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TEXTO PUBLICADO EM:

CORTINA, Arnaldo & NASSER, Sílvia Maria Gomes da Conceição (Orgs). Sujeito e
linguagem. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2009. p.117-131.

A ESCRITA A LUZ DA ANÁLISE DO DISCURSO

Freda INDURSKY1

Algumas considerações preliminares

Esta reflexão sobre escrita/escritura se inscreve no campo brasileiro de Análise do


Discurso que, por sua vez, se filia à Escola Francesa de Análise do Discurso, fundada por
Michel Pêcheux, em 1969. Para tanto, são convocadas as relações do texto com sua
exterioridade, essenciais para refletir sobre as relações do sujeito com a linguagem e, por
conseguinte, com sua prática discursiva de autoria.

Ainda, à guisa de introdução, é preciso acrescentar que, para a análise do discurso, o


texto é sempre heterogêneo2. Ou seja: sob as palavras, os enunciados e os saberes que tecem
um texto, outras palavras, outros enunciados, outros saberes se fazem ouvir. Dito de outra
forma: os saberes de um discurso-outro ressoam, sempre, no interior de qualquer texto.

Concepção discursiva da categoria texto

Para pensar a categoria texto, neste domínio teórico, proponho pensá-la como uma
materialidade de dupla face: de um lado, temos um texto empírico dotado de uma superfície
lingüística que tem começo, meio e fim, fechado em si mesmo. De outro lado, temos um texto
tomado como uma materialidade discursiva, aberto à exterioridade, ao interdiscurso e afetado
por suas condições de produção e cujo sentido permanece indeterminado.

Comecemos, então, pelo exame das condições de produção. São as condições de


produção do texto que facultam a ultrapassagem de suas fronteiras. Um texto marcado por
suas condições de produção está aberto à exterioridade, ao interdiscurso, à ideologia. Isto

1
Freda Indursky é Professora Titular do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Programa de Pós Graduação em Letras/UFRGS.
Av. Bento Gonçalves, 9500
Campus do Vale
91501 – 970 - Porto Alegre, RS.
freda.indursky@gmail.com
2
A noção de heterogeneidade do discurso foi desenvolvida ao longo de vários anos e muitos trabalhos, dentre os
quais destaco Pêcheux (1980, 1983), Courtine (1981), Auther-Revuz (1982), como textos fundadores. Esta noção
também foi teorizada por Indursky (1997) e Gallo (1994).
significa que as condições de produção são de natureza sócio-histórica e relacionam o texto a
um sujeito igualmente histórico3. E o sujeito-autor de um texto é um sujeito ideologicamente
interpelado e é nesta condição que ele vai produzir seu texto.

Dessa forma, são as condições de produção que tornam possível a passagem da


superfície lingüística do texto à sua face discursiva. E, se é possível afirmar que o texto é
aberto à exterioridade, é porque ele estabelece um conjunto bastante diversificado de relações
– contextuais, textuais, intertextuais e interdiscursivas (INDURSKY, 2001, 2006) – que o
remetem à exterioridade e à memória discursiva.

Examinemos estes diferentes tipos de relações, iniciando pelas relações contextuais.


Estas relações remetem o texto ao contexto sócio-histórico, econômico, cultural e político em
que ele foi produzido. No entanto, isto não significa que ele reflita “fielmente” tal contexto,
pois, ao discursivizá-lo, seu autor o faz a partir de um lugar social que é ideológico e, a partir
do qual, se constitui como sujeito. Por conseguinte, o texto pode produzir dissonâncias se
examinado a partir de outro lugar social que se oponha àquele que está refletido no texto.

As relações textuais, por sua vez, colocam o texto em relação com outros textos. Com
este segundo tipo de relação nos encontramos face ao que já estamos habituados de chamar de
intertextualidade. Deslocando esta noção, formulada pelos estudos literários, para o quadro
teórico da análise do discurso, podemos afirmar que a intertextualidade não apenas aponta
para um texto-outro, tomado como origem, mas também considera outros textos que se
inscrevem na mesma matriz de sentido. Refiro-me aqui não apenas às reescrituras que já
foram produzidas, mas também àquelas que não existem ainda, que ainda podem ser escritas.
Isto é o que, em análise do discurso, designa-se como uma paráfrase discursiva, que
relaciona entre si textos existentes, possíveis e imaginários.

