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LINGUÍSTICA

TEXTUAL E ENSINO

Leonardo Machado Batista


Coesão textual:
progressão referencial
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar os domínios semântico e pragmático na formação de


significados.
 Aplicar conceitos de substituição, reiteração, elipse, paralelismo e
paráfrase em texto midiático e literário.
 Interpretar o conceito de coesão lexical em gêneros discursivos distintos.

Introdução
Sempre que alguém se comunica com outra pessoa, seja oralmente ou
por escrito, mobiliza o seu conhecimento linguístico para construir sen-
tidos. Esse processo de “colocar a língua em uso” tem sido chamado de
“produção textual”. Ao fazer uso da sua língua, o falante inevitavelmente
organiza a sua fala em determinado modelo textual relativamente estável:
conversa, mensagem de texto, bilhete, etc.
Enquanto entidade teórica, a língua apresenta níveis de estruturação
e de funcionamento que vão desde o fonema até a frase. Todos esses
conceitos foram amplamente estudados ao longo das décadas, antes
mesmo do surgimento da linguística enquanto ciência. No entanto, um
texto não pode ser entendido apenas como uma sucessão de frases
colocadas lado a lado. Ou seja, o que legitima um texto não é o simples
fato de criar uma sentença ao lado da outra. Existem fatores e critérios de
textualidade que dão autenticidade ao texto. Embora pareça óbvia, essa
conclusão só foi possível com o desenvolvimento da linguística textual,
a partir da segunda metade do século XX.
Beaugrande e Dressler (1981) definem sete fatores de textualidade:
coesão, coerência, informatividade, situacionalidade, intertextualidade,
intencionalidade e aceitabilidade. Neste capítulo, você vai estudar o
primeiro fator elencado pelos autores alemães: a coesão.
2 Coesão textual: progressão referencial

A construção do sentido em um texto:


componentes semânticos e pragmáticos
Professores de língua materna têm a missão de desenvolver habilidades dis-
cursivas em seus alunos. A esses docentes é dada a tarefa de formar cidadãos
capazes de exercer plenamente a cidadania por meio da sua participação na
sociedade, o que acontece a partir da apropriação de diferentes gêneros textuais
(BRASIL, 1997). Para preparar seus alunos para um ambiente letrado, no
qual as pessoas usam a língua escrita em eventos comunicativos, o professor
precisa saber o que se entende por texto. Afinal, como um professor pode
ensinar seus alunos a escrever e a ler satisfatoriamente sem saber quais são
os processos e os fenômenos linguísticos, semânticos e pragmáticos por trás
da tessitura verbal?
Um texto surge quando alguém mobiliza o seu conhecimento de língua para
se comunicar com outra pessoa, que, por sua vez, mobiliza o seu conhecimento
para compreender o que está sendo dito. Por integrarem dada sociedade, falantes
e ouvintes, escritores e leitores compartilham uma série de conhecimentos
tanto linguísticos como sobre o funcionamento do mundo e da comunidade
da qual fazem parte. Esses sujeitos, para que possam se comunicar, utilizam
seu repertório cognitivo a fim de produzir e resgatar sentidos. A comunicação
entre eles, então, se dá por meio de um processo ativo em que os interlocutores
usam diferentes estratégias para a produção e a interpretação de um texto.
O próprio texto, que foi propositadamente organizado por alguém de deter-
minada maneira, oferece a quem o lê indicações daquilo que quer significar
(KOCH, 2002a). Para a prática docente, é fundamental ter consciência desse
fato discursivo. Afinal, ensinar a ler e a escrever envolve fazer os alunos
perceberem que um texto bem escrito deve estar desenvolvido de tal maneira
que, por si só, possa ser interpretado pelo seu interlocutor.
Dessa maneira, quando os alunos forem convidados a produzir um texto,
usarão a consciência que construírem sobre o funcionamento da língua e sobre
as formas de organização da sua fala/escrita para registrar, em suas produções,
pistas que garantirão ao seu leitor a compreensão do que for lido. Seguindo
a mesma lógica a partir de outra perspectiva, quando tiverem de interpretar
algo, os alunos procurarão as indicações semânticas do próprio texto. Assim,
desenvolver nos alunos um conhecimento explícito sobre o que é a coesão
textual, por exemplo, permite que eles, enquanto produtores e interpretadores,
recorram às pistas a serem deixadas e buscadas no texto.
Nas palavras de Koch (2002a, p. 19), “[...] produtor e interpretador do
texto são, portanto, ‘estrategistas’, na medida em que ao jogarem o ‘jogo da
Coesão textual: progressão referencial 3

