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Coerência Textual

Necessidade de coerência

Um texto é mais que a soma dos enunciados que o compõem. Por isso, sua produção e
compreensão resultam de uma competência específica do falante: a competência textual. Os falantes de
uma língua têm capacidade de distinguir um texto coerente de um aglomerado incoerente de enunciados.
E esta competência é linguística. Todo falante é ainda capaz de parafrasear um texto, de resumi-lo, de
atribuir-lhe um título, de produzir um texto com base em um título dado e de distinguir um texto segundo
os vários tipos de texto (distinguir um texto científico de um de comentário esportivo, por exemplo).
Suponhamos o seguinte poema:
Ouço as árvores lá fora sob as nuvens.
Ouço vozes risos uma porta que bate
É de tarde (com seus claros barulhos) como há vinte anos em São Luís como há vinte dias em
Ipanema
Como amanhã um homem livre em sua casa (GULLAR, 2000, p. 194).

O leitor pode dar um título ao poema que seja coerente com a situação vivida pelo eu lírico. O
poema foi escrito no Rio de Janeiro, na Vila Militar, no dia 2 de janeiro de 1969. Sabemos intuitivamente
distinguir entre um texto e um não texto, mas não sabemos definir intuitivamente o que faz com que um
texto seja um texto. Os estudiosos não são unânimes ao conceituá-lo. Em sentido amplo, texto designa
toda manifestação da capacidade textual do ser humano: um filme, uma escultura, uma tela, uma música,
um artigo jornalístico, uma procuração.

Já a palavra discurso designa uma atividade comunicativa de um sujeito, numa situação