O terceiro tipo nos conduz às relações interdiscursivas que aproximam o texto de


outros discursos, remetendo-os a redes discursivas de formulações tais que já não é mais
possível distinguir o que foi produzido no texto e o que provém anonimamente do
interdiscurso. Por conseguinte, estes discursos que atravessam o texto acabam por
indeterminar seu sentido. Dito de outra forma: o texto não é transparente.

Em suma: o texto, na perspectiva teórica da Análise do Discurso, possui uma


superfície lingüística, sem dúvida alguma, mas não se reduz a ela. Dizendo diferentemente: o

3
Um sujeito histórico é o que Pêcheux (1975/1988) designou de forma-sujeito: uma formação discursiva é
organizada internamente por uma forma-sujeito. E o sujeito do discurso se identifica a uma formação ideológica
pelo viés de sua identificação com uma formação discursiva.
texto é uma superfície lingüística tecida de discurso e é sobre esta materialidade discursiva
que se instaura o que estou designando de processo de escritura.

O que efetivamente interessa à análise do discurso é a materialidade discursiva do


texto. Interessar-se apenas por sua superfície lingüística consiste em abandonar este domínio
de saber. Para aí permanecer, é preciso ancorar-se firmemente em sua materialidade
discursiva.

Sobre esta dupla face do texto podemos ainda afirmar que a organização do texto se
faz sobre sua superfície lingüística e diz respeito à escrita do texto. Já a textualização da
exterioridade no interior do texto remete à materialidade discursiva e se refere a seu
processo de escritura.

É interessante, agora, comparar e contrastar duas das categorias que acabamos de


analisar: a intertextualidade e a interdiscursividade. A intertextualidade trabalha a
retomada/releitura que um texto produz sobre um outro texto, dele se apropriando para
assimilá-lo e/ou transformá-lo. Ou seja: o processo de intertextualidade lança o texto a uma
possível origem. Já o interdiscurso remete o texto a redes discursivas anônimas, não sendo
mais possível identificar com clareza, como no caso anterior, a origem do texto, pois o
discurso está disperso em uma profusão de textos (no tempo e no espaço), estabelecendo
relações com diferentes formações discursivas e mobilizando posições-sujeito igualmente
diversas. A intertextualidade e a interdiscursividade constituem, pois, dois tipos bem diversos
de exterioridade que participam, sem se confundir nem se superpor, da constituição discursiva
do texto.

Em função destes diferentes tipos de relação que pode estabelecer com a exterioridade,
o texto, tal como o estamos entendendo aqui, ultrapassa fortemente seu suporte material. E a
exterioridade, compreendida desta forma, é parte constitutiva do texto, nele se fazendo
presente, mesmo sem ser transparente nem diretamente tangível ou perceptível.

Desta forma, podemos acrescentar que a organização interna do texto interessa à


análise do discurso, desde que acrescentemos, de imediato, que é sobre a organização da face
discursiva do texto que o analista de discurso se detém e não sobre sua superfície lingüística
apenas. Dito de outra forma: o que está em jogo, neste campo de conhecimento é o modo
como o texto organiza internamente sua relação com a exterioridade. O que vai mobilizar esta
teoria é a forma como são textualizados e organizados os saberes provenientes do
interdiscurso para que produzam o efeito de terem sido formulados na superfície textual. E
mais: interessa saber como se apagam as marcas de sua proveniência da exterioridade,
gerando, em decorrência disso, o efeito de um texto consistente, homogêneo e coeso e a ilusão
de que seu autor é a fonte de seu dizer.

A partir de tudo quanto precede, pode-se dizer que um texto em que diferentes
contextos, textos, intertextos e discursos são mobilizados é certamente atravessado por um
enunciável prévio e isto implica que diferentes subjetividades nele vão se fazer presentes, as
quais estão inscritas em formações discursivas igualmente diversas. Ou seja: estes discursos-
outros, anteriores e exteriores ao texto, trazem para o seu interior posições ideológicas
bastante diversas. Por conseguinte, em que pese o efeito de homogeneidade que o texto deve
produzir para ser entendido/percebido como tal, ele só pode ser concebido como um espaço
discursivo heterogêneo e simbolicamente fechado pelo trabalho discursivo da escritura.