linguagem’ mobilizam uma série de estratégias — de ordem sociointerativa,


interacional e textual — com vistas à produção do sentido [...]”. Para a autora,
o produtor/planejador, o texto e o leitor/ouvinte são elementos do “evento
comunicativo”, e cada um deles desempenha uma função importante.
Para depreender os sentidos de um texto, o leitor usa uma série de estra-
tégias. Entre elas, está o seu conhecimento linguístico. Koch (2006) afirma
que o leitor pode, fundamentando-se no seu conhecimento da língua, entender
como as palavras e os conjuntos de palavras estão organizados na superfície
textual e como os mecanismos de coesão se organizam no texto para se referir
às suas diferentes partes e dar sequência a ele.
Se o uso da língua pode ser entendido como um jogo cujas peças são o
falante/produtor, o ouvinte/interpretador e o texto (falado ou escrito), então as
estratégias de organização textual podem ser compreendidas como as regras
desse jogo. Estudantes de Letras, como futuros professores, precisam conhecer
bem essas regras para poder ensiná-las. A seguir, você vai ver como um texto
constitui-se em unidade de sentido e que recursos linguísticos o falante tem
à sua disposição tanto para produzir essa unidade quando para interpretá-la.

Os mecanismos de coesão
Um texto, produto de uma atividade em que duas ou mais pessoas cooperam
para a produção/interpretação de sentidos, caracteriza-se por ser coerente
e coeso. A coerência “[...] é o que faz com que o texto faça sentido para os
usuários [...]” (KOCH; TRAVAGLIA, 1993, p. 11). Por outro lado, a coesão
é um dos critérios pelos quais é possível identificar uma unidade de sentido.
Se texto for entendido como uma unidade de sentido constituída por partes
organizadas propositadamente de dada maneira, então essas partes devem
estar dispostas de tal modo que deixem explícitas as suas relações. Diz-se que
há coesão entre duas partes de um texto quando a interpretação de ambas é
semanticamente interdependente (DUARTE, 2003; KOCH, 2002a). Observe
o exemplo:

(1) Chapeuzinho Vermelho saiu de casa para levar


doces a (2) sua vovozinha. (3) A menina desobedeceu
às (4) ordens (5) que recebera e decidiu ir até (6) lá
pela floresta. No meio do caminho, encontrou um
lobo. (7) O animal tinha má reputação, mas a doce
(8) criança desconhecia (9) essa fama do vilão.
4 Coesão textual: progressão referencial

