caso do empresário.

Em suma, apesar das diferentes narrativas “contarem” histórias específicas, elas possuem
esquemas de organização comuns – uma lógica geral dos textos – que organizam o nível
narrativo. O nível discursivo, por sua vez, será o responsável pela concretização desse esquema
geral em suas especificidades. Porém, apesar de sua concretude, detalhamento e individualidade
ele também contará com estratégias gerais de produção de determinados “efeitos de sentido”.
A construção dos efeitos de sentido, a partir da exploração de estratégias discursivas de que o
sujeito da enunciação lança mão será nossa ênfase neste minicurso. Assim sendo, discutiremos
em maiores detalhes essas estratégias mais adiante.

O nível fundamental nada mais é do que a circunscrição da categoria semântica principal


responsável pela organização do texto. Assim, podemos dizer que tanto uma matéria

3
que critica o tratamento dos prisioneiros em Guantánamo pelo governo americano, quanto uma
reportagem sobre as diferentes possibilidades que se abrem para deficientes físicos com as
ferramentas da Internet se assentam sobre a categoria liberdade vs opressão. Ou seja, esses são
os polos em torno dos quais os elementos do texto se organizarão. Mesmo no nível fundamental
já há uma valoração dos polos, uma orientação axiológica, segundo o jargão semiótico, que
indicará, mesmo que de maneira insipiente neste nível, a inclinação ideológica que se
concretizará no nível discursivo. Nos exemplos acima, o pólo “liberdade” é valorado
positivamente e o polo “opressão” negativamente. Porém, não é difícil imaginar que um texto
que trate, no nível discursivo, dos horrores cometidos nos campos de concentração na Segunda
Guerra Mundial pela perspectiva nazista tenha como orientação primordial, no nível
fundamental, o polo “opressão” valorado positivamente (por exemplo, que se concretizará no
discursivo como sinônimo de ordem). Enfim, o importante é percebermos que nesse simulacro
metodológico há uma interligação entre os níveis que garante a coerência textual.

Retomando a perspectiva histórica do desenvolvimento da semiótica francesa, como


consequência natural da própria metodologia de construção do modelo semiótico, nesse
primeiro momento da semiótica em que a ênfase recai no nível narrativo, Greimas descobre que
há em todo fazer do sujeito um elemento pressuposto. Da investigação dos pressupostos do
fazer, depreende a modalização da sintaxe narrativa, ou seja, constata que tanto o ser quanto o
fazer do sujeito poderiam estar sobredeterminados. De imediato, revelou-se a capacidade de
expansão do modelo para a descrição das etapas que antecediam e sucediam a ação do sujeito
propriamente dita e que, até então, não tinham uma explicação adequada.

As pesquisas de Greimas sobre a modalização do ser acabaram por conduzi-lo


diretamente ao universo passional. Agora, sem risco de cair num puro psicologismo, o
semioticista considera as paixões como arranjos de configurações modais passíveis de análise
científica. Em outras palavras, o fazer do sujeito tem como pressuposto arranjos modais que o
impelem à ação ou o impedem de fazer algo e esses elementos passionais refletem diretamente
no percurso do sujeito. Desse modo, por exemplo, se um sujeito é mobilizado pelo querer, mas
não pelo poder há consequências imediatas no seu percurso de ação. O universitário, dado como
exemplo acima, pode começar a busca por sua meta, o diploma, sendo modalizado
exclusivamente pelo “dever”. No entanto, se para além do “dever”, o “querer” também o
mobiliza, certamente suas ações ganharão uma nova aura. Se, por sua vez, o arranjo modal
pressuposto a essa mesma busca é o “querer” mas também o “não-poder” outros elementos
entram em jogo neste percurso.

4
Com isso queremos dizer que o conceito de modalização trouxe ganhos inegáveis ao
modelo, apesar de ter passado um tanto ao largo de uma série de questões pendentes que sequer
haviam chegado a uma boa formulação. Talvez seja esse o principal mérito de Semiótica das
Paixões (Greimas e Fontanille, 1993): nessa obra, Greimas, juntamente com Jacques Fontanille,
dão a devida ênfase ao problema da continuidade, trazendo para primeiro plano o universo
sensível e suas configurações passionais. Entretanto, apesar da inegável pertinência dos
conceitos e da propriedade no modo de apresentá-los, as questões ainda foram tratadas de modo
bastante intuitivo, uma vez que, naquele momento, não haviam sido desenvolvidas as
ferramentas conceituais necessárias a sua formalização.

