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CORTINA, Arnaldo & NASSER, Sílvia Maria Gomes da Conceição (Orgs). Sujeito e
linguagem. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2009. p.117-131.
Freda INDURSKY1
Para pensar a categoria texto, neste domínio teórico, proponho pensá-la como uma
materialidade de dupla face: de um lado, temos um texto empírico dotado de uma superfície
lingüística que tem começo, meio e fim, fechado em si mesmo. De outro lado, temos um texto
tomado como uma materialidade discursiva, aberto à exterioridade, ao interdiscurso e afetado
por suas condições de produção e cujo sentido permanece indeterminado.
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Freda Indursky é Professora Titular do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Programa de Pós Graduação em Letras/UFRGS.
Av. Bento Gonçalves, 9500
Campus do Vale
91501 – 970 - Porto Alegre, RS.
freda.indursky@gmail.com
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A noção de heterogeneidade do discurso foi desenvolvida ao longo de vários anos e muitos trabalhos, dentre os
quais destaco Pêcheux (1980, 1983), Courtine (1981), Auther-Revuz (1982), como textos fundadores. Esta noção
também foi teorizada por Indursky (1997) e Gallo (1994).
significa que as condições de produção são de natureza sócio-histórica e relacionam o texto a
um sujeito igualmente histórico3. E o sujeito-autor de um texto é um sujeito ideologicamente
interpelado e é nesta condição que ele vai produzir seu texto.
As relações textuais, por sua vez, colocam o texto em relação com outros textos. Com
este segundo tipo de relação nos encontramos face ao que já estamos habituados de chamar de
intertextualidade. Deslocando esta noção, formulada pelos estudos literários, para o quadro
teórico da análise do discurso, podemos afirmar que a intertextualidade não apenas aponta
para um texto-outro, tomado como origem, mas também considera outros textos que se
inscrevem na mesma matriz de sentido. Refiro-me aqui não apenas às reescrituras que já
foram produzidas, mas também àquelas que não existem ainda, que ainda podem ser escritas.
Isto é o que, em análise do discurso, designa-se como uma paráfrase discursiva, que
relaciona entre si textos existentes, possíveis e imaginários.
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Um sujeito histórico é o que Pêcheux (1975/1988) designou de forma-sujeito: uma formação discursiva é
organizada internamente por uma forma-sujeito. E o sujeito do discurso se identifica a uma formação ideológica
pelo viés de sua identificação com uma formação discursiva.
texto é uma superfície lingüística tecida de discurso e é sobre esta materialidade discursiva
que se instaura o que estou designando de processo de escritura.
Sobre esta dupla face do texto podemos ainda afirmar que a organização do texto se
faz sobre sua superfície lingüística e diz respeito à escrita do texto. Já a textualização da
exterioridade no interior do texto remete à materialidade discursiva e se refere a seu
processo de escritura.
Em função destes diferentes tipos de relação que pode estabelecer com a exterioridade,
o texto, tal como o estamos entendendo aqui, ultrapassa fortemente seu suporte material. E a
exterioridade, compreendida desta forma, é parte constitutiva do texto, nele se fazendo
presente, mesmo sem ser transparente nem diretamente tangível ou perceptível.
A partir de tudo quanto precede, pode-se dizer que um texto em que diferentes
contextos, textos, intertextos e discursos são mobilizados é certamente atravessado por um
enunciável prévio e isto implica que diferentes subjetividades nele vão se fazer presentes, as
quais estão inscritas em formações discursivas igualmente diversas. Ou seja: estes discursos-
outros, anteriores e exteriores ao texto, trazem para o seu interior posições ideológicas
bastante diversas. Por conseguinte, em que pese o efeito de homogeneidade que o texto deve
produzir para ser entendido/percebido como tal, ele só pode ser concebido como um espaço
discursivo heterogêneo e simbolicamente fechado pelo trabalho discursivo da escritura.
Do interdiscurso ao texto
Exemplos se fazem necessários para melhor iluminar estes dois gestos autorais (o
efeito-início e o efeito-fecho). Para tanto, vou selecionar exemplos que trabalham no sentido
contrário à produção do efeito de homogeneidade a que nos referimos mais acima, pois
somente este tipo de exemplo possibilita perceber com mais acuidade o funcionamento
discursivo destes dois gestos que produzem o efeito de fronteira entre o texto e o
interdiscurso. Para tanto, vou tomar duas seqüências discursivas (SDs) recortadas da obra de
Clarice Lispector4, uma para mostrar o efeito-início (LISBÔA, 2008) e a outra para trabalhar
com o efeito-fecho (GALLO, 1994). Vejamos como a escritura de Lispector expõe a relação
estreita de seu texto com o interdiscurso. A análise das seqüências vai mostrar-nos um
funcionamento que é da ordem da regularidade na escritura de Lispector. Aqui, neste trabalho,
vamos nos limitar, a título de ilustração, a apenas dois recortes de diferentes livros da autora;
através do primeiro (SD1), vamos examinar o efeito-início e, pelo viés do segundo (SD2), o
efeito-fecho .