Do interdiscurso ao texto

Para refletir sobre o trabalho discursivo de escritura, é preciso melhor analisar as


relações entre o texto e sua exterioridade. Para isto, é preciso considerar, de imediato, que o
texto é atravessado pelo interdiscurso. Pode-se dizer, para começar, que o texto é um grande
recorte do interdiscurso. Para acompanhar alguns passos desta passagem do interdiscurso ao
texto, tomemos o texto em seu início ou, melhor dizendo, em seu efeito-início.

O início de um texto representa um primeiro recorte que o separa da exterioridade, do


interdiscurso. É o sujeito, em sua função discursiva de autor, que é responsável pelo corte
através do qual ele instaura um efeito de começo para seu texto. Este gesto inaugural produz,
na verdade, um duplo efeito: por um lado, determina um ponto do interdiscurso no qual se
situa o início do texto; por outro, situa imaginariamente o sujeito-autor na origem do texto que
ele produz sob a ilusão de ser sua fonte e seu único responsável. Mas há um segundo recorte,
igualmente essencial: aquele que produz o efeito de fechamento do texto. Com o ponto final,
por exemplo, o sujeito-autor separa o que pertence a seu texto do que lhe é exterior, do que
permanece definitivamente fora de seu texto, no interdiscurso. Sobre estes dois gestos,
Orlandi afirma que “...do ponto de vista discursivo, não há um fim punctual como não há um
começo absoluto (ORLANDI, 2001, p.93).

Exemplos se fazem necessários para melhor iluminar estes dois gestos autorais (o
efeito-início e o efeito-fecho). Para tanto, vou selecionar exemplos que trabalham no sentido
contrário à produção do efeito de homogeneidade a que nos referimos mais acima, pois
somente este tipo de exemplo possibilita perceber com mais acuidade o funcionamento
discursivo destes dois gestos que produzem o efeito de fronteira entre o texto e o
interdiscurso. Para tanto, vou tomar duas seqüências discursivas (SDs) recortadas da obra de
Clarice Lispector4, uma para mostrar o efeito-início (LISBÔA, 2008) e a outra para trabalhar
com o efeito-fecho (GALLO, 1994). Vejamos como a escritura de Lispector expõe a relação
estreita de seu texto com o interdiscurso. A análise das seqüências vai mostrar-nos um
funcionamento que é da ordem da regularidade na escritura de Lispector. Aqui, neste trabalho,
vamos nos limitar, a título de ilustração, a apenas dois recortes de diferentes livros da autora;
através do primeiro (SD1), vamos examinar o efeito-início e, pelo viés do segundo (SD2), o
efeito-fecho .

SD1 - _ _ _ _ _ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.


Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o
que vivi (...) (Lispector, A paixão segundo GH, p.9).
SD2 - _ eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele
estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: (Lispector, A
aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 182).
A SD1 mostra o modo como Lispector começa seu livro A Paixão segundo GH. O
efeito-início deste livro é produzido por cinco travessões seguidos por uma palavra que inicia
com letra minúscula. Esta forma de iniciar escancara a relação que o texto mantém com o
interdiscurso, de onde ele provém. Estes sinais de pontuação iniciam de forma absolutamente
inusitada o texto e, em decorrência disso, produzem, como efeito de sentido, a explicitação de
que o início deste texto é apenas um efeito, pois ele começa bem antes, dado que ele se
inscreve em um contínuo discursivo, o interdiscurso, de onde o efeito-início apenas o faz
emergir. Estes cinco travessões, ao iniciarem o texto, na verdade, desconstróem o efeito-
início, já que evidenciam que este não é, de fato, o lugar onde o texto inicia ao mesmo tempo
em que desvelam, com muita clareza, em que consiste o trabalho de escritura conduzido por
qualquer sujeito na função discursiva de autor:

Tomemos, agora, a SD2. É desta forma que Lispector acaba seu livro A Aprendizagem
ou o Livro dos Prazeres. A última palavra deste livro é seguida de dois pontos. Estamos
habituados a encontrar diferentes modos de produzir o efeito-fecho de um texto e o ponto
final é o mais comum. Entretanto, encontramos freqüentemente textos que acabam por
reticências; e, embora menos usual, é possível identificar, igualmente, efeitos-fecho marcados
por exclamação ou interrogação. Mas concluir com dois pontos é da ordem do inesperado;

4
As seqüências discursivas recortadas da obra de Lispector para este trabalho foram selecionadas a partir do
corpus discursivo construído por Noeli Tejera Lisbôa para sua Dissertação de Mestrado intitulada A pontuação
do silêncio: uma análise discursiva da escritura de Clarice Lispector, realizada sob a minha orientação.
diria mesmo, do impossível, pois o emprego de dois pontos indica que uma explicação vai ser
introduzida e, conseqüentemente, este tipo de pontuação não corresponde a um efeito-fecho.
Ao contrário, ele aponta para a continuidade do texto. No entanto, é exatamente pelo emprego
de dois pontos que Lispector encerra este livro. Aqui, mais uma vez, estamos diante de um
gesto autoral que mais desconstrói do que produz o efeito-fecho. Assim procedendo,
Lispector desmascara esta ficção e mostra que o fechamento do texto é uma construção
discursiva que remete ao trabalho de escritura e que o texto, de fato, não acaba no ponto em
que se produz seu efeito-fecho. Seu fluxo apenas se interrompe. Pois, ao contrário do que o
efeito-fecho pretende sugerir, ele se prolonga no interdiscurso, de onde, aliás, ele provém,
como vimos na análise de SD1.

Como se vê, Lispector, através de sua escritura, promove a desconstrução destes dois
gestos – o efeito-início e o efeito-fecho – que estabelecem uma fronteira entre o texto e o
interdiscurso. Procedendo desta forma, ela permite melhor captar estes dois efeitos, estas duas
ilusões, pois as marcas discursivas de pontuação de que se serve Lispector realçam, por
contraste, todo o trabalho discursivo de construção que habitualmente é feito para “apagar” as
marcas da exterioridade no interior do texto e, ao disfarçá-las, efeito-texto se produz..

De modo geral, o trabalho autoral produz um efeito-início e um efeito-fecho para que


o texto possa ser percebido como um texto ou, como prefiro pensá-lo, como um efeito-texto.
Isto é: o texto é um espaço discursivo simbólico, não fechado sobre si mesmo e seu
fechamento é apenas imaginário. Entretanto, em função de sua dupla face, pode-se dizer que,
embora sua face discursiva esteja permanentemente aberta à exterioridade, a superfície
lingüística do texto necessita produzir um efeito de fechamento para que o efeito-texto possa
se produzir. Portanto, pode-se dizer que o texto é, ao mesmo tempo, aberto à exterioridade, ao
interdiscurso, e simbolicamente fechado. Eis, uma vez mais, a dupla face do texto que se
deixa vislumbrar.

Mas não é somente através destes dois aspectos que acabamos de examinar que é
possível observar as relações que o texto estabelece com a exterioridade. Estes dois cortes
são, provavelmente, os mais evidentes, os mais fáceis de perceber. Mas, como já dissemos
anteriormente, o texto é constantemente invadido pelo interdiscurso. E é desta forma de
relação do texto com o interdiscurso que vamos nos ocupar mais detalhadamente, a seguir.

Falar de escritura e das relações do texto com o interdiscurso implica relembrar, antes
de prosseguir, que um texto é produzido por um sujeito interpelado pela ideologia e
identificado a uma posição-sujeito inscrita em uma formação discursiva determinada. Esta
interpelação, é preciso não esquecer, não é consciente, o que significa dizer que o sujeito é
interpelado, mas trabalha sob a ilusão de ser livre para fazer suas escolhas. Isto significa que
ele não tem consciência do fato de que aquilo que escreve representa a retomada de saberes
provenientes do interdiscurso.