Os estudos sobre a tensividade, propostos por Jacques Fontanille e Claude Zilberberg


(2001), representaram, de fato, uma abertura para as questões relacionadas à participação dos
elementos contínuos na construção do sentido. Deram prosseguimento às discussões levantadas
em Semiótica das Paixões, praticando um refinamento do instrumental teórico relacionado ao
nível das precondições de formação do sentido. Podemos dizer, então, que a preocupação com
o universo sensível se inicia com o próprio Greimas, nas obras Semiótica das Paixões e Da
Imperfeição (Greimas, 2001) e se desdobra, mais recentemente, nos estudos tensivos que dão
continuidade às preocupações do criador da semiótica francesa com o universo afetivo.

Isso nos leva a afirmar que, em seu estágio atual, a teoria semiótica já parece contar com
um alicerce conceitual suficientemente sólido para que possa se voltar para o texto entendido
como processo. Essa nova abordagem, notadamente a abordagem tensiva, decorre, portanto, de
uma evolução natural da teoria que, depois de se ater por algum tempo aos conteúdos
inteligíveis, passou a cogitar a possibilidade de tratar também os conteúdos sensíveis. O
problema que está na origem da semiótica tensiva é construir um modelo descritivo dos
fenômenos contínuos, diretamente associados ao universo sensível. Fundados sobre os
conceitos de valência e valor, percepção, ritmo, entre outros, os estudos tensivos propõem uma
sintaxe que visa a dar conta dos movimentos e inflexões que servem de base para a construção
discursiva. Daí a centralidade da noção de ritmo na abordagem tensiva.

Um bom exemplo concreto da aplicação de alguns dos conceitos desenvolvidos pelos


estudos tensivos em textos midiáticos é a análise de estratégias enunciativas de manipulação do
enunciatário de algumas propagandas veiculadas na mídia. A partir desses conceitos tensivos,
podemos, por exemplo, mostrar que alguns textos publicitários manipulam o enunciatário pelo
esperado, pelo conhecido. São aquelas propagandas que nos remetem a

5
conteúdos previsíveis e corriqueiros (um bom exemplo seriam as clássicas propagandas de
margarina). Ou seja, quanto mais vezes uma situação entra em contato com o campo perceptivo
do enunciatário, mais previsível é sua relação com essa situação, quando esta é explorada num
enunciado. Podemos dizer que, neste caso, o texto segue uma lógica implicativa (se ...então),
lógica esta que privilegia um certo “conforto do já conhecido”, por assim dizer, na interação do
enunciatário com o enunciado. Pelo enfoque rítmico, podemos dizer que o que é facilmente
assimilável se constrói sobre o andamento lento, ou seja, sobre uma celeridade compatível com
a percepção total do objeto pelo sujeito. Por outro lado, alguns textos nos manipulam pela
surpresa, pelo estranhamento causado pelo desconhecido ou pelo imprevisto. São os textos que
nos chamam a atenção pelas relações inusitadas entre os elementos que os compõem. Neste
caso, seguem uma lógica dita concessiva (embora...). Aqui, o andamento acelerado explora o
limite da percepção, isto é, o limite da intelecção do sentido geral do texto.

Em suma, a acentuada incursão no universo sensível recentemente feita pela semiótica


francesa concede, portanto, papel de destaque ao domínio da enunciação, da apreensão
cognitiva e da sensorialidade. A partir dessa matriz teórica é possível, por exemplo, uma
abordagem dinâmica das estratégias das quais o enunciador lança mão para a manipulação de
seu enunciatário. Tais resultados nos convencem de que, tomada a partir dessa perspectiva
dinâmica, a semiótica aumenta sua amplitude de atuação na tarefa de entender e explicitar os
mecanismos de formação de sentido dos textos que, cada vez mais, impõem novos desafios à
teoria.