Qual é o significado do segmento “A menina”, que ocorre em (3)? “A


menina” significa “Chapeuzinho Vermelho” e tem, portanto, relação com
o segmento (1). O mesmo ocorre com o segmento “sua”, que significa “de
Chapeuzinho Vermelho”, e com o segmento (8), que retoma mais uma vez
a personagem, sem que seja necessário repetir o nome próprio. Os quatro
períodos, assinalados pela presença dos pontos-finais, formam um todo coeso,
porque a interpretação de um termo presente no último período, “Criança”,
estabelece uma interdependência semântica com um referente do primeiro
período, “Chapeuzinho Vermelho”.
Como você deve ter notado, há outras relações estabelecidas entre diferentes
partes do texto. O segmento (5) estabelece uma relação com (4), indicando que
a menina recebeu “ordens”. O segmento (4), por seu turno, relaciona-se com
o (5), indicando que não são quaisquer ordens, e sim aquelas que a menina
recebeu. O segmento (7) relaciona-se com “lobo”, e o (9) faz referência à má
reputação do animal.
O que pode ser dito a respeito do segmento (6)? Esse segmento (“lá”)
significa “a casa da vovozinha”. Você provavelmente deve ter feito essa in-
terpretação porque essa história é muito conhecida e partilhada pela cultura
em que você está inserido. No entanto, não há uma relação explícita no texto
entre “lá” e “a casa da vovozinha”. Isso significa que, além de ter a ver com
indicações semânticas (obtidas por meio de elementos linguísticos, como as
palavras explícitas no texto), a coesão também está relacionada com fatores
extralinguísticos (pragmáticos), que envolvem o contexto enunciativo (de
produção de texto) externo ao próprio texto.

Referência e remissão
As palavras da língua fazem parte de um sistema linguístico e também se referem
a algo no mundo. “Árvore”, por exemplo, é uma palavra composta pelas letras a,
r, v, o e e. A sua sílaba tônica é a antepenúltima, e essa palavra pode variar em
número, mas não em gênero (existe a forma “árvores”, mas não existe “árvoro”
ou “árvora”). Todas essas descrições são linguísticas, porque falam da palavra
“árvore” enquanto um elemento de uma língua e a colocam em comparação
com outros elementos da mesma língua. Ou seja, existem outras palavras que
variam em gênero, outras palavras que assumem tonicidades diferentes, etc.
“Árvore”, por outro lado, faz referência a um elemento do mundo. Trata-se
de um referente que pode ser perceptível aos falantes empiricamente por meio
Coesão textual: progressão referencial 5

dos seus sentidos: uma árvore pode ser observada com a visão, ela pode ser
tocada, etc. Além disso, esse objeto tem sido alvo da observação e da descrição
de biólogos, que procuram descobrir suas características enquanto objeto do
mundo real, e não linguístico.
Com base nessas duas visões que se tem sobre as palavras, os linguistas
textuais desenvolveram os conceitos de remissão e referência. Veja o que
afirma Koch (1999, p. 33, grifo nosso):

O termo referência tem sido usado, em Linguística, com duas acepções


distintas: na tradição semântica, designando a relação que se estabelece
entre uma forma linguística e o seu referente extralinguístico; b) na trilha
de Halliday, significando a relação de sentido (basicamente de correferência)
que se estabelece entre duas formas na superfície textual.

Quando se diz, portanto, que há mecanismos de coesão referenciais e


não referenciais, faz-se menção a essa característica da língua de representar
algo da realidade. Koch (1999, p. 33) chama a atenção para esse fato quando
diz: “As formas não referenciais não fornecem ao leitor/ouvinte quaisquer
instruções de sentido, mas apenas instruções de conexão (p. ex., concordância
de gênero e número) [...]”. Já “[...] as formas referenciais são aquelas que, além
de trazerem instrução de conexão, fornecem indicações no nível da referência
[...]” (KOCH, 1999, p. 45).
A noção de remissão, por outro lado, atribui à classificação dos mecanismos
de coesão a ideia de que um elemento do texto, chamado referente, só pode
ser interpretado a partir de outro, chamado ponto de referência. Observe:

João e Maria¹ eram irmãos. Eles¹ foram deixados na floresta.


