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UNIDADE I

A PRODUÇÃO ESCRITA

Considerações preliminares sobre a escrita

Gostaria de iniciar minha conversa com você sobre a escrita, a partir da fala. É muito
fácil falar. Todos nós, homens e mulheres, gostamos de falar, porém as mulheres têm uma
fama de falar mais. Não sei se é verdade, mas gosto de opinar sobre tudo: nos serviços da
casa, na educação dos filhos, na roupa do marido, na vida política do país, na educação, nos
conflitos religiosos, nas eleições dos Estados Unidos, enfim, em tudo que o meu olhar leitor
encontra. Com a escrita, é diferente, parece que nossa relação só funciona na escola.
Escrevemos como um martírio, só por obrigação. È assim também com você?
Não deveria. Fomos habituados a criar essa relação com a escrita. Escrever para
alguém corrigir. Essa visão restringe o papel da escrita. Nesse nosso curso, veremos que a fala
e a escrita são duas modalidades do sistema da língua, que hoje são vistas dentro de um
continuum que vai do nível mais informal aos mais formais. Tomamos a fala e a escrita como
atividades de interação. Nessa perspectiva, são atividades cooperativas, em que pelo menos
dois sujeitos agem conjuntamente para a interpretação de um sentido presente nelas;
contextualizadas, situadas em um espaço e em um tempo e, naturalmente, textuais, que se
materializam em textos orais ou escritos.
Vimos que a escrita é interação, isto é, escreve-se para dizer algo a alguém num
determinado momento. Se prestarmos atenção, nunca fazemos algo sem um motivo. Assim,
na nossa vida, quando falamos ou escrevemos, dizemos algo a alguém num momento, que
inclui tempo e espaço, com um propósito. Simples assim.
Para que essa nova visão de escrita chegue até você e a seus futuros alunos, esse curso
terá como objetivos gerais:
São objetivos ousados, você não concorda? E para atingi-los, conheceremos um
pouco as perspectivas de estudo sobre a escrita, suas funções, os mecanismos de textualidade
e, por fim, abordaremos a produção de gêneros textuais.
Tenho certeza de você se identificará com esta disciplina, pois sempre temos muito
o que dizer, ou melhor, escrever. Você vai ter oportunidade de expressar sua maneira de ver o
mundo na modalidade escrita. Vamos ver se no final do curso você mudou sua maneira de
conceber a escrita. É também um grande desafio. Quero lembrar-lhe um frase de Drummond
:“ A minha vontade é forte, mas a minha disposição de obedecer-lhe é fraca”. Não deixe que
sua disposição o desestimule. Sabemos que a escrita é uma pedra no meio do caminho de
muitos estudantes, porém ainda com Drummond:

Se procurar bem você acaba encontrando.


Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida.

Acreditamos que há beleza no ato de escrever. Este é o nosso convite: venha


descobrir! A escrita também possui uma poesia inexplicável.

Concepções de escrita

Pensar em escrita envolve lidar com um termo bastante polissêmico. A escrita pode
ser entendida como uma tecnologia, enquanto uma nova habilidade desenvolvida por algumas
sociedades; como uma forma gráfica, e nela entrariam todas as semioses gráficas produzidas
pelas sociedades (cf. OLSON, 2000); como uma modalidade de realização da língua (cf.
MARCUSCHI, 2001).
Diante da diversidade apontada acima, a escola “diante da escrita” se depara com
este objeto que condensa todas estas propriedades. O ponto de vista cria o objeto, essa frase
de Saussure nos mostra que, dependendo da concepção que norteia esse olhar, a escrita se
apresenta de forma diferente. A pergunta é: a partir de que concepção será tratada a escrita
no nosso curso?
Para responder a essa pergunta, precisamos entender que há diferentes e/ou
complementares formas de se abordar o fenômeno lingüístico. A concepção de escrita está
atrelada à concepção de linguagem. Vejamos cada uma delas.
A primeira concepção, a dos gregos, vê a linguagem como expressão do pensamento.
Para essa concepção, as pessoas não se expressam bem porque não pensam. A expressão se
constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. Essa teoria de
expressão repousa num dualismo entre o interno (consciência) e o externo (ato de expressão),
com primazia explícita do conteúdo interior, já que todo ato de expressão origina-se do
interior para o exterior. Essa corrente desenvolve-se num terreno idealista e espiritualista, em
que tudo que é essencial é interior, por isso coloca em destaque a função expressiva da
linguagem em detrimento da função comunicativa. Centrada no locutor, faz do indivíduo
falante o princípio e o fim da linguagem. A comunicação é um ato monológico, individual, que
não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a
enunciação acontece. Para essa concepção, o modo como o texto está constituído não
depende em nada para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, quando, para que
se fala).
Neves (2000) relata que, neste período, a atividade do gramático era julgar as obras
do passado, procurando as virtudes e os vícios e apontar aos usuários com a finalidade de
oferecer modelos. Essa concepção de gramática como descrição que permite conhecer o
padrão a ser seguido no uso da língua foi transmitida à cultura ocidental. Aqui, o ensino da
língua e da escrita deve iniciar pela apresentação da gramática, cujo domínio conduzirá à
produção escrita.

Concepção de escrita
Aprendizado da gramática

A segunda concepção, a de Saussure, no início do século XX, vê a linguagem como


instrumento de comunicação, como meio para a comunicação. Nessa concepção, a linguagem
é vista como um código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam segundo
regras, e que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um
receptor. Esse código deve, portanto, ser dominado pelos falantes para que a comunicação
possa ser efetivada. Como o uso do código, que é a língua, é um fato social, envolvendo
conseqüentemente pelo menos duas pessoas, é necessário que o código seja utilizado de
maneira semelhante, preestabelecida, convencionada para que a comunicação se efetive.