Feita essa breve exposição da teoria semiótica tomada a partir de uma perspectiva
histórica, passemos, então, para o maior detalhamento do nível discursivo, como já dissemos.
Comentaremos, primeiramente, as estratégias de construção de “efeitos de sentido”
relacionadas às projeções do sujeito da enunciação no enunciado e a alguns mecanismos
argumentativos constitutivos da relação entre enunciador e enunciatário. Em seguida, nos
debruçaremos sobre a manifestação ideológica no discurso, surgida da relação entre temas e
figuras, concretizações que recobrem sujeitos e objetos-valor do nível narrativo.

6
PROJEÇÕES ENUNCIATIVAS E ARGUMENTATIVIDADE
– A SINTAXE DISCURSIVA
A abstração que caracteriza sujeitos, seus percursos, e suas relações com objetos
descritivos (de valor) ou modais, recobre-se de maior concretude e variedade na superfície
discursiva, etapa da produção do sentido em que um sujeito da enunciação converte as
estruturas narrativas em estruturas discursivas.

Constitutivas da existência do homem no mundo e de toda a linguagem, as relações entre


sujeitos, que no nível narrativo se estabeleciam entre um destinador e um destinatário, se
transformam, no nível discursivo, no diálogo entre enunciador e enunciatário, freqüentemente
identificados com a produção e interpretação do discurso, respectivamente. Aparentemente em
oposição, essas instâncias se conjugam, mesmo em tensão, como parceiras na responsabilidade
pela construção do enunciado.

Cumprindo o papel de manipulador, o enunciador persuade o enunciatário a crer na


verdade do seu discurso, direcionando a sua interpretação. Ao mesmo tempo, porém, submete-
se ao enunciatário, subordinando suas escolhas à representação que dele é construída no texto.
As relações que se estabelecem entre essas duas instâncias da enunciação tornam-se possíveis
através da instauração de um contrato de veridicção, determinado por um conjunto de
referências contextuais e situacionais necessariamente inscritas no discurso.

As relações acima referidas podem ser depreendidas através das marcas deixadas pela
enunciação no enunciado, na projeção dos actantes do discurso e na instauração das
coordenadas espaço-temporais (procedimentos denominados debreagens), constituindo “o
sujeito da enunciação por tudo aquilo que ele não é” (Greimas, Courtés, s.d.: 147). É importante
salientar que a enunciação está sempre pressuposta no enunciado, aí deixando suas marcas e
traços que nos possibilitam recuperá-la na descrição.

Essas marcas e traços são espalhados no discurso através da actorialização,


temporalização e espacialização, que se referem à instauração das pessoas, tempo e espaço no
discurso. Isso se dá principalmente pelo mecanismo de debreagem, que pode ser enunciativa ou
enunciva. Por meio da debreagem enunciativa (enunciação enunciada), o sujeito da enunciação
projeta um eu-aqui-agora que produz um discurso em 1ª pessoa, simulando o espaço e tempo
em que o discurso é enunciado, criando o efeito de sentido de subjetividade. Através da
debreagem enunciva (enunciado enunciado), é projetado um ele-alhures-então, produzindo um
discurso em 3ª pessoa, além de um espaço e tempo não coincidente ao da enunciação,
produzindo o efeito de sentido de objetividade. Esses mecanismos podem ser observados nos
textos que seguem:

7
Tiroteio no Rio pára trens e via expressa
Um tiroteio entre PMs e um grupo de 20 traficantes que invadiu a favela de Vigário Geral parou
ontem um trecho da Linha Vermelha e até o tráfego de trens. Uma menina de 9 anos foi baleada no pé.
(O Globo,5/9/07, p.1)

Tortura
“É impressionante a ousadia do senhor Delfim Netto ao dizer que não sabia das torturas no regime
militar. Pior é declarar ‘haver dúvidas’ e falar em ‘indústria de indenizações’.
Uma pessoa de minha família foi presa pela ditadura e ficou um mês sendo torturada no DOI-
Codi, que, sem dúvida nenhuma, existia e ficava lá na rua Tutóia. Hoje, essa pessoa tem suspeita de
Alzheimer. Só não sei se ela esquecerá os horrores que passou naquele inferno.”
(ORLANDO F. FILHO, Folha de S. Paulo, Painel do leitor, 1º/9/07)