O interesse da bruxa era este:² engordar Joãozinho.²

Na segunda frase, “eles” remete a “João e Maria” e “este” remete a “en-


gordar Joãozinho”. O leitor procura estabelecer essas relações entre referente
e ponto de referência para compreender o que lê.
Na seção seguinte, você vai ver como todos esses conceitos são apli-
cados, verificando como os mecanismos de coesão ocorrem em diferentes
gêneros textuais. Assim, você terá o conhecimento necessário para ajudar
outras pessoas, seus alunos, a desenvolverem suas habilidades de leitura
e escrita.
6 Coesão textual: progressão referencial

De acordo com Halliday e Hasan (1976), quando uma referência é textual, ela pode ser
catafórica ou anafórica. Se o segmento do texto é anafórico, ele faz referência a algo
que já foi dito no mesmo texto. Se o segmento do texto é catafórico, faz referência a
algo que ainda vai ser dito na sequência textual. Observe as frases a seguir e perceba
o movimento de interpretação do leitor na busca pela referência.
 Anáfora: “João e Maria são irmãos. Eles foram deixados na floresta”. A palavra
“eles” faz referência a “João e Maria”, algo já referido no texto. É, portanto, um caso
de anáfora.
 Catáfora: “O interesse da Bruxa era este: engordar Joãozinho”. O termo “este” faz
referência a algo que ainda será explicitado no texto, “engordar Joãozinho”. Nesse
caso, o leitor deve interpretar o significado do pronome com base em algo que
aparece depois da ocorrência dele. Então, diz-se que há catáfora.

Mecanismos de coesão: substituição, reiteração,


elipse, paralelismo e paráfrase
Existem diversos mecanismos de sequenciação textual. Eles são classificados
de diferentes maneiras, de acordo com a teoria que dá embasamento à classi-
ficação. Halliday e Hasan (1976) propõe os seguintes grupos: (1) referência,
(2) substituição, (3) elipse, (4) conjunção e (5) coesão textual. Entretanto,
outros autores (BROWN; YULE, 1983; KALLMEYER et al., 1974 apud
KOCH, 1999) veem problemas nessa classificação de Halliday e Hasan (1976),
principalmente pela maneira como o linguista americano divide mecanismos
como referência, substituição e elipse.
De acordo com Brown e Yule (1984 apud KOCH, 1999), por exemplo,
formas substitutivas também são referenciais, por isso os autores não conside-
ram que a substituição seja um mecanismo à parte da referência. Ou seja, eles
acreditam que, quando alguém substitui “Chapeuzinho Vermelho” por “ela”
em um texto, o referente “ela” remete à expressão “Chapeuzinho Vermelho”
e, por isso, não pode ser entendido apenas como uma substituição.
Coesão textual: progressão referencial 7

Além de lembrar essa primeira crítica, Koch (1999) menciona que a elipse,
para o próprio Halliday e Hasan (1976), é um mecanismo de substituição por
ø. Então, considera a distinção de Halliday entre substituição e elipse outro
problema, pois acredita que tal organização não pode retratar bem o fenômeno.
Em resumo, o que Halliday e Hasan (1976) divide em três grupos (referência,
classificação e elipse) outros autores (BROWN; YULE, 1983; KALLMEYER
et al., 1974 apud KOCH, 1999b) chamam apenas de referência. Koch (1999)
propõe que se dividam os mecanismos de coesão em português em duas
grandes modalidades: (1) coesão referencial (referenciação, remissão) e (2)
coesão sequencial (sequenciação).
Agora que você já entendeu o que é coesão e conhece os seus mecanismos,
veja como esses conhecimentos podem ser aplicados para a produção e para
a interpretação de um texto. Assim, você poderá levar seus futuros alunos a
compreenderem melhor o que leem e a escrever fazendo uso dessas estratégias
coesivas.

Substituição e elipse: estratégias de reativação


de referentes no texto
Como você já viu, Koch (1999) classifica alguns mecanismos de substituição
como coesão referencial porque eles remetem a determinado ponto de referência
textual, o qual é reativado durante a leitura. A coesão referencial ou remissiva
acontece por meio de formas remissivas referenciais e formas remissivas não
referenciais. Estas últimas podem ser subclassificadas como livres e presas.
A coesão referencial se dá, nas palavras de Koch (2002b, p. 46),

[...] por meio de recursos de ordem “gramatical” — pronomes de terceira


pessoa (retos e oblíquos) e os demais pronomes (possessivos, demonstrativos,
indefinidos, interrogativos, relativos), os diversos tipos de numerais, advérbios
pronominais (como aqui, aí, lá, ali) e artigos definidos; por intermédio de
recursos de natureza lexical, como sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos,
descrições definidas; ou, ainda, por reiteração de um mesmo grupo nominal
ou parte dele; e, finalmente, por meio da elipse.
8 Coesão textual: progressão referencial

Para ver como esses recursos de ordem gramatical compõem a coesão de


um texto, leia a narrativa a seguir.