comunicacional determinada, que engloba o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor e o evento
de sua enunciação. O discurso é manifestado linguisticamente por meio de textos. O texto consiste,
então, em qualquer passagem falada ou escrita que forma um todo significativo independente de
sua extensão. Trata-se, pois, de um contínuo comunicativo contextual caracterizado pelos fatores de
textualidade: contextualização, coesão, coerência, intencionalidade, informatividade, aceitabilidade,
situacionalidade, e intertextualidade (FÁVERO, 1991, p. 7).
Coesão e coerência são dois fatores relevantes de textualidade. Entre os autores, há os que
distinguem um conceito de outro, outros não distinguem e outros ou fazem referência apenas a um desses
fenômenos ou estudam vários de seus aspectos sem qualquer designação. Para Halliday e Hasan, por
exemplo, “o que permite determinar se uma série de sentenças constitui ou não um texto são as relações
coesivas com e entre as sentenças, que criam a textura” (FÁVERO, 1991, p. 8). Afirmam que um texto
teria textura, e seria isto que o distinguiria de um não texto. O texto seria formado pela relação semântica
de coesão. Suponhamos:
Em 23 de novembro de 2000, os prefeitos da Grande São Paulo criaram o Fórum Metropolitano de
Segurança Pública. Essa organização criou, juntamente com especialistas, representantes da sociedade
civil e dos governos estadual paulista e federal, quatro grupos de estudo e desenvolvimento de projetos
para ajudar a resolver o problema da violência (Folha de S. Paulo, 3 set. 2002, p. A3). Evidentemente,
essa organização refere-se a Fórum Metropolitano de Segurança Pública. A função anafórica do
demonstrativo essa é que dá coesão às duas sentenças, que faz com que constituam juntas um texto.
Nesse sentido, a coesão seria um conceito semântico relativo às relações de sentido estabelecidas entre os
enunciados que compõem o texto. A interpretação de um elemento depende da interpretação de outro.
Outros dois estudiosos do assunto foram Beaugrande e Dressler. Eles consideram que a coesão e a
coerência constituem níveis diferentes de análise. Assim, a coesão manifesta-se no nível microtextual,
refere-se aos modos como os componentes do universo textual estão interligados dentro de uma
sequência. Já a coerência manifesta-se na macrotextualidade e refere-se ao modo como os conceitos e as
relações subjacentes ao texto de superfície unem-se numa configuração relevante.
A coerência resulta de processos cognitivos operantes entre os usuários e não de traços do texto.
Dito isso, podemos concluir que a coesão não é suficiente para formar um texto. Há sequência de
enunciados que, embora coesos, não apresentam coerência. Um texto pode apresentar elementos coesivos,
mas deixar a desejar quanto à coerência, como o seguinte:
Márcia gosta de ir ao cinema, mas sua irmã é uma jovem bonita, inteligente. Márcia, professora de
2º grau, acorda cedo, enquanto a irmã, dançarina, acorda às 5 da manhã. A mãe recrimina a dedicação da
filha dançarina, mas rejeita o zelo da professora.
De toda forma, porém, embora a coerência seja a característica fundamental de um texto, o que
converte uma mensagem verbal em texto, não há propriamente texto incoerente, mas texto que pode ser
incoerente para determinada situação comunicativa. Um texto será bom se o produtor souber adequá-lo
à situação, levando em consideração: intenção comunicativa, objetivo, destinatário, outros elementos
do contexto da comunicação em que é produzido, uso de recursos linguísticos. Portanto, para dizer que
um texto é incoerente é preciso especificar as condições em que é incoerente, uma vez que é possível
projetar situações em que não será incoerente. No entanto, se o produtor de um texto violar em alto grau o
uso dos elementos [linguísticos] seu receptor não conseguirá estabelecer o seu sentido e o texto seria
teoricamente incoerente em si por uma questão de mau uso do código linguístico (KOCH; TRAVAGLIA,
1989, p. 37).
A coerência é uma característica textual que depende da interação do texto, de seu produtor e
daquele que procura compreendê-lo. Há no texto pistas que permitem estabelecer o sentido e sua
coerência, mas muito depende do receptor, de seu conhecimento de mundo e da situação de produção do
texto e do grau de domínio dos elementos linguísticos constantes do texto. As relações semânticas entre
lexemas (palavras) são uma forma básica do estabelecimento da coerência e coesão textual. As relações
entre lexemas estão ligadas aos processos de textualização, como a apresentação e o desenvolvimento do
tema do texto, ou seja, não se podem separar as relações entre lexemas dos estudos temáticos do texto,
visto que a reiteração léxica é um fator relevante para a prática da elucidação da mensagem. A repetição
léxica possibilita enlaces semânticos de frases, bem como a coerência textual. Traços semânticos
idênticos ou parcialmente idênticos dão origem a dois tipos de repetição: a simples iteração (repetição) e a
substituição léxica. A repetição simples pode significar efeito estilístico de relevância na significação do
texto. A repetição comum, entretanto, é a utilização de elementos léxicos que contêm semas afins, isto é,
utilização de substituição léxica (tradicionalmente, chamada substituição sinonímica).
Para Guimarães (1989, p. 31), destacam-se entre os substitutivos lexicais: o hiperônimo, o
hipônimo 1 e as palavras gerais: disseminados pelo texto, remetem aos mesmos dados, às mesmas noções
e contribuem assim, num processo articulatório, para homogeneizá-lo, emprestando-lhe a unidade de
significação sem a qual ele não existiria como texto. A hiperonímia ocorre quando, entre as palavras
utilizadas para substituir outra, há a relação de todo/parte. Por exemplo, a palavra árvore compreende
jequitibá, perobeira, pinheiro. Já a hiponímia é o fenômeno contrário: a palavra carneiro é compreendida
por animais. As palavras gerais são as que servem para tudo e para nada: coisa, negócio, aspecto, assunto,
pessoa. Da mesma forma que uma frase não é uma sequência de palavras, um texto não é apenas uma
sucessão de frases, ou um conjunto de frases. Duas são as relações que mantêm interligados os elementos
constitutivos da significação do texto (elementos temáticos), que são as relações lógicas e as relações de
redundância. As relações lógicas permitem expandir o texto dentro de certos limites e as de redundância
garantem a fixação do tema. O sentido do texto, para Elisa Guimarães (1993, p. 25), “constrói-se por seu
jogo múltiplo e mútuo, resultando a coerência do texto da sintonia entre as relações lógicas e as relações
de redundância”. Também é possível uma sequência de enunciados com relações coesivas que, entretanto,
não chega a constituir um texto, justamente porque lhe falta coerência: Vi sua namorada na feira
estudando Direito Penal, mas a mulher do padeiro gritava que havia sido ludibriada no dentista. E,
embora o motorista do táxi não quisesse escândalo, o advogado e sua namorada acabaram de descer do
automóvel. A coesão não é condição necessária nem suficiente para que um conjunto de enunciados seja
texto, ou seja coerente. Em certos casos, como na poesia moderna, ela não apenas é dispensável, mas
também estranha quando está presente. O uso, porém, de elementos coesivos em textos didáticos,
jurídicos, técnicos, científicos proporciona ao texto maior legibilidade e garante uma interpretação
mais uniforme, uma vez que explicita relações entre seus elementos constitutivos (cf. KOCH, 1997, p.
45).

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