No primeiro texto da ilustração, transcrito de O Globo, pode-se perceber a chamada


debreagem enunciva, pois há a instalação de uma 3ª pessoa (fala-se de um tiroteio), o tempo
passado observável pelos verbos (invadiu, parou, foi) e um outro lugar (trecho da Linha
Vermelha; linha de trens). No entanto, apesar de dissimular a ausência do sujeito que enuncia, a
ocorrência do advérbio ontem marca o tempo da enunciação, já que só pode ser interpretado em
relação a ele (no caso, marcado pela inscrição da data de publicação do jornal, 5 de setembro de
2007). No segundo texto, “Tortura”, há a debreagem enunciativa, ou seja, a projeção de um eu,
como se pode apreender pela marca de pessoa no verbo sei, e pelo emprego do pronome
possessivo minha. O tempo da enunciação também está explicitado pelo advérbio hoje, no
segundo parágrafo, e pelos verbos no tempo presente é, no primeiro, e sei, tem, no segundo. É
preciso notar que o emprego desses procedimentos é bastante complexo, ocorrendo alternância
e mistura deles num mesmo texto, criando diferentes efeitos de sentido. Considerando o segundo
texto citado, publicado na Folha, no primeiro parágrafo, a presença da 1ª pessoa não é explícita,
mas há o emprego do tempo presente. Já no segundo parágrafo, encontram-se as marcas da
pessoa. O tempo pretérito (foi, ficou, existia, ficava, passou) e o futuro (esquecerá) devem ser
interpretados como anterioridade e posterioridade em relação ao
marco temporal presente inscrito no texto.

Outro aspecto a ser analisado concerne ao fato de as marcas da enunciação no enunciado


não se restringem ao sistema pronominal, ao sistema temporal dos verbos e advérbios de tempo
e espaço. O emprego de palavras de teor subjetivo, expressando apreciações, julgamentos,
traços afetivos e passionais, também pode assinalar a presença do enunciador no texto.
Tomando ainda o segundo texto como exemplo, só no primeiro parágrafo encontramos
expressões como impressionante, ousadia, pior.

8
O texto jornalístico, objeto de nosso estudo, privilegia a debreagem enunciva, necessária
para produzir o efeito de sentido de neutralidade, essencial para fazer crer na verdade do
discurso. No entanto, pode apresentar efeitos interessantes através da alternância controlada
com a debreagem enunciativa, criando um efeito de aproximação que conquista a atenção e
curiosidade do destinatário do jornal. A debreagem enunciativa, utilizada com parcimônia pela
chamada imprensa “séria”, é freqüente, contudo, na imprensa “popular”, sendo um fator de
construção da identidade estilística do jornal (Cf. Discini, 2003).

Outra possibilidade de utilização desse tipo de procedimento é o emprego de debreagens


internas, estabelecendo simulacros de diálogos nos textos para criar o efeito de sentido de
verdade, construindo um jogo de vozes. Ou marcada através do diálogo e da citação ou não
demarcada, diluída através de procedimentos como a retomada de conteúdos de outros
discursos e traços do plano da expressão de outros textos, essa multiplicidade de vozes simula,
então, o diálogo consensual ou polêmico que travam na sociedade os diversos sujeitos que
assumem diferentes ideologias, determinados pelo lugar sócio-histórico que ocupam. Esse
mecanismo pode ser ilustrado no texto transcrito a seguir, retirado da subseção Contraponto da
Folha de S. Paulo, que trata dos acontecimentos políticos, incluindo os anedóticos:

Se manca
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, costuma ilustrar “o problema das
pessoas espaçosas, que se mostram íntimas”, com uma história vivida pelo senador Daniel Krieger
(1909-1990) ainda no tempo em que o Rio de Janeiro era a capital da República.
Em certa ocasião, Krieger deixava a sede do Senado fumando tranqüilamente seu charuto
quando foi abordado por um desconhecido, que lhe perguntou na lata:
– Ô, Daniel, o que há de novo?
A resposta veio rápida e seca:
– A nossa amizade.