Em seu trabalho discursivo de escritura, o sujeito-autor recorta muitos saberes de


diferentes redes discursivas afetadas por diferentes formações discursivas e diferentes
posições-sujeito, mobilizando, desta forma, diferentes subjetividades provenientes do
interdiscurso. Após recortar estes saberes, cabe ao sujeito-autor organizar toda esta alteridade
e seus diferentes sentidos a partir de seu lugar discursivo, dando-lhes uma configuração
textual da qual decorre a direção de sentidos do texto que deve estar em consonância com a
formação discursiva com a qual se identifica. Este trabalho de textualização é feito, pois, a
partir de seu lugar ideológico. Esta configuração textual consiste, de fato, em “orquestrar” as
diferentes vozes, os diferentes saberes, as diferentes posições-sujeito.

Por conseguinte, podemos pensar que um texto assim urdido consiste em uma
heterogeneidade organizada pelo trabalho discursivo de escritura do sujeito-autor, a partir de
sua posição-sujeito de onde decorre a tessitura do texto e seu efeito de unidade. Dito
diferentemente: o trabalho de entretecer os diferentes recortes discursivos provenientes do
interdiscurso produz a textualização destes elementos de onde decorre o efeito-texto.

A partir do momento em que estes recortes discursivos são re-contextualizados, eles se


naturalizam no interior do texto, produzindo o efeito de apagamento dos vestígios de sua
proveniência da exterioridade 5, parecendo ter sido produzidos no texto pelo sujeito-autor. Por
outro lado, em conseqüência desta sintagmatização, torna-se extremamente difícil encontrar
evidências do discurso-outro, pois os saberes provenientes do interdiscurso se fundem de tal
forma com o que já estava linearizado no texto que eles produzem o efeito de terem sido
produzidos no próprio interior do texto6.

Tomemos novamente um exemplo. Mais uma vez vou me servir de um exemplo que
trabalha exatamente às avessas do que acabo de dizer. Ou seja: vou trabalhar com uma

5
Este efeito de apagamento dos vestígios é decorrente do apagamento das marcas sintáticas, no momento da re-
contextualização dos recortes discursivos, produzindo o que chamei, em 1997, de incisas discursivas: estas
consistem na inserção do discurso-outro sem marcas sintáticas para estabelecer o limite entre o texto do sujeito-
autor e o recorte discursivo proveniente do interdiscurso. Este apagamento é tão severo que, junto com as marcas
de sua proveniência, são apagadas as marcas das condições de produção do discurso apropriado. Desta forma, o
discurso apropriado fica completamente fundido no discurso do sujeito.
6
Em 1997, trabalhei com a categoria de memória discursiva para poder avaliar o que pertencia ao discurso do
sujeito e o que pertencia ao discurso-outro.
espécie de contra-exemplo, onde as marcas da exterioridade não foram suficientemente
apagadas, deixando vestígios interessantes de serem observados. Para isto, volto à Lispector.
Mais exatamente, vou examinar uma seqüência discursiva (SD3) recortada do livro Legião
Estrangeira. Como poderemos observar, este texto de Lispector deixa entrever a presença do
interdiscurso. Examinemos, pois, a SD3.

SD3 – Com seus oito anos altivos e bem vividos, dizia que na sua opinião eu não
criava bem os meninos; pois os meninos quando se dá a mão querem subir à
cabeça. Banana não se mistura com leite. Mata. Mas é claro a senhora faz o que
quiser; cada um sabe de si. Não era mais hora de estar de robe; sua mãe
mudava de roupa logo que saia da cama. Mas cada um termina levando a vida
que quiser. Se eu explicava que era porque ainda não tomara banho, Ofélia
ficava quieta, olhando-me atenta. Com alguma suavidade, então, com alguma
paciência, acrescentava que não era hora de não ter tomado banho (...)
(LISPECTOR, Legião Estrangeira, p. 126).
Na SD3, vários fios discursivos podem ser claramente percebidos como saberes que
vêm do interdiscurso e representam posições-sujeito diferentes: uma menina de oito anos que
expõe sua opinião sobre o modo como se deve educar as crianças, por exemplo, deixa
perceber a presença do discurso-outro em seu dizer. Na realidade, toda vez que a personagem
Ofélia dá sua opinião, nesta seqüência discursiva, ela repete, sem o saber, saberes que
pertencem ao interdiscurso, que são provenientes da memória discursiva. Ofélia repete
saberes da ordem do como todo mundo sabe: as crianças quando se lhes dá a mão querem
subir-lhe à cabeça; não se mistura banana com leite porque isto mata.