Concepção de escrita
O texto é visto como um conjunto de unidades lingüísticas através do qual se pode expressar
um pensamento. Não há um rompimento com o modelo anterior. A escrita é sempre a
mesma e o interlocutor não existe, pois quem comanda é o emissor. Três atitudes: fazer o
aluno encontrar a idéia a ser desenvolvida, trabalhar a correção da língua, e enriquecer sua
capacidade de expressão. Modelos: descrição, narração e dissertação

Nessa perspectiva, toda a situação que cerca a fala e a escrita é secundária, pois o
que está no centro é a estrutura da língua, suas formas. A língua é imanente, isto é, basta a si
mesma. Como implicações dessa visão tem-se uma escrita;

a) de um único sentido, pois o sentido está nas formas colocadas no papel;


b) solitária, é o produtor que constrói o texto sozinho;
c) como exercício meramente mecânico, em que a repetição ajuda a fixar as
formas;
d) que se apresenta sempre da mesma forma, utilizando a norma padrão;
e) que se interessa pelo produto final;
f) em que as impropriedades são erros, afastamentos do modelo ideal;

A terceira concepção proposta por Bakhtin (1995), um filósofo russo, vê a linguagem


como forma ou processo de interação. Nessa concepção, o que o indivíduo faz ao usar a língua
não é tão-somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outro,
mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor).
Naturalmente, pela linguagem, realizamos muitas ações: interagimos, influenciamos,
construímos, pensamentos etc. Por meio dela damos forma e compreensão às experiências
cotidianas, reavaliando, continuamente, os fatores externos, modificando-os, numa incessante
troca com o outro. Por isso, mais que instrumento de transmissão, o papel fundamental da
linguagem é o da constituição de sujeitos. Pela linguagem, o homem se constitui enquanto
consciência no auto-reconhecimento e pelo reconhecimento do outro, numa relação de
alteridade.

Concepção de escrita
Escrever constitui um modo de interação entre as pessoas. Quem escreve, escreve
sabendo para que e para quem. Ao escrever, o sujeito enuncia seu pensamento, com
algum propósito, para si ou para o outro.
A língua como instrumento de interação social, com propósitos comunicativos, é co-
determinada pela situação de comunicação. Em outras palavras, a língua não basta a si
mesma, precisa do contexto de produção. Por isso, o olhar da lingüística nessa perspectiva
envolve dois tipos de sistemas de regras, ambos reforçados pela convenção social:

i) as regras que governam a constituição das expressões lingüísticas (regras


semânticas, sintáticas, morfológicas e fonológicas)

ii) as regras que governam os padrões de interação verbal em que essas


expressões lingüísticas são usadas (regras pragmáticas)

Como se vê, por este ângulo, a interação verbal vai modelar a língua de uma forma
particular e profunda. Como implicações dessa visão, tem-se uma escrita:

a) de vários sentidos, pois o sentido está na interação entre autor, texto e


leitor;
b) compartilhada, produtor e leitor virtual constroem o texto;
c) como produção de sentido, efetivado pelo trabalho cognitivo baseado em
hipóteses;
d) que se apresenta de forma variada, pois vai depender da situação de
interlocução;
e) que se interessa pelo processo e não só pelo produto final;

f) em que as impropriedades são hipóteses, elementos que mostram o


percurso escolhido para a construção de sentido.

Para o nosso curso, veremos uma escrita, voltada para o uso e construída na interação.

Escrita e interação
M. Bakhtin

Essa idéia surge com Bakhtin (1929/1995), para quem a linguagem é duplamente
dialógica. Primeiro, por direcionar-se sempre para alguém e, segundo, por estabelecer um
diálogo com os outros textos. Os sujeitos constroem o conhecimento com base em suas
representações, em seus conhecimentos anteriores. Para Bakhtin (1995: p. 113):

Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto


pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para
alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do
ouvinte.[...] A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros.

Destacam-se aqui duas molas mestras no pensamento do autor. A palavra, o texto é


sempre dirigido a alguém, não se fala ao vácuo. E esse texto procede de alguém. Ganha relevo
a intertextualidade, esse fator torna-se condição prévia na produção e recepção de qualquer
tipo de texto, pois a relação entre discursos é constitutiva de cada discurso. Qualquer escrita
nasce na fonte de outras vozes.
Outro contributo foi a incorporação da situação interlocutiva.

A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam


completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a
estrutura da enunciação. (Bakhtin,1995 p 113)

Isto quer dizer que a situação deve ser considerada na hora da produção ou da
recepção de texto. Para se expressar algo na modalidade oral ou escrita, é necessário saber o
que vai ser dito, onde e para quem. Esses elementos são constitutivos do ato de expressar-se.
Nessa perspectiva, como vimos anteriormente, a escrita é uma atividade cooperativa, em que
pelo menos dois sujeitos atuam para a construção de um sentido; contextualizada, situada em
um espaço e em um tempo e, naturalmente, textual, que se concretiza em textos escritos. È
necessário acrescentar também a atividade cognitiva, pois, na escrita, lidamos com várias
tarefas mentais (ativação da memória, seleção de palavras, etc). Por tudo isso, pode-se
entender a escrita:

como um evento comunicativo no qual convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais. (Beaugrande
1997, p 10)

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