(Folha de S. Paulo, Painel, Contraponto, 2/9/07)

Nesse texto, o narrador projeta no texto a fala do desconhecido e do senador, sujeitos do


enunciado, interlocutores na narrativa contada, por meio do recurso do discurso direto. Essas falas
estão marcadas no texto pelo emprego do parágrafo e travessão, criando um efeito de sentido de
realidade, pois simula uma transcrição fiel não só do conteúdo da fala mas também do modo como
foi enunciada, nas suas palavras exatas. Nesse mesmo texto, pode-se encontrar mais um recurso
para instauração da fala do outro no enunciado pelo narrador, a citação com o uso das aspas na
passagem “o problema das pessoas espaçosas, que se mostram íntimas”. Por esse recurso, simula-
se reproduzir as palavras de outro sujeito do enunciado, o ministro Marco Aurélio Mello. Sem
estar explicitamente marcada, a própria história vivida pelo senador foi contada pelo narrador a
partir da fala do ministro, o que lhe dá credibilidade.

9
Configurando-se como opções entre as diversas formas de projeção possíveis, essas
marcas são condicionadas por uma intencionalidade subjacente, revelando sempre uma busca
pela adesão ao que foi dito e aos valores comunicados. Observando-as, depreendemos, na
análise da sintaxe discursiva, os procedimentos de persuasão utilizados pelo destinador para
fazer o destinatário crer nos valores disseminados no discurso. O texto jornalístico emprega
constantemente citações como procedimento para instaurar os efeitos de imparcialidade e
realidade, característicos desse tipo de discurso. A projeção das falas, que assumem diferentes
visões diante dos fatos, simula a ausência de tomada de posição por parte de um enunciador
que faz parecer que apenas diz a realidade, deixando para o enunciatário a tarefa de julgá-la.
Mas, para que esse procedimento tenha eficácia, é necessário que as opiniões invocadas e
reproduzidas no discurso sejam autorizadas. No caso do último texto transcrito, os sujeitos que
avalizam as falas reproduzidas são conhecidos e assumem cargos respeitáveis: um ministro do
Supremo Tribunal Federal e um senador da República.

Na relação persuasiva entre os sujeitos que representam as instâncias da produção e


interpretação do discurso, instauram-se os mecanismos argumentativos, que, como vimos, já se
fazem presentes a partir da própria projeção actancial, temporal espacial do sujeito da
enunciação. Dentre os mecanismos argumentativos compreendidos pela sintaxe discursiva
também podem ser citados a utilização de determinadas variantes lingüísticas, a qualificação
do enunciador ou do enunciatário, a ancoragem actancial e espacial e a implicitação ou
explicitação de conteúdos, entre outros. Procuraremos exemplificar apenas alguns desses
mecanismos, tomando os textos já citados anteriormente.

A ancoragem actancial e espacial, por exemplo, abrange o conjunto de textos aqui citados.
Em todos eles, há indicações exatas das pessoas e espaço a que o discurso se refere,
reconhecíveis pelo enunciador, de modo a fazer crer na verdade e realidade dos fatos narrados.
No primeiro texto de O Globo, há a referência à “favela de Vigário Geral” e a um “trecho da
Linha Vermelha”. No segundo, uma carta de leitor da Folha, há a referência a Delfim Netto,
político conhecido pelo leitor virtual inscrito no texto, e ao DOI-Codi, cuja existência é atestada
pela indicação precisa do local em que o órgão funcionava, “na rua Tutóia”. Quanto ao texto
“Se manca”, há não só a indicação do nome completo e cargo das personalidades em que se
apóia a narrativa quanto a data de nascimento e morte do senador.

10
Os testemunhos do jornalista se revestem, então, de qualificação construída pela
conjunção com o saber concretizada pelas reproduções das falas dos atores do enunciado e
outros detalhes relativos à ancoragem actancial e espacial, anteriormente comentada, tornando
seu discurso verossímil. O emprego da norma culta, considerando o fato de serem os jornais
direcionados a uma parcela escolarizada da população, é outro recurso para conquistar a adesão
do enunciatário.

O emprego de narrativas como exemplos que corroboram para levar às conclusões a que
os textos direcionam, fazendo aceitar determinados valores ideológicos, é também importante
recurso argumentativo. Em “Se manca”, a narrativa do episódio ocorrido com o senador Daniel
Krieger serve de argumento para a crítica ao comportamento de intimidade que algumas pessoas
“espaçosas” tem com personalidades públicas. O caráter anedótico e bem- humorado da
narrativa, a resposta inteligente e surpreendente do senador também colaboram para a aceitação
do ponto de vista do enunciador. Na carta do leitor publicado na Folha, o relato de tortura
sofrida por uma pessoa da família é que serve para fazer interpretar como mentirosas as
declarações de Delfim Netto e desqualificar os valores por ele defendidos, contra os quais o
enunciador da carta se insurge.