Os cegos e os elefantes
1 Há muitos anos vivia na Índia um rei1 sábio e muito culto. Já havia lido todos os livros de
2 seu reino. Seus1 conhecimentos eram numerosos como os grãos de areia do rio Ganges.
3 Muitos súditos e ministros2, para agradar o rei1, também se aplicaram aos estudos e às
4 leituras dos velhos livros. Mas __2 viviam disputando entre si quem2 era o mais
5 conhecedor3, inteligente e sábio. Cada um se arvorava em ser o dono da verdade e
6 menosprezava os demais.
7 O rei4 se entristecia com essa rivalidade intelectual3. Resolveu, então, dar-lhes2 uma lição.
8 Chamou-os todos para que presenciassem uma cena no palácio. Bem no centro da
9 grande sala do trono estavam alguns belos elefantes5. O rei ordenou que os soldados
10 deixassem entrar um grupo de cegos de nascença4.
11 Obedecendo às ordens reais, os soldados conduziram os cegos 4 para os elefantes e,
12 guiando-lhes 4 as mãos, mostraram-lhes os animais5. Um dos cegos agarrou a perna de
13 um elefante5; o outro segurou a cauda5; outro tocou a barriga5; outro, as costas5; outro
14 apalpou as orelhas5; outro, a presa5; outro, a tromba5.
15 O rei pediu que cada um 4 examinasse bem, com as mãos, a parte que lhe cabia. Em
16 seguida, mandou-os vir à sua presença e perguntou-lhes:
17 — Com que se parece um elefante?
18 Começou uma discussão acalorada entre os cegos.
19 Aquele4 que agarrou a perna respondeu:
20 — O elefante é como uma coluna roliça e pesada.
21 — Errado! — interferiu o cego4 que4 segurou a cauda.
22 — O elefante é tal qual uma vassoura de cabo maleável.
23 — Absurdo! — gritou aquele que tocou a barriga. — É uma parede curva e tem a pele
24 semelhante a um tambor.
25 — Vocês não perceberam nada — desdenhou o cego que tocou as costas. — O elefante
26 parece-se com uma mesa abaulada e muito alta.
27 — Nada disso! — resmungou o que tinha apalpado as orelhas. — É como uma bandeira
28 arredondada e muito grossa que não para de tremular.
29 — Pois eu não concordo com nenhum de vocês — falou alto o cego que examinara a
30 presa. — Ele5 é comprido, grosso e pontiagudo, forte e rígido como os chifres.
31 — Lamento dizer que todos vocês estão errados — disse com prepotência o que tinha
32 segurado a tromba. — O elefante é como a serpente, mas flutua no ar.
33 O rei se divertiu com as respostas e, virando-se para seus súditos e ministros, disse-
34 lhes:
35 — Viram? Cada um deles disse a sua verdade. E nenhuma delas responde corretamente
36 à minha pergunta. Mas se juntarmos todas as respostas poderemos conhecer a grande
37 verdade. Assim são vocês: cada um tem a sua parcela de verdade. Se souberem ouvir
38 e compreender o outro e se observarem o mundo de diferentes ângulos, chegarão ao
39 conhecimento e à sabedoria (DOMINGUES, 2015, documento on-line).