Mas a percepção do discurso-outro não se limita à possibilidade de identificar saberes


que provêem do exterior. Há também marcas da própria formulação: a passagem de um saber
a outro, de um fio discursivo ao outro, se faz de forma muito frouxa, sem uma sintaxe a atá-
los bem uns aos outros. Estas ligações mais ou menos soltas, mais ou menos frouxas7
permitem perceber melhor a presença de um conjunto de saberes que vêem do interdiscurso,
mais precisamente, do discurso do senso comum.

Como é possível perceber, esta seqüência discursiva remete a um texto não-


homogêneo, atravessado por diferentes vozes anônimas, inscritas em posições-sujeito
igualmente diversas. Um texto como o que acabamos de examinar, ao guardar os vestígios de
sua heterogeneidade, permite perceber o que usualmente fica imperceptível em sua
materialidade, em decorrência do trabalho de textualização produzido pelo sujeito-autor que

7
Muitos destes saberes se apresentam, nesta SD3, sob a forma do que se convencionou chamar de discurso
indireto livre. Este discurso se caracteriza precisamente por sua sintaxe frouxa, opondo-se ao discurso indireto
que se constrói com uma sintaxe clara e se apresenta formalmente como sendo a retomada do dizer do outro.
tem, como uma de suas tarefas, tornar invisíveis tais marcas, tornar evanescentes os vestígios
da alteridade no interior do texto, de tal modo que o não-um se apresente como que fundido
no um, tornando-se constitutivo da tessitura textual.

O trabalho discursivo de escritura

Com base no que precede, podemos afirmar que um texto é o resultado do


entrelaçamento de diferentes fios discursivos, produzido por um sujeito ideologicamente
interpelado. No interior do texto encontramos vozes anônimas provenientes de diferentes
lugares – outros textos, outros discursos. Por conseguinte, o texto, que resulta de uma
escritura como esta, é uma materialidade cuja superfície é de natureza lingüística, mas ele é
tecido com fios discursivos. Mais uma vez, a dupla face do texto se deixa capturar.

Um texto assim produzido pode ser comparado a uma tapeçaria. Para tecer um tapete,
cada fio se enlaça a outro fio. E, para tecer um texto, cada fio discursivo se trama a outro fio
discursivo. Cada fio, no momento em que se entrelaça com um outro, produz uma espécie de
laçada, de nó. Do conjunto de fios entretecidos uns aos outros resulta uma rede de nós, um
tapete. Da mesma forma, do conjunto de fios discursivos trançados uns aos outros decorre um
texto, uma tessitura.

Da textualização produzida deste modo pelo sujeito, em sua função discursiva de


autor, quando bem realizada, resulta o efeito de textualidade8, do qual decorre um outro
efeito, igualmente essencial, o efeito de homogeneidade do texto. Para ser percebido como
texto, este efeito é essencial. Resumindo: para que um texto seja considerado enquanto tal, é
preciso que os recortes discursivos provenientes do exterior pareçam ter sido produzidos pelo
sujeito, no interior do texto.

Impõe-se igualmente que as marcas da costura destas diferentes alteridades discursivas


tornem-se imperceptíveis. Que elas tenham a propriedade de tornarem-se invisíveis. A
superfície textual deve parecer perfeitamente lisa, uniforme, sem asperezas, ao contrário do
que pudemos observar na análise da SD3, mais acima. Somente assim a ilusão de
homogeneidade se instaura e o efeito-texto se produz.

