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Deep Web

A verdade possui diversas camadas


L. E. SILVA DIAS
DEEP WEB – A verdade possui diversas camadas

Copyright 2015 © by L. E. Silva Dias

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Número: 1758/2015

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Agradecimentos

Ao amigo Alex Magnum.

Que este possa ser o primeiro passo do recomeço da nossa antiga parceria.
Sumário

Aflição

Saída

Desvio

Ascensão

Queda

Purgatório

Ataque

Insight

Caos

Despertar
Capítulo Um
Aflição

O azul do céu sem nuvens fazia um belo contraste com o verde da


quadra de tênis. Beverly Hills nesta época do ano era irritantemente
perfeita. Mesmo vazio, o local parecia não possuir tamanho suficiente para
conter os meus pensamentos. Arremessei a bola novamente numa esperança
irracional de que as minhas aflições fossem embora com ela. Prontamente
Til correu para buscá-la, trazendo-a de volta para as minhas mãos, molhada
pela sua saliva - exatamente como nos velhos tempos. Sabia que não
demoraria muito para que alguém da família surgisse para o meu resgate,
podia ouvi-los ao longe, sem entender o significado da conversa. Um ruído
ambiente: era como eu lidava com as conversas típicas destes encontros
familiares. Na impossibilidade de ser bem sucedido podia sempre contar
com meu mp3 player, mesmo correndo o risco de ser repreendido pelos
meus pais. Mas este não era o caso. Por enquanto, a distância cuidava da
minha surdez momentânea.
De onde eu estava, podia ver o novo Porsche estacionado. Independente
das várias vezes em que meu pai citou o seu modelo e ano, fui incapaz de
guardar a informação. Arremessei a bola novamente: antes que ela pudesse
tocar o chão Til disparou como um foguete atrás dela. Pelo canto dos meus
olhos, podia ver a família reunida na mesa do jardim protegida pelos
grandes guarda-sóis amarelos, tio Adam estava de pé com o braço ao redor
da cintura de sua nova namorada. Como era mesmo o nome dela? Shelly?
Sharon? Com a respiração ofegante, ele entregou-me a bola babada;
permaneceu estático a me observar com a boca aberta e a língua de fora: era
como se pudesse perceber minha aflição, cada retorno seu mostrava que
arremessar uma estúpida bola de tênis não apaziguaria minha dor. Fingi
arremessar a bola: continuou a me olhar como se meu esforço para enganá-
lo nunca tivesse ocorrido.
Os almoços dominicais para celebrar qualquer nova conquista já faziam
parte da tradição familiar. Qualquer coisa servia de motivo – qualquer coisa.
Desde a conclusão da obra do terceiro piso da casa até um novo
relacionamento: sempre há um motivo para celebrar a vida, dizia tio Adam.
Da posição dele, isso parecia fácil de dizer. Do meu canto, não tinha
motivos para celebrar. Faltavam poucos dias para as aulas recomeçarem na
CSU e a dúvida continua a me consumir. O que me consolava eram as boas
amizades que cultivei durante o primeiro ano do curso. Em particular, sentia
falta de Stan e de nossas conversas – que não tinham o mesmo sabor em sua
versão online.
- Eddie, não vai querer pudim? – disse tio Adam que surgiu
sorrateiramente do nada. A farta fatia de pudim dançava suavemente sobre
o pequeno prato de sobremesa. Essa era uma das características mais
marcantes de sua personalidade: o exagero.
- Claro tio – menti -, obrigado.
Antes de pegar o prato, pude fitar o coração na altura de seu pulso:
aquela marca me trazia boas recordações. Recordações das estórias que ele
inventava para me entreter quando criança: os deuses marcaram-no por
causa do seu bom coração e era necessário que ele fosse reconhecido no
meio da multidão. Outra versão – mais moderna – dizia que um anjo tinha
tatuado o seu pulso esquerdo para que ele se lembrasse do que era mais
importante nesta vida: o amor pela sua família.
- Sente-se bem? Porque está aqui sozinho?
- Não estou sozinho, estou com Til – disse procurando dissimular. Sabia
que estava em franca desvantagem: ele me conhecia desde que nasci e, de
certa forma, talvez me conhecesse melhor do que meus pais. Tornei a
arremessar a bola na inútil expectativa de que a conversa pudesse mudar de
foco.
- Qual o problema? Alguma namorada? – perguntou ao mesmo tempo
em que sentava ao meu lado. Era inquietante fitar seus olhos azuis enquanto
me preparava para mentir, mas eu estava me tornando um perito na arte da
dissimulação. Arrisquei:
- Sim. Foi uma coisa rápida de verão – pisquei o olho direito à procura
de uma conexão emocional – Já me sinto melhor, vai passar.
- Acredite: ficar isolado não ajuda nessas horas – disse ele com o peso de
sua experiência.
Meu sentimento de culpa só se agravou ao ouvir aquilo. Sabia que ele
falava do fundo do coração e desperdiçava sua bondade com a minha falsa
tristeza.
- Vamos nos juntar aos outros – disse-me enquanto levantava.
Encurralado pelo meu próprio ardil, confirmei com um aceno de cabeça.
Sabia que tio Adam não iria mencionar o meu suposto namoro – seria como
jogar uma lata de querosene na fogueira. Restava-me apenas torcer para que
o fantasma do assunto CSU não assombrasse a mesa do almoço.
- Eddie! Onde estava se escondendo? – disse meu pai.
- Consegui resgatá-lo da quadra de tênis – emendou tio Adam – estava lá
brincando com Til.
Sentei-me debaixo de um dos grandes guarda-sóis amarelos (podia sentir
que o meu sorriso era da mesma cor). Minha mãe e Shelly (Sharon?)
conversavam a respeito de uma revista de decoração. Tio Adam mantinha o
interesse pelo assunto assinando todo tipo de revistas. Um dos seus
passatempos favoritos era repensar os cômodos de sua casa e dar trabalho
para os arquitetos. Meu pai saboreava um suco de melancia – a ausência de
pratos ao seu redor indicava que ele tinha resistido bravamente ao pudim.
Ele não se atreveria a dar vazão a sua gula, não com minha mãe por perto.
Desde a cirurgia que podia se notar uma mistura de medo e tristeza no seu
olhar. Tinha ficado mais parecido comigo desde então.
- Chegou a ver o carro? – meu pai me perguntou.
- Sim. Vi de longe.
- Tem que ir até lá ver de perto. É lindo. Eu te falei que é um Cayman S?
Para a minha sorte nossa conversa foi interrompida pelo som do alarme.
Aquilo já tinha ocorrido tantas vezes que suspeitava que no dia em que ele
soasse por algum motivo verdadeiro ninguém acreditaria. Tio Adam já tinha
gasto uma fortuna na constante mudança de marcas e modelos sem obter
êxito: inexplicavelmente um rotweiler tinha o poder de acionar o sistema da
porta de entrada da mansão que servia para detectar metais. Outra fortuna
tinha sido gasta com o inútil adestramento de Til, parecia que nada o
convencia a permanecer o tempo todo do lado de fora – eventualmente ele
ousava ultrapassar os limites impostos.
- Til! Faz três semanas que isso não acontece – disse Tio Adam irritado
com o controle remoto do alarme nas mãos -, pensei que tinha terminado.
Aproveitei a confusão para levantar da mesa e sair à procura de Til:
queria encontrá-lo para agradecer por conseguir me tirar dali. Corri para
dentro da mansão aparentando preocupação. O alarme cessou assim que
adentrei, apenas para aumentar o impacto: por mais que soubesse da
existência da enorme foto de Glenda e Nathan na sala, eu levava um chute
no estomago toda vez que a encarava. Passaram-se dois anos: o planeta deu
a volta em torno do sol duas vezes, mas a dor continuava viva.
Til permanecia invisível como um chihuahua (talvez um chihuahua fosse
mais fácil de encontrar). Preparava-me para subir a escada para o segundo
piso quando Tio Adam passou por mim.
- Safado! Eu sei onde ele gosta de ficar. Quer ver? Venha comigo – disse
com um sorriso malicioso. Seu rosto emanava uma mistura de fascínio e
irritação. Disparou pela escada em direção ao terceiro piso, eu corria logo
atrás para não perder um segundo sequer, entrou no escritório onde ficava a
central de câmeras do circuito interno de TV da mansão. Lá estava ele
sentado, como um fiel espectador na poltrona do cinema.
- Veio assistir um pouco de TV, não é Til? Não sei qual o interesse dele
nas imagens do circuito interno. Um dos adestradores me disse para criar
uma forma de punição quando isso acontecesse, chegou até a sugerir um
pequeno chicote para isso.
A expressão de surpresa no meu rosto deve ter funcionado como
legendas num filme.
- Não! Eu não seria capaz de machucar Til – disse acariciando a cabeça
dele que retribuía lambendo-lhe as mãos –, já passamos por muitas coisas
juntos, não é verdade rapaz? Depois desta dica, dispensei o adestrador e
joguei fora seu cartão.
Apontou com o dedo a direção da escada fazendo com que ele
obedecesse prontamente.
- Troquei recentemente o sistema – sentou-se na enorme cadeira de
diretor -, é de uma empresa alemã: Brickstein Software. Na verdade, o erro
é meu: esqueço-me de desligar o alarme durante estes convívios familiares.
Este software é tão específico que consegue detectar apenas armas através
de um scanner 3D. Desisti de tentar entender porque ele o ativa, ninguém
sabe explicar. – disse ao abrir o notebook e inicializar o sistema
operacional -, eu já te mostrei a nova versão do site? – perguntou mudando
o rumo da conversa bruscamente.
- Não – disse aparentando curiosidade – já está online?
- Ainda não. Vou te mostrar o site na área de pré-produção.
Com o entusiasmo de uma criança com um novo brinquedo após o natal,
tio Adam mostrava as novas funcionalidades da sua mais famosa criação: a
rede social kissesandhugs.com. Em apenas um ano e meio tinha
conquistado quinhentos milhões de assinantes: era um verdadeiro sucesso.
Percebi minha mente divagar enquanto ele se vangloriava do tempo gasto
em reuniões para definição do padrão dos novos ícones. Fisgava uma
palavra ou duas dos sons que saíam de sua boca – o suficiente para
acompanhar a linha de raciocínio geral. Seus olhos brilhavam ao explicar os
benefícios da versão 3.4.1 da linguagem Python; eu continuava a esconder o
meu desinteresse concordando com tudo que dizia, às vezes abanava a
cabeça e de vez em quando sorria: era o que bastava para mantê-lo
convencido do meu interesse. Momentos como este funcionavam como um
gatilho para sentimentos de culpa. Uma estranha ressonância invadiu-me
enquanto li o slogan do site: “para além do simples gostar”. A frase que
tinha sido concebida como um desafio explícito ao facebook ecoava de
modo diferente no meu ser: dar o passo além do gostar significava estar
apaixonado. Paixão. Onde estava a minha? Longe dali.
Antes de voltarmos para o jardim, tio Adam parou diante da enorme foto
da sala e lembrou-se que precisava falar com meu pai a respeito de um
evento beneficente patrocinado pela G&N Foundation na próxima semana.
Desta vez era algo relacionado com as vítimas da amiotrofia muscular
espinhal. Parecia que seu coração tinha sempre tamanho para acomodar
algo mais, uma forma de partilhar a prosperidade que tinha surgido em sua
vida. A fundação também cumpria o papel de manter viva a memória de tia
Glenda e Nathan. Meus pais seguiam coordenando as atividades, fingindo
que aquilo não tinha se tornado um bote salva vidas no meio do naufrágio.
Reminiscências. Era o que restava daquele período: apenas reminiscências.
Consegui ouvir tio Adam chamar a namorada pelo nome: Sharon.
Bastava criar uma associação para que aquela informação ficasse gravada
de forma permanente: Sharon Carter a namorada do Capitão América.
Pronto, tio Adam era o Capitão América – o protótipo do sonho americano:
bem sucedido através do seu próprio trabalho. Sua marca de nascença era o
seu escudo. Melhor impossível.
O cair do final da tarde fazia minha aflição aumentar. A sensação foi
apaziguada por uma mensagem de Stan: ele estava de volta das férias em
Miami. Era estranho perceber como pequenos alívios podiam se tornar um
grande prazer. Podiam ser tão pequenos como a mensagem:
- Estou na área Sr. Coburn.
Capítulo 2
Saída

Lá fora, o sol tinha acabado de nascer e minha ansiedade me impedia de


apreciar o início de mais um dia. Aguardava na cama pela chegada do meu
pai: mais preciso do que um relógio atômico. Irritante. Encontrava consolo
no fato de que podia ser pior: eu podia estar dormindo de verdade. Era o
primeiro dia de aula do segundo ano do curso e eu já me sentia assim.
- Bom dia alegria! – disse num tom de voz acima do normal ao entrar no
meu quarto. A frase que me trazia boas recordações da infância não
funcionava no contexto atual. Relevava meus sentimentos (eu sempre o
fazia) e retribuía o sorriso. Não existia hipótese de ser diferente: não depois
de tudo que a família tinha passado. No fundo, eu sabia que não tinha nada
para reclamar.
Preparava-me psicologicamente para o café da manhã. Na maioria das
vezes acabava em pequenas discussões entre meus pais. Onde, para a minha
sorte, eu permanecia invisível. Imaginar que hoje seria diferente era pura
ingenuidade.
- Stephanie, está fazendo tempestade em copo d’água! – disse meu pai.
- Não se trata disso. Seu irmão tem idade suficiente para ser pai dela! Por
pouco ela não seria candidata ideal para namorar Eddie – disse antes de dar
um longo gole no copo de suco de laranja.
- Está exagerando Stephanie. Deixe meu irmão ser feliz. Eddie! Está
animado com o retorno das aulas? – disse mudando bruscamente o alvo da
conversa para a minha pessoa. Desprevenido, engasguei com o pedaço de
melão que tinha acabado de colocar na boca. Sabia que ele fazia isso como
manobra para desviar a conversa do assunto que minha mãe insistia em
abordar. Era o verdadeiro fio da navalha: caso aceitasse o seu convite,
deixaria minha mãe frustrada, caso contrário ele ficaria frustrado. Deixei
que o pedaço de melão fizesse o seu trabalho: levantei da mesa indicando
que precisava ir para o banheiro enquanto tossia exageradamente – mantive
minha mão direita com o polegar para cima indicando a resposta para sua
pergunta. Consegui ver a satisfação se desfazer em seu rosto antes que
minha mãe retornasse ao tópico da conversa anterior.
No banheiro deparei com meu reflexo no espelho me encarando como se
dissesse: quem você pensa que está enganando? Acha mesmo que é
competente o suficiente para arcar com o tamanho das responsabilidades
que te aguardam? Fitava o meu corpo franzino e os cabelos ruivos
espetados: nada parecia ajudar a minha autoconfiança.
Saí de casa com Susie – minha companheira inseparável – em direção ao
calvário da CSU. Como sempre, enfrentaria a minha via-crúcis em grande
estilo: coloquei o fone esquerdo do meu celular antes do capacete. Ajustei o
volume para o nível imediatamente inferior ao que pudesse explodir os
meus tímpanos. Quando os primeiros acordes de Lies do Electric Mary
começaram a soar nós (eu e Susie) já estávamos em movimento.
Ao atravessar a Lindley Avenue o prédio da CSU permanecia atrás das
árvores, como um feroz animal pré-histórico pronto para atacar. Embora
ainda não visível, sua presença já me causava arrepios. Ele podia me farejar,
preparando-se para me engolir. Invejei o homem que se preparava para
recolher as folhas das árvores: ele era ignorado pelo feroz animal.
Deixei Susie no estacionamento. O contraste com os carros dos outros
alunos trouxe de volta os ecos da proposta de tio Adam: uma Harley
Davidson nova em folha. Convencê-lo da minha fidelidade a Susie – fruto
de uma relação de longa data – foi bem difícil. Tio Adam é um homem que
não aceita argumentos fracos.
Fui engolido ao atravessar o portão principal (senti calafrios na espinha)
na direção da secretaria, precisava descobrir a sala da primeira aula. Nada
melhor do que começar o ano letivo com uma aula de Java e orientação a
objetos. Uma simpática senhora de cabelos lisos claros e óculos fez o favor
de me indicar o mural onde os nomes dos alunos e respectivas salas
estavam indicadas; doce ironia: um curso de ciência da computação com
sua informação ainda impressa em papel. Decidi considerar o sorriso da
atendente como um sinal de boa sorte, quem sabe meu humor não mudava?
Subi as escadas para o segundo piso entre acenos e movimentos de
sobrancelhas. Eventualmente esbarrava em alguma pessoa que perguntava
como tinham sido minhas férias – o velho protocolo de comunicação -, eu
seguia respondendo (devolvendo): tudo ótimo e você? A expectativa de que
eu tivesse algo fora do normal para contar borbulhava diante dos meus
olhos. Encontrei refúgio na sala 212 onde alguns rostos conhecidos
insistiam em fazer contato, para minha sorte Stan era um deles.
- Senhor Coburn! Sente-se aqui! – disse indicando a cadeira ao seu lado.
- Quantas vezes tenho que pedir para não me chamar pelo sobrenome?
- Pelo menos mais um milhão de vezes – disse antes de tomar um gole
da lata de Red Bull e abocanhar um pedaço do donut -, é melhor ir se
acostumando com este tipo de tratamento, parece estar no seu destino. Só
estou te ajudando.
- Vamos ver – disse procurando inutilmente dissimular minha
preocupação. Stan conhecia minhas aflições melhor do que ninguém.
- Aqui estamos novamente: mais seis meses de tortura – disse passando o
cabo do mouse em volta do pescoço fingindo estar sendo enforcado -,
espero apenas que Sr. Greenwich não seja nosso professor, ele devia estar
aposentado morando na Flórida. Toda vez que via uma cabeça com cabelos
brancos pilotando um Cadillac DeVille eu me lembrava dele.
- Bom dia – disse Sr. Greenwich ao entrar na sala.
Imediatamente Stan deitou a cabeça no teclado do notebook dizendo:
- Mate-me, por favor, Sr.Coburn. Use o machado, basta um golpe na
altura do pescoço para acabar com meu sofrimento.
- Vamos começar. Espero que todos tenham começado a ler a cópia do
excelente livro Thinking in Java durante as férias. Vamos direto para a
página sessenta e um onde o autor diz que em Java nós manipulamos
objetos com referências.
- Por favor, alguém mostre a escala musical para este homem – disse
mostrando o afinador digital na tela de seu notebook, o ponteiro não saía da