Como você estudou, existem diversos recursos gramaticais responsáveis


pela coesão de um texto. Esse tipo de coesão é chamada referencial ou re-
missiva, porque remete a um ponto de referência do texto, o qual é reativado
durante a leitura. A seguir, observe como esses recursos estão presentes na
fábula que você acabou de ler.
Coesão textual: progressão referencial 9

 Pronomes (retos e oblíquos): na linha 7, o pronome oblíquo lhes remete


o leitor à linha 3, na qual aparece pela primeira vez o referente súditos
e ministros. Na linha 30, o pronome reto ele retoma elefante.
 Demais pronomes (possessivos, demonstrativos, indefinidos, interroga-
tivos, relativos): na linha 5, o pronome indefinido quem remete a súditos
e ministros (linha 3); aquele (linha 19) é um pronome demonstrativo que
remete a cegos. Note que os cegos são apresentados pela primeira vez
na linha 10 (“um grupo de cegos de nascença”). Na linha 21, o pronome
relativo que também remete a cego. No texto, não ocorre nenhum caso de
coesão referencial com pronome interrogativo, mas Koch (1999, p. 36) dá
o seguinte exemplo: “Hoje vamos falar sobre os animais invertebrados.
Que animais são esses?”, no qual que retoma animais invertebrados.
 Diversos tipos de numerais: na linha 15, um retoma cegos. É, por-
tanto, um caso em que um numeral cardinal está desempenhando uma
função coesiva. Outros exemplos não são encontrados no texto, mas
Koch (1999, p. 40) apresenta os seguintes: “Haverá prêmios para os
melhores trabalhos. O primeiro será uma viagem à Europa [...]”; “Na
semana passada, Renata ganhou 100 cruzados novos na Loteca. Hoje,
Mariana ganhou o dobro [...]”; e “Os bens do excêntrico milionário
ontem falecido foram assim distribuídos: um terço para o seu cãozinho
de estimação e dois terços para instituições filantrópicas [...]”. Nesses
casos, numerais ordinais, multiplicativos e fracionários exercem função
referencial.
 Artigos definidos: Koch (1999, p. 34) diz que, “[...] de modo geral, o
artigo indefinido funciona como catafórico (isto é, remete à informação
subsequente) e o artigo definido como anafórico (ou seja, faz remissão
à informação que o precede no texto) [...]”. Isso pode ser verificado nas
linhas 1 e 3 do texto, pois há nelas, respectivamente, um artigo inde-
finido (um rei) e um artigo definido (o rei) assumindo essas funções
referenciais descritas por Koch (1999).
 Recursos de natureza lexical: na linha 12, a palavra animais retoma
seu hipônimo elefantes. Da mesma forma, as palavras causa, barriga,
costas, orelhas, presa e tromba (linhas 13 e 14) são merônimos de
elefante.
 Elipse: na linha 4, há uma elipse antes de viviam. Isso significa que a
posição de sujeito dessa oração não foi preenchida por nenhum cons-
tituinte oracional, mas é marcada pela desinência do verbo na terceira
pessoa do plural -am. Pelo contexto, o leitor pode calcular que a elipse
retoma súditos e ministros.
10 Coesão textual: progressão referencial

Como você pôde notar, um texto, definitivamente, não pode ser entendido
como um conjunto de frases colocadas lado a lado. Há entre as partes de um
texto uma gama de relações responsáveis pela tessitura verbal. Tais relações
fornecem aos leitores um conjunto de informações contextuais por meio das
quais é possível calcular os sentidos presentes no texto. Na subseção a seguir,
você vai estudar mecanismos de coesão responsáveis pela sequenciação de
um texto, isto é, que permitem ao falante/produtor dar continuidade ao tema
que desenvolve.