Nesses dois textos, como já foi dito, a projeção da fala dos actantes do enunciado já
constitui mecanismo argumentativo. No primeiro caso, a fala do ministro tem caráter
consensual em relação ao ponto de vista defendido pelo enunciador. No segundo texto, o
missivista retoma polemicamente a fala de Delfim Netto, inscrevendo-a no seu enunciado para
contrapor-se a ela, para desacreditá-la aos olhos dos leitores.

É preciso levar em conta também que, se no domínio do discurso jornalístico, de que os


textos citados acima são exemplo, a ilusão de realidade e referente, simulando no enunciado
uma representação do mundo “real” e seus eventos, é fundamental para tornar os textos
coerentes e credíveis, nem sempre é assim que acontece. No próprio jornal, é possível que
ocorram textos nos quais é justamente o efeito de irrealidade e ficção que se pretende construir,
mesmo que não seja muito freqüente e esse recurso esteja restrito a determinados gêneros de
textos no próprio âmbito do jornal. É o caso da anedota publicada na mesma subseção
Contraponto do outro texto citado, sobre um senador que morreu e teve que entender-se com
São Pedro:

Marketing do além
Segundo fábula que circula em Brasília, um senador morreu e, ao chegar diante de São Pedro,
ouviu que deveria ficar um dia no inferno e outro no paraíso para então escolher onde gostaria de passar
a eternidade.
11
Levado ao inferno, viu-se no meio de um campo de golfe. Encontrou antigos colegas da política.
Degustou champanhe e caviar. O diabo contava piadas.
No dia seguinte, no paraíso, avistou almas contentes que andavam nas nuvens tocando harpas e
cantando. Ao final da jornada, o senador concluiu:
– Nunca pensei, mas acho que ficarei melhor no inferno.
Quando a porta se abriu, ele estava em um terreno baldio. Com as roupas rasgadas, seus colegas
recolhiam lixo e entulho.
– Ontem estive aqui e era tudo diferente – disse atônito.
– Ontem estávamos em campanha – explicou o diabo – Agora já conseguimos seu voto.

(Folha de S. Paulo, Painel, Contraponto, 4/7/04)

Nesse texto, os elementos que constituem o universo do céu e do inferno devem ser
interpretados como imaginários, ficcionais, o que não significa que não estejam a serviço de fazer
crer na verdade de um conjunto de valores ideológicos revestidos pelos seres e ações que
constituem a narrativa. Só o fazem de modo diferente.
Porém, o sujeito da enunciação não engendra apenas as relações sintáticas dos elementos
do discurso, mas instala também sua coerência semântica, possível pelo revestimento dos
valores do nível narrativo em temas (disseminados em percursos temáticos) e o seu
recobrimento por figuras (disseminadas em percursos figurativos), produzindo a ilusão
referencial e criando efeitos de sentido de realidade que asseguram “a relação entre o mundo e
o discurso” (Barros, 1988: 113), como veremos a seguir.

TEMAS E FIGURAS: A ANCORAGEM IDEOLÓGICA DA ENUNCIAÇÃO

O nível discursivo, por seu alto grau de concretude, é o patamar privilegiado do percurso
gerativo do sentido para a manifestação ideológica do sujeito da enunciação. Isso se faz muito
claro quando analisamos a maneira pela qual os temas tratados (elementos abstratos) são
concretizados sensorialmente em figuras do mundo. Por exemplo, o tema do casamento pode
ser concretizado por um príncipe chegando em um cavalo branco e se ajoelhando perante a uma
princesa linda e nobre para pedir-lhe a mão em casamento. O mesmo tema pode, por outro lado,
ser figurativizado por uma mulher passando uma imensa pilha de roupas, com três filhos
chorando a seus pés e o marido inerte tomando cerveja na frente da TV. Ou seja, o tratamento
figurativo dos temas propostos por determinados textos pode dizer muito sobre o universo
ideológico no qual aquele texto se insere. Por conta disso, é imperativo que a metodologia
proposta pela semiótica apresente ferramentas teóricas que sejam operativas no tratamento de
temas e figuras no nível discursivo.