de um fá sustenido – Ele precisa saber que existem outras notas musicais.
O humor ácido de Stan era um oásis no meio do deserto. O deserto se
configurava diante dos nossos olhos: era a voz monotônica do Sr.
Greenwich pelos próximos seis meses. Enquanto ele falava eu realizava o
download da nova versão do Eclipse IDE – tinha protelado a instalação o
máximo possível, agora estava encurralado -, eram necessários dez minutos
para que os 254MB estivessem disponíveis. Abri o bloco de notas para o
caso ele começasse a disparar exemplos neste meio tempo através de sua
metralhadora monotônica.
A tabela com os tipos primitivos da linguagem permanecia projetada na
tela diante de todos: boolean, char, byte, short, int, long, float, double –
bastou esta palavra mágica para que impulsivamente eu abrisse a janela do
navegador e digitasse: Rickenbacker 4080 Double Neck. Meu sonho de
consumo estava ali na tela, Era exatamente o tipo de incentivo que eu
precisava no meio daquele concerto de uma nota só para monocórdio.
- Sr. Edgar Coburn pode responder? – ele perguntou.
Senti um cubo de gelo percorrer minha espinha.
- Desculpe Sr. Greenwich, eu não estava prestando atenção. Qual foi
mesmo a pergunta?
- Eu repito – disse com um sorriso sarcástico -, é necessário
explicitamente destruir os objetos criados em Java?
Isso era o que o Sr. Greenwich sabia fazer melhor: pegar desprevenido
quem não estava prestando atenção a sua aula. A esta altura minhas orelhas
já deviam estar vermelhas como tomates. Senti meu coração na boca
quando os olhares voltaram-se para mim - como dezenas de mira lasers de
soldados famintos por humilhação.
- Eu não faço ideia, Sr. Greenwich.
- Muito bem - disse antes de anotar alguma coisa em seu tablet – Sr.
Alexei Rostov, pode responder?
Ainda sentindo o meu rosto quente, agradeci pela mudança de foco. O
pobre Alexei era a bola da vez. A ausência de resposta fez com que todos
olhassem para o fundo da sala – lugar preferido do anárquico russo que veio
desbravar a América. Esperava que ele se saísse melhor do que eu,
comprovando sua fama de habilidoso hacker.
- Sr. Rostov? – disse em tom alto Sr. Greenwich.
Alexei permanecia dormindo. Era do conhecimento de todos que o russo
era um festeiro de primeira linha. Seu braço direito, repleto de tatuagens,
pendia imóvel para fora de sua mesa. Era fácil imaginar como tinha sido a
noite anterior de despedida das férias: recheada com vodka, marijuana e
prostitutas.
– Alguém pode me fazer o favor de acordá-lo?
Jane, sentada ao lado de Alexei, assumiu a responsabilidade e cutucou
seu ombro enquanto o chamava pelo nome. Após muita insistência ele
acordou resmungando alguma coisa em russo (para a sorte de Jane).
- Então Sr. Rostov? Pode responder a minha pergunta?
- Posso. Qual era mesmo?
- É necessário explicitamente destruir os objetos criados em Java?
- Não – soltou um bocejo -, Java trabalha com o coletor de lixo.
- Muito bem - disse e tornou a anotar alguma coisa em seu tablet -, muito
obrigado pela participação Sr. Rostov.
- Mas a ação do coletor de lixo resulta numa queda de performance das
aplicações que trabalham com múltiplos threads – continuou Alexei –, isso
para não falar na fragmentação da memória.
- Grato pela informação – pigarreou -, mas ainda não chegamos neste
ponto – interrompeu Sr. Greenwich voltando a falar nas vantagens do
coletor de lixo. Imediatamente Stan enviou uma mensagem para a minha
tela que dizia:
- A velha raposa deve compensar a falta de sexo pegando todos
desprevenidos aqui, deve ser por isso que não se aposenta! Mas ele não
contava com o nosso russo louco. Aha!
Durante o horário de almoço no refeitório, Stan fez questão de sentar
junto com Alexei, queria parabenizá-lo pelo constrangimento causado.
Aceitei o convite relutante: o russo me causava arrepios; apesar de perceber
que minha opinião tinha sido formada mais pelo que os outros falavam a
respeito dele do que por experiência própria. Talvez tivéssemos conversado
duas ou três vezes durante ano letivo anterior: uma delas foi durante um
trabalho em grupo onde ele me deu uma excelente explicação sobre o
funcionamento de ponteiros na linguagem C++; daquele momento em
diante, não tive mais dúvidas a respeito do assunto. Como de costume, ele
sentava nas mesas ao fundo do refeitório cercado por um pequeno e seleto
grupo de adoradores que o veneravam por suas habilidades como hacker.
Stan conhecia as minhas reservas e por isso fez questão de me tranquilizar:
- Não se preocupe. O quadro horrível que pintam a respeito dele é um
bocado exagerado.
Notei a expressão em seu rosto se alterar quando nos aproximamos de
sua mesa - não conseguia identificar claramente o que significava; esse era
um dos motivos do meu incômodo.
- Grande Alexei! Detonou o Sr. Greenwich – disse Stan enquanto
apertavam as mãos, ele fez sinal com a cabeça para que sentássemos
enquanto algo como um esboço de um sorriso se manifestava em seu rosto.
- Não foi a minha intenção – respondeu Alexei -, tinha tanto sono que
não me lembro do que falei.
- Noite agitada ontem? Despedida das férias? – perguntou Stan sorrindo.
- Na verdade não. Quase não dormi ontem porque estive entretido na
Deep Web. Aquilo é viciante – disse antes de esfregar o rosto com as mãos.
Pude ler a frase “In chaos we trust” tatuada no seu antebraço direito.
- Deep Web? – perguntou Stan – eu li alguma coisa a respeito. Não se
trata de um site que não consta nas ferramentas de pesquisa?
Eu não tinha a menor ideia do que eles estavam falando. A primeira
coisa que me ocorreu foi que poderia ser uma espécie de game ilícito:
esperava sempre pelo pior quando o assunto era Alexei.
- Não. É muito mais que isso. É uma rede formada por cerca de 300.000
sites. Sim, é verdade que eles não constam nas ferramentas de busca. Para
isso utilizam um complicado mecanismo de ocultação que utiliza a
constante alteração dos endereços IPs.
- Que tipo de informação existe lá? – arrisquei a pergunta.
- O tipo de informação que rapazes como vocês não podem ver – disse
com um sorriso estampado no rosto; eu começava a entender as expressões
dele e não gostava do que via - Pedofilia, vídeos snuffs, pornografia
grotesca, canibalismo, bonecas sexuais e outras coisas do gênero. Nada para
corações fracos – tornou a sorrir -, particularmente eu não me interesso por
nada disso que fica na primeira camada.
- Primeira camada? – perguntou Stan.
- Muitos ouviram falar que a Deep Web é composta por camadas, mas
são poucos que conseguem se aprofundar. A maioria se contenta com a
primeira camada, onde encontram todo este lixo e podem ir correndo contar
para os amigos. Existem, pelo menos, cinco camadas.
- O que mais há para ver? – estava me tornando ousado com o russo.
Fitou-nos da cabeça aos pés, fez silêncio por alguns segundos (que
pareceram uma eternidade) e em seguida se aproximou inclinando a cabeça
como se fosse passar a senha de sua conta no banco, eu e Stan
acompanhamos o movimento como um balé sincronizado.
- Na última camada, chamada Mariana, existe um fórum onde uma seita
satânica chamada Devil’s Friends se reúne. Tenho tentado invadi-lo, mas a
segurança é demasiada complexa. Quem entra no fórum, participa de
desafios para passar de nível. Existem 66 níveis. Os desafios são baseados
em rituais que devem ser gravados em vídeo e postados no fórum. Pelo que
sei o desafio mais básico para passar para o nível dois é o de matar uma
galinha preta e beber seu sangue.
Olhei para a cara de Stan que permanecia como que hipnotizado.
- Conhecem a estória do criador do game Sloppy Chickadee? – Alexei
perguntou.
Stan confirmou com a cabeça, mas eu disse que desconhecia o assunto,
notei algo como frustração em seu rosto (mas podia ser desprezo), Stan fez
um gesto de reprovação na minha direção antes de Alexei retomar o
assunto.
– Pois bem, o autor do game saiu do anonimato para o sucesso em
apenas seis meses! Dizem as más línguas que ele faz parte desta seita e
cumpriu alguns rituais para conseguir fama e sucesso. Caso não saibam –
disse olhando para mim – o jogo está disponível em todas as plataformas e
continua a vender muito bem. Se isso for verdade, toda a informação deve
estar disponível neste fórum.
- E caso consiga acessá-la o que irá fazer com isso? – estava me sentindo
cada vez mais corajoso diante dele.
- Nada. Meu único interesse é descobrir quem são os outros
empreendedores que fazem parte deste fórum macabro e comprar ações de
suas empresas antes que eles façam sucesso. Vocês conseguem imaginar
qual seria o lucro obtido só no caso do Sloppy Chickadee?
Sem dizer nada, Stan permanecia com a boca aberta. Começava a achar
estranho que ele partilhasse este tipo de informação conosco. Os parabéns
de Stan pela humilhação do Sr. Greenwich valiam tanto assim?
- Mas espere – disse Stan saindo de seu transe -, quer dizer que acha que
esta coisa toda de magia negra funciona mesmo?
- O desenvolvedor do Sloopy publicou mês passado no seu perfil no
Twitter que o jogo não ganharia novas versões. Junto com esta notícia ele
acrescentou: “Eu não aguento mais”. Se o que dizem for verdade, ele deve
ter esbarrado em algum limite moral nos rituais propostos pelos
administradores do fórum que fez o estômago dele embrulhar.
Enquanto o queixo de Stan quase tocava o tampo da mesa do refeitório,
eu permanecia sem saber o que dizer a respeito de toda aquela estória
maluca.
- Respondendo sua pergunta: não me interesso em saber se isso funciona
ou não, basta que funcione para eles. Sou inteligente o suficiente para
perceber que pelo nível de segurança que existe no fórum eles não devem
estar brincando. São profissionais. Aliás, tenho uma proposta para vocês:
preciso de ajuda nisso, a minha equipe não é suficiente – olhou para os três
discípulos que permaneciam calados durante toda a nossa conversa -,
preciso de mais duas pessoas que possam ajudar no mascaramento dos IPs,
basta que vocês instalem um software de acesso remoto em seus notebooks
que eu cuido do resto. Vocês podem se beneficiar da informação do mesmo
jeito que eu.
- Não obrigado – respondi ao mesmo tempo em que Stan disse:
- Claro! Quando começamos?
- Aqui estamos diante de uma divergência – disse em tom sarcástico -, se
quiserem podem me responder no final do dia, mas adianto que preciso de
duas pessoas. O meu algoritmo para quebrar a segurança depende de pelo
menos cinco máquinas com IPs diferentes funcionando como um cluster.
Resolvam suas diferenças e me digam alguma coisa depois.
O horário da próxima aula se aproximava, Stan abriu outra lata de Red
Bull enquanto caminhávamos de volta para a sala, ele sempre apelava para
os energéticos quando precisava pensar. Sabia que ele iria insistir para que
eu aceitasse fazer parte daquele insano projeto. Deixar Alexei Rostov
instalar um software de acesso remoto no meu notebook? Eu deveria estar
louco para concordar com isso.
- Eddie, vamos participar. Não consigo acreditar que não tenha ficado
curioso. Faça isso pelo menos pela curiosidade!
- Desista Stan. Não vou me envolver com as loucuras do anarquista
russo. Acho melhor procurar outra pessoa.
- Outra pessoa? Sabe que não confio em mais ninguém neste grupo.
Quando queria, Stan conseguia ser um ótimo manipulador: aquele era
mais um de seus momentos históricos.
- Eu não sei Stan, eu realmente não sei. Fiz uma busca agora sobre a
Deep Web no meu celular e aqui diz que o FBI monitora parte do acesso a
esta rede. Imagine no que vamos nos meter.
- Acha que Alexei não pensou nisto? Ele tem experiência. Caso contrário
já estaria preso, concorda?
Sem dizer que sim ou que não, sentamos a espera da próxima aula. As
sinapses de Stan pareciam estar em pleno carnaval por causa da cafeína de
sua bebida misturada com o excesso de açúcar dos donuts. Ele insistia para
que eu fizesse parte do plano vermelho. Pela primeira vez agradeci quando
o professor entrou na sala e começou a aula apaziguando a sua verborragia.
Durante o decorrer da aula de Banco de Dados Distribuídos, pensei na
arquitetura da aplicação que Alexei deveria utilizar para quebrar a
segurança do site. Movido pela curiosidade, pesquisei na internet como
funcionava um cluster - através de um sistema operacional distribuído,
vários computadores podiam funcionar como se fossem uma única
máquina. Enquanto isso Stan insistia em enviar mensagens para o meu
notebook:
- Vamos lá Eddie! Prometo nunca mais chamá-lo de Sr. Coburn depois
disto.
Lá estava o manipulador novamente: a tentação de sua proposta me fez
ponderar por um segundo, mas minha sanidade – como sempre - acabou por
falar mais alto:
- Desista! – respondi.
Passei o resto da aula com a minha atenção oscilando entre a arquitetura
de banco de dados distribuídos, deep web e os acordes da música Little
Monster do Royal Blood, escrevi o que eu acreditava ser a introdução no
MuseScore. Aquilo era um fá seguido por um dó? Não tinha certeza. Stan
parecia ter se convencido da minha posição. As poucas vezes em que nos
encaramos ele fez questão de fazer caretas demonstrando sua indignação,
mas não me chateava com as mensagens. Pouco antes do término da aula
arrisquei um olhar para o fundo da sala: Alexei apontou o dedo para mim ao
mesmo tempo em que piscou o olho – uma autêntica piada russa sobre um
clichê americano.
Eu e Susie voltamos para casa ao som do Static X (trilha sonora perfeita
para um dia incomum).
Em casa, aproveitei a ausência dos meus pais para verificar minhas
anotações do MuseScore. Há quanto tempo não ligava os amplificadores?
Eu sabia a resposta: três semanas. Senti prazer ao introduzir o plug (também
consegui claramente imaginar Stan fazendo uma piada de caráter sexual a
respeito disso). Confirmei minhas suspeitas a respeito do que tinha anotado.
Aumentei o volume. Subitamente aquele espaço não era mais o meu quarto,
fui transportado pelo som da minha própria execução para o palco do
Wiltern Theatre onde uma multidão imaginária dançava ao meu som. Eu
falava (muito além das palavras) através do meu baixo. A multidão ouvia.
Concordava.
- Edgard! – gritou meu pai fazendo minhas pálpebras saltarem
freneticamente – Não está ouvindo eu te chamar? Seu tio quer falar com
você. Ele disse que tentou o celular, mas só cai na caixa postal.
Ira: era o que eu via estampado no rosto do meu pai sempre que qualquer
coisa relativa ao meu tio não fosse tratada com urgência. Desde que ele
havia se recuperado da cirurgia que sua submissão me enojava. Ele devia a
vida ao irmão, não dava para ser diferente. Não para ele. Engoli minha
repulsa para não me tornar o pivô de uma nova crise que o levasse para o
hospital. A voz do médico insistia em ecoar na minha mente:
- A última coisa que o Sr. Jerry Coburn precisa é de estresse. Convém
que a família dê o suporte necessário neste momento delicado de sua
recuperação – disse ele olhando para a minha mãe que se encontrava
abraçada com tio Adam chorando. A impressão daquele dia permanece
tatuada em minha mente: lembro-me da cena como se fosse ontem.
- Sim pai – respondi desligando o amplificador. - Vou retornar a ligação
imediatamente.
Ele esperou até que eu colocasse o meu contrabaixo de lado e pegasse no
celular para que pudesse sair do quarto. Retive o meu impulso de
arremessar meu corpo na direção da porta e fechá-la violentamente (sim, ele
a deixou aberta para escutar a conversa). Diante da impossibilidade de
manifestar minhas indignações no mundo real, voltei minha atenção para o
celular. Bastaram apenas dois toques para que meu tio atendesse:
- Olá Eddie! Tudo bem?
- Tudo tio Adam. Claro que sim – menti descaradamente. Nada pode
estar bem! Afinal você e meu pai me fizeram cair das nuvens quando me
tiraram bruscamente do Wiltern Theatre onde a multidão me aplaudia. Eu
era um deus do rock!
- Olha, queria que soubesse que fiquei muito feliz com seu interesse
demonstrado pelas novas modificações no site kissesandhugs.com no outro
dia.
- Sim tio. O site está excelente – menti novamente. Nem me lembrava do
que ele tinha me mostrado.
- Por causa disso, pensei em convidá-lo para participar de uma reunião
de projeto amanhã. Seria bom que você começasse a se aprofundar mais no
assunto. O que me diz?
Três socos no estômago: eu? Amanhã? Reunião de projetos?
Nocauteado, lutava por uma pronta resposta para a minha defesa. Negar a
presença estava fora de questão. Só me restava conferir o horário e rezar
para que eu tivesse uma aula ao mesmo tempo.
- Qual o horário?
- Às 15h. Tudo bem?
A aula de Arquitetura de Sistemas Operacionais: era o golpe fatal que
me restava.
- Caso tenha aula no mesmo horário posso providenciar um documento
da empresa atestando que você participou da reunião.
Cinco, quatro, três - podia ouvir o juiz realizando a contagem – dois, um.
Tio Adam tinha sido mais rápido. Beijei a lona.
- Ok tio, sendo assim te encontro às três horas.
Desliguei o celular com uma certeza clara em minha mente: aquilo era
apenas o começo do meu atoleiro. Sentia minhas pernas se debatendo,
perdidas na areia movediça. Como uma represa prestes a explodir, senti
minha garganta apertada junto com uma enorme vontade de chorar. Dor.
Pontiaguda. Lancinante. Meu contrabaixo me olhava da cama e sentia pena
de mim.
A vibração do celular me puxou para fora do denso torpor deprimente.
Era Stan:
- Última tentativa Sr. Coburn: mudou de ideia quanto ao plano soviético?
Enxuguei as lágrimas com a correia do baixo e vi minha resistência
desaparecer diante do “Sr. Coburn” da mensagem. Era tão óbvio que eu não
conseguia enxergar: aquela poderia ser a minha grande chance de sair da
sombra da minha família e vencer sozinho. Seria possível que a resposta
para as minhas aflições estivessem nas mãos de um louco hacker russo? Até
o início do dia eu nunca tinha ouvido falar na Deep Web, clusters ou no
Sloopy Chickadee e me preparava para tomar uma decisão puramente
baseada no meu estado emocional:
- Ok, eu estou dentro! – respondi.
Capítulo 3
Desvio