Reiteração, paralelismo e paráfrase: mecanismos


de sequenciação textual
A continuidade de um texto acontece por meio de mecanismos de coesão, que
permitem ao produtor prosseguir abordando um assunto, seja para adicionar
um conteúdo novo ou para aprofundar um tema dado. A progressão do texto
pode acontecer com ou sem recorrência de termos. Ou seja, as pessoas podem
ou não repetir vocábulos, ideias, estruturas sintáticas, fonemas, etc.
A reiteração, que acontece pela repetição, também é responsável pela
construção do significado, dando indicações de sentido ao leitor. Observe os
exemplos (1) e (2) e veja como esse fenômeno acontece (WHINEHOUSE, 2006):

(1) They tried to make me go to rehab/I said, “no, no, no”


(2) Yes, I've been black/But when I come
back, you'll know, know, know

No exemplo (1), em cada uma de suas três ocorrências, o termo não impõe
aos ouvintes da canção uma nova interpretação de sentido que é somada à(s)
anterior(es). Assim, a recorrência presente no exemplo (1) indica que a cantora,
Amy Winehouse, foi convidada a ir para a reabilitação mais de uma vez e
que, mais de uma vez, negou-se a ser internada. Se a cantora usasse o termo
não apenas uma vez (ou duas), a canção não teria o mesmo efeito de sentido.
Veja a seguir (WINEHOUSE, 2006):

(1a) They tried to make me go to rehab/I said “no”


(1b) They tried to make me go to rehab/I said “no, no”
Coesão textual: progressão referencial 11

Em (1a), dizer apenas “não” significa um simples desinteresse pela proposta


de ser internada. Essa negação inicial é ampliada em (1b): a nova ocorrência
do termo traz consigo uma nova indicação de sentido, pela qual os ouvintes
podem perceber que Winehouse tinha certeza de sua repulsa pelo tratamento.
A terceira reiteração de não, que ocorre no exemplo (1), adiciona aos dois
sentidos iniciais a ideia de que o interesse das outras pessoas pela internação
de Amy era recorrente.

Confira a tradução da letra da música “Rehab” no link a seguir.

https://qrgo.page.link/nfJvS

Como você já viu, além da repetição de palavras, é possível haver reiteração


de estruturas sintáticas. Paralelismo é o nome dado à recorrência de uma
organização oracional que, mantendo-se a mesma, é apenas alimentada com
novos vocábulos. Observe o poema de Bandeira (1973, p. 164):

Vi uma estrela tão alta,


Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

No exemplo, há a repetição de uma estrutura sintática nos dois primeiros


versos. A posição de predicativo do objeto é alterada em cada ocorrência.
Primeiramente, é caracterizada como alta e, depois, como fria. Assim, o poeta
dá continuidade ao seu tema, especificando o sentido do texto.
Do mesmo modo como é possível repetir estruturas sintáticas para pros-
seguir em um tema, também é possível retomar sentidos. Esse fenômeno tem
sido designado como paráfrase. Então, o paralelismo está para a sintaxe assim
como a paráfrase está para a semântica. Leia o texto a seguir (IZIDRO, 2019,
documento on-line).
12 Coesão textual: progressão referencial

A série “Downton Abbey” (2010–2015) me cativou de


um jeito, que fui obrigado a maratonar todas as suas
temporadas. A trama, criada por Julian Fellowes, segue
a vida de uma família de aristocratas ingleses entre
os anos de 1912 e 1919 — ou seja pré e pós I Guerra
Mundial —, mostrando suas regalias, mas também
focava e muito na criadagem, muitos querendo a
ascensão social, e outros apenas sendo subservientes.

Nota-se que o mesmo conteúdo semântico foi organizado de duas maneiras


diferentes. Primeiro, com a menção a um período de sete anos (“entre os anos
de 1912 e 1919”) e, depois, com ênfase em um importante acontecimento
desse período (“pré e pós I Guerra Mundial”). Para Koch (2006, p. 154–155),
“[...] do mesmo modo que na recorrência de termos, a cada apresentação do
conteúdo, ele sofre alguma alteração, que pode consistir, muitas vezes, em
ajustamento, reformulação, desenvolvimento, síntese ou precisão maior do
conteúdo que está sendo apresentado [...]”. Existe, tanto na língua portuguesa
como em outras, um conjunto de expressões capazes de introduzir paráfrases
em um texto: “isto é”, “ou melhor”, “quer dizer”, “resumidamente”, “dito de
outro modo”, etc. (KOCH, 2006).
A progressão textual pode, ainda, recorrer a recursos fonológicos da língua.
Com frequência, encontram-se nos poemas rimas, assonâncias, aliterações,
ritmo, etc. Para formular um poema, então, os poetas recorrem a estruturas
linguísticas como fonemas, sílabas, tonicidade, ou seja, recursos fonológicos
segmentais (fonemas) e suprassegmentais (sílabas). Para compor o poema “Au-
topsicografia”, transcrito parcialmente a seguir, Fernando Pessoa preocupou-se
com a combinação entre sílabas. Nesse caso, –dor e –te.

O poeta é um fingidor (A)


Finge tão completamente (B)
Que chega a fingir que é dor (A)
A dor que deveras sente. (B)

Nota-se que o final do primeiro verso combina com o final do terceiro.


Além disso, o final do segundo verso é igual ao final do quarto. Ou seja, a
progressão do poema acontece com base na repetição de sílabas. Esse tipo de
coesão textual também é um recurso de sequenciação textual.
Coesão textual: progressão referencial 13

Uma vez que você já tenha se familiarizado com os mecanismos de coesão


textual, que são divididos em dois grandes grupos (referenciação e sequen-
ciação), resta refletir sobre como esses mecanismos são responsáveis pela
produção do sentido.

O conceito de coesão em gêneros


discursivos distintos
Toda atividade humana acontece por meio de um gênero de texto específico.
Os gêneros estão diretamente relacionados a uma esfera de atividade hu-
mana (BAKHTIN, 1992). As pessoas, então, ao integrarem uma sociedade,
relacionam-se umas com as outras de acordo com as atividades que exercem
nessa sociedade. A interação humana está relacionada à produção verbal/
textual, pelo que se pode concluir que as pessoas frequentemente produzem
e interpretam textos orais e escritos.
Ao interpretar e produzir textos, os falantes de uma língua usam estratégias
sociocognitivas, as quais são realizadas por meio da ativação de conhecimen-
tos que têm armazenados. Entre os conhecimentos do falante, encontra-se o
conhecimento linguístico, o qual pode ser intuitivo (adquirido em conjunto
com a sua língua) ou explícito (desenvolvido por meio do ensino formal).
Com base em seu conhecimento linguístico, que envolve conhecer, implícita
ou explicitamente, os mecanismos coesivos de sua língua, os falantes podem
buscar sentidos em um texto (enquanto interpretadores), ou construir sentidos
nele (enquanto produtores).
Como você pôde verificar, existem duas grandes modalidades de coesão:
a coesão referencial e a coesão sequencial. Ambas abarcam um conjunto de
mecanismos responsáveis tanto pela referenciação quanto pela progressão do
texto. Quando os falantes usam mecanismos de coesão, podem, então, tanto
fazer referência aos contextos extralinguísticos e linguísticos para significar,
quanto dar continuidade ao seu texto para desenvolver o tema sobre o qual
estão falando/escrevendo.
Como futuros professores, os estudantes de Letras precisam conhecer a
forma como os textos se organizam. Isso é fundamental para que eles possam,
no futuro, desenvolver o conhecimento explícito de língua de seus alunos e,
assim, levá-los a ler e a escrever satisfatoriamente, exercendo plenamente a
sua cidadania.
14 Coesão textual: progressão referencial

Neste capítulo, você pôde relacionar, em um primeiro momento, informa-


ções semânticas e pragmáticas à formação do significado. Em seguida, você
estudou os mecanismos de coesão textual para, finalmente, interpretar como
tais conceitos, fazendo parte da essência de um texto, podem ser aplicados a
todos os gêneros textuais.

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BANDEIRA, M. A estrela. In: BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. 3. ed.
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Coesão textual: progressão referencial 15

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