Tomemos, agora, a SD2. É desta forma que Lispector acaba seu livro A Aprendizagem
ou o Livro dos Prazeres. A última palavra deste livro é seguida de dois pontos. Estamos
habituados a encontrar diferentes modos de produzir o efeito-fecho de um texto e o ponto
final é o mais comum. Entretanto, encontramos freqüentemente textos que acabam por
reticências; e, embora menos usual, é possível identificar, igualmente, efeitos-fecho marcados
por exclamação ou interrogação. Mas concluir com dois pontos é da ordem do inesperado;
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As seqüências discursivas recortadas da obra de Lispector para este trabalho foram selecionadas a partir do
corpus discursivo construído por Noeli Tejera Lisbôa para sua Dissertação de Mestrado intitulada A pontuação
do silêncio: uma análise discursiva da escritura de Clarice Lispector, realizada sob a minha orientação.
diria mesmo, do impossível, pois o emprego de dois pontos indica que uma explicação vai ser
introduzida e, conseqüentemente, este tipo de pontuação não corresponde a um efeito-fecho.
Ao contrário, ele aponta para a continuidade do texto. No entanto, é exatamente pelo emprego
de dois pontos que Lispector encerra este livro. Aqui, mais uma vez, estamos diante de um
gesto autoral que mais desconstrói do que produz o efeito-fecho. Assim procedendo,
Lispector desmascara esta ficção e mostra que o fechamento do texto é uma construção
discursiva que remete ao trabalho de escritura e que o texto, de fato, não acaba no ponto em
que se produz seu efeito-fecho. Seu fluxo apenas se interrompe. Pois, ao contrário do que o
efeito-fecho pretende sugerir, ele se prolonga no interdiscurso, de onde, aliás, ele provém,
como vimos na análise de SD1.
Como se vê, Lispector, através de sua escritura, promove a desconstrução destes dois
gestos – o efeito-início e o efeito-fecho – que estabelecem uma fronteira entre o texto e o
interdiscurso. Procedendo desta forma, ela permite melhor captar estes dois efeitos, estas duas
ilusões, pois as marcas discursivas de pontuação de que se serve Lispector realçam, por
contraste, todo o trabalho discursivo de construção que habitualmente é feito para “apagar” as
marcas da exterioridade no interior do texto e, ao disfarçá-las, efeito-texto se produz..
Mas não é somente através destes dois aspectos que acabamos de examinar que é
possível observar as relações que o texto estabelece com a exterioridade. Estes dois cortes
são, provavelmente, os mais evidentes, os mais fáceis de perceber. Mas, como já dissemos
anteriormente, o texto é constantemente invadido pelo interdiscurso. E é desta forma de
relação do texto com o interdiscurso que vamos nos ocupar mais detalhadamente, a seguir.
Falar de escritura e das relações do texto com o interdiscurso implica relembrar, antes
de prosseguir, que um texto é produzido por um sujeito interpelado pela ideologia e
identificado a uma posição-sujeito inscrita em uma formação discursiva determinada. Esta
interpelação, é preciso não esquecer, não é consciente, o que significa dizer que o sujeito é
interpelado, mas trabalha sob a ilusão de ser livre para fazer suas escolhas. Isto significa que
ele não tem consciência do fato de que aquilo que escreve representa a retomada de saberes
provenientes do interdiscurso.
Por conseguinte, podemos pensar que um texto assim urdido consiste em uma
heterogeneidade organizada pelo trabalho discursivo de escritura do sujeito-autor, a partir de
sua posição-sujeito de onde decorre a tessitura do texto e seu efeito de unidade. Dito
diferentemente: o trabalho de entretecer os diferentes recortes discursivos provenientes do
interdiscurso produz a textualização destes elementos de onde decorre o efeito-texto.
Tomemos novamente um exemplo. Mais uma vez vou me servir de um exemplo que
trabalha exatamente às avessas do que acabo de dizer. Ou seja: vou trabalhar com uma
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Este efeito de apagamento dos vestígios é decorrente do apagamento das marcas sintáticas, no momento da re-
contextualização dos recortes discursivos, produzindo o que chamei, em 1997, de incisas discursivas: estas
consistem na inserção do discurso-outro sem marcas sintáticas para estabelecer o limite entre o texto do sujeito-
autor e o recorte discursivo proveniente do interdiscurso. Este apagamento é tão severo que, junto com as marcas
de sua proveniência, são apagadas as marcas das condições de produção do discurso apropriado. Desta forma, o
discurso apropriado fica completamente fundido no discurso do sujeito.
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Em 1997, trabalhei com a categoria de memória discursiva para poder avaliar o que pertencia ao discurso do
sujeito e o que pertencia ao discurso-outro.
espécie de contra-exemplo, onde as marcas da exterioridade não foram suficientemente
apagadas, deixando vestígios interessantes de serem observados. Para isto, volto à Lispector.