As primeiras horas da manhã passaram e eu não tinha ideia de como


tinha chegado até ali, apenas quando Stan começou a tagarelar sobre os
detalhes do plano de Alexei que consegui sair do piloto automático. Meu
corpo ainda apresentava sinais da raiva contida da noite anterior: minha
pálpebra esquerda não parava de tremer. Como um zumbi, cujo único
pensamento é o de se alimentar de cérebros, minha mente estava agarrada
na reunião da tarde. Como pude ser tão estúpido em demonstrar interesse
pelo site? Imaginava que este dia chegaria, mas não tão rápido.
Definitivamente era rápido demais. Eu e minha ingenuidade! Achei que
coisa semelhante fosse ocorrer apenas quando me graduasse. Até lá bastava
frequentar as aulas e tirar notas regulares para que todos ficassem felizes
enquanto eu ganhava algum tempo. Tempo para que algo de extraordinário
acontecesse e tudo mudasse. Quanta ingenuidade.
- Eddie! Alexei vai nos enviar o programa de acesso remoto. Ele vai
realizar um teste logo em seguida. Vamos lá Sr. Coburn! Instala isso aí.
Mesmo de longe, seu bafo denunciava o consumo matutino de Red Bull.
Olhei para a caixa de entrada do meu correio eletrônico sem encontrar nada
de especial. Antes que pudesse questionar, Stan disparou:
- Na área de trabalho! Na área de trabalho!
Lá estava ela novamente: a ingenuidade. Claro que Alexei não iria
perder uma oportunidade de demonstrar seus dons enviando-me o programa
por email. Tive vontade de virar para trás e perguntar em voz alta por que
ele mesmo não instalava, mas percebi que seria apenas um resquício da
raiva da noite anterior. O programa – com seus irritantes 16KB de tamanho
– chamava-se arostov-111283.exe e possuía o ícone de uma caveira com
dois ossos cruzados. Um bocado idiota e, sem sombra de dúvida,
desprovido de imaginação. Eu escolheria um coelho ou uma joaninha, para
não levantar suspeitas. Durante um segundo ponderei sobre o que eu estava
prestes a fazer: instalar um programa de acesso remoto enviado por Alexei
Rostov, o russo louco que pretende fazer fortuna espionando a Deep Web.
Qual era mesmo o meu interesse nisso? Ah! Abocanhar uma fatia do bolo e
ficar milionário, me livrando - de uma vez por todas – destas
responsabilidades que caíram no meu colo sem que eu pedisse. Sim, era
exatamente isso que eu ia fazer. Executei o programa como administrador e
nada aconteceu.
- O que deveria acontecer Stan? – sussurrei enquanto o professor seguia
demonstrando o algoritmo de busca binária no quadro.
- Não tenho certeza, posso perguntar...
Uma janela terminal surgiu em nossa tela simultaneamente
interrompendo seu discurso. Nela Alexei dizia:
- Tudo certo rapaziada! Amanhã, por volta das vinte e três horas,
realizamos nossa primeira incursão. Todos de acordo?
Olhei para Stan e digitamos ao mesmo tempo:
- OK.
Pronto. Estava feito. Agora só me restava retornar ao estado zumbi:
cérebros, mais cérebros - contar os minutos até a famigerada reunião na
Kisses and Hugs. Não tinha coragem de contar para Stan, ele iria me
infernizar até o limite, e meu olho ainda tremia.
Esforcei-me para prestar atenção nos últimos momentos da aula: inútil.
Era necessário muito mais do que vários algoritmos de busca para me tirar
do estado obsessivo em que me encontrava. Tentava enumerar motivos para
faltar, mas o sentimento de culpa se agigantava cada vez pensava no
assunto. Conseguia imaginar a irritação do meu pai caso descobrisse que eu
não compareci. O pobre coitado já tinha passado por um inferno pessoal,
não merecia mais aborrecimentos.
Fim da aula, hora de partir. Antes que pudesse colocar a culpa sobre a
minha ausência durante a tarde numa consulta médica, Stan me convidou
para que estivéssemos juntos em sua casa durante a primeira incursão.
Gostei da ideia de imediato, uma vez que privacidade não era o forte onde
eu moro. Sempre senti uma ponta de inveja do espaço no subsolo onde ele
mantinha uma cama, uma pequena geladeira (carregada de donuts e Red
Bulls, é claro) e todo seu equipamento de informática. Era um local
sagrado. Um verdadeiro bunker.
Assim que me pus a caminhar em direção ao estacionamento, pude ouvir
Stan gritar pelas minhas costas:
- Dê lembranças minhas ao seu proctologista!
Levantei meu dedo médio em resposta sem olhar para trás.
Desolado, parti com Susie para a Lincoln Boulevard número 5511. Pelos
meus cálculos, demoraria cerca de meia hora para chegar lá. Embora nunca
tivesse visitado as instalações da Kisses and Hugs, tinha a impressão de já a
conhecer. Talvez de tanto ouvir meus pais e meu tio conversarem a respeito
durante os almoços dominicais. Sentia meu olho ainda tremer dentro do
capacete; enquanto isso minha mente caçava um culpado por aquela
situação. Tudo apontava para uma única direção: Til. Se aquele cão insano
não tivesse disparado o alarme no domingo, eu não teria acabado no
escritório com tio Adam para apreciar as novas modificações do site.
Uma pontada: meu estômago entrou em revolução ao me aproximar do
prédio de quatro andares. Se não fosse pela placa com a logomarca da Kiss
and Hugs passaria despercebido como um prédio residencial. A marca fazia
toda a diferença – eu podia sentir nas minhas entranhas.
Segui com Susie para o estacionamento. Um senhor uniformizado me
pediu uma identificação. Percebi que minhas mãos estavam geladas ao
procurar minha carteira no bolso da calça – seria a primeira pessoa a
descobrir quem eu era: um Coburn. Sua indiferença ao me devolver o
documento indicava que ele não devia conhecer o nome de seu patrão.
Permaneci incógnito até ali.
Ao entrar no elevador senti meu batimento cardíaco no ritmo de
tambores africanos. No quarto andar a porta abriu: o rosto redondo de uma
bela moça de longos cabelos pretos cacheados atrás do balcão da recepção
apaziguou a minha ansiedade. Ela era linda. Seu crachá denunciava o seu
nome: Susan.
- Bom dia, em que possa ajudar?
- Meu nome é Edgard. Edgard Coburn – quase engasguei ao dizer o
sobrenome –, eu estou aqui para uma reunião.
- Oh! Você é o Edgard! – abriu um sorriso capaz de iluminar o mais
escuro dos dias de inverno – Eles estão na sala de reuniões no final do
corredor. Seja bem-vindo.
Com imenso pesar, parti da recepção para a tal sala. Perseguido por uma
série de miras lasers: atravessei o corredor de cabeça baixa. Eu era o alvo –
meu estômago insistia em fazer barulho -, por de trás das baias surgiam
olhares questionadores, alguns ao telefone (talvez recebendo uma ligação
da recepcionista, avisando que o sobrinho do homem estava na empresa). A
movimentação estomacal era tamanha que cheguei a achar que estava
tremendo de frio. Respirei fundo. Estava diante da porta da sala de reuniões
e só conseguia pensar em estar longe dali. Enquanto minha mente
esperneava como um animal ferido, meu corpo abriu a porta: entrei.
Bastou um instante – o tempo necessário para um piscar de olhos – para
que eu percebesse toda a cena: uma mesa de dez lugares ocupada por tio
Adam e mais quatro pessoas: um rapaz da minha idade com o ar entediado;
uma jovem loura, de rosto sério com o cabelo preso em rabo de cavalo;
outra moça, com alguns quilos acima do ideal (podia se passar por irmã de
Stan), vestida toda de preto (talvez para disfarçar o peso); e por último, uma
mulher com mais idade do que o resto, de óculos – possivelmente a
coordenadora da equipe. Apesar do tédio evidente no rosto do rapaz (com
esforço, notei algo parecido com um sorriso no canto de sua boca), o
ambiente parecia descontraído. Elas riam de algo que tio Adam tinha
acabado de falar. Seus olhares se voltaram para a minha direção quando
entrei.
- Eddie! Estávamos a sua espera. Sente-se aqui – indicou a cadeira ao
seu lado. O tremor acima da altura do umbigo recomeçou. Meu corpo
identificava aquilo como frio, mas não estava frio (eu sabia).
- Deixe-me apresentar a equipe principal de desenvolvedores. Primeiro,
a nossa coordenadora Martha Reynolds – confirmei a minha suspeita a
respeito da mulher mais velha, já tinha escutado o seu nome inúmeras vezes
nos encontros familiares -, nossa DBA Senior, Amanda Singer – DBA: o
cargo explicava a seriedade da loira de cabelo preso -, Alexandra Bentley
nossa programadora sênior javascript – a nerd gorducha sorriu para mim
após dar uma dentada na barra de twix, quem come chocolates durante uma
reunião? - e por último, mas não menos importante, nosso programador
sênior python, Ian MacNeil – o sobrenome escocês soava como uma
justificativa para o tédio estampado em sua cara. Ele era a antítese do meu
escocês preferido, Craig Ferguson. Acenou com a cabeça e tornou a olhar
para o infinito.
- Muito bem, podemos começar? – após dizer isso, a sala se encheu com
ruído de todos se ajeitando em suas cadeiras e organizando papéis e canetas.
Ian corrigiu a postura e esfregou as mãos na calça jeans como se procurasse
esquentá-las. Alexandra se apressou para comer o último pedaço de seu
twix. Minha barriga voltou a tremer e eu tornei a respirar fundo. Assim que
os ruídos terminaram, tio Adam continuou:
- Vamos ouvir o resultado da avaliação feita por Alexandra e sua equipe
sobre o impacto da mudança da biblioteca javascript utilizada no site.
Espero que ao final, possamos decidir se vale a pena a mudança para
jQuery. Por favor, Alexandra.
- Pois não Adam – disse antes de se levantar com o controle remoto na
mão.
Uma hora e meia. A gorducha levou uma hora e meia falando enquanto
mostrava gráficos e tabelas com comparações entre as diversas bibliotecas.
O tremor que sentia na barriga havia sido substituído por um esforço sobre-
humano para manter os meus olhos abertos e não bocejar. Para a minha
sorte a atenção de todos estava na tela onde ela fazia sua apresentação. Os
resultados eram tão inconclusivos quanto a minha presença naquela sala.
Todas as bibliotecas possuíam vantagens e desvantagens. A DBA loura
mantinha a atenção focada enquanto Martha seguia fazendo uma série de
anotações. O tédio de Ian só parecia ter aumentado. Apoiava a cabeça em
sua mão direita enquanto que, com o dedo mindinho, acariciava seu próprio
rosto. Conforme o tempo passava parecia entendê-lo melhor. Minha
atenção? Flutuou como um balão entre os acordes da música Figure it out e
qualquer fragmento de informação vindo da boca comedora de twix.
Tudo corria bem: minha presença era praticamente ignorada. Após o
término da apresentação de Alexandra, Tio Adam deu a palavra para loura
de pedra. Foi sua vez de fazer a apresentação (desta vez em apenas quarenta
e cinco minutos) sobre a atualização de versão do banco de dados Oracle.
Apesar de sua rígida aparência, sua voz era suave como veludo. Desta vez
minha atenção não flutuou tanto, banco de dados é um dos poucos assuntos
que atrai a minha atenção no mundo informático.
Ian foi o último a falar. Sua minúscula apresentação se resumiu a uma
tabela onde apresentava as melhorias de performance da nova versão da
linguagem Python. Quinze minutos – começava a gostar do sujeito. Foi
direto ao assunto, sem rodeios. Quase grosseiro. O seu sotaque denunciava
sua origem.
Quando julguei estar próximo do final, foi a vez de Martha falar.
Detalhou o cronograma do projeto sem sair da mesa. Em sete meses o site
passaria por uma grande reformulação. Todas as tecnologias utilizadas
sofreriam atualizações enquanto novas funcionalidades seriam
desenvolvidas. Tudo orquestrado – no papel – com a precisão de um relógio
suíço. Sua voz trazia segurança. O tipo que alguém gostaria de ouvir dizer
que bastava apertar o cinto durante um voo turbulento. Contive-me para não
rir deste pensamento.
No meio da apresentação, tio Adam pediu desculpas para atender uma
ligação em seu celular. Consegui ouvir parte da conversa por estar próximo
dele. Era Sharon.
- Não querida, não posso falar agora, estou em reunião – sussurrou. Sim,
eu também te amo. Falamos mais tarde. Um beijo.
No meio de uma reunião o homem consegue arrumar tempo para dizer
que ama a namorada. Impecável. Podia ter deixado o celular desligado e se
perder na rotina corporativa. Não. Meu tio sempre disse que as relações
eram as coisas mais importantes da vida.
Assim que Martha terminou sua apresentação, tio Adam encerrou a
reunião parabenizando a todos. Não pude conter a minha surpresa quando a
tela onde foram projetadas as apresentações foi recolhida automaticamente,
revelando uma enorme foto de Glenda e Nathan na parede. Mesmo no
ambiente de trabalho ele fazia questão de manter a memória da minha tia e
do meu primo viva.
Conforme cada um saía da sala, faziam questão de se despedir. Fiquei
surpreso com a manifestação de Ian, nitidamente mais leve:
- Grande Eddie! – apertou minha mão na altura do peito, como se me
conhecesse há muito tempo – Bom te conhecer, cara! Seu tio sempre fala
em você. Desculpe o mau jeito, mas tenho pouca paciência para reuniões –
sussurrou -, até breve.
Definitivamente: eu gostava dele.
O relógio na parede marcava seis e quinze. Comecei a juntar minhas
coisas para partir quando meu tio me surpreendeu:
- Vou para casa agora. Não quer ir até lá? Podemos jantar e conversar um
pouco. O que me diz?
Ele podia querer ouvir minha opinião a respeito da reunião e sobre os
participantes. Ou simplesmente queria passar um fim de tarde ameno se
divertindo com o sobrinho. Seja qual fosse o papel que ele assumisse, era o
meu tio Adam, como recusar-lhe um convite?
- Claro tio, vamos?
Tive a doce oportunidade de estar mais uma vez com Susan enquanto
esperávamos pelo elevador em direção ao estacionamento. Trocamos
olhares. Sorrisos. Muito perspicaz, meu tio rapidamente percebeu que
existia algum interesse da minha parte. Logo que entramos no elevador ele
começou:
- Então? Gostou da Susan? Seu safado! – disse ao mesmo tempo em que
despenteava o meu cabelo.
Deixei o estacionamento com a ingênua ideia de que conseguiria seguir
seu Porsche com Susie. Após a primeira quadra já o tinha perdido de vista.
Pensava na experiência da reunião: o monstro que pintei na minha mente
não era tão feio assim. As pessoas foram relativamente amigáveis, o
ambiente era agradável, e o principal: entrei mudo e saí calado. Não podia
me deixar enganar: por mais que a ideia de rever Susan fosse agradável,
meu objetivo de vencer sozinho era maior. Nunca mais sentir aquelas
sensações de frio na barriga. Tinha até um discurso de improviso pronto
para a ocasião:
- Agradeço muito pela ajuda e preocupação que a família tem
demonstrado durante os anos, mas chegou o momento de seguir o meu
caminho sozinho.
Faltava a parte de explicar como enriqueci com informações
provenientes de espionagem na Deep Web participando de um plano em
que o mentor era um russo anarquista. Sorte. Sempre poderia culpar a sorte
e tudo estaria resolvido.
Cheguei à mansão em Beverly Hills e encontrei o Porsche já
estacionado. Til veio correndo me recepcionar com a bola babada na boca.
Pude ver meu tio na cozinha no celular. A gastronomia era uma área onde
ele se tornava tediosamente previsível: os dois grandes caranguejos deitados
na pia com as patas para o ar revelavam o cardápio do jantar. Embora eu
tivesse - repetidas vezes – dito que era desconfortável comer com as mãos,
ele insistia em preparar essas iguarias. Arremessei a bola o mais longe que
consegui, me assustei com o som do celular que tocou no exato momento
do arremesso – por um segundo pareceu ter uma relação causal de natureza
desconhecida. Era Stan.
- Então Eddie? Ainda pode sentar, ou só consegue ficar de pé?
Esforcei-me para entender a piada. O proctologista. Claro, era isso.
- Já disse que foi uma consulta de rotina com o clínico geral. Você é que
parece muito interessado em experimentar, já falou nisso várias vezes hoje.
- Quando tiver uns quarenta anos, casado com uma mulher gorda, com
dois filhos capetas e minha vida sexual estiver em declínio posso pensar
numa consulta dessas. Quem sabe não descubro novas formas de prazer?
Escute, eu não te liguei para isso, quero saber se está tudo confirmado para
amanhã?
Stan tinha esta mania: uma vez que nos comprometíamos com um plano,
ele gostava de revalidar inúmeras vezes. Um efeito colateral do excesso de
consumo de Red Bull, eu acho. Confirmei minha participação para acalmar
seu ânimo.
- Passei o dia pesquisando sobre a Deep Web, andei nos blogs e no
youtube vendo pessoas falando a respeito, mas não tive coragem de arriscar
um acesso. Cheguei a fazer o download do browser Tor, mas fiquei com
medo.
Stan continuava a falar sobre tudo que tinha visto: assassinos e hackers
de aluguel, venda de armas e drogas, e tudo de mais obscuro que a mente
humana pode conceber. Foi quando estranhei Til, que voltava com a bola na
boca de repente largá-la e começar a correr na minha direção. A menos de
um metro de distância começou a latir ferozmente. Paralisado, senti meu
sangue gelar. Tio Adam, percebendo o que se passava, veio ao meu
encontro para a minha salvação.
- Til! Já para casa! – como se saísse de um transe ele obedeceu
caminhando com o rabo entre as pernas para o canil.
- Que diabos você fez? Nunca o vi assim.
- Eu não sei, estava no telefone... – foi quando me dei conta que Stan
permanecia na ligação.
- Stan, ainda está aí?
- Sim. Que barulheira foi essa? Ouvi latidos. Está tudo bem?
- Sim, tenho que desligar. Depois nos falamos.
Meu tio aproveitou para me convidar para entrar, deixando Til do lado de
fora para refletir sobre o seu comportamento rebelde. Da cintura para baixo
havia um tremor quando comecei a andar. Será que os cães podem sofrer
das mesmas doenças mentais que nós? Bipolaridade: dois comprimidos de
cloridrato de fluoxetina em sua ração para tudo ficar bem. Vi isto num
filme, mas não me lembro do nome.
O cheiro do caranguejo circulava no ambiente. Para a minha sorte,
tratava-se de um risoto - coisa de garfo e faca. Ele sempre dava um jeito de
adaptar suas vontades às necessidades dos outros. Só me dei conta de que
ele vestia um avental da Kisses and Hugs após me recuperar do susto.
Fomos para a sala de jantar, onde comecei a ajudar na arrumação dos pratos
e talheres. Assim que ele trouxe a travessa com o risoto começou a falar da
reunião.
- Fiquei muito feliz de estar ao seu lado na reunião. Espero que tenha
gostado. O que achou do pessoal?
Estava pisando em terreno minado. Decidi avançar com cautela.
- Foram todos muito amistosos. Parece-me que está cercado por bons
profissionais.
Tio Adam fitou-me por um momento, e prossegui após pegar a garrafa
de vinho branco.
- Não consegue uma resposta mais vaga? Vamos lá! Estamos apenas os
dois aqui sozinhos. Além do seu óbvio interesse pela Susan, o que você
achou, por exemplo... Do Ian?
Um passo arriscado. Vamos lá.
- A princípio julguei que ele estava entediado, o que considerei uma falta
de respeito, mas com o passar do tempo mudei de opinião.
- De fato ele estava entediado, faz questão de deixar claro que acha as
reuniões uma perda de tempo – arrancou a rolha da garrafa -, mas o
bastardo é brilhante! Já me pediu aumento três vezes em dois anos. Não
neguei nenhuma – sorriu -, e o que mais? O que me diz da Amanda?
Outro passo. Mina adiante?
- Muito séria. Parece entender bastante do assunto. Fiquei surpreso ao
ouvir a sua voz.
- É mesmo? O que lhe passou pela cabeça?
- Imaginei um tom de voz que combinasse com a seriedade estampada
em seu rosto. Mais grave talvez – sorri -, Eu diria que sua voz é quase sexy.
- Aha! Os hormônios estão falando por você – deu uma gargalhada.
Ríamos. Quase não me preocupava com o terreno minado e caminhava
com certa leveza quando de repente vi o perigo logo à frente.
- Como vai o seu pai?
- Desculpe tio, não entendi. Você e papai se encontram diariamente.
- Eu o conheço no papel de irmão e atualmente nos encontramos para
falar dos assuntos da fundação – sorriu -, eu quis dizer no ambiente familiar.
Como ele tem se comportado com você e sua mãe após o transplante?
Sabia que o que dissesse ficaria entre nós. Sempre confiei em tio Adam
para os meus desabafos familiares.
- Ele parece tenso desde que tudo aconteceu – confessei -, quase não
temos conversado e acho que o mesmo vale para a minha mãe.
- Entendo. Procure ter paciência. Todos nós vimos pelo que ele passou
durante o período de internação no hospital. E depois de tudo, não
conseguir se recolocar no mercado de trabalho em sua profissão... Sei que
ele não é feliz no cargo de diretor da G&N Foundation, lecionar é o que ele
ama fazer, mas quem sabe, com o tempo, ele aprende a gostar de sua nova
profissão?
- Às vezes tenho a impressão de que... – hesitei por um momento – Ele
não parece grato por estar vivo. Pelo menos ele poderia demonstrar gratidão
pela sua generosidade. Se não fosse pelo seu dinheiro ele estaria morto,
seria impossível pagar um transplante com o salário de professor.
- Duas coisas: primeiro: eu fiz o que devia ser feito, que era estar
presente para a família. Segundo: do jeito dele, ele demonstra gratidão
todos os dias, quando senta na cadeira de diretor da G&N. Não se esqueça
de que o objetivo da fundação é obter crédito perante os bancos para
famílias carentes que precisem de transplantes. Posso te garantir: ele vibra
de alegria toda vez que uma família consegue realizar um transplante.
- É muito bom saber disso. Fico sempre preocupado que a saúde dele
seja afetada pelo seu estado de humor.
Passamos alguns minutos em silêncio. Sentia-me aliviado em poder
desabafar sobre meu pai e – principalmente – ouvir de meu tio que ele não
estava tão mal quanto parecia. Foi quando eu pensava estar pisando em
terreno seguro que a mina explodiu.
- Você sabe qual foi a minha intenção em te chamar para a reunião hoje,
não sabe?
Senti meu rosto ferver. Tinha uma resposta, mas a única manifestação
que meu corpo foi capaz de ter foi a de negar com a cabeça.
- Desde o acidente com Glenda e Nathan, seguido do problema de saúde
do seu pai, que julgo que nossa família já sofreu o suficiente. Temos que
zelar uns pelos outros – fez uma pausa e olhou para o enorme retrato na
parede. Tomou um gole da taça de vinho e continuou.
- Eu não tenho mais herdeiros diretos, Eddie. Você sabe que sempre o
amei como um filho – parou para pensar, parecia hesitante em falar.
- Eddie, eu consegui erguer algo de significativo para a família: a Kisses
and Hugs. Ela serve de base para a G&N Foundation, onde seus pais
trabalham. Acredito que seja do interesse de todos que o negócio
permaneça sempre dentro dos limites da família. Hoje demos um pequeno
grande passo para que você, no futuro, possa assumir a gestão. Inicialmente
cheguei a duvidar do seu súbito interesse pela informática, mas quando vi
que tinha entrado para a CSU, meu coração vibrou de alegria.
Naquele instante me dei conta de uma verdade: existe um gap enorme
entre imaginar uma situação e experimentá-la na realidade. Eu sabia que
este momento chegaria – já o tinha imaginado inúmeras vezes -, mas nunca
pensei que fosse tão rápido. Achei que teria mais tempo (para que
exatamente eu não sei). Minha mente percorria um infinito labirinto de
decisões passadas que eram impossíveis de remediar. Por algum motivo
idiota achei que escolher informática traria paz para a família (após tanto
sofrimento). E a minha paz? Tudo indicava que eu tinha me esquecido (e
ninguém parecia se importar com isso). Meu corpo, incapaz de reagir
adequadamente, permanecia paralisado. Procurava apaziguar a cena, me
recompor para poder continuar a conversar com meu tio, mas tudo que me
aparecia na cabeça era a noite do dia seguinte, quando na casa de Stan me
tornaria milionário invadindo a Deep Web. Vendo o meu sucesso ele não se
preocuparia tanto com a longevidade da Kisses and Hugs. Claro que não.
- Estou lisonjeado tio – disse sorrindo -, nem sei o que dizer.
- Não diga nada! Coma seu risoto e tome um pouco do vinho apenas para
brindarmos, afinal você ainda tem que dirigir até sua casa.
Serviu dois dedos do vinho branco na minha taça. Fomos para perto da
foto de Glenda e Nathan onde ele disse:
- Onde quer que vocês estejam meus queridos, abençoem este momento.
Fiquem com Deus.
O suave sabor do vinho desceu pela minha garganta amarga. Amarga
pela impossibilidade de dizer o que eu sentia e pensava. Mas amanhã era
outro dia.
Capítulo 4
Ascensão

Os dias ensolarados se repetiam e minha incapacidade de apreciá-los


parecia cada vez pior. Sem dormir direito por duas noites, acordei com dor
de cabeça – era inevitável. As recordações do dia anterior ainda pipocavam
na minha mente. Precisava estar bem para nossa primeira incursão. Dois
comprimidos. Sim, era disso que eu precisava: dois comprimidos daqueles
brancos que minha mãe tomava toda vez que reclamava da enxaqueca.
Pulei da cama rumo ao armário do banheiro, tinha que agir rápido para não
levantar suspeitas a respeito dos comprimidos.
Inútil. Nada no banheiro, só me restava vasculhar a bolsa da minha mãe.
Aproveitando que eles estavam na cozinha, fui sorrateiramente até a sala.
Assim que comecei a vasculhar a grande bolsa verde, lá de dentro seu
celular começou a gritar. Merda! Quem telefona para alguém às sete e
quinze da manhã? Instintivamente peguei o aparelho para silenciá-lo, com
um pouco de sorte ninguém notaria a chamada: era tio Adam. Paciência.
Seja o que for ficaria para depois. Provavelmente algum assunto pendente
da fundação. Minha mão percorria os caminhos multidimensionais de uma
típica bolsa feminina sem encontrar os malditos comprimidos. Lá pela
quinta dimensão, quando pensava em desistir, encontrei a cartela. Sem
pensar, tomei-os sem água. Como a cartela estava quase cheia, achei que ela
não daria falta.
Engoli qualquer coisa de café da manhã – juro que não me lembro, sei
que apenas ajudaram a empurrar os comprimidos. Fragmentos das
conversas entre meus pais ficaram retidos na minha memória: ela reclamava
do meu tio, dizia que não concordava com sua postura em algum assunto da
fundação; meu pai, por sua vez, fazia-se de morto enquanto as ondas
sonoras de suas cordas vocais insistiam em perturbá-lo. Era mais uma
manhã como outra qualquer.
As aulas passaram mais lentamente do que o usual. Se não fosse pela
excitação de Stan em contar as horas para nossa primeira incursão na Deep
Web, eu diria que o dia teria passado mais rápido. Não tinha como ignorar a
minha própria ansiedade a respeito do assunto: era como se Alexei tivesse
atirado um pedaço de madeira capaz de me remover da areia movediça em
que me encontrava. Definitivamente o dia anterior tinha me deixado atolado
até a cintura. Durante o intervalo, Stan abriu as comportas de sua excitação
deixando-a transbordar livremente.
- Eddie! Eddie! Eddie!
Quando ele chamava meu nome três vezes era um mau sinal.
– Não dormi nada ontem. Minha mente só pensava na Deep Web.
Apenas quando me levantei da cama e instalei o Tor browser que fui capaz
de pregar o olho. Não é estranho? Nem cheguei a navegar. Eu tinha que
fazer alguma coisa, entende?
Enfatizou a palavra fazer com um gesto parecido com o de um lutador de
boxe.
- Não aguentava mais ficar só na imaginação. Não, não, não! Não
aguentava. Tinha que entrar em ação! Ação! Ação! – distribuía socos no ar.
- Acalme-se! Eu entendi. Procure maneirar nas doses de Red Bull, ok?
- Vamos lá falar com Alexei? Vamos? Vamos?
Concordei sem pensar. Qualquer coisa que o acalmasse me traria paz.
Como de costume, o russo se encontrava no fundo do refeitório cercado
pelo seu fiel séquito. Assim que Stan sentou a mesa, começou com a
verborragia sobre a Deep Web.
- Então Alexei? É hoje que nós vamos ficar ricos? Ricos! Ricos! Passei a
noite sem dormir pensando nisso. Você não vai acreditar! Não cara, você
não vai. Adivinha? Adivinha? Adivinha? Só quando instalei o browser Tor
que consegui sossegar. É cara! O browser Tor!
Apontei sutilmente para a lata de Red Bull na mão esquerda de Stan:
esperava que Alexei fosse inteligente para entender a mensagem.
- Você é viciado nesta merda? – perguntou antes de resmungar alguma
coisa em russo (da qual eu não precisei de tradutor para perceber que se
tratava de um insulto).
- Tome uma destas – disse após tirar um comprimido de um vidro com o
rótulo escrito no alfabeto cirílico que estava no bolso de sua calça –, durma
quando chegar a casa, depois vai me agradecer por isso.
Antes que Stan pudesse levar o comprimido à boca, segurei seu braço
numa atitude que até eu mesmo me surpreendi.
- Por acaso você não está desconfiado do que vou dar para o seu amigo,
está?
Seus três seguidores se aproximaram. De onde eu estava, consegui ouvir
Stan engolir em seco. Senti que podia estar pondo tudo a perder.
- Tenho interesse que vocês estejam inteiros hoje à noite. O comprimido
vai ajudá-lo a se livrar deste vício. Confie em mim.
Era um bocado difícil confiar em alguém que carrega no braço a frase
tatuada “In chaos we trust”, pensei. Soltei o braço de Stan decidindo
acreditar no interesse dele em nos manter saudáveis até a noite. Seus
capangas se afastaram, para o nosso alívio.
Após colocar o comprimido na boca, vi a lata de Red Bull entrar em
órbita por um tapa de Alexei quando Stan, mecanicamente, ameaçou usar o
veneno negro para tomar o remédio.
- Se soubesse que estava lidando com idiotas não os convidava para o
projeto! – disse Alexei por entre os dentes cheio de raiva.
- Acalme-se, vai dar tudo certo. Ele só está ansioso, ok? Você não vai se
arrepender de ter nos chamado.
Dito isso, puxei Stan pelo braço para longe dali. Antes que pudesse dar
três passos, Alexei falou.
- Ei! Foguinho! Trate de colocar o gorducho na linha! É bom que vocês
estejam online às onze horas, caso contrário irão arcar com as
consequências.
Demorei alguns segundos para entender a piada com a cor dos meus
cabelos. Sim, nós estaremos lá, pensei. Mesmo que eu tenha que açoitar
Stan para que ele se acalme.
Não consegui prestar atenção nas aulas durante a tarde. Seja lá qual fosse
o medicamento que Stan tivesse ingerido, teve um efeito avassalador sobre
ele. Além de silenciar sua tagarelice, o manteve num estado zen, onde um
sorriso incomum permaneceu estampado em seu rosto todo o tempo. Tudo
indicava que o chicote não seria necessário.
Ao cair da tarde, durante a volta para casa, meu estômago vibrava cada
vez que o ponteiro do relógio se aproximava das onze da noite (e ainda
eram seis e quarenta). Enquanto percorria as ruas de LA junto com Susie,
comecei a fazer planos com o dinheiro da Deep Web: a primeira
providência seria comprar uma casa. Construiria um estúdio: um puta
estúdio, sim senhor, de matar de inveja até o dono do Sound City! Ali
gravariam as maiores estrelas do rock, além de servir de ambiente para
evolução da minha banda. Minha coleção de baixos ficaria exposta na sala e
reservaria um espaço na parede para os discos de ouro, é claro. Com
dinheiro tudo se tornaria fácil: inclusive o livre trânsito aos locais caros
frequentados pelos grandes astros. Sim, eu fui moldado para esta vida, eu
não tinha dúvidas disso! Faltava apenas esta peça do quebra cabeças.
Ao buzinar na minha cara o furgão branco me trouxe de volta para o
planeta Terra:
- Preste atenção ao sinal garoto de merda! Quer morrer antes do tempo?
– gritou o motorista. Estava vivo graças aos meus reflexos que me fizeram
frear a tempo; meu coração parecia que ia sair pela garganta.
Aproveitei a parada forçada e fui até o mercado comprar umas pizzas e
refrigerantes que pudessem nos alimentar durante a noite, não tinha a
mínima ideia de quanto tempo aquilo demoraria.
No mercado, aproveitei para me acalmar do susto. Procurava por alguma
bebida livre de cafeína – não queria provocar uma recaída em Stan. Dois
litros de Sprite dariam conta do recado.
Conclui que era melhor dizer aos meus pais que passaria a noite na casa
de Stan, independente de quanto tempo demorasse. Colocaria a culpa em
algum trabalho da faculdade. Tinha a certeza de que funcionaria.
Assim que abri a porta de casa, minha mãe foi logo iniciando o
interrogatório:
- Edgar, por acaso você andou mexendo na minha bolsa hoje de manhã?
Tive que pensar rápido: se eu confirmasse o roubo dos comprimidos
corria o risco de criar um clima desfavorável para a minha ausência durante
a noite. Isso sem contar com a possibilidade dela imaginar que eu tinha
desenvolvido algum tipo de vício por ibuprofeno. Negar também parecia
não ser uma opção viável. O caminho do meio, o caminho do meio Eddie!
- Sim, mãe. Ouvi o seu celular tocar e percebi que ele estava em sua
bolsa, mas quando cheguei a enfiar a mão para procurá-lo demorei tanto
para encontrá-lo que parou de tocar. Chegou a ver a chamada não atendida?
Afinal, quantos compartimentos existem na sua bolsa? Minha nossa! Aquilo
parece um labirinto do minotauro.
Ela riu. Bem no alvo, Eddie.
- Mas por que não me avisou do telefonema?
- Sabe que sou meio zumbi pela manhã... Acabei esquecendo-me no
minuto seguinte. Desculpe - sorri.
Era impressionante ver como um indivíduo com uma meta na cabeça é
capaz de mentir com maior facilidade. Aproveitei o embalo para notificá-la
que passaria a noite fora. Emendei a mentira dizendo que tínhamos um
trabalho sobre arquitetura de sistemas distribuídos onde precisávamos testar
um sistema com outros quatro alunos. Aquilo era uma meia verdade: Alexei
e seus três capangas estariam online juntos conosco. Uma grande mentira é
sempre melhor digerida se acompanhada de meias verdades.
Apressei-me para deixar tudo pronto, queria jantar com meus pais como
forma de compensar minha ausência durante a noite. Acho que parte disso
era pelo sentimento de culpa por ter mentido para a minha mãe. Sei lá.
Fosse como fosse, eu jantaria com eles. Estava decidido.
Por volta das 20h30, senti o aroma das panquecas de carne vindo da
cozinha. Só me dei conta de estava faminto no momento em que minhas
glândulas salivares jorraram como uma garrafa de champanhe durante o ano
novo. Com a mochila pronta e com o espírito de quem ia se tornar um
milionário da noite para o dia, fui jantar.
Notei algo diferente no ar quando sentei a mesa. Inicialmente não soube
dizer do que se tratava; podia ser decorrência da minha boa disposição pelo
evento da noite, mas não era.
- Stephanie, passe-me a pimenta, por favor.
- Você já sabe sobre a pimenta Jerry. Com moderação.
- Eddie, tudo bem? Soube que esteve lá na Kisses and Hugs com seu tio
em reunião – ele disse antes de abrir um sorriso enorme -, não vai nos
contar nada a respeito? Se você pensava em fazer uma surpresa seu tio
estragou tudo.
Quase me arrependi da decisão de jantar em casa.
- Eu? Ah sim! Mas é claro que ia contar para vocês. Tenho andando tão
ocupado com os trabalhos da faculdade que as coisas me escapam. Não vai
acreditar, mas hoje de manhã me esqueci de dizer para ela que o celular
tinha tocado. Não é incrível? Diga para ele mãe, diga - sorri.
Ríamos todos juntos: estava funcionando.
- A propósito: a reunião foi ótima. Conheci a equipe principal de
desenvolvedores do site. O pessoal é muito bacana. Por favor, me passe o
sal, pai. Finalmente eu conheci a Martha. Vocês sempre falam dela. Eu a
tinha imaginado completamente diferente, não é engraçado?
Cada frase que saía da minha boca era como um sinal luminoso
indicando que eu estava indo longe demais. Era bom que o software de
Alexei funcionasse hoje à noite. Por quanto mais tempo eu seria capaz de
bloquear meus sentimentos? Eu não tinha resposta para isso.
- Nós ficamos muito felizes com a notícia, filho. Da próxima vez, pode
nos visitar na fundação. Fica no mesmo prédio no primeiro andar.
O ideal é que não existisse uma próxima vez, mas eu tinha que acalmar
os meus ânimos. Quanto tempo levaria até fazer algum dinheiro com a
informação obtida? Essa era outra pergunta sem resposta.
Saí por volta das nove e vinte. Segundo os meus cálculos, com o trânsito
fluindo, chegaria à casa de Stan por volta das dez. Uma hora antes do
combinado com Alexei. Sentia minha ansiedade pulsar. Aquela estranha
vibração na boca do estômago começava a dar sinais de vida.
No caminho, fiquei recordando o ar de felicidade dos meus pais durante
o jantar. Qual seria a reação deles se eu dissesse que não me interesso em
me tornar mais um idiota engravatado do mundo corporativo? Ri daquele
pensamento: afinal não tinha visto ninguém usar gravata na empresa.
Enfim, o que aconteceria quando eu revelasse que a minha paixão estava –
onde sempre esteve – na música? Podia ver meu pai sofrendo uma síncope,
e minha mãe me culpando para todo o sempre. Somente muito dinheiro
poderia sossegá-los. Muito mesmo. O suficiente para uma vida toda.
Assim que me aproximei de sua casa, pude vê-lo sentado do lado de fora
com uma garrafa de água tônica na mão.
- Dormi durante três horas seguidas. Sinto-me renovado – disse ao abrir
o portão de casa – Não consigo nem chegar perto do Red Bull. Tenho
náuseas só de pensar nisso. Inutilmente tentei descobrir qual substância
pode ter este resultado instantâneo no vício da cafeína. Se alguma coisa
existe, deve ser um antigo segredo soviético guardado na Sibéria.
Descemos imediatamente para o porão. Por mais que já estivesse
acostumado com o bunker de Stan, era sempre um impacto entrar ali. A
parafernália tecnológica que se misturava entre vídeo games, computadores,
caixas de som e monitores de variados tamanhos era sempre um espetáculo
a parte. Parte do que se encontrava ali, era fruto de sua obsessão pela
história da informática. Afinal, qual a utilidade que alguém poderia dar a
um Commodore 64 hoje? Ele guardava itens suficientes para fundar um
museu, caso quisesse. Seu pai, que sempre trabalhou na IBM, era um
grande cúmplice e fornecedor das relíquias. Nas paredes, posters de suas
bandas preferidas se misturavam com propagandas de softwares e
hardware. Era engraçado ver o Black Veil Brides ao lado do Kapersky Anti
Vírus. A cama beliche, a pequena geladeira e o pequeno banheiro –
pequeno mesmo, mal cabia uma pessoa lá dentro – tornavam o lugar
autossuficiente, por assim dizer. No final, aquilo tudo parecia um cenário de
um filme de ficção científica do tempo do meu avô.
- Cuidado para não pisar no Zax! – ele gritou.
No chão, estava a caixa do antigo ZX Spectrum trazido pelo pai há
alguns anos. Lembro-me de ficarmos boquiabertos com um jogo de
labirinto onde você é perseguido por um dinossauro. Acho que foi a
primeira vez que vi uma fita cassete funcionar pessoalmente.
- Zax? Seu ZX Spectrum tem o nome de Zax? Não é um bocado óbvio?
- Tão óbvio quanto dar o nome de Susie para uma moto Suzuki, meu
querido!
- Xeque-mate.
Apressei-me para arrumar minhas coisas. Já passavam das dez e quinze.
Eu tinha a intenção de conversar com Stan antes de tudo começar. Enquanto
ligava meu notebook, ele foi mais rápido e começou a me contar o que tinha
descoberto sobre a Deep Web nos últimos dias.
- No meio da minha euforia de ontem, andei pesquisando sobre a origem
da Deep Web. Sabe o que eu descobri? Originalmente, foi o projeto do
governo americano com a intenção de melhorar a privacidade das suas
próprias comunicações. Se ficarmos ricos temos que agradecer, ao U.S.
Naval Research Laboratory, mais especificamente ao Dr. Paul Syverson que
liderou o projeto. O principal requisito do projeto era de que a comunicação
entre as partes fosse realizada sem alguém, que interceptasse a mensagem
no meio do caminho, fosse capaz de associar a fonte e o destino. Foi assim
que nasceu a rede Tor. Sabia que o nome é um acrônimo para “The Onion
Router”? Ao navegar nesta rede, seu endereço IP é criptografado por três
camadas – como as camadas de uma cebola – cada computador da rede
“descasca” uma das camadas passando adiante o pacote mantendo o usuário
anônimo. Mesmo que no meio do caminho alguém intercepte a conexão, é
impossível decifrar o que vai por ali.
- Mas então, como explica o que eu li sobre o FBI monitorar parte do
tráfego?
- Lembrei-me de você ter dito isso, procurei também sobre o assunto:
eles conseguiram, utilizando manobras do direito internacional, monitorar
alguns servidores da rede Tor em casos de investigação de pedofilia. Como
este assunto não faz parte do nosso interesse, eu acredito que estamos a
salvo.
Abriu o tubo de batatas prinkles e abocanhou duas ao mesmo tempo.
- Continuando: a rede Tor possui grande importância em países com
regimes ditatoriais, achei diversos casos de pessoas que conseguiram se
comunicar com o mundo exterior enquanto seu país estava em guerra
através dela. Ah! Sem esquecer de que ela estava por trás de toda aquela
discussão a respeito do site Wikileaks e Edward Snowden, lembra? Enfim,
o tiro saiu pela culatra, quando a turma do mal percebeu que ali existia a
plataforma ideal para expandir o seu tipo de negócio. Você sabe que até
uma moeda virtual foi criada para as transações? Chama-se Bitcoin. Mesmo
após prenderem o fundador do site, a coisa ressurgiu com força total.
Infernal, não é?
- Impressionante. Parece que nós éramos os únicos dois alienados do
planeta que não sabíamos nada a respeito. Eu sonhando com a música e
você perdido nos vídeo games.
- Ei! Não se esqueça: também me perco com a pornografia! Sr. Coburn,
o que importa é que agora sabemos. E vamos nos tornar ricos por causa
disso! – gritou.
Os steel drums caribenhos começaram a soar. Lindas mulheres seminuas
surgiram em todos os monitores. Stan dançava como louco.
- Você planejou isso não? – gritei competindo, inutilmente, com Snoop
Dogg e 50 Cent que seguiam cantando P.I.M.P.. Dei pausa no vídeo do
youtube quando percebi o cursor do meu notebook estava se movimentando
sozinho. Antes que Stan pudesse reclamar do meu ato, simultaneamente, a
mesma janela terminal surgiu em nossas telas, onde comandos fluíam em
alta velocidade: era Alexei - e ainda eram dez e cinquenta. Stan correu para
ligar seu notebook ao monitor de 32 polegadas. Percebemos pelo uso da
ferramenta lshw que ele estava coletando informação a respeito do nosso
hardware (especificamente sobre som e vídeo), possivelmente para
estabelecer uma via de comunicação privada.
Em menos de cinco minutos surgiram na tela seis janelas, com cada um
dos nossos insólitos parceiros temporários. Apenas o áudio de Alexei estava
habilitado. Pusemos-nos a postos antes dele começar:
- Boa noite senhores – disse com seu forte sotaque -, é impressionante o
que eu vou dizer, mas... Fico feliz em vê-los! Então gorducho? Sente-se
melhor?
- Sim. Muito obrigado, eu...
- Não se iluda achando que eu me importo com você – interrompeu
bruscamente -, só quero saber se será capaz de seguir as instruções que vou
passar durante a noite. Depois, pode beber todo Red Bull que existe no
mundo, quem sabe não serve de combustível para viajar até Marte?
Era possível ver – sem ouvir – os capangas de Alexei rindo com as
palavras do mestre.
- Pois bem, nosso primeiro objetivo é conseguir entrar no fórum do
Devil’s friends. Para isso, o algoritmo do meu programa se beneficia das
nossas máquinas funcionando em cluster para descobrir a senha do banco
de dados do fórum. É uma questão de tempo para obtermos sucesso. A
segunda fase é comigo: após ter uma cópia do banco de dados com os
usernames, vou quebrar as senhas, se eu não encontrar nada fora do normal,
isso não deve demorar muito. E finalmente, a terceira e última fase: vou
dividir a lista de usuários e senhas entre nós. Cada um faz login no fórum
como um usuário da lista e procura descobrir o que for possível a respeito
da pessoa. Desta forma seremos mais produtivos e ganharemos tempo. Se
cada um conseguir fazer uns dois ou três hoje, considero nossa noite bem
produtiva. A partir daí, já não precisamos nos reunir desta forma. Podem
prosseguir pela via de acesso normal: com o browser Tor, utilizando o link
para o fórum. Imagino que a maioria das identidades permanecerá
escondida, porém fiquem atentos aos detalhes: o que o administrador do
fórum pede, se o tipo de ritual pode ter relação com o tipo de negócio ou
coisa parecida. Pelo menos foi esta informação que eu obtive a respeito do
Sloppy Chickadee. Ah, antes que eu me esqueça: serei o único a permanecer
com a lista inteira, portanto nem pensem em não partilhar a informação
descoberta. Mais cedo ou mais tarde, eu vou acabar por descobrir. A não ser
que desejem conhecer meus amigos da máfia russa que trabalham aqui em
LA.
Ouvi Stan engolir em seco ao meu lado.
- Ótimo! Sem oposições. Vamos começar senhores.
Toda aquela explicação me deixou perplexo: nada garantia que após a
primeira fase ele cumprisse com o que tinha dito. Ele podia se desconectar
no momento seguinte e ficar com o banco de dados sozinho. Ele não
precisava de mais ninguém para as fases seguintes. Será que eu estava
ficando paranoico?
Vimos um programa começar a funcionar na janela terminal. Alexei
voltou a falar.
- Coloquei o endereço para o fórum na área de trabalho de cada um. O
programa para quebrar a senha do banco de dados foi iniciado. Só nos resta
aguardar. Entro em contato assim que tiver alguma notícia.
Assim que sua janela fechou, puxei Stan pelo braço para o fundo do
quarto, longe das câmeras e microfones.
- Stan, eu acho que isso é uma cilada. O russo só nos chamou para
quebrar a senha do banco de dados. Ele não precisa de nós para o resto.
Pense!
Fez uma pausa por um momento. Aquilo não era típico dele – parar para
pensar.
- Se isso fosse verdade, porque ele faria questão de me dar aquele
comprimido? A nossa única utilidade aqui é na investigação dos usuários.
Não temos ideia de quantos registros devem existir. Imagine que existam
mil usuários. São mais de cento e cinquenta para cada um investigar. Este
tipo de análise ele não consegue automatizar com programação. Além
disso, acha que ele deve conhecer gente inteligente capaz de acessar a Deep
Web no meio da máfia russa? Devem ser um bando de trogloditas. Relaxe.
Vai dar tudo certo.
Relaxar? Fiquei em dúvida se aquela era a voz de Stan ou do resultado
da química do medicamento ingerido.
Uma hora depois, meu corpo dava sinais de cansaço através de intervalos
cada vez mais curtos entre os bocejos. Alexei não dava sinal de vida, e
estava difícil manter a luta entre a minha ansiedade e o meu sono. Stan
parecia inteiro e bem disposto, assistindo antigos episódios do Late Late
Show. Fui me deitar no beliche, dando vitória ao sono: minha ansiedade
estava nocauteada.
Por volta das duas e dez da manhã, acordei com ele me cutucando o
ombro:
- Eddie! Por favor, acorde, tem um cão lá fora nos vigiando. Eu não sei
mais o que fazer.
O torpor da minha mente dificultava o entendimento. Cão? Vigiar? Ele
tinha bebido?
- Alguma notícia de Alexei? – foi o que consegui murmurar.
- Não. Preste atenção: tem um cão enorme do outro lado da rua. Já faz
quinze minutos que ele está lá sentado, olhando para cá. Imóvel! Na mesma
posição. Isso não é normal. Eu pensei em ir até lá fora, mas estou me
cagando de medo.
Sentei-me na cama e esfreguei os olhos com as mãos: queria me
certificar de que aquilo não era um sonho, porque o nonsense da narrativa
indicava o contrário. Concordei em dar uma olhada pela janela.
- Stan, tem certeza de que você não cochilou e sonhou? Além da calçada
e a casa do vizinho, não há nada ali fora – só então me dei conta de que ele
segurava um taco de baseball.
- O que quer dizer? – correu para perto da janela desesperado – Eu não
posso acreditar! Foi só eu virar as costas para te acordar...
- Stan, pergunte a si mesmo: o que é mais provável? Que um cão tenha
ficado paralisado diante de sua casa por volta das – olhei para o relógio na
parede – duas da manhã, ou - enfatizei bem o “ou” - você cochilou e sonhou
com toda a cena?
Arriscou mais um olhar pela janela: na ausência de evidências que
comprovassem sua teoria sobre a conspiração canina, calou-se.
- Faça-me um favor: guarde este taco de baseball.
- Atenção rapaziada! Fase dois: concluída – a voz de Alexei nos
interrompeu –, temos o banco de dados com os usuários e senhas. Não é
necessário dizer o quanto eu sou brilhante. Eu sei. Estou enviando para o
desktop de cada um, um arquivo texto com sua parte respectiva. Guardem
estes arquivos como a sua própria vida. Quero acompanhar a primeira
investigação junto com vocês, vamos lá!
Rapidamente assumimos os nossos postos. Abrimos o arquivo texto
percebemos um total de 53 registros em cada um. O primeiro da minha lista
tinha o username de emeraldeyes64. Olhei para o primeiro item da lista de
Stan, o username era zoidberg.
- Tem grande chance de que este seja fã da série Futurama – concluiu.
O meu não me dizia nada. Talvez o máximo que eu podia supor é que a
pessoa tivesse 64 anos e olhos azuis, mas era um palpite ridículo. Corri os
olhos pela lista, procurava por algum username que me sugerisse alguma
coisa – tive inveja da lista dele.
- Muito bem gorducho. Vamos começar por você. Faça login como
zoidberg e vamos ver o que encontramos. Enquanto isso eu realizo uma
busca pelos nomes de jovens CEOs que são publicamente fãs da série.
O fórum tinha um design simplório. No mundo real, se ele fosse um
imóvel, passaria despercebido no meio da rua. Uma velha loja, ao lado de
um armazém e do escritório de advocacia. Quem poderia suspeitar que ali,
eles se encontravam para adorar o diabo? - diria o velho dono do armazém.
Retornei dos meus devaneios para ouvir Stan ler as primeiras mensagens
privadas de zoidberg.
- Aqui diz que ele entrou no fórum há pouco mais de um ano. Sua
primeira tarefa foi: matar um pombo e colocá-lo no altar de uma igreja. Isso
foi no dia 15 de janeiro do ano passado. Ele enviou o vídeo com a tarefa
poucas horas depois de solicitado. O cara tinha pressa!
- Pouco nos interessa assistir estes vídeos. A não ser que contribua para
descobrirmos quem são. Continue.
- As tarefas seguintes foram: banhar-se em sangue de galinha preta;
urinar na pia batismal de uma igreja. Espere! Quarta tarefa: propor o
lançamento do seguinte produto durante a próxima reunião na sua empresa,
junto tem arquivo pdf anexado. Vamos ver o que é...
Uma faca, um revólver, eu estava preparado para ver qualquer coisa
relacionada com morte e destruição, mas como aquilo podia se relacionar
com uma seita satânica? Eu não sabia. Senti um estranho incômodo na boca
do meu estômago.
- Uma mesa Smart Table para bebês desenvolverem raciocínio? Eles não
podem estar falando sério!
- Fique quieto gorducho! As intenções deles não me interessam. Qual a
foi a data desta tarefa?
- Deixe-me ver... 15 de Abril do ano passado.
- Vamos assistir a este vídeo. Vou partilhar sua tela com toda a equipe.
Assim que o ponteiro do mouse disparou o vídeo, a expectativa se tornou
quase palpável em cada uma das janelas dos nossos parceiros. Uma sala de
reuniões luxuosa surgiu na tela, o ângulo da filmagem era de uma
microcâmera no bolso do sujeito. Pela maneira como as pessoas se
comportavam tudo indicava que era o dono da empresa. Ele distribuía
cópias impressas do mesmo arquivo, dizendo que era uma ideia que ele
tinha tido na noite anterior. A surpresa estava estampada no rosto de todos.
A gerente de marketing argumentava que eles já possuíam uma Smart Table
na sua lista de produtos, mas ele insistia que aquela era diferente. O
designer de produtos ponderava sobre uma inviabilidade técnica: era
necessária a aquisição de novas máquinas para fabricarem aquilo. O gerente
financeiro apelava para o momento de crise pelo qual a empresa passava:
ainda pagavam por um grande empréstimo, mas nada parecia derrubar sua
determinação: ele insistia que precisava daquele produto no mercado em
prazo recorde. Foi apenas quando a secretária entrou na sala para
interromper a reunião que a câmera mostrou a logomarca da empresa.
Rápido no gatilho, Alexei pausou o vídeo para que pudéssemos ler:
RainbowPalz.
Foram necessários apenas alguns segundos para que ele surgisse com
nova informação:
- E aqui está a RainbowPalz mencionada na revista Businessworld do
mês passado – a página apareceu nas nossas telas -, após renascer das
cinzas como uma verdadeira fênix... Com a sua nova linha de Smart Tables
venceram a crise ao ganharem o prêmio de design de produto na feira
alemã... Gerald Smith, CEO da empresa disse que está muito satisfeito com
o resultado geral e avisa aos pais que podem esperar novas ideias... Aqui
está o nosso cara, pessoal. Em que estágio ele se encontra?
- Ele cumpriu dezessete tarefas – respondeu Stan.
- Significa que ainda restam quarenta e nove. Podemos anotar o nome da
empresa, ela ainda vai crescer nos próximos anos. Acho que conseguiram
ver como funciona, não? É claro que sem contar com a minha inteligência
vocês vão andar um bocado mais lentos, mas o importante é que percorram
toda a lista. Não quero ninguém conversando sobre este assunto na CSU,
entenderam? Portanto, não venham me perturbar durante o horário de
almoço ou nos intervalos. Marcamos um novo encontro virtual para semana
que vem. Fará muito bem para a saúde de vocês que apresentem resultados.
Dito isso, desligou. Olhei para a cara de Stan, só para me certificar de
que sua boca permanecia aberta – literalmente de queixo caído. Embora
meu rosto não fosse dado a este tipo de manifestações, sentia-me
igualmente impressionado por dentro.
- Eddie, onde foi que nos metemos? Satanistas que fazem Smart Tables
para crianças? Que tipo de mundo é este?
- Eu não sei Stan. Estou tão chocado quanto você. Não quero considerar
a hipótese de olhar atentamente para o tal brinquedo e descobrir... Sei lá,
algum significado obscuro. Prefiro permanecer ignorante e manter o foco
no que viemos aqui buscar.
- Sim. A grana. Vamos continuar. Sua vez: quem é o primeiro insano de
sua lista? - perguntou antes de abocanhar um pedaço do donut.
- O username é emeraldeyes64. Vamos lá ver o que este senhor de olhos
azuis andou aprontando.
Enquanto meus dedos percorriam o teclado digitando seu username e
senha, eu podia sentir o ar mover os pelos do meu braço esquerdo resultado
da respiração de Stan. Nem mesmo um búfalo deslocaria tanto ar ao
respirar. Minha ansiedade queria antecipar o carregamento das telas:
posicionei o cursor no ponto onde calculei que a lista de tarefas começava;
só lembrava-me de estarmos tão concentrados quando assistimos o último
episódio de Breaking Bad. Rápido no gatilho cliquei na primeira tarefa
assim que surgiu:
- Até a próxima quinta-feira, vá a um cemitério e desenhe um
pentagrama invertido com seu próprio sangue num túmulo de uma mulher.
Fui capaz de escutar o tique-taque do relógio na parede dentro da minha
cabeça quando nos entreolhamos. Apesar de fantasmagórico, aquilo não nos
dizia nada a respeito do infeliz. Alguns minutos depois de percorrer a lista
de obscenidades – tempo em que o búfalo continuou a bufar no meu braço -
chegamos à oitava tarefa. Mais uma vez, os administradores do fórum
propunham o lançamento de um produto, também com direito a um arquivo
pdf anexado.
- O que vai ser agora? Chupetas? – perguntou lambendo as pontas dos
dedos cheias de açúcar.
As formas e desenhos surgiram na tela sem nos dar uma indicação clara
do que aquilo podia significar. O tique-taque tornou a gritar na minha
cabeça. Cansados de tentar entender qual o destino daqueles estranhos
padrões geométricos fomos assistir o vídeo.
Ajeitamos-nos nas cadeiras antes que outra reunião de negócios surgisse
na tela. A folha verde que pendia no canto superior da tela mostrava que a
câmera tinha sido escondida dentro de um vaso de plantas. Do lado
esquerdo, um abajur articulável pendia um pouco acima da altura da cabeça
de quem estivesse sentado. O ambiente era claro, limpo e bem iluminado.
Desta vez, várias mulheres muito bem vestidas e sorridentes estavam
reunidas numa mesa redonda contornada por um enorme sofá. Nos demos
conta de que o senhor emeraldeyes64 era na verdade uma senhora quando
começou a falar. De costas para a câmera, ela apresentava o padrão para o
forro da nova coleção de bolsas femininas que seria lançada em breve. A
mais velha, de rosto oval com os cabelos cacheados até o ombro, foi a única
a demonstrar alguma resistência à ideia, que foi aos poucos dissolvida pela
loira com um belo colar no pescoço e a magrinha com o rosto imobilizado
pelo botox. Conseguimos, após muito esforço, fisgar o nome da empresa no
meio do falatório feminino: Roland Carrier.
- Minha nossa! Acho que a minha mãe tem uma bolsa deles! – ele disse
permanecendo de boca aberta.
- Olhe para isso! – apontei para a tela após pesquisar o nome da empresa
– Você diria que esta senhora é uma satanista?
Jamie Whitman. Lá estavam os olhos azuis no rosto de uma bela senhora
de cinquenta e oito anos de cabelos presos. Ela era sócia e diretora de uma
empresa que começava a incomodar os grandes nomes da moda.
- Ela parece com a minha tia mais velha. A tia Anne. Porra! Que mundo
é esse em que vivemos?
Eu estava exausto. O sol estava prestes a aparecer e eu precisava dormir
um pouco. Embora minha vontade estivesse longe das aulas da CSU ainda
tinha que cumprir com a obrigação de frequentar as aulas, era necessário
conter a minha ansiedade de me tornar um milionário. Stan disse que não
tinha sono e iria permanecer trabalhando. Voltei para o beliche certo de que
cairia imediatamente em sono profundo, mas minha mente ficou agarrada às
imagens que vimos durante a noite. Bolsas femininas luxuosas e Smart
Tables eram projetadas debaixo das minhas pálpebras, mantendo-me no
limiar entre o sono e a vigília. Como trilha sonora deste filme implicante,
várias questões teimavam em se repetir. Eu conseguia entender que a
principal motivação dos frequentadores do fórum fosse o dinheiro, afinal
esta também era a minha motivação, mas por mais que eu tentasse entender
como alguém podia concordar em se submeter aos rituais me encontrava
num beco sem saída. Enquanto tateava pelos corredores da minha mente a
procura de uma resposta, eu esbarrava no ditado:
Melhor ser rei no inferno do que servir no paraíso.
No final, não sabia dizer se dormi ou não.
Quando os primeiros raios de sol invadiram o bunker, vi que Stan
também tinha se rendido ao cansaço e roncava na cama de cima. Procurei
me levantar sem fazer muito barulho. Como um malabarista, desviei-me de
toda a tralha tecnológica espalhada pelo espaço. Comi um pedaço de pizza
gelada e parti.
Pela primeira vez, eu queria chegar cedo à CSU. E não era por causa das
aulas.
Capítulo 5
Queda

Deixei Susie no estacionamento por volta das oito e quinze. Caminhar na


direção oposta ao prédio da informática me trouxe uma sensação de
liberdade (mesmo que efêmera a sensação era boa).
O sol da manhã projetava sombras listradas nos enormes blocos de
concreto que formavam as paredes do prédio. Aquilo parecia um brinquedo
de montar. Notei que as responsáveis pelas listras eram as inúmeras vigas
que formavam um inútil teto vazado.
Após cruzar os portões de vidro, atravessei o corredor onde as fotos dos
nossos presidentes me olhavam como se eu estivesse fazendo algo errado.
Cheguei até ali movido pela minha intuição - ela insistia em me dizer que
não encontraria o que estava buscando na internet. Discretamente, apontei o
dedo médio para os presidentes antes de me dirigir para o balcão de
atendimento.
Dei-me conta de que precisava frequentar mais vezes a biblioteca
quando fui atendido por uma bela jovem de negros cabelos curtos. Após
superar minha dificuldade inicial em dizer o que estava procurando, através
das lentes dos seus grandes óculos, ela falou comigo. Por pouco não me
engasguei com sua beleza.
Atravessei o corredor principal para descer as escadas rumo a sessão
vinte e um. A cada passo, percebia que o número de pessoas ao redor
diminuía. Era a comprovação objetiva de que o interesse por esses assuntos
era um bocado remoto.
Diante das duas estantes que representavam a minúscula sessão vinte
um, pendi o pescoço para esquerda para ler os títulos e autores que não me
diziam grande coisa. Apanhei ao acaso o volume chamado “Dogma e ritual
da alta magia”. Fui direto para o capítulo intitulado “magia negra”.
“O diabo, em magia negra, é o grande agente mágico empregado para o
mal por uma vontade perversa.”
Quando pensava ter começado a entender alguma coisa, o autor mais
adiante acrescentou:
“...que é, ao mesmo tempo, mas sob direções diferentes, o instrumento
de todo bem e de todo mal...”
O diabo pode ser um instrumento do bem? Aquilo soava
demasiadamente vanguardista para um livro de 1855. Avancei
aleatoriamente para o meio do volume para ver se encontrava algo mais.
“O diabo é Deus compreendido pelos malvados” - dizia na página cento
e dez.
Comecei a desconfiar que o livro servisse de inspiração para as letras do
Black Sabbath. Com certeza o autor e Ozzy compartilhavam da mesma
espécie de demência.
Desanimado, voltei a folhear o livro avançando para o segundo volume
intitulado “Ritual”. Meu sangue gelou quando, logo no início, esbarrei
numa ilustração de uma página inteira. Lá estava ele. Seu nome não me era
estranho: Baphomet. Em algum lugar, nos porões da minha mente, eu sabia
que uma banda de Black Metal tinha uma música com este nome. Sentado
numa espécie de trono, com suas patas e cabeça de bode, seus longos
chifres causavam um estranho contraste com as asas de anjo escurecidas.
Do meio das pernas, surgia um bastão enroscado por duas cobras (parecido
com o símbolo usado na medicina). Seria um ser do sexo masculino, caso
não possuísse seios. Acima do pentagrama gravado na testa, surgia uma
espécie de tocha que parecia iluminar todo o ambiente. Suas mãos
apontavam para duas luas, uma lua negra mais abaixo à esquerda e a outra
branca, no alto, à direita. Esticados como bailarinas, os pelos do meu braço
insistiam em querer sair do meu corpo enquanto eu olhava o desenho. Mais
do que qualquer outra coisa, a tocha me incomodava: a ideia de que uma
criatura como aquela pudesse trazer iluminação para alguém era
abominável.
Os rituais do fórum desfilavam pela minha cabeça: beber sangue de
galinha, profanar túmulos com pentagramas, urinar em pias batismais...
Tudo em nome daquela criatura hermafrodita? A promessa de ascensão
material seria tão sedutora assim?
Eu sabia a resposta.
Não! Espere um momento. Eu não sou diretor de nenhuma empresa! Na
verdade, estou procurando uma maneira de fugir desta responsabilidade. O
meu interesse é diametralmente oposto.
Fechei o livro e o devolvi a estante.
Muito atrasado para as aulas, retornei ao prédio da informática como se
arrastasse um saco de tijolos. A minha visita a biblioteca não tinha aliviado
o peso das minhas dúvidas e eu ainda tinha que encarar duas aulas pela
frente.
Enquanto o professor falava de polimorfismo, a imagem de Baphomet
perturbava a minha cabeça - afinal, não havia nada mais polimórfico do que
aquela criatura. A tarde passou e eu me perdi nos meus devaneios a respeito
das práticas funestas dos frequentadores do fórum. Com a cara inchada,
Stan só apareceu depois do almoço. Ele jurava que tinha conseguido
perceber um desenho macabro no padrão do forro das bolsas da Roland
Carrier. Como num jogo infantil de ligar os pontos ele desenhou um
pentagrama por cima das formas do tecido. Os cabelos da minha nuca
arrepiaram: era igual ao que Baphomet tinha na testa. Uma parte minha não
queria compartilhar o que eu vi no livro de manhã, era demasiado
perturbador. Outra parte não queria que eu ficasse sozinho com aquela
informação pelo mesmo motivo. A queda de braço durou pouco. Pude ver
seu queixo cair lentamente como uma ponte móvel quando mostrei a
imagem do livro.
Passamos a tarde trocando mensagens enquanto os professores se
revezavam rabiscando e falando coisas. “Solve” e “Coagula”. A atenção de
Stan se fixou nas palavras escritas nos braços daquele ser hermafrodita –
talvez a única coisa que eu tinha deixado passar. Mais e mais confusos: era
o nosso estado após visitarmos diversos sites e lermos tudo o que podíamos
a respeito do assunto. Dissolver e coagular: algo baseado na alquimia
medieval, cuja meta era a transformação dos elementos para serem reunidos
numa forma diferente. Sempre achei que o termo alquimia estava
relacionado com a transformação de metais em ouro, mas aqui o significado
era outro: a dissolução de todas as crenças e posterior reunião (a
coagulação) da humanidade em torno de apenas uma religião, onde
Baphomet seria o líder, é claro. A promessa de iluminação era concedida
através do poder da serpente, para alguns isso estava relacionado com uma
energia chamada kundalini que subia pela coluna vertebral – enroscada
como as cobras no bastão do desenho. Quanto mais eu lia, mais ficava
confuso; tudo parecia com devaneios de um velho hippie sobre sua última
viagem de LSD.
A última aula havia terminado e nós nem percebemos. Como uma
aparição que surgiu do fundo da sala, Alexei passou entre as nossas mesas.
- Ninguém fica rico vendo imagens de diabinhos durante uma aula de
algoritmos. Esqueçam essas merdas que não servem para nada e tratem de
trabalhar na lista. Cabeças de vento!
Eu nem tinha percebido que a aula era de algoritmos.
Antes de partir, combinei o horário da nossa segunda incursão. Embora
eu pudesse continuar de casa, percebi que era melhor que ficássemos juntos.
Era como assistir um filme de terror: é o tipo de atividade que ninguém
gosta de fazer sozinho. Marcamos novamente para as dez horas.
Mais tarde, ao chegar a casa, encontrei minha mãe de saída vestida de
roupa de ginástica. Aproveitei o momento de leveza para comunicar que
passaria mais uma noite fora – o verdadeiro lutador de artes marciais sabe
aproveitar as vulnerabilidades do oponente, li isso em algum lugar. Ela me
respondeu com um sorriso dizendo apenas que o jantar estava no
congelador. O golpe foi tão preciso que ela nem soube dizer o que a atingiu.
O outro adversário estava fora de combate: passei por meu pai que
cumpria sua meditação pós-laboral cochilando diante da TV. Aproveitei-me
da minha invisibilidade para tomar um banho e me preparar para sair,
quanto menos tivesse que explicar sobre a minha ausência melhor.
Levei o jantar – canelone a bolonhesa - para dividir com Stan, aquele era
um de seus pratos preferidos.
Saí de casa como um monge tibetano caminhando sobre o papel de
arroz. Tomei o cuidado de afastar Susie de casa para que o barulho do
motor não perturbasse meu pai.
Por volta das nove e cinquenta cheguei ao bunker. Seus olhos quase
saltaram das órbitas quando mostrei os canelones. Após colocar a refeição
no forno micro-ondas, ele decidiu compartilhar seus medos mais recentes.
- Sabe Eddie, estive pensando: se os frequentadores do fórum são
adoradores do diabo e estão perseguindo a riqueza, em qual categoria nos
encaixamos? Quero dizer, nós estamos atrás do dinheiro, mas não estamos
matando animais. Isso nos faz diferente deles, não?
- Engraçado. Durante esta manhã me vi questionando a mesma coisa.
Acho que tudo depende das suas crenças. Você acredita no diabo?
- Até outro dia não, mas agora... Depois de ver esta gente prosperando...
Como você explica isso?
Ele tinha um argumento. E eu não tinha explicação.
- Eu insisto que o que importa é a nossa crença. Nós não estamos
cumprindo rituais que algum satanista estúpido inventou, nós estamos a
serviço da nossa própria vontade, e isso basta para mim. Não tenho
interesse em saber se aquela criatura é a responsável direta pela
prosperidade dos frequentadores do fórum, quero apenas a minha liberdade
financeira.
Desconfiado, ele olhava para mim enquanto coçava a cabeça. Eu mesmo
também não tinha certeza absoluta a respeito das palavras que tinham
acabado de sair da minha boca.
A campainha do forno micro-ondas nos assustou.
- Bem, espero que você tenha razão – disse retirando o recipiente do
forno -, caso contrário nós estamos nos metendo numa grande merda.
Powerman 5000 serviu de trilha sonora para o apetite de Stan dançar
livremente sobre os canelones. Seu ar de satisfação a cada garfada era uma
diversão à parte; os respingos de molho na camisa branca só serviam para
realçar as cores da piada, inutilmente ele tentava consertar cada estrago com
o guardanapo.
Retomamos o trabalho por volta das dez e quarenta. O próximo da lista
dele era o usuário invisiblehands, fomos direto percorrer a lista de tarefas já
que o nome não nos indicava nada. Após passarmos por pedidos de
inversão de crucifixos em capelas, destruição de estátuas no cemitério e
afogamento de pintos na privada, chegamos à décima tarefa que parecia nos
dar alguma pista:
- Na próxima reunião de diretoria, proponha a demissão do chefe do
Centro de Pesquisas Oncológicas. Pense em alguém para substituí-lo.
Centro de Pesquisas Oncológicas? Nossos olhares se cruzaram
expressando a mesma surpresa.
No centro do amplo salão, a mesa oval com oito cadeiras de estofamento
vermelho aguardava a entrada dos participantes. Atrás da mesa, através da
parede envidraçada, a vista panorâmica da cidade era espetacular. Na
estante branca na parede ao fundo, havia apenas alguns enfeites e poucos
livros empilhados. Nada na sala sugeria o nome ou o tipo de atividade da
empresa.
De repente, vários senhores de terno entraram, todos como mesmo tipo
de pasta na mão. O clima parecia tenso, os rostos eram sérios. A cena
parecia com um daqueles filmes de tribunal onde o personagem principal
vai ser julgado de por um crime que não cometeu. Não havia lugares nas
cabeceiras da mesa, tornando difícil identificar quem era o nosso
invisiblehands, mas ele se revelou, quando o senhor de cabelos brancos da
ponta esquerda começou a falar:
- Senhores, boa tarde. Convoquei esta reunião extraordinária para tratar
de um assunto de suma importância. Como é do vosso conhecimento, o
Centro de Pesquisas Oncológicas está perto de obter resultados relevantes
no tratamento do hepatocarcinoma, contudo, os novos tempos demandam
resultados mais rápidos e a experiência comprova que eles só aparecem
através da mudança – pigarreou limpando a garganta. – Portanto, eu solicito
a rescisão imediata do contrato de trabalho de Henry Gardner, e indico
James Hawkins para substituí-lo no cargo de chefe do referido centro.
O murmúrio preencheu a sala, era notório o ar de indignação nos olhares.
Eu também fervia por dentro. A primeira vez em que ouvi a palavra
hepatocarcinoma foi durante o diagnóstico da doença do meu pai.
Desestruturar uma pesquisa que poderia salvar a vida de pessoas que
passaram pelo mesmo inferno? Desta vez eles tinham ido longe demais!
Um senhor de bigode se levantou para falar.
- Senhor, não me leve a mal, mas esta decisão será desastrosa. Os
acionistas esperam um resultado destes anos de pesquisa e Henry Gardner
tem demonstrado excelentes resultados na liderança da equipe. Por favor,
peço que reconsidere a sua decisão e...
- Não se preocupe – interrompeu o homem de mãos invisíveis - Eu já me
reuni com o conselho e eles aprovaram a minha decisão. Tenho carta branca
para avançar com meu projeto de mudanças. Em breve, a X-Genix Group
apresentará os melhores resultados de sempre. Acredite – afirmou sorrindo.
- Após uma brusca queda no mercado a X-Genix Group é uma das
empresas indicadas para a sua carteira de investimentos em médio prazo.
Após recente reestruturação interna, as suas pesquisas deve render
resultados nos próximos meses – dizia o texto do site de investimentos.
- Quanto mais eu vejo, menos entendo. Que tipo de gente é essa? Como
podem ser adoradores do diabo e acelerar a pesquisa da cura de uma
doença? Isso não faz nenhum sentido! – ele disse.
- Estou tão surpreso quanto você. A verdade é que não temos a menor
ideia do que está por trás dessa decisão. Lembra-se do forro da bolsa? Neste
caso, só porque não conseguimos ligar os pontos, não quer dizer que eles
não existam.
Com o olhar atônito, ele tomou um gole do copo de Sprite.
- Vamos avançar! Quem é o primeiro da sua lista? – ele me perguntou.
- O username é tr43hrm. Não me diz nada. E para você?
- Nem usando a tradicional troca de números por vogais: traehrm. O
Google não diz nada que preste também.
Digitei o username e senha na tela de login do fórum. Senti meu coração
bater mais forte quando cliquei no botão que dizia: entrar.
- Já faz três anos que este lunático frequenta o fórum. Já passou da
metade dos rituais. O último foi o de número trinta e cinco, há três meses.
- Vai começar pelo início, ou quer arriscar sortear um aleatório?
- Vamos desde o início.
O mesmo padrão se repetia: iniciava-se matando pequenos animais como
galinhas e pombos, seguido da profanação de locais sagrados. Estava lendo
as mensagens uma a uma, quando algo estranho me chamou a atenção. O
ritual de número seis saltava para o de número dezesseis. Onde estavam os
nove rituais intermediários? Já tinha percebido que os usuários não
conseguiam apagar as mensagens, ou seja, se elas tinham sido excluídas,
era responsabilidade dos administradores do fórum. Nossa curiosidade nos
fez saltar direto para o ritual seis para ler seu conteúdo.
- Durante a noite da próxima sexta-feira, no prédio de sua empresa, mate
uma galinha preta e coma seu coração.
Hesitantes: ficamos sem saber o que dizer um para o outro. De repente o
som do tique taque do relógio na parede parecia tão alto quanto um
concerto do Metallica.
- Se o cara filmou no prédio da própria empresa, temos chance de
descobrir alguma coisa. Vamos lá ver o vídeo! – arriscou.
Ele tinha razão, podíamos obter o nome de mais uma empresa, nos
colocando mais perto da fortuna. Respirei fundo e cliquei no vídeo.
A imagem de um homem com uma máscara de esqui preta surgiu
ajustando o foco da câmera que apontava para um furgão branco. O
ambiente era um escuro estacionamento com paredes azuis. Abriu as portas
traseiras do furgão trazendo para fora um grande aparato de metal. Com
uma estranha rapidez, ele montou a estante que devia medir uns dois metros
por dois. Dois grandes ganchos pendiam da barra do alto.
- Isso tudo para matar uma galinha? Isso é que eu chamo de um sujeito
meticuloso – disse Stan.
Retornou para o interior do furgão. Imediatamente começaram os ruídos.
Não tínhamos certeza do que estávamos ouvindo, mas definitivamente não
se tratava de uma galinha. Era o som de um animal em pânico, a caminho
do abatedouro. Antes que pudéssemos ponderar sobre o que se tratava o
homem apareceu puxando um grande porco por uma corda. Meu olhar
cruzou com o de Stan que a esta altura estava pálido como gelo. Detive o
meu impulso de parar o vídeo, se tínhamos chegado até ali, iríamos até o
fim. Neste ponto, já não sabíamos qual som incomodava mais: os gritos do
porco ou o do chicote com o qual o homem açoitava o pobre animal,
deixando marcas nítidas. A função do aparato de metal se tornou evidente:
pendurar o porco de cabeça para baixo, como num açougue. O desgraçado
teve que fazer força para pendurá-lo adequadamente. Roguei para que ele
desistisse, quase esquecendo de que aquilo não era uma transmissão ao
vivo. Assim que concluiu seu trabalho macabro, voltou para dentro do
furgão. Nós assistíamos como hipnotizados, desatentos para a informação
que buscávamos: o nome ou a logomarca da empresa. Stan balbuciou
poucas palavras ao ver o homem de volta, arrastando outro porco pela
corda:
- Este filho da puta é louco...
Repetiu toda a cena: desde o chicote até pendurar o animal que se
debatia prevendo o pior. A cena era grotesca – dois porcos pendurados
gritando num estacionamento desconhecido aguardavam pelo seu carrasco:
um homem com máscara de esqui. De repente, ele retornou para dentro do
furgão trazendo um facão para realizar o óbvio. Foi quando ele ergueu o
facão no ar que o menos óbvio se tornou evidente para mim.
- O coração! – gritei.
Meus ácidos estomacais emergiram com uma força violenta. Sentia a
acidez na minha garganta corroer minhas cordas vocais. Corri para o
pequeno banheiro enquanto Stan gritava pelo meu nome. Agarrei-me a
privada como se fosse uma boia salva vidas.
A cada convulsão, as lágrimas corriam dos meus olhos. Stan permanecia
grudado na parede com os olhos esbugalhados na minha direção. Mais um
jato. O sujeito com a máscara de esqui seguia abrindo as entranhas dos
porcos aos urros. Eu podia escutá-lo. Enquanto isso eu deixava as minhas
entranhas ali na água.
- O coração... O coração – era o que eu conseguia verbalizar, abraçado a
privada do minúsculo banheiro. Arrisquei um olhar para a tela: com a
máscara de esqui suspensa até acima da boca, ele seguia devorando os
corações. Fazia questão de mostrar para a câmera em detalhes. Após alguns
minutos, desligou a câmera: o vídeo chegava ao fim. Percebi que as minhas
lágrimas não eram consequência do meu enjoo.
- Eddie, você está bem? – perguntou.
- O coração... – foi o que consegui dizer.
- Creio que não foi uma boa ideia assistir estes vídeos. Alexei tem razão:
não temos estômago para suportar tamanha barbaridade – sentou-se no
chão, na porta do banheiro -, eu não sei como vou fazer para esquecer o que
vimos – segurou a cabeça com as duas mãos - Vou carregar esta memória
para o resto de minha vida. E pior: assistimos este lixo, impregnamos nossa
mente com esta depravação e não ficamos sabendo quem é o sujeito, muito
menos qual é a empresa.
Algo estava diferente. Eu não conseguia conter o que queria dizer. Sem
pensar falei:
- Eu sei quem ele é.
Capítulo 6
Purgatório

Era uma bela manhã. Eu sabia que os pássaros cantavam em algum


lugar, mas o som da minha voz interior impedia de ouvi-los. Ela insistia em
perguntar: quem é Adam Coburn?
Passamos o resto da noite reprisando o vídeo. Mostrei para Stan o ponto
em que ele erguia o facão, onde a manga de sua camisa caía mostrando sua
marca de nascença em forma de coração. Inicialmente Stan insistiu em
contrapor meu argumento, ponderando que podiam existir duas pessoas
com a mesma marca, e que qualquer estacionamento podia ter as paredes
azuis, como na Kisses and Hugs. Minha relutância em assistir os vídeos
restantes foi quebrada pela insistência de Stan, acabei por ousar ler a última
mensagem que sugeria uma ação durante a reunião da empresa. Somente
quando vimos um vídeo da tal reunião que ele se deu por convencido – lá
estavam eles: Martha, Amanda, Alexandra e Ian além de outras pessoas. Tio
Adam trazia sua ideia para o novo padrão de ícones do site: outro arquivo
pdf enviado pelos administradores do fórum. Lembrava-me perfeitamente
dele se vangloriar das horas gastas com este assunto, em sua casa, no último
domingo antes do início das aulas. Stan sugeriu que devíamos ler todas as
mensagens e assistir todos os vídeos, eu sabia que nada iria amenizar o que
vimos durante a madrugada, muito pelo contrário. Além disso, alguma coisa
dentro de mim dizia que eu deveria sozinho abrir esta caixa de pandora.
- Bem, parece que eu tenho a resposta para a minha pergunta: será que
esta estória de magia negra funciona mesmo? – disse enquanto se servia de
um café.
Eu continuava a olhar para ele sem dizer nada. Pouco me importava se
esta gente viesse do inferno e tivessem linha direta com o próprio Lúcifer
em carne e osso. O doce de pessoa que era tio Adam era capaz de matar
dois porcos e comer seus corações em nome da luxúria? A mentira era
muito mais importante, porque machucava e doía.
Como um trem desgovernado, o espanto surgiu em seu rosto.
- Acabei de perceber o que significava o username! Veja! – disse
apontando para a folha de papel que ele tinha usado durante a madrugada –
Eu estava no caminho certo quando troquei os números pelas vogais.
Restava apenas ler ao contrário: mrheart. Mister Heart!
Naquela altura aquela informação não fazia diferença. Foi apenas
quando Stan fez a pergunta certa que me dei conta do que se passava dentro
de mim:
- Eddie, o que você vai fazer?
Eu sabia. Não existiam dúvidas na minha mente. Sem conflito. E a
sensação era maravilhosa.
- Vou descobrir tudo o que se passa. Saber quem ele é, quais suas
intenções. Custe o que custar.
Arregalou os olhos. O que veio de sua boca a seguir seria surpreendente,
se ele não fosse quem era:
- Conte comigo.
Apertei sua mão e parti.
Eu e Susie. A caminho da CSU em plena velocidade. Escolhi Invincible
do Static-X. Nem o máximo volume vindo dos headphones conseguia calar
a voz no meu interior. Minhas antigas motivações para acelerar não estavam
presentes; acelerava agora para encontrar a única pessoa que podia me
ajudar: Alexei Rostov. A letra da música dizia:
This moment in time
This moment defined
How is it I feel nothing
It’s alright

O relógio marcava oito e quarenta e cinco. Mais alguns minutos as


atividades começariam na CSU. Embora tivesse dormido muito pouco,
sentia-me terrivelmente bem disposto. Tinha certeza de que Alexei estaria
presente. Seu visto de estudante dependia da presença nas aulas – e esta era
uma informação que ele não podia falsificar. Procurava localizá-lo através
do fluxo de estudantes: em todas as direções eu via gente, mas nada de
Alexei. Procurei me acalmar, se eu me desesperasse tudo iria por água
abaixo. Caminhei na direção da cantina para uma parada estratégica.
Colocar os pensamentos em ordem, me recompor.
Fui me sentar ao fundo da cantina, no local preferido dele. Sabia que ele
nunca chegava no horário. Era uma certeza. Portanto era pouco provável
que ele estivesse em sala quinze minutos antes da aula começar. Impossível.
Além dos três imprestáveis que o acompanhavam, ele nunca largava o seu
cigarro. Fumar. Ele devia estar em algum lugar fumando. Arrisquei o
estacionamento.
Para minha surpresa, o encontrei sozinho com seu cigarro de marca
russa. Logo que me viu, começou com o típico sarcasmo:
- Foguinho? Sentiu minha falta? Espero que tenha boas notícias das suas
farras noturnas com o gorducho.
- Estava mesmo a sua procura. Sim. Tenho uma informação quente como
lava.
Seu rosto se transformou como um passe de mágica.
- Desembuche.
- Tenho acesso à empresa de um dos usuários do fórum. Você tem
interesse em espioná-la?
- De qual empresa estamos falando?
- Da Kisses and Hugs.
- Foguinho vai trair a própria família? Vai me deixar espionar seu tio?
Até ali eu não tinha certeza se ele sabia que Adam Coburn – seja lá
quem ele fosse – era o meu tio. Percebendo meu momento de hesitação, ele
continuou:
- Achava mesmo que eu não sabia do seu pedigree? Santa ingenuidade!
- Poupe-me do seu sarcasmo. Sim. É exatamente isso o que eu te
ofereço, a possibilidade de estar a par de todo os passos estratégicos da
empresa, pouco me importo com o que vai fazer com isso, mas tem uma
condição.
- Que seria? – perguntou após um longo trago no cigarro.
- Preciso que você invada o sistema de segurança da casa do meu tio.
Quero receber toda a informação do circuito interno de TV no meu
computador.
Pisou na guimba, soltou a fumaça que restava da última tragada.
- Tem alguma ideia do software que ele utiliza?
- É um software alemão... Algo que termina em “Stein”.
- O único alemão que eu conheço que termina em “Stein” é o
Rammstein! - sorriu.
Eu sabia que ele tinha dito durante aquele domingo, quando Til acionou
o alarme. Nunca podia imaginar que precisaria resgatar tal informação.
Passei a maior parte do tempo divagando mentalmente sem de fato reter o
que ele falava. A única coisa que ficou gravada era o final do nome.
- Lembro-me dele dizer que esta era uma das poucas empresas que
trabalhava com um scanner 3D para armas, ou algo do gênero.
- Brickenstein? – disse após consultar o celular.
- Sim! É isso!
- Isso vai dar trabalho – navegava pelas páginas do manual -, mas nada é
impossível. Até o final da tarde terei uma solução. Pelo menos mantenho
minha mente ocupada enquanto esses idiotas acham que ensinam alguma
coisa. Enquanto isso, você leva esta pen e coloca num dos computadores da
Kisses and Hugs – disse colocando um micro pen drive na minha mão.
- Qualquer um?
- Sim. Qualquer um. Dê preferência por aqueles que possuam portas
USB no painel traseiro. Levantam menos suspeitas.
Decidi partir imediatamente para lá: não havia tempo a perder. Assim
que comecei a arrumar minhas coisas para partir, Alexei perguntou:
- Ei Eddie? – era a primeira vez que ele falava o meu nome - Como se
sentiu ao descobrir que seu tio é um satanista?
- Estranhamente iluminado.

Pensava na desculpa que eu daria para uma visita repentina à empresa


durante o meu horário de aulas. Teria que inventar uma boa também para ir
até a casa de meu tio implantar o dispositivo de espionagem. Saudades?
Claro. Porque não? O pobre Eddie sentia falta de seu tio adorador do diabo
e comedor de corações de porcos. Gratidão? Boa! O coitadinho do Eddie,
filho do infeliz do Jerry (aquele que foi salvo com o seu dinheiro satânico),
quer agradecer por se tornar herdeiro do império do mal. Afinal, quando
que o titio irá me iniciar nos rituais? Não. Isso não estava funcionando.
Tinha que calar a parte debochada da minha mente seu quisesse trabalhar
numa boa desculpa. Decidi por a culpa no meu esquecimento: procurava
um caderno de notas que eu podia ter deixado lá no dia da reunião. Sim,
essa era razoável. Até porque tinha o gancho com a universidade: precisa do
caderno para acompanhar devidamente as aulas.
As paredes azuis do estacionamento: lá estavam elas novamente.
Procurei pela vaga na qual eu julgava ter ocorrido o macabro ritual. Pela
posição dos extintores de incêndio, pude descobrir onde era: exatamente
onde o Porsche se encontrava. Deixei Susie na vaga ao lado e corri para
apanhar o elevador para o quarto andar.
Como se as coisas não pudessem ficar mais complicadas, dei de cara
com o meu pai ao abrir a porta do elevador.
- Eddie! O que está fazendo por aqui? Outra reunião?
Sua alegria pelo meu falso interesse pelos assuntos corporativos já não
me afetava.
- Olá pai. Estou à procura de um caderno da universidade. Acho que o
deixei aqui sem querer.
- Seu tio vai ficar feliz em te ver por aqui de novo.
O amarelo do meu sorriso devia ter a cor do sol quando a porta do
elevador fechou.
Direto para o quarto andar. Lembrei-me de não ter visto computadores
desktop na empresa. A grande maioria utilizava notebooks. Isso só tornava
a minha tarefa mais difícil. Não tinha certeza sobre a recepcionista. Talvez a
dona daquele sorriso irradiante fosse à vítima ideal.
Quarto andar: á apenas um jogo Eddie, apenas um jogo. Vá até lá e faça
o que tem de ser feito no menor tempo possível.
- Bom dia Edgar! Tudo bem? – disse com o belíssimo sorriso que eu não
tinha tempo de apreciar - Que bom vê-lo novamente.
- Bom dia Susan. Acho que esqueci um caderno de anotações aqui na
empresa. Sabe de alguma coisa?
- Na verdade não, mas posso me informar – disse ao mesmo tempo em
que sacou do telefone. Impulsivamente, meti a mão no aparelho cortando a
ligação.
- Olha, é assim: estou um bocado constrangido por isso... É que eu
preciso deste caderno, mas ao mesmo tempo não gostaria que os meus pais
ou meu tio soubessem que estou aqui perdendo aula por causa... Vamos
dizer: deste meu esquecimento – sorri -, portanto conto com sua ajuda e
discrição neste assunto. Pode ser? – tornei a sorrir, estava ficando bom
nisso.
- Claro – disse quase sussurrando -, vou até lá dentro dar uma olhada na
sala de reunião.
Assim que ela deixou a recepção, puxei a torre do Dell de sua mesa a
procura da porta USB no painel traseiro. Espetei o micro pen drive
escancarando as portas da Kisses and Hugs para Alexei. Tinha cumprido
minha parte do acordo, e ainda era meio dia. Enquanto ponderava se ia
embora sem esperar pela volta de Susan, meu celular recebeu uma
mensagem:
- Bom trabalho. Agiu rápido. Seu presente ficará pronto até o final da
tarde.
Ótimo. Com um pouco de astúcia, conseguiria implantar o dispositivo
hoje ainda. Comecei a pensar no que dizer para o meu tio. Qual seria o
motivo da minha visita? Til. Claro. A preocupação com seu estranho
comportamento era um bom motivo. Restava saber como eu chegaria até o
escritório.
Susan e seu sorriso retornaram pela porta de entrada. Constrangida, veio
me dizer que não tinha encontrado nada. Ela explicou que perguntou às
pessoas que participaram da reunião, mas ninguém disse ter visto ou
encontrado qualquer caderno. Seria uma surpresa se tivessem dito o
contrário, pensei.
- Não se preocupe. Ninguém sabe que você está aqui – disse tocando
levemente o meu ombro. A sensação era boa. Era uma pena que não
existisse tempo para boas sensações. Não agora.
Parti com Susie de volta para a CSU. Pelo retrovisor, o prédio da Kisses
and Hugs se afastava gradualmente, junto com ele, minha inocência ficava
para trás. Sentia a determinação pulsar dentro de mim. Era uma questão de
tempo para descobrir as verdadeiras intenções de tio Adam. Acelerei.
Cheguei a tempo para almoçar com Stan no Sutter Dining Hall. Seu
rosto amassado e o cabelo despenteado (além do usual) denunciavam que
ele tinha dormido toda a manhã. A preocupação em descobrir como adquirir
ações da RainbowPalz, ocupou seu tempo assim que o deixei. Caiu de
exaustão lá pelas nove horas. Partilhei as minhas últimas atividades do
projeto para desmascarar o Mr. Heart. Seus olhos arregalaram. Minhas
palavras funcionaram como um jato de água fria, despertando as últimas
partes dele que ainda estavam adormecidas.
- Você não está brincando em serviço. Entregar a empresa para o bloco
soviético em troca da privacidade pessoal de seu tio? Não sei se te dou os
parabéns ou se mando te internar num hospício.
- Por enquanto me dê os parabéns, quando tudo terminar pode mandar
me internar.
Através de seu olhar, percebi que alguém chegava pelas minhas costas.
Antes que pudesse me virar, uma mão tocou o meu ombro.
- Aqui está o seu brinquedo. Isso é o que acontece quando se contrata o
melhor profissional: entrega antes do prazo – disse entregando-me o micro
pen drive com um sorriso no rosto.
- Configurei tudo para que as imagens sejam direcionadas para o seu
notebook. Aproveite o show.
- Espere! Como funciona? Qual a aplicação?
- Esqueceu que tenho acesso ao seu notebook? Da próxima vez que o
ligar, um ícone surgirá na sua área de trabalho.
Não contive a minha vontade: após partilhar minhas intenções com Stan,
saltei da cadeira rumo ao estacionamento, quanto mais cedo eu habilitasse o
dispositivo melhor. Não havia tempo a perder. Entrar na mansão não seria
um problema, Esmeralda, sua empregada, devia estar lá trabalhando. A
questão era como explicar minha presença em sua casa durante uma tarde
de quinta-feira? Podia usar a desculpa do esquecimento do sagrado caderno
da CSU – sem ele, eu não conseguia acompanhar as aulas. Desta a forma a
mentira ficaria coerente com a utilizada na Kisses and Hugs. Satisfeito com
o estratagema criado, acelerei com Susie para Beverly Hills.
A ansiedade em ter o aparato completo era grande. Tempo perdido: eram
as palavras que martelavam dentro da minha cabeça. Quanto tempo eu
ousei perder em troca de uma ilusão? Tempo demais. No impulso de
agradar a todos acabei por desagradar à pessoa mais importante: eu.
Quarenta minutos mais tarde chegava ao meu destino. Conforme
imaginei, Esmeralda veio atender a porta. Sua primeira reação foi a de
surpresa, quando me viu ali naquele horário.
- Eddie! Mas que surpresa meu querido! O que faz aqui a esta hora da
tarde?
- Olhe, estou procurando por um caderno que eu devo ter esquecido aqui.
Por acaso a senhora não encontrou nada diferente, não?
- Caderno?– disse coçando a cabeça - Deixe-me pensar...
- Posso entrar para procurar? – insisti. O caso é o seguinte: enquanto
estou aqui, estou perdendo aula na universidade e o caderno é
imprescindível para acompanhar as aulas, entende?
- Sim! Claro! Entre, entre.
Sem perder tempo, disparei pelas escadas até o escritório no terceiro
piso. Diante dos monitores do circuito interno de TV senti meu coração
bombear o sangue com força. Mentalmente disse para mim mesmo: sim,
você está aqui prestes a colocar um dispositivo para vigiar seu tio. Respirei
fundo antes de puxar a CPU para fora da estante revelando que a mesma
escondia um cofre na parede. Antes que eu pudesse imaginar quanto
dinheiro meu tio tinha ali guardado, outra coisa mais importante fisgou
minha atenção. Meus olhos viram, mas minha mente se recusou a acreditar:
não existiam portas USB no painel traseiro. O painel frontal não era uma
opção, ainda que fosse pequeno, o micro pen drive seria visível. Prestes a
entrar em colapso, comecei a procurar por ferramentas nas gavetas da
estante. Tinha certeza de que meu tio guardava um monte delas em algum
lugar. A cada contato com um novo puxador de gaveta, percebia minhas
mãos tremendo indicando que a minha ansiedade estava aumentando. Olhei
para o alto e vi o estojo de ferramentas na prateleira do canto superior, ao
lado do livro de CSS 3.0. Procurei pela chave de parafusos, sem saber, eu já
sabia o que fazer: abrir a CPU com a máquina ligada, puxar uma das portas
USB para dentro do chassi e conectar o micro pen drive. Aquilo demandava
precisão cirúrgica: um movimento errado danificaria o computador, pondo
tudo a perder.
- Eddie! Encontrou o caderno? Precisa de ajuda? – Esmeralda disse do
primeiro piso. Percebi que ela estava no pé da escada, pronta para subir.
- Está tudo bem! Já vou descer – respondi o mais rápido que pude
enquanto começava a desparafusar a CPU. Percebi algumas gotículas no
chão, bem abaixo da direção da minha cabeça: o suor brotava da minha
testa e escorria pela têmpora esquerda. O quarto - e último - parafuso
insistia em permanecer imóvel: seu encaixe estava gasto fazendo com que a
chave deslizasse em seu interior. Tentei utilizar a chave com encaixe
ligeiramente menor: sentia meus dedos quase se fundirem com a chave,
tamanha era a força utilizada. Respire fundo, pensei comigo. O martelo
amarelo gritou de dentro do estojo: era minha última opção. Um golpe com
a chave de fenda: quebrei o parafuso liberando o acesso para o interior do
computador: três deles dariam conta de mantê-lo fechado – sem deixar
rastros. Afinal, aquele era um computador que raramente deveria ser aberto
para manutenção, por causa de seu caráter de servidor. Guardei a cabeça do
parafuso quebrado para não levantar suspeitas. Acalme-se Eddie, acalme-
se; está tudo bem, ninguém vai perceber – eu repetia mentalmente. Sequei a
testa com a pequena flanela verde que se encontrava dentro do estojo – não
podia me dar ao luxo de molhar algum componente com suor. Posicionei o
alicate na porta esquerda do painel frontal – imaginei que esta seria a que
meu tio intuitivamente usaria menos, pelo fato de ser destro. Não foi
necessária muita força para deslocar a porta para dentro. Num piscar de
olhos, puxei o micro pen drive da mochila. Senti a tensão em meu pescoço
diminuir assim que conectei a pen. Meu corpo queria ir para o chão, deitar-
se por um instante, mas não existia tempo para isso. Após aparafusar a
CPU, me reposicionei diante dos monitores, no mesmo local em que fiquei
quando ali cheguei: estava tudo impecável. Imaculado.
Estava feito.
Antes de apanhar minha mochila para sair dali, tive a ideia: saquei meu
caderno de anotações e desci com ele na mão.
- Olhe! Encontrei! Deixe-me ir correndo para aula agora. Obrigado.
Antes de sair pude ouvir Til latindo ferozmente de seu canil. Se ele não
estivesse preso, por causa da presença de Esmeralda, eu diria que teria me
atacado naquele instante, como no outro dia. De pé, suas grandes patas
pressionavam as grades do canil. Seus latidos podiam ser traduzidos como
insultos vindos de um presidiário ao ver seu advogado de acusação circular
pelo presídio. Nem mesmo as palavras espanholas jogadas ao vento por
Esmeralda foram capazes de apaziguar sua fúria.
Eu e Susie saímos dali sem destino. Pelo horário, se retornasse para a
CSU, chegaria a tempo de assistir o final da última aula. Fogos de artifício
dentro do meu cérebro impediam-me de colocar minha atenção em
algoritmos e estrutura de dados. Era inútil levar o meu corpo até lá,
enquanto minha mente estivesse focada em espionar tio Adam. Decidi
apenas matar o tempo e chegar a casa no horário convencional, como se
estivesse voltando da CSU. Deixei meu coração me guiar, levando-me para
o local ideal para matar – ou ganhar – o tempo.
Enquanto cruzava a Pacific Avenue, me sentia cada vez mais leve. Tudo
naquela rua parecia me remeter para uma zona de conforto: as pequenas
casas com seus jardins frontais, a humilde altura dos prédios e a visão
panorâmica do céu. Antes de entrar na Brooks Avenue, reconheci o prédio
marrom escuro, com seus painéis artísticos coloridos e suas pastilhas
brancas do revestimento exterior. Cada item tinha seu equivalente
registrado na minha memória, aquele lugar era parte do meu ser. Deixei
Susie perto do Café Venicia: o som das pessoas conversando nas mesas da
rua era reconfortante, familiar. Dispensei alguns segundos para contemplar
a praia: não sabia dizer a quanto tempo eu não aparecia por ali. Fui para o
outro lado da calçada, onde se encontrava o meu destino.
Toquei a campainha e aguardei que Simon viesse abrir as pesadas portas
de madeira. Ele apareceu com seu habitual casaco adidas azul escuro – sua
segunda pele, como alguns diziam - e os fones pendurados no pescoço.
- Eddie, seu filho da puta! Quem é vivo sempre aparece – disse ao me
abraçar. Era bom estar em sua presença novamente. Exatamente o que eu
precisava naquele momento: uma rota de fuga.
Subimos as escadas para a sala principal. As quatro guitarras penduradas
na parede permaneciam na mesma ordem: a fender Stratocaster; a Gibson
Les Paul; a fender Telecaster e a Gibson Memphis. O confortável sofá
branco de três lugares me convidava para sentar – meu corpo pedia um
descanso das últimas horas. Acomodei-me entre as almofadas coloridas,
diante da mesa de som.
- Porra meu irmão! Por onde tem andado? Não tenho notícias suas desde
que a saiu da banda.
- Ando atolado no meio de computadores – encostei a cabeça na parede
-, estou cursando informática na California State University.
- Tá de sacanagem? Você? Na universidade? Informática? Isso só pode
ser uma piada de mau gosto.
- Às vezes nem eu acredito.
- Pelo menos tem visto o pessoal da banda?
Num segundo, aquela pergunta trouxe de volta uma enxurrada de
recordações.
- Não. Também não faço ideia do que eles andam a fazer.
- Cada um seguiu um caminho diferente, mas nenhum tão radical como o
seu – sorriu. Todos continuam a tocar em bandas diferentes.
De repente compreendi que não havia nada de engraçado no meu
caminho. Ele se levantou e foi até a pequena cozinha apanhar duas garrafas
de Seven Up. Entregou-me a garrafa e fez um brinde antes levar o gargalo
até a boca.
- Um brinde aos velhos tempos! Ainda fico impressionado ao ouvir o
som que vocês faziam. Qual era a sua idade naquela época? Dezesseis
anos? É inacreditável. Vanguarda cara! Aquilo sim é o que podia se chamar
de vanguarda. Dei sorte de vocês escolherem o meu estúdio para ensaiar. Se
tivessem persistido, não sei onde estariam hoje.
Esfreguei os olhos. Era como se saísse de um estado catatônico. Sabia
que aquilo tudo era verdade, mas parecia que ele estava falando de outra
pessoa. Sentia-me mais velho do que minha idade: apenas seis anos tinham
se passado, mas já parecia uma eternidade. Percebendo que tinha tocado
numa velha ferida, trouxe a conversa de volta para o momento presente:
- Deixe-me te mostrar a banda que eu estou fazendo a mixagem. Eles
terminaram de gravar ontem mesmo. Material fresquinho.
O som pesado da bateria arrastada invadiu o ambiente; o riff das
guitarras se tornava evidente pouco a pouco; o vocal, no estilo hard rock
dos anos setenta, demonstrava uma força fora do comum. Meu corpo
recebia aquilo como uma massagem afrodisíaca. Eles eram bons. Muito
bons.
Perdi a noção do tempo ouvindo todo o repertório da banda, hipnotizado
pela combinação da música e a maestria de Simon operando a mesa de som.
Só me dei conta de quanto tempo tinha passado quando ele me avisou que
tinha que fechar o estúdio por causa de um compromisso - foi quando fui
empurrado de volta, caindo no precipício da minha realidade.
Já na calçada, antes de me despedir, prometi que da próxima vez que o
visitasse seria para ensaiar com uma banda.
- Amém – disse Simon sorrindo enquanto apertava minha mão.
Já passava do horário em que eu habitualmente voltava da universidade.
Precisava correr. O motivo da minha pressa não era por causa dos meus pais
– eles não se importavam com o horário que eu aparecia em casa -, mas sim
porque não queria perder um minuto do meu big brother privado. Quando
saí, o relógio do estúdio marcava 19h48, por esta altura tio Adam já devia
estar em casa.
Acelerei. Meu estômago começava a reclamar pela ausência de alimento.
Tinha sido um dia cheio, estranhamente vivo: cada segundo estava gravado
na minha mente com uma intensidade fora do comum. A adrenalina podia
fazer milagres na vida de um homem. Era capaz de removê-lo de sua
letargia.
Como de costume, encontrei meu pai em casa na sala diante da TV. Corri
para a cozinha a procura de comida. Dei de cara com um bilhete na
geladeira que dizia: o jantar está no congelador.
- Hoje é quinta-feira – disse meu pai, esperando que eu demonstrasse
que compreendi a mensagem, mas aquilo soava como árabe naquele
momento. Cansado de esperar por uma resposta continuou:
- É um dos dias em que sua mãe vai ao pilates, esqueceu? Pilates?
Aquela cena com as bolas.
Aquilo parecia fazer alguma diferença para ele, mas não fazia para mim.
Após o transplante minha mãe assumiu um sutil papel de enfermeira,
controlando tudo o que ele comia, entre outras coisas. Ela chegou a voltar a
cozinhar diariamente para atender os duros critérios exigidos pela sua nova
dieta. Por causa de tanta devoção acabou por perder seu emprego como
professora. Nem mesmo os apelos de tio Adam surtiram efeito: ele cansou
de se colocar a disposição para pagar uma acompanhante para o meu pai.
Foi o que foi: os dois acabaram indo trabalhar na fundação. No final foram
obrigados a aceitar a ajuda dele de qualquer jeito.
Enquanto o relógio digital do forno micro-ondas fazia sua contagem
regressiva, aproveitei para responder as mensagens de Stan, que insistiam
em pipocar no celular.
- Entregou o pacote? – ele fazia soar como se estivéssemos num filme de
espionagem.
- Pacote entregue. Daqui a pouco começo a primeira sessão – digitei
sorrindo.
- Mais dois coelhos caíram na armadilha – deduzi que se tratava da lista
da Deep Web -, deste jeito nós vamos nos empanturrar antes do que
imaginávamos.
Senti o sinal do forno micro-ondas na boca do meu estômago. Continuei
a responder as mensagens entre as garfadas no ravióli de carne.
- O coelho grande que conseguimos ontem à noite é de difícil digestão.
Ainda não sei quando volto a olhar as outras armadilhas.
- Não se preocupe, eu continuo a caçada daqui.
Ao sair da cozinha, vi que meu pai tinha adormecido diante da TV. Por
um momento pensei: Jerry Coburn não faz a menor ideia de quem é seu
irmão. Por isso mesmo ele consegue deitar a cabeça no sofá da sala e
dormir após um dia de trabalho. Talvez alguns segredos devessem
permanecer secretos, em nome da paz. Mesmo que se tratasse de uma paz
podre.
Definitivamente, o gênio de Alexei se limitava a programação. Encontrei
o ícone do aplicativo na minha área de trabalho: uma cabeça de um diabo
com o nome: “Spy Hard”. Troquei pelo ícone de uma impressora e
renomeei para “Hardware Test”. Antes de colocar o aplicativo para
funcionar, uma voz dentro da minha cabeça perguntou: o que você vai fazer
com o que descobrir? Eu não tinha resposta para isso. Apenas queria
descobrir quem era o meu tio. Cliquei no ícone e a uma réplica da tela do
escritório do meu tio surgiu. Maldito Alexei.
(...)
Com vigor ele se movimentava. Com a cabeça entre os travesseiros,
Sharon permanecia de quatro. Tio Adam a segurava com as duas mãos pela
cintura; o rápido vai e vem faziam daquela cavalgada uma autêntica cena
pornô. Com a mão esquerda, ela puxava sua perna, como se pedisse para
usar mais força – e ele atendia prontamente seus desejos. Se eu não tivesse
descoberto o que descobri na noite anterior, possivelmente me sentiria
desconfortável (mas também não estaria espionando meu tio agora). A vida
era hilária, pensei. Aquela cena era tão quente, que nem me lembrei de
olhar para os outros cômodos da casa. Após um longo tempo, começaram a
se mover para mudarem de posição. Tudo indicava que era a vez dela ficar
por cima.
(...)
Sim. Era a vez dela.
(...)
Realmente, a vida era hilária: após se encaixar começou a se mover
como uma louca com seu rosto voltado para a câmera: era a minha mãe.
Capítulo 7
Ataque

O luar entrava pela minha janela. Bilhões e bilhões de estrelas


inspiravam os poetas durante a noite, mas a escuridão no meu interior era
devastadora demais para ser afetada por isso. Minha memória consumia
toda a minha atenção ao relembrar as imagens do início da noite. Desde a
cena com os porcos, pensava que estava preparado para ver qualquer coisa.
Não estava. Uma missa negra ou outro sacrifício com animais constavam na
lista das minhas expectativas – qualquer coisa, exceto um filme pornô com
minha mãe. De cabelos molhados ela chegou por volta das nove e trinta. O
álibi da sessão de pilates funcionava bem: era necessário um banho após a
ginástica com as bolas – neste caso, com as bolas do meu tio. Na minha
mente, a frustração andava de mãos dadas com a decepção. Após ela deixar
a mansão, meu tio apenas deitou e dormiu. Como? Eu não sei. Tudo
indicava que sua consciência permanecia limpa como um céu sem nuvens,
sem dilemas. Minha mente andava em círculos: será que ela sabia das
atividades satânicas? Pior: seria uma adepta? Onde meu pai se encaixava
nisso? Um homem a beira da morte pode se tornar capaz de qualquer coisa.
Era difícil pensar na próxima ação a tomar. Afinal, o que eu poderia
descobrir a seguir? Infelizmente, a última descoberta ficaria guardada no
meu cofre pessoal. Por mais que eu quisesse, não conseguiria partilhar com
Stan, ninguém gostaria de expor a própria mãe deste jeito.
Por volta de uma e meia, as câmeras mostravam que a paz reinava na
mansão. Não havia sinal Til, ele devia estar em algum lugar fora do alcance
do sistema de segurança; era muito estranho que tal lugar existisse em
função da sofisticação do sistema. Fui à cozinha preparar um café e por os
pensamentos em ordem.
O pote de bolachas de amêndoas sorriu para mim assim que abri o
armário em busca de café: só então percebi que meu corpo clamava por
açúcar. Enquanto observava a cafeteira trabalhar, os cenários mais
estapafúrdios surgiam na minha mente: no primeiro, tio Adam cobrava
favores sexuais da minha mãe em troca de salvar a vida do meu pai; no
segundo, meu pai decidia que ela deveria se tornar um objeto sexual de meu
tio como forma de gratidão; no terceiro cenário, os três eram adoradores do
diabo que viviam em paz a devassidão e a luxúria. Percebia o potencial que
estes pensamentos tinham de me enlouquecer. De repente, me vi em rota de
fuga. Fugir de casa nunca esteve nos meus planos. Para onde eu iria? Ao
mesmo tempo, a vontade de descobrir toda a verdade estava inflamada
dentro de mim, mas ainda tinha dúvidas se estava disposto a pagar o alto
preço por isso - a dissolução de todas as minhas crenças a respeito da minha
família. Mordi metade da bolacha ao mesmo tempo em que tamborilava
com os dedos sobre a mesa. Era maior, muito maior: eu precisava saber.
Voltei para o quarto munido do pote de bolacha e uma grande xícara de
café.
Nem mesmo a cafeína foi capaz de vencer o meu cansaço. Lutei com o
sono enquanto pude. O peso de minhas pálpebras tornavam as imagens da
mansão de tio Adam cada vez mais intermitentes. Cada vez... Mais
intermitentes...
Estava nu. A escuridão dificultava enxergar o espaço a minha frente.
Com muita dificuldade, consegui perceber o longo corredor sem portas.
Havia uma luz ao longe, um fraco feixe de luz revelava a silhueta do
corredor. Decidi avançar. Formas estranhas entravam em contato com a
minha pele. As superfícies viscosas e escorregadias deslizavam pelo meu
corpo causando uma estranha mistura de prazer e nojo.
Raiva.
A raiva movia meu corpo. Empurrava com força aquelas formas bizarras
ao mesmo tempo em que tateava as paredes a procura de alguma coisa –
alguma coisa que pudesse me ajudar!
Excitação!
No meio do desespero: uma ereção. Minha mão alcançou um interruptor
– era a minha chance! Acendi a luz: dezenas de bolas de pilates untadas
com óleo espremiam a passagem pelo estreito corredor.
Sufocado!
Ouvi risos vindos de cima: meus pais e tio Adam flutuavam nus
grudados no teto. Como um raio, ele surgiu do meio das bolas: Til avançou
no meu pescoço dilacerando a minha garganta. Pude ver meu sangue tingir
as bolas de vermelho enquanto meu corpo caía.
Sem vida.
Acordei. Esfreguei o rosto com as mãos, como se aquilo fosse capaz de
apaziguar a minha respiração ofegante e o meu coração disparado.
Imediatamente, olhei para o notebook: meu tio se aprontava para sair:
calçava os sapatos, penteava os cabelos e escovava os dentes. Era mais um
dia como outro qualquer em sua vida. Percebi que a rotina poderia cuidar da
minha sanidade. Precisava me esforçar para manter uma estrutura, caso
contrário tudo podia ruir. Levantei-me da cama direto para o banheiro: uma
boa ducha com água quente era o necessário para começar bem o meu dia.
A intenção era boa: manter a velha rotina, manter a sanidade. Tudo
indicava que era impossível: sentado na mesa com meus pais durante o café
da manhã meus pensamentos riam de mim. Rodeavam minha cabeça
sussurrando coisas, despertando imagens, tagarelando, tagarelando,
tagarelando: seu tio come sua mãe, eles adoram o diabo, comem coração
cru de porco no jantar. As bolas de pilates untadas com óleo flutuavam a
minha volta.
- Encontrou o caderno? – meu pai interrompeu minha alucinação.
Demorei a entender do que ele falava.
- Sim. Não vai acreditar: estava na casa de tio Adam.
- Você foi até a casa dele buscar? – perguntou num tom ameaçador,
como se tivesse invadido um templo sagrado.
- Claro! Precisava dele para assistir as aulas – revidei.
A estrutura! Sim, precisava dela para manter a aparência de sanidade.
Internamente tudo estava ruindo. Há muito tempo.
Antes de partir com Susie para a CSU, chequei meu celular a procura de
mensagens de Stan: nada. Achei estranho que ele não tivesse feito contato,
imaginei que tivesse trabalhado a lista da Deep Web durante a noite. Talvez
ele também tenha se rendido ao cansaço. Escolhi a trilha sonora adequada
para o caos: Disturbed. Tudo fez sentido quando David Draiman cantava a
letra de Perfect Insanity:
Try again to find
The thing that was my mind
I’ve lost my mind, I’ve lost my mind, I’ve lost my mind
De volta a CSU, meu corpo caminhava para a sala de aula numa
tentativa desesperada de enganar a minha mente. No fundo eu sabia que
nada poderia ser igual ao que era antes. Acenei com a cabeça para duas
meninas da minha turma. Sorria, pensei. Meus olhos procuravam por Stan.
Um rosto amigo no meio da multidão me ajudaria. Nada. Passei por Alexei
e dois de seus discípulos: uma rápida troca de olhares era suficiente.
Enganava-me olhando para o quadro de horários, como se quisesse
realmente saber qual era a próxima aula: arquitetura de sistemas
operacionais.
Até aquele ponto estava tudo bem: o professor tinha começado a aula
falando sobre o Unix e avançava explicando as origens do Linux. A
realidade tinha conseguido reter a minha atenção. O vazio do lugar ao meu
lado insistia em materializar uma interrogação na minha testa: onde estava
Stan? Dormindo? A ausência de respostas das mensagens no celular parecia
confirmar a minha suspeita. Uma janela terminal surgiu na minha área de
trabalho:
- Encontrei este documento na empresa do seu tio. Acho que é do seu
interesse.
Arrisquei um olhar para trás e Alexei retribuiu com um sorriso artificial,
piscando o olho e apontando o dedo indicador na minha direção – a mania
russa de debochar dos clichês americanos era cansativa.
O documento mostrava o organograma da empresa proposto para o
próximo ano. Senti um arrepio percorrer meu corpo dos pés a cabeça
quando li meu nome na posição de programador chefe. Se aquilo antes me
afetava por razões pessoais, agora se tornava muito pior. Tive vontade de
correr dali naquele segundo. Dar as costas a CSU para nunca mais voltar. A
rotina não funcionava como antes. Fechei a tampa do notebook. Hesitei.
Respirei fundo e decidi sair da sala para tomar ar fresco.
Segui meu impulso de telefonar para Stan. Sabia que podia acordá-lo,
mas precisava ouvir uma voz amiga. Ele entenderia. Com um nó na
garganta aguardava contando os tons de chamada. Um. Mais um. Outro.
Ainda outro. Finalmente uma voz feminina atendeu:
- Edgar? – reconheci imediatamente a voz de sua mãe.
- Sra. Kimberly? Tudo bem? Posso falar com Stan?
A breve pausa foi suficiente para me dar certeza de que algo de muito
errado tinha acontecido.
- Um acidente aconteceu durante a noite Edgar. Nós estamos no Santa
Rosa Memorial Hospital – senti a dor lancinante em sua voz.
- Stan está saindo da cirurgia – ela continuou – foi atacado por um cão
durante a madrugada.
Tudo indicava que, quando queria, a realidade podia se tornar mais
bizarra do que uma viagem de LSD. Segurei-me na pilastra ao meu lado.
Aquilo não podia estar acontecendo. Imediatamente lembrei-me da noite
que passamos juntos: ele insistiu que um cão esteve paralisado diante de sua
casa. Não sabia o que dizer. Muito menos o que fazer. Enquanto o bloqueio
me mantinha num vácuo, Sra. Kimberly prosseguiu:
- Deram-lhe morfina para a dor – parou para respirar, parecia estar
prestes a desabar -, antes de entrar para a cirurgia ele chamava pelo seu
nome. Eu sei o quanto vocês são amigos... Assim que puder venha visitá-lo,
ok? Preciso desligar. Até breve.
Vi minha mão tremer enquanto guardava o celular – achei que era a mão
de outra pessoa. Quando me dei conta, meu corpo todo estava tremendo.
Esfreguei o rosto com as mãos, como se fosse possível fazer com que a
informação na minha cabeça fosse apagada por um passe de mágica. Corri
para a sala de aula escancarando a porta num estrondo – todos me fuzilaram
com o olhar enquanto guardava minhas coisas. Como um asteroide
desgovernado, saí do mesmo jeito que entrei.
Parti acelerado com Susie desrespeitando todas as regras do trânsito. Se
eu chegasse inteiro no Santa Rosa Memorial Hospital podia me considerar
renascido. No caminho, várias perguntas ecoavam em minha mente,
implorando para serem verbalizadas. Nem mesmo a vibração do motor de
Susie nos meus tímpanos era capaz de calar minha mente. Se a morte é
capaz de falar conosco, sua voz soaria como a buzina de um BMW preto
(seguida de um palavrão). Num lampejo, desviei do carro que vinha na
minha direção. Estava perto, muito perto.
Tinha realizado em trinta e cinco minutos um percurso que demoraria
uma hora. Corri para a entrada do hospital – uma grande cruz no terceiro
andar do prédio dava um ar fúnebre ao local. Não, não! Ele está vivo,
pensei. De perto, o carro que eu tinha julgado ser uma ambulância, revelou
se tratar de uma espécie de ônibus escolar. Apesar do meu equívoco, eu
estava certo: a entrada do hospital era ali.
Usei força suficiente para empurrar um ônibus ao abrir a porta - quase
derrubando dois senhores de terno escuro que pretendiam sair. Consegui
encontrar tempo – e fôlego – para pedir desculpas antes de correr para a
recepção para perguntar pelo quarto de Stan.
Incapaz de vivenciar a tortura da espera pelo elevador, subi correndo
pelas escadas rumo ao quarto 302. Ouvi o som da borracha do meu tênis
frear contra o chão quando cheguei ao gélido corredor do terceiro piso. O
olhar dos enfermeiros que circulavam indicava que era o momento
adequado para desacelerar. Achei que meu coração ia sair pela boca quando
parei diante da porta do quarto. Respirei fundo e entrei.
Visivelmente abalada, com os olhos parecendo dois botões de rosa, a
Sra. Kimberly levantou-se do sofá para me abraçar. De olhos fechados, Stan
permanecia deitado, com uma expressão de dor em seu rosto. Sua perna
esquerda, enfaixada do tornozelo até a virilha, parecia um amontoado de
trapos, tingidos de sangue por todo o lado. Eu tentava encontrar uma
explicação lógica para aquele evento, de preferência uma que descartasse a
possibilidade de loucura coletiva. Mas o que a Sra. Kimberly me contou a
seguir ajudou muito pouco, ou quase nada. Segundo seu relato, ela e o
marido, ouviram os gritos de Stan pedindo por ajuda por volta das três da
madrugada. Acabaram por encontrá-lo próximo das latas de lixo da rua,
com a perna dilacerada e com sangue por todo o lado. Não viram sinal do
cachorro que ele alegava ter produzido o ataque e desconheciam algum
vizinho que possuísse um animal capaz de tamanha selvageria. Após uma
cirurgia que durou duas horas e meia, os médicos haviam dito que foi por
muita sorte ele não ter perdido a perna.
- Eu posso ir embora? – Stan murmurou de olhos fechados.
Não consegui conter minha felicidade por causa daquela pequena
manifestação de consciência. Precisava falar com ele. Era vital. Aproximei-
me da parte inferior da cama o suficiente para ler o nome Stanley
Thompson escrito na prancheta com a estranha caligrafia do médico. A Sra.
Kimberly, sentou ao seu lado acariciando seu cabelo.
- Veja. Edgard está aqui – ela sussurrou em seu ouvido -, veio te visitar.
Percebi uma leve mudança de expressão em seu rosto. Julguei que fosse
fruto da minha imaginação por causa da minha expectativa. Com algum
esforço ele abriu os olhos.
- Eddie! Você está aqui? Que bom – tornou a fechar os olhos.
- Mãe – disse quase gemendo -, a minha boca está seca... Eu quero muito
tomar um Seven Up. A senhora pode conseguir um para mim?
- Deixe-me perguntar ao médico se você pode tomar refrigerantes. Você
acabou de sair de uma cirurgia séria, não convém...
- Mãe, por favor – pediu como uma dócil ovelhinha.
Rendeu-se a súplica do filho e foi até a máquina de doces no final do
corredor. Assim que saiu pela porta, ele fez um sinal com a mão para que eu
me aproximasse. Sentei-me no mesmo lugar onde Sra. Kimberly estava.
Lentamente ele levantou seu braço e agarrou minha camisa na altura do
peito.
- Nós estamos fodidos Eddie! Dois sujeitos do FBI vieram me interrogar
aqui no hospital... Fizeram todo o tipo de perguntas sobre a Deep Web...
Eles identificaram o meu endereço IP! Alexei nos fodeu, cara! Ele nos
fodeu! – começou a tossir.
- Calma Stan – afastei suas mãos da gola da minha camisa -, o que está
dizendo? O FBI?
- Sim – pigarreou antes de prosseguir. - A minha sorte foi que minha
mãe não estava no quarto. Foi pouco antes de você chegar. Permaneceram
aqui por cinco minutos talvez. Eram dois tipos muito estranhos: loiros de
olhos azuis. Pareciam irmãos gêmeos.
- Por acaso ambos usavam terno escuro?
- Exato! Como você sabe?
- Quase os derrubei ao entrar correndo no hospital.
- Cacete! - com esforço, ajeitou-se na cama antes de continuar.
- Ontem à noite eu estava trabalhando na lista, quando tive a ideia de
instalar a nova versão do software VLC. Foi quando percebi uma série de
programas desconhecidos instalados no meu computador. Merda! Como
fomos ingênuos! Somos uns estúpidos! - seus olhos se encheram de
lágrimas. Lágrimas de raiva. Eu procurava acalmá-lo para entender o que se
passava.
- Não havia cluster nenhum! Foi tudo parte de um circo russo. Seis
máquinas para quebrar a senha do banco de dados? – deu uma risada
sarcástica. - Tudo foi executado a partir do meu computador. O maldito
sabia que o FBI estaria olhando e me fez de bode expiatório – respirou
fundo antes de continuar.
- Não se preocupe. O FBI não tem a mínima ideia do que fizemos.
Sabem apenas que acessamos o fórum. Ponto. E o principal: acham que
estou sozinho nisso – sorriu. - Como não sabemos até onde eles pretendem
avançar com a investigação, vou te pedir um favor para evitar que a merda
vaze por todo o lado – esticou o braço para apanhar a bolsa de sua mãe - Vá
até a minha casa e pegue o meu notebook. Você precisa escondê-lo. Procure
agir rápido, eu não sei quando eles pretendem aparecer por lá – entregou-
me a chave que dava acesso ao seu bunker.
Era desnecessário dizer uma palavra sequer. Acenei com a cabeça
imediatamente concordando com o plano. Minha curiosidade pulsava: ele
não tinha mencionado o acidente. Antes que eu pudesse abrir minha boca
ele continuou:
- Por volta das duas e quarenta e cinco da manhã, eu continuava a pensar
na cena que vi na noite anterior. Você sabe: aquela coisa do cão me
observando. Foi quando decidi dar uma olhada lá fora. Queria me certificar
de aquilo tinha sido uma alucinação e de que eu podia dormir descansado.
Assim que cheguei perto das latas de lixo, num piscar de olhos ele surgiu do
nada... Atacou-me e voltou para lugar nenhum. Até o dia em que morrer, eu
nunca vou esquecer aquele cão!
Ele parou por um instante para enxugar as lágrimas.
- Eu não sei no que nos metemos - suspirou. - Esta estória de magia
negra e satanismo... Veja no que deu – apontou para a própria perna. – Eu
não tenho dúvidas meu amigo: aquele Rotweiler preto saiu do inferno! Do
inferno!
Aquela palavra soou como um feitiço vindo da boca de encantador de
vodu.
- O que você disse? – perguntei.
- Hã? Ele surgiu do inferno! Aquilo só pode fazer parte desse bacanal
diabólico.
- Não! Eu me refiro ao cão, o que você disse?
- Nunca vou esquecer aquele Rotweiler preto. Senti seu bafo próximo da
minha virilha. Por pouco ele não me castrou. Desgraçado!
A Sra. Kimberly entrou pela porta carregando uma garrafa de Seven Up.
As conexões criadas pelas loucas sinapses do meu cérebro eram
demasiadamente insanas para serem verbalizadas. Sentia minhas orelhas
quentes, fervendo. Algo irracional em mim gritava dizendo o nome do cão
responsável pelo ataque. Ele estava certo: não tínhamos a menor ideia do
que era aquilo com o que estávamos lidando, mas naquele momento eu me
contentava apenas com duas certezas. A primeira era de que o meu tio era
parte integral daquele festim diabólico. A outra? Aquilo precisa acabar.
Rápido. Muito rápido.
Guardei a chave no bolso sem levantar suspeitas. A cumplicidade no
olhar de Stan valia mais do que mil palavras. Minhas perguntas tinham sido
respondidas sem que eu as tivesse pronunciado. Parti prometendo retornar o
mais breve possível.
Enquanto atravessa o corredor do hospital cada rosto que surgia no
caminho inflamava minha suspeita. Numa espécie de carrossel desenfreado,
minha mente rodopiava entre as informações colhidas: continha o meu
ímpeto de correr para a CSU para esmurrar a cara de Alexei, ao mesmo
tempo em que minha ansiedade fazia minhas pernas correrem para chegar à
casa de Stan antes do FBI. Minhas mãos desejavam muito esganar o meu
tio enquanto sentia na minha garganta um grito engasgado.
Assim que me preparava para sair, notei um furgão preto com vidros
escuros estacionado do outro lado da rua. Minhas suspeitas de que meus
níveis de paranoia estavam acima das nuvens foram dissolvidas assim que
arranquei e ele começou a me seguir. Não restavam dúvidas: era o FBI.
Teria que me desvencilhar deles antes passar na casa de Stan.
Entrei na Montgomery Drive acelerado, uma caminhonete azul buzinou
– pude ouvir os pneus gritarem contra o asfalto. Mantive minha atenção no
retrovisor: eles me seguiam ao longe. Sem pensar, numa manobra arriscada,
virei bruscamente para a esquerda passando por cima de canteiros e plantas:
fui parar no estacionamento de um restaurante. Rapidamente estacionei
Susie atrás do único carro que lá estava. Como um soldado entrincheirado,
vi o furgão passar voando pela estrada.
Duas senhoras que saíam do restaurante se assustaram quando me viram
agachado atrás do carro – precisava sair dali o quanto antes para não
levantar maiores suspeitas. Só me dei conta da violência do meu choque
contra as plantas após remover alguns espinhos que estavam agarrados na
minha calça. Assim que não consegui mais enxergar o furgão na estrada,
parti como um louco para a casa de Stan.
Apenas vinte minutos depois, chegava ao meu destino. Senti um calafrio
percorrer minha espinha quando vi as manchas de sangue pelo chão da
calçada indicando o local do ataque: ao lado das latas de lixo. Precisava
manter a atenção: olhei para a rua em todas as direções, até onde a minha
vista alcançava: não havia sinal do furgão preto. O amargo gosto da minha
saliva desceu pela goela assim que corri para abrir a porta.
Enquanto desconectava os cabos do notebook, minha vista passou pelo
taco de baseball no meio das tralhas do bunker, ele seria muito útil naquele
momento, pensei. Consegui me lembrar de recuperar todos os papéis com
informações sobre a Deep Web – inclusive aquele em que constava o
username de meu tio. Tive que me esforçar para acomodar tudo na minha
mochila. Antes de sair, olhei para fora através da pequena janela do porão:
tudo parecia limpo como o céu azul.
Boca seca. Novamente o incompreensível gosto amargo. Só fui me dar
conta de que estava a caminho da casa do meu tio quando entrei na
Benedict Canyon Drive.
Alucinado.
Era forte, muito forte, e estava me consumindo. A vontade ardia dentro
de mim: queria olhar nos seus olhos e descobrir qual peça do quebra
cabeças ele representava. O que eu faria? Não sabia responder. Minha
lucidez cambaleava, tremia das pernas, mas o impulso de estar na presença
daquele cão era maior. Não era mais Til, meu caro companheiro de tantas
brincadeiras e correrias. Tinha se tornado algo a serviço do mal, vítima de
algum feitiço elaborado pelo meu tio.
De novo, o gosto amargo.
Estacionei. Saquei o taco de baseball e quando me dirigia para pular o
muro, ouvi uma voz me chamar:
- Não faça isso Edgar!
Capítulo 8
Insight

Olhei para o autor da voz: um homem negro, magro, alto, aparentando


uns quarenta anos. Meu sangue congelou quando vi do outro lado da rua o
furgão preto estacionado: o FBI tinha me seguido até ali. Culpei
imediatamente a minha falta de atenção ao sair da casa de Stan.
- Por favor, escute-me: nós precisamos conversar – ele disse.
A madeira do taco de baseball materializou-se na minha mão direita –
quase me esqueci de que o segurava. Continuava a olhar para aquele
homem sem nada entender: o nó frouxo de sua gravata dava-lhe um ar de
alguém que esteve em movimento por muito tempo.
- Venha comigo – apontou na direção do furgão.
Sem escolha, apanhei minha mochila e caminhei ao seu lado. Temia que
ele descobrisse o notebook de Stan – seria o fracasso de todo o meu esforço.
Assim que nós entramos, ele sacou do maço de cigarros do bolso de sua
camisa. Após três tentativas, conseguiu produzir fogo no palito usando uma
surrada caixa de fósforos. Só começou a falar após a primeira e longa
tragada:
- Meu nome é Zane – abriu a janela para soltar a fumaça. – Tenho
acompanhado seus movimentos nos últimos dias. Devo confessar que estou
bastante perplexo com o jeito que as informações se desdobraram para
você. Só decidi fazer esta intervenção devido às consequências catastróficas
que suas ações poderiam causar.
As paredes do interior do veículo eram decoradas com todo o tipo de
documento a respeito da Deep Web, além de mapas e fotos de algumas
pessoas. Encontrei o rosto de meu tio no meio de muitos. Achei aquele papo
muito estranho para o início de um interrogatório do FBI.
- Consequências catastróficas? – arrisquei.
- Sim. O que pretendia fazer com isto? – apontou para o taco de baseball.
– Acha que é suficiente para confrontar o cão?
- Como...
- Como eu sei que você queria confrontar o cão? – ele me cortou. – Meu
caro rapaz, este é o motivo deste nosso encontro: esclarecer toda a estória.
Mas antes vamos sair daqui – disse pulando para o assento do motorista. –
Aqui estamos muito expostos.
- Eu não vou a lugar nenhum sem antes ver as suas credencias – disse em
alto e bom tom.
- O quê? Ah, você pensa que eu sou um policial? – disse sorrindo. – Não
se preocupe. Tudo ficará esclarecido após ouvir o que eu tenho a dizer –
indicou o assento do passageiro ao seu lado.
Na esperança de que aquele dia não pudesse ficar mais bizarro, sentei-
me ao lado daquele estranho. Naquele ponto, derrotado pela exaustão,
minha cabeça não interferia na decisão. Alguma coisa me dizia que era
seguro permanecer com aquela figura. Não sabia dizer de onde vinha aquela
segurança, mas era algo quase palpável. Talvez estivesse farto de enfrentar
tudo aquilo sozinho; dito em outras palavras: eu precisava de companhia.
Arrancou com o furgão na direção da Mulholland Drive. Apenas um
quilômetro depois ele parou.
- Aqui estamos a salvo.
Mais rápido no gatilho, disparei antes que ele colocasse o cigarro de
volta na boca.
- Primeiro pode começar por me explicar quem você é? Dê-me uma
razão para que eu perca meu tempo te ouvindo.
- Justo – tragou a fumaça com força. - Meu irmão fez parte do fórum
Devil’s Friend. Como a sua, a minha família também foi marcada. Tudo
começou há dois anos. Convidado por um amigo, ele iniciou com os rituais.
A coisa toda começou a fazer efeito e a cada novo patamar de prosperidade
e abundância, ele se empolgava mais e mais. Após apenas seis meses ele
atingiu a diretoria da empresa em que trabalhava, mas entrou em colapso
com a tarefa seguinte: eles pediram que traísse alguém de sua própria
família. Diante da própria incapacidade, ele anunciou sua saída do fórum.
Só que ele não esperava que o naufrágio viesse tão rápido – creio que ele
nem sequer cogitou a hipótese de um naufrágio. Numa reunião
extraordinária, os acionistas da empresa optaram pela reestruturação de
todo o quadro da diretoria, fazendo com que ele fosse demitido
sumariamente, sem grandes explicações. A partir daí, ele e a família foram
sugados por uma espiral descendente que além de demissões incluiu o
aparecimento de doenças, violência e complicações fiscais. No final a
família estava falida e não tinha nem onde morar.
- No final? Onde ele está hoje?
- Morto. Acidente de carro com a mulher e as duas filhas – tragou.
A pausa que seguiu me fez ouvir a minha própria respiração.
- Ele também tinha um psico-berserker.
- Um o quê?
- Todos os envolvidos no fórum possuem um animal de estimação. Caso
não tenham, os administradores providenciam. De alguma maneira um
animal passa a fazer parte de sua vida. Eles dão um jeito. Os infelizes não
fazem a mínima ideia do que tem dentro de casa. Meu irmão tinha um gato.
Foi apenas durante sua queda, que ele pode perceber que o inimigo estava
infiltrado. A função do psico-berserker é de vigiar, relatar e influenciar o
seu dono. Se não fosse trágico chegava a ser cômico: no final eles são mais
donos do que os próprios! No caso de seu tio, seu rotweiler cumpre esta
função, mas isso não é novidade para você.
Recostei-me no banco empoeirado. Escutei o som do silêncio ao nosso
redor. Minha insanidade temporária tinha ficado para trás. Lembrava-me de
outra pessoa prestes a pular o muro da casa do meu tio. Qual era a minha
intenção? Eu não sabia. Espancar Til até a morte? Talvez. Imaginava as
possíveis consequências do meu ato e agradecia pelo súbito aparecimento
deste estranho salvador. Meu pensamento parou em Stan, machucado no
quarto do hospital. Seja qual for o tipo de atoleiro em que nos metemos, a
saída estava em descobrir tudo a respeito.
- Que tipo de magia negra estes satanistas usam com os animais?
- Satanistas? – soltou a fumaça do cigarro pelas narinas enquanto me
olhava seriamente – Eles não são satanistas.
- OK. Adoradores do diabo, Lúcifer, Belzebu ou Baphomet! O nome não
importa.
Como se procurasse por algo perdido, ele olhava para o chão. Tragou o
cigarro como se fosse capaz de dar-lhe novo ânimo para o que diria a
seguir.
- Você é um rapaz inteligente. Passou por muita coisa nos últimos dias.
Sei que é capaz de entender o que eu tenho para te dizer a esse respeito.
Durante a pausa, onde ele terminou o cigarro, pude ouvir o meu coração
bater mais forte.
- Estamos lidando com um tipo de inteligência muito acima da nossa
capacidade de compreensão. Essas forças se instalaram na órbita do planeta
Terra há muito tempo e tem se mantido invisíveis desde então, até para
aqueles que estão no comando maior.
- Espere um momento! O que quer dizer com: se instalaram na órbita do
planeta Terra? – interrompi.
- Exatamente o que você entendeu: eles são alienígenas – riscou o
fósforo acendendo outro cigarro.
O estado de choque se transformava lentamente numa espécie de pânico
subjacente. Antes que meu cérebro pudesse assimilar a nova informação,
ele continuou:
- Eles sempre interferiram no destino da humanidade. Criaram símbolos
através dos quais nos forçam a realizar atos impensáveis. Tudo em nome da
ambição e da cobiça.
- Símbolos e atos? Eu não entendo.
Suspirou enquanto a soltava a fumaça pela janela.
- Pense em ratos num laboratório: eles têm consciência de quem são os
sujeitos vestindo os jalecos brancos? Essa é a nossa condição. Tudo indica
que estão nos acompanhando desde que saímos das cavernas. Eles possuem
a habilidade de implantar imagens no inconsciente coletivo da humanidade.
Muitas delas poluíram a nossa mente de forma quase irreparável.
- Inconsciente coletivo? – perguntei. Por um segundo, percebi um ar de
frustração que se dissipou rapidamente.
- Desculpe-me. Esqueci-me de que estou conversando com um jovem da
área de tecnologia. O inconsciente coletivo é um conceito da psicologia
analítica. De forma muito resumida, seria uma camada mais profunda da
nossa mente que é compartilhada por todos. O psiquiatra suíço Carl Jung foi
um dos pioneiros no estudo do assunto durante o início do século vinte.
Como resultado de seus estudos, ele concluiu que diversos símbolos,
imagens e mitos se repetem em culturas diferentes, separadas por distâncias
continentais, sem nunca terem tido contato umas com as outras. Esses mitos
podem ter alterações na forma, mas a essência é a mesma. Outra conclusão
foi de que o conteúdo do inconsciente coletivo está sempre em formação, a
partir das nossas experiências individuais. Infelizmente, ele não conseguiu
perceber a interferência externa causada por alienígenas invasores, sedentos
por energia – deu uma baforada pela janela.
- Onde a nossa energia entra nessa história do inconsciente coletivo? –
sentia-me um idiota a cada pergunta que fazia, mas minha curiosidade era
maior do que a vergonha. Não podia me dar ao luxo de ter vergonha. Não
naquele momento.
- Eles se alimentam da energia gerada pela nossa mente quando
perseguimos um objetivo, uma meta. Imagine a quantidade de energia
gerada quando alguém acredita que está servindo um poder maior, um
poder divino ou satânico, por exemplo. Isso os tem mantido aqui conosco;
eles não conseguem perceber como geramos esta tremenda energia. O mais
irônico é que nós mesmos não temos consciência dela. O interesse é pela
polaridade negativa.
- Que tipo de imagens eles introduziram no inconsciente coletivo?
- Todo o imaginário espiritual clássico é fabricação deles: anjos,
demônios, fadas, gnomos, duendes e todo o resto. Como o nosso mundo
funciona baseado em polaridades, fica fácil entender porque eles criaram os
anjos e arcanjos: apenas para facilitar a criação dos demônios, o outro lado
da moeda. Tudo faz parte de uma trama macabra para continuarmos a
produzir seu alimento.
- Então quer dizer que nada disso existe?
- Se algo existe, toda esta interferência mental impede-nos de acessar
esta realidade. É como o se o botão de nosso rádio interno estivesse entre
duas estações, captando apenas estática, entende? Poucos são os que
conseguem ouvir alguma música – tornou a tragar profundamente - Entenda
que, neste contexto, a Deep Web se tornou o lugar perfeito para suas
atividades. Lá eles contam com o benefício do anonimato enquanto os
incautos seguem acreditando que estão a serviço do príncipe das trevas.
Ajustou o espelho retrovisor como se esperasse que alguém surgisse por
trás.
- Respondendo a sua pergunta inicial: eles controlam os animais através
de implantes. São imperceptíveis, detectados apenas por raios-X.
Geralmente ficam no crânio, perto da região entre os olhos.
- Adicione a sua lista alguns tipos de alarmes residenciais. O Rotweiler
do meu tio já o fez trocar de fabricante inúmeras vezes – acrescentei.
De forma ritmada, ele batia com o indicador no cigarro. Hipnotizado, eu
olhava para as cinzas que caíam pela janela. Como uma densa nuvem negra
de uma tempestade que aparece para encobrir os primeiros raios de sol da
manhã, percebi várias novas dúvidas se configurando em minha mente.
- Esses aliens... Como eles são?
- Eles se parecem tanto conosco que seriam capazes de viver na casa ao
lado da sua, sem que percebesse. A única coisa estranha é que são todos
muito parecidos: altos, loiros e de olhos azuis. Como se fossem todos
irmãos. Alguns ufólogos os classificam como nórdicos.
- Espere um momento! Merda! Dois caras visitaram Stan hoje de manhã
dizendo que eram do FBI. Por acaso eu cruzei com eles na entrada do
hospital, quase os derrubei porque corria. Ele disse que os achou estranhos.
Pareciam irmãos gêmeos: altos, loiros e olhos azuis.
- O que eles perguntaram? O que disseram? – virou-se no banco na
minha direção preocupado.
- Stan disse que eles fizeram poucas perguntas sobre a Deep Web. Eles
sabiam a respeito do acesso ao fórum Devil’s Friends, mas julgam que ele
fez o trabalho sozinho. Não sabem nada ao meu respeito. Fui até a casa de
Stan apanhar o seu notebook porque ele temia que eles pudessem aparecer
por lá para avançar com a investigação. Malditos desgraçados! Fomos
enganados duplamente.
- Ainda bem que não suspeitam de sua participação. Melhor assim.
- Você já esteve em contato com algum deles?
- Não diretamente. Por causa das minhas vigílias noturnas nas casas dos
frequentadores do fórum, tive a oportunidade de ver a abertura de alguns
portais multidimensionais. Normalmente, eles aparecem para tratar do
psico-berseker ou com o intuito de deslocá-lo para outro ponto.
As palavras de Stan sobre o ataque de Til ecoavam em minha mente:
parecia que ele tinha surgido do nada. À medida que as peças do quebra
cabeças se juntavam, minha ansiedade aumentava. Nossa impotência diante
destes seres ficava cada vez mais nítida. O que fazer? Senti uma vibração
na boca do estômago (uma velha conhecida).
- Os portais podem surgir a qualquer momento, em qualquer lugar. Eles
funcionam como uma passagem direta para as sete dwipas onde eles
circulam permanecendo invisíveis.
Antes que eu pudesse manifestar minha ignorância quanto à palavra
dwipa ele prosseguiu:
- As dwipas são pregas topológicas ligadas ao planeta Terra. São planos
de existência não documentados pelos instrumentos. Existem referências na
literatura esotérica, mas ninguém leva isso a sério – muito provavelmente
porque eles gravaram esta informação com o rótulo “entretenimento” no
inconsciente.
Tirou o celular do bolso e começou a procurar por algum arquivo.
– De qualquer forma, eles interagem com o este plano através dos
portais. Sua aparição é muito rápida. Veja este vídeo da noite anterior na
casa do seu tio. Vai notar que seu cão desaparece às duas e quarenta da
manhã, retornando apenas às três. Se reproduzir o vídeo em câmera lenta
vai perceber o surgimento da fenda – entregou-me o celular para que
pudesse assistir.
A velha conhecida mais uma vez deu o ar de sua graça no meu estômago
antes que eu pressionasse o botão play. Til passeava pela beira da piscina e
num piscar de olhos não estava mais ali. Ao reproduzir o vídeo quadro a
quadro, pude ver uma espiral negra formar uma fenda no meio do nada. Era
como se um rasgo fosse feito na realidade. Dez minutos depois, lá estava
ele de volta, através da mesma fenda.
- Vê o que eu disse? Sumiu de repente. Onde ele foi parar durante estes
dez minutos? Eu não sei.
- Pois eu sei: ele foi parar na casa do meu amigo Stan, apenas para atacá-
lo violentamente porque foi de lá que acessamos o fórum Devil’s Friend.
- Eu sinto muito – disse pegando o celular da minha mão.
- Está claro que não fez contato comigo por conta das minhas
habilidades de super-herói. Não creio que eu, você ou o exército americano
seja capaz de enfrentar essas forças alienígenas. De tudo que ouvi até agora,
não encontro um pequeno sinal de como podemos fazer alguma coisa.
Nada. A minha pergunta é: qual a sua ideia? – senti que a raiva era a
responsável por vibrar as minhas cordas vocais.
- Neste momento, sou a única pessoa que entende o seu drama. Se você
pulasse o muro da casa do seu tio e agredisse o cão, chamaria a atenção
deles. Caso seu tio fosse abandonado por causa disso, ele sofreria as
mesmas consequências que o meu irmão. Isso para não mencionar qual
seria a reação da sua família: possivelmente achariam que tinha
enlouquecido. Não desejo isso para ninguém e prometi que faria o que
estivesse ao meu alcance para impedir outras famílias vivenciarem o
mesmo. Espero que isso explique o motivo da minha abordagem. Quanto a
minha ideia: sim, eu tenho um plano, mas ele depende de descobrirmos uma
maneira de manter este portal aberto por mais tempo – disse apontando para
o celular.
- Você disse: descobrirmos? Está sugerindo que somos uma equipe?
Arremessou a ponta do cigarro pela janela. Aterrissou numa poça d’água
logo mais a frente.
- Acho que ambos não temos muita escolha: acha mesmo que pode virar
as costas para tudo que descobriu até agora e voltar para sua vida como era
antes?
Fitava o painel do carro enquanto meu silêncio admitia a força de seu
argumento.
- Além do mais estou cansado de trabalhar nisso sozinho – ligou o carro
e começou a manobrar. – Vamos lá rapaz, vou te dar uma carona até sua
casa.
Porra, se ele soubesse como eu odiava que me chamassem de rapaz!
- Faça o favor de dar meia volta. Não vou a lugar nenhum sem a minha
moto.
Tive quase certeza de ter visto um sorriso começar a surgir no canto de
sua boca.
Antes de nos despedirmos, ele me entregou um cartão com seu número
de celular que dizia simplesmente: Zane – Consultor Independente.
- Zane? Só Zane? Sem sobrenome?
- Exato. Apenas quatro letras. Ligue-me quando quiser. Tenho certeza de
que juntos iremos descobrir uma maneira de manter aquele maldito portal
aberto – falou antes de arrancar com o furgão.
No caminho, eu tentava reagrupar meus pensamentos. Até aquele ponto,
tinha seguido meus impulsos sem nenhum motivo racional. Além do fato
dele ter me impedido de cometer uma loucura ao pular o muro da casa do
meu tio, o que mais eu possuía de concreto a seu respeito? Um cartão com
quatro letras, sem sobrenome.
Perto de casa, ao cruzar a esquina da Orange Avenue, minha mente deu
um salto: afinal o que eu queria? Aquilo parecia novo no meio de toda a
confusão. Era possível que tivesse chegado até ali sem pensar no que eu
queria? Eliminar a influência dos alienígenas resultaria em algum tipo de
harmonia para a minha família? Continuava sem resposta.
Minhas esperanças de encontrar alguma paz no lar foram desmanteladas
quando encontrei meu pai do lado de fora com uma garrafa de cerveja na
mão.
- Pai? O que está fazendo aqui? – senti que havia algo errado pelo seu
rosto. Não quis confrontá-lo, numa total inversão de papéis, sobre os males
do consumo de álcool. Ele sabia, melhor do que ninguém, que não devia
estar bebendo.
- Olá Eddie. Estou aqui... A espera de sua mãe. Ela decidiu... Quero
dizer: ela está na aula de pilates. Achou que precisava ir mais vezes na
semana. Mais tempo para ela. Entende? Coisas de mulher.
Sentei-me ao seu lado na varanda. Embora não compartilhássemos um
com o outro, nós dois sabíamos do segredo. Dois cúmplices ocultos. Se ele
não tinha certeza, pelo menos desconfiava. A garrafa em sua mão
confirmava isso. Fui dominado por uma culpa avassaladora: eu tinha o
acesso às câmeras da casa do meu tio. Bastava um clique para que ele se
conscientizasse da realidade: sua esposa está trepando com seu irmão.
Bloqueado. Coloquei minha mão sobre seu ombro direito. Ele respondeu
pousando sua mão sobre a minha e fazendo um leve afago. Gentilmente
puxei a garrafa de sua mão sem que ele oferecesse resistência. Consegui
convencê-lo a entrar, assim podíamos comer alguma coisa juntos.
Imediatamente fui para o meu quarto usando a desculpa de que a minha
mochila estava muito pesada.
Na segurança das quatro paredes do meu espaço particular, deixei que as
lágrimas começassem a rolar.
Dor.
Minha família era constituída de aparências, nada mais.
O taco de baseball de Stan tentava me seduzir a quebrar todo o quarto.
Se eu precisava de uma motivação para prosseguir com a louca parceria
com Zane, ela estava diante de mim. Estava cansado de descascar a verdade
como se fosse uma cebola - apenas para descobrir uma nova camada.
Aliviado, enxuguei minhas últimas lágrimas. Encontrei meu pai sentado
na poltrona da sala. A cena era uma reprise das noites anteriores: ele
cochilando com a TV ligada. Fui direto para cozinha comer alguma coisa.
O bilhete da minha mãe pregado na geladeira soava como uma piada de
mau gosto: fui ao pilates, o jantar está no congelador. Após colocar a
lasanha bolonhesa no microondas, apanhei o celular para enviar uma
mensagem para Stan. Lembrei-me de tê-lo colocado no modo silencioso
assim que entrei no hospital.
- O seu pacote está comigo, não se preocupe.
Era o máximo que consegui dizer, levando em conta que ele estava em
recuperação. De que adiantaria explicar que os homens que o interrogaram
de manhã eram alienígenas?
O forno micro-ondas anunciou que o jantar estava pronto. Só me dei
conta do tamanho da minha fome quando dei a primeira garfada.
Com o estômago saciado, voltei para o meu quarto. Era a vez de saciar a
minha curiosidade: acessei as câmeras da mansão do meu tio para mais uma
sessão pornô familiar. Lá estavam eles: moviam-se como dois animais no
meio dos lençóis. Era estranho lembrar que meu pai estava dormindo logo
ali na sala. Bastavam poucos metros para que eu provocasse uma catástrofe
naquela ordem podre. Para a sorte de todos, eu não tinha um espírito
perverso.
Til dormia no canil ignorando a ação que ocorria no quarto. Vasculhei o
resto da mansão a procura de algo estranho - além da minha mãe montada
no meu tio -, mas nada encontrei.
Em alguma coisa eles ainda mantinham a dignidade: após tomarem
banho juntos, com a precisão de um relógio suíço, ela saiu de lá as nove em
ponto - horário exato em que terminava sua suposta aula de pilates.
Após tanto esforço, o homem precisava repor as energias: com um
sanduíche e um copo de suco, foi para o escritório onde ligou o notebook.
Bastaram poucos minutos diante da tela para que o copo espatifa-se no chão
espalhando suco por todo o lado. Levantou-se, com as mãos na cabeça,
como se tivesse visto um fantasma ou coisa parecida. Suas pernas andavam
para trás levando seu corpo a esbarrar na luminária do escritório. Podia ver
que falava sozinho, mas não podia escutá-lo.
Fui arrebatado por uma enorme onda de desconfiança, um verdadeiro
tsunami: parti rapidamente para o fórum Devil’s Friends para confirmá-la.
Achei que os meus olhos iam saltar das órbitas quando li a nova tarefa
publicada naquela noite:
- Até a meia-noite de sexta-feira, mate um de seus funcionários no
estacionamento da empresa. Faça parecer um acidente.
Se eu tivesse um copo na minha mão, também já estaria no chão. Eu não
sabia até onde a ambição de tio Adam era capaz de chegar naquele jogo
macabro. Era um beco sem saída: caso ele desistisse, os alienígenas
puxariam seu tapete e ele iria sofrer as consequências; caso contrário, se
tornaria um assassino. E restavam apenas quarenta e oito horas para
descobrir qual seria sua escolha. Se havia alguma esperança de um caminho
alternativo, ela se encontrava no cartão com o nome de quatro letras
guardado na minha carteira.
- Zane? Nós temos um problema.
- É sobre a nova tarefa do seu tio?
Ele não dormia em serviço. Estava um passo à frente.
- Então? O que faremos?
- Enquanto não descobrirmos uma forma de provocar a abertura do
portal e mantê-lo aberto, nós permanecemos de mãos atadas.
Foi até o bar da sala e apanhou uma garrafa de vodka – reconheci de
longe o rótulo vermelho com as letras prateadas. Serviu um farto copo sem
gelo. Com o copo na mão e a garrafa na outra, ele circulava pela mansão.
Sua boca balbuciava qualquer coisa pelo caminho.
- Como? Está dizendo que apenas devemos cruzar os braços e observar?
- Desculpe rapaz. Qualquer interferência de nossa parte pode ser
catastrófica. Você não tem ideia do que esses desgraçados são capazes.
Parou de frente para a foto de tia Glenda e Nathan. Ergueu o copo como
se estivesse a brindar.
- O que exatamente você pensa em fazer caso consiga abrir o portal?
- Mandar os bastardos para o lugar de onde nunca deveriam ter saído
com a ajuda de explosivos – ouvi o som da baforada.
Arremessou violentamente a garrafa contra a parede. A ausência de som
não diminuiu o impacto da cena. Agachado, desfazia-se em lágrimas no
canto da sala.
A voz de Zane me tirou do transe da dor compartilhada:
- Edgar? Ainda está aí?
- Sim, estou – respondi olhando para o relógio que ria da minha cara
marcando nove e trinta e um. Os bastardos tinham virado a ampulheta, os
grãos de areia estavam escorrendo até a meia-noite de sexta. Até lá, nós
precisávamos descobrir uma terceira opção para o meu tio, caso contrário, a
desgraça o alcançaria.
O ruído da porta abrindo-se anunciou a chegada de minha mãe. Antes de
me despedir de Zane ainda perguntei:
- Você tem os explosivos?
- Não. Isso é secundário. É muito mais importante descobrir...
- Como manter o portal aberto – interrompi.
- É essa a ideia rapaz – ouvi outra baforada.
De cabelos molhados e com roupa de ginástica veio ao meu quarto com
um sorriso de satisfação estampado no rosto. Percepção e informação: era
engraçado ver como uma muda em função da outra.
- Já jantou?
Afirmei com a cabeça após minimizar a imagem do meu tio angustiado
no chão. Atrás dela, através da porta do meu quarto, podia ver meu pai na
poltrona da sala ainda dormindo com a TV ligada. Aquilo tudo era pequeno
demais diante do desafio que eu tinha pela frente.
Na sala, antes que eu pudesse desligar a TV, meu pai acordou dizendo
que estava assistindo as notícias. Era um antigo hábito sonâmbulo que ele
repetia uma vez ou outra. Diante da impossibilidade de ter uma ideia para
solucionar meu dilema, rendido, sentei-me ao seu lado.
O jornalista prosseguia relatando a ação das novas gangues que surgiram
em Los Angeles:
- Além da ação das quadrilhas conhecidas, a comunidade russa, que tem
crescido nos últimos anos, trouxe com ela sua máfia. Envolvidos em todo o
tipo de negócios ilícitos, sua especialidade está no tráfico de armas - ainda
como resultado direto da dissolução da antiga União Soviética e da
pulverização de grande parte do seu armamento entre vários pequenos
países. Através da venda de armas, eles ampliam seus tentáculos em L.A.,
promovendo a matança entre as outras gangues.
- Jesus Cristo! Como eles permitem que este tipo de gente entre no país?
– disse meu pai. – Por que o governador não faz alguma coisa? Tudo indica
que aquele fanfarrão só é capaz de lutar nos filmes.
A reportagem seguia mostrando vídeos das áreas dominadas em West
Hollywood; explosões de carros, casas e apartamentos eram cada vez mais
frequentes. A fim de evitar que meu pai iniciasse um ataque de cólera por
conta das imagens, disse-lhe que minha mãe já estava em casa. Prontamente
ele se despediu rumo ao seu quarto.
Preocupado com meu tio, retornei ao meu notebook: ele permanecia
sentado na beira da cama olhando estaticamente para o nada. Uma coisa era
certa: nós dois teríamos dificuldade para dormir nesta noite.
Deitei com os olhos fixos na mansão. Não havia sinal de uma brecha
surreal na realidade capaz de nos levar para outra dimensão. Verifiquei meu
celular uma última vez na busca de alguma resposta de Stan: nada.
A sombra das asas cobriu o sol refletindo-se no chão. Senti meu coração
acelerado – muito além do normal. Da quadra de tênis, olhei para o céu.
Numa velocidade atroz, a criatura sobrevoava a mansão. O latido de Til era
como uma faca afiada enterrada nos meus ouvidos. Sua boca sangrava
enquanto mordia a grade do canil, queria se libertar. Morder. Atacar. Os
dois corpos nus passaram por mim correndo pela grama do jardim. Em
ressonância, minhas pernas começaram a correr. Cruzei pela multidão que
me aplaudia enquanto o palco me aguardava – a banda me esperava para a
apresentação. Um imenso telão no fundo do palco exibia cenas da nossa
primeira incursão na Deep Web. Como era possível? O latido rasgava os
meus tímpanos. Era mais alto que os aplausos! Como pedaços de
marshmallow derretendo no fogo, os rostos na multidão se transformavam
aos poucos: eram eles! Todos loiros de olhos azuis. Idênticos! O palco
atraía meu corpo como um imã, mas minha vontade era de fugir dali. Os
aplausos... Os aplausos soavam como latidos. Espere! Todos pararam para
olhar para o céu quando aquilo sobrevoou novamente nossas cabeças. O
colchão da cama no centro do palco absorvia os impactos das estocadas que
meu tio dava em minha mãe. Aplausos! Lambuzado em sangue, vi o branco
de seus dentes tingidos de vermelho quando ele sorriu na minha direção.
Ele ria ao mesmo tempo em que ela gemia de prazer pedindo mais força. A
banda cantava: I can fucking hear you! A sombra do enorme pássaro
novamente! Do fundo do palco pude ver Alexei apontando para mim. Num
gesto de quem pedia segredo, levou o dedo indicador até a boca antes de
apertar o botão do detonador levando tudo pelos ares.
Abri os olhos: minha cama estava coberta de suor. A claridade que
entrava pela janela indicava que já era de