12
Nessa medida, o conceito de isotopia é de fundamental importância para a análise
semiótica. Ele se refere à reiteração de elementos que ao se relacionarem sintagmaticamente
em determinados contextos compartilham um mesmo campo semântico. Em termos práticos,
para determinar os temas e figuras apresentados no nível discursivo, o analista traça um
percurso sintagmático de elementos que apontam para uma determinada figura ou determinado
tema, mesmo que este não esteja explícito (por exemplo, num texto podemos ter a isotopia da
"violência", digamos, criada pela recorrência de elementos que apontem para esse campo
semântico - como ladrão, assalto, revolver, combate , tiros etc). Textos como piadas, poemas
etc., em geral, baseiam-se fortemente na construção de paralelismos entre isotopias diferentes.
Estes são chamados textos plurisotópicos. Vejamos um exemplo com a transcrição de um
pequeno trecho do poema “Rios sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto:

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária;
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada muda
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria

São claras as duas linhas isotópicas exploradas no poema: uma da “água”, composta pelos
elementos “rio”, “água”, “poços”, “poço”, “estancada”, “comunica”, “discorria”; outra a da
“palavra”, representada pelos elementos “discurso”, “palavra”, “dicionária”, “muda”,
“comunica”, “sintaxe”, “discorria”. Em suma, o sentido geral do poema se constrói na
aproximação entre as duas isotopias, isto é, entre dois campos semânticos que, a princípio, não
necessariamente estariam relacionados de maneira tão próxima. Vale atentar para o fato de que
há dois elementos comuns a ambas as isotopias traçadas. São eles “comunica” e “discorria”. No
jargão semiótico, estes são chamados de conectores de isotopias e cumprem a importante função
de garantir a adesão entre linhas isotópicas colocadas em paralelismo. Poderíamos dizer que
garantem o contato de dois campos semânticos, em princípio, díspares e é este contato o
responsável por grande parte do efeito de sentido final visado pelo sujeito da enunciação.

13
Esses conceitos se mostram muito operacionais para aprofundarmos nossas análises de
textos midiáticos. Há pouco tempo, o Jornal Nacional (Rede Globo) apresentou matérias sobre
os processos eleitorais em países como o Timor Leste e França. Fazendo uso da noção de
isotopia, mais especificamente de plurisotopia, pudemos perceber que no caso das eleições do
Timor Leste, as isotopias traçadas concorrentes com a que dizia respeito à eleição foram as de
festividade, pobreza e religiosidade. Já na França, diziam respeito à competência profissional,
feminismo e xenofobia. Ou seja, uma simples matéria sobre as eleições em determinado país
pode estar problematizando muito mais do que seu tema central e pode estar veiculando, de
acordo com o modo de organizar os fatos, uma visão de mundo específica que cabe ao bom
analista explicitar.

É precisamente um exercício de reflexão atenta sobre textos jornalísticos e publicitários


– reflexão esta munida de ferramentas analíticas que nos coloca em mãos a semiótica francesa
– que procuraremos apresentar neste minicurso.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA EM PORTUGUÊS

BARROS, D. L. P. de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1992.


BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
DISCINI, N. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia e literatura. São Paulo:
Contexto, 2003.
FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto/Edusp, 2003.
FIORIN, J. L. As Astúcias da Enunciação. São Paulo: Ática, 1999.
FONTANILLE, J. e ZILBERBERG, C. Tensão e significação. São Paulo: Discurso Editorial;
Humanitas/FFLCH, 2001.
GREIMAS A. J. e COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979.
GREIMAS, A. J e FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.
GREIMAS, A. J. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002.
LANDOWSKI, E. A sociedade Refletida. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992.
LANDOWSKI, E. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002.
TATIT, L. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê, 2001.
TEIXEIRA, L. A semiótica no espelho. In: Cadernos de Letras da UFF, n.12. Niterói: Insti-
tuto de Letras da UFF, 2º semestre/1996, p.33-49.
ZILBERBERG, C. Razão e poética do sentido. São Paulo: EDUSP, 2006.

14

Você também pode gostar