Mais exatamente, vou examinar uma seqüência discursiva (SD3) recortada do livro Legião
Estrangeira. Como poderemos observar, este texto de Lispector deixa entrever a presença do
interdiscurso. Examinemos, pois, a SD3.
SD3 – Com seus oito anos altivos e bem vividos, dizia que na sua opinião eu não
criava bem os meninos; pois os meninos quando se dá a mão querem subir à
cabeça. Banana não se mistura com leite. Mata. Mas é claro a senhora faz o que
quiser; cada um sabe de si. Não era mais hora de estar de robe; sua mãe
mudava de roupa logo que saia da cama. Mas cada um termina levando a vida
que quiser. Se eu explicava que era porque ainda não tomara banho, Ofélia
ficava quieta, olhando-me atenta. Com alguma suavidade, então, com alguma
paciência, acrescentava que não era hora de não ter tomado banho (...)
(LISPECTOR, Legião Estrangeira, p. 126).
Na SD3, vários fios discursivos podem ser claramente percebidos como saberes que
vêm do interdiscurso e representam posições-sujeito diferentes: uma menina de oito anos que
expõe sua opinião sobre o modo como se deve educar as crianças, por exemplo, deixa
perceber a presença do discurso-outro em seu dizer. Na realidade, toda vez que a personagem
Ofélia dá sua opinião, nesta seqüência discursiva, ela repete, sem o saber, saberes que
pertencem ao interdiscurso, que são provenientes da memória discursiva. Ofélia repete
saberes da ordem do como todo mundo sabe: as crianças quando se lhes dá a mão querem
subir-lhe à cabeça; não se mistura banana com leite porque isto mata.
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Muitos destes saberes se apresentam, nesta SD3, sob a forma do que se convencionou chamar de discurso
indireto livre. Este discurso se caracteriza precisamente por sua sintaxe frouxa, opondo-se ao discurso indireto
que se constrói com uma sintaxe clara e se apresenta formalmente como sendo a retomada do dizer do outro.
tem, como uma de suas tarefas, tornar invisíveis tais marcas, tornar evanescentes os vestígios
da alteridade no interior do texto, de tal modo que o não-um se apresente como que fundido
no um, tornando-se constitutivo da tessitura textual.
Um texto assim produzido pode ser comparado a uma tapeçaria. Para tecer um tapete,
cada fio se enlaça a outro fio. E, para tecer um texto, cada fio discursivo se trama a outro fio
discursivo. Cada fio, no momento em que se entrelaça com um outro, produz uma espécie de
laçada, de nó. Do conjunto de fios entretecidos uns aos outros resulta uma rede de nós, um
tapete. Da mesma forma, do conjunto de fios discursivos trançados uns aos outros decorre um
texto, uma tessitura.
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Chamo de efeito de textualidade (Indursky, 2001) para não confundir com a noção de textualidade formulada
pela Lingüística Textual. Para esta teoria, a textualidade é uma qualidade interna ao texto: se ele apresenta
coesão e coerência, o texto possui textualidade. Enquanto que o efeito de textualidade que formulo é o resultado
da textualização e do entrelaçamento dos diferentes recortes discursivos provenientes do interdiscurso. É o efeito
da interiorização do que é exterior ao texto. E quando este trabalho é bem produzido, ele é responsável pelo
efeito de homogeneidade.
E mais: as palavras já ditas em outro lugar, quando são apropriadas pelo sujeito-autor,
precisam ser atravessadas pelo esquecimento de sua proveniência para que possam ressoar
como palavras novas no interior do texto que está sendo produzido. Somente assim a ilusão de
homogeneidade se instaura e o efeito-texto pode se produzir. Tais efeitos são todos da ordem
da escritura.
No exemplo que analisamos mais acima (SD3), observamos que todo o esforço de
Lispector vai no sentido contrário ao que acaba de ser exposto aqui: o entrelaçamento dos
diferentes fios discursivos não é “perfeito”, os fios permanecem um pouco frouxos, os nós
não são regulares. Enfim, a costura não é invisível. Seu trabalho de textualização deixa
transparecer no texto pontas mais ou menos soltas, que não foram bem amarradas. Ou seja:
uma das características da escritura de Lispector consiste justamente em deixar transparecer
os vestígios da exterioridade, que vão produzir o efeito de desconstrução dos quais nos
ocupamos mais acima. Usualmente, entretanto, para que se reconheça um texto como efeito-
texto, é preciso que estes vestígios do interdiscurso sejam perfeitamente “apagados”/
disfarçados/dissolvidos. Em suma, é preciso que eles se tornem invisíveis.
Como pudemos observar a partir das análises das seqüências discursivas 1, 2 e 3, este
efeito de unidade e totalidade se desfaz em Lispector e isto permite perceber que o efeito-
texto é um espaço discursivo simbólico porque seu fechamento, seu acabamento e sua
completude também o são. E mais: o autor precisa desta ilusão para poder dizer e poder
concluir.
BIBLIOGRAFIA