8
Chamo de efeito de textualidade (Indursky, 2001) para não confundir com a noção de textualidade formulada
pela Lingüística Textual. Para esta teoria, a textualidade é uma qualidade interna ao texto: se ele apresenta
coesão e coerência, o texto possui textualidade. Enquanto que o efeito de textualidade que formulo é o resultado
da textualização e do entrelaçamento dos diferentes recortes discursivos provenientes do interdiscurso. É o efeito
da interiorização do que é exterior ao texto. E quando este trabalho é bem produzido, ele é responsável pelo
efeito de homogeneidade.
E mais: as palavras já ditas em outro lugar, quando são apropriadas pelo sujeito-autor,
precisam ser atravessadas pelo esquecimento de sua proveniência para que possam ressoar
como palavras novas no interior do texto que está sendo produzido. Somente assim a ilusão de
homogeneidade se instaura e o efeito-texto pode se produzir. Tais efeitos são todos da ordem
da escritura.

No exemplo que analisamos mais acima (SD3), observamos que todo o esforço de
Lispector vai no sentido contrário ao que acaba de ser exposto aqui: o entrelaçamento dos
diferentes fios discursivos não é “perfeito”, os fios permanecem um pouco frouxos, os nós
não são regulares. Enfim, a costura não é invisível. Seu trabalho de textualização deixa
transparecer no texto pontas mais ou menos soltas, que não foram bem amarradas. Ou seja:
uma das características da escritura de Lispector consiste justamente em deixar transparecer
os vestígios da exterioridade, que vão produzir o efeito de desconstrução dos quais nos
ocupamos mais acima. Usualmente, entretanto, para que se reconheça um texto como efeito-
texto, é preciso que estes vestígios do interdiscurso sejam perfeitamente “apagados”/
disfarçados/dissolvidos. Em suma, é preciso que eles se tornem invisíveis.

O efeito-texto traz consigo uma outra característica. O efeito-texto decorre de uma


ilusão fundadora: tudo que devia ser dito, foi dito; nada falta, nada está em excesso. Um texto
assim percebido é dotado de começo, meio e fim. O efeito-texto se apresenta como uma forma
completa, acabada, fechada. Este efeito decorre, também ele, do trabalho discursivo de
escritura.

Como pudemos observar a partir das análises das seqüências discursivas 1, 2 e 3, este
efeito de unidade e totalidade se desfaz em Lispector e isto permite perceber que o efeito-
texto é um espaço discursivo simbólico porque seu fechamento, seu acabamento e sua
completude também o são. E mais: o autor precisa desta ilusão para poder dizer e poder
concluir.

O efeito-fecho instaura para o sujeito-autor, na função discursiva de escritura, a ilusão


de estabilização dos sentidos, de onde decorre o efeito de consistência (COURTINE, 1999,
p.22) que se produz sob a ação do interdiscurso que se apresenta como uma forma de
preenchimento do que é formulável no texto. O que me permite afirmar que a historicidade de
um texto decorre do entrelaçamento - inconsciente e inextricável – que o sujeito-autor
estabelece entre seu texto e a rede anônima do já-dito: “um não-sabido, um não-reconhecido”
(COURTINE, 1999, p.21) que se apresenta como o que o autor “queria dizer” em seu texto .
Dessa forma, contraditoriamente, este sujeito-autor é afetado pelo imaginário de estar
na origem de seu dizer: ele esquece que os sentidos pré-existem e supõe-se a única fonte de
seu texto e dos sentidos que nele são produzidos. Este sujeito “sabe”, “controla” perfeita e
completamente os sentidos de seu dizer e os sentidos que seu dizer não comporta. Seu texto
diz tudo o que ele pretendeu que dissesse. Os sentidos de seu texto se apresentam para ele
absolutamente controlados e transparentes. Ou seja: os sentidos de seu texto produzem um
efeito de cristalização, não podendo jamais ser diferentes: é deste modo que se produz o
“efeito de evidência” 9. Para o sujeito, em sua ilusão, o sentido é estável e não desliza jamais.
Ele se apresenta como se estivesse fixado. O sujeito emerge deste trabalho discursivo de
escritura como um sujeito-autor, absolutamente atravessado pelo esquecimento da
exterioridade, da alteridade e da instabilidade dos sentidos que se inscrevem em seu texto pelo
viés de sua função discursiva de escritura.

BIBLIOGRAFIA

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une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, Paris, n.26, 1982.
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PÊCHEUX, M. (1975). Semântica e Discurso. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988.
9
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A paixão segundo GH. Florianópolis: UFSC, 1988.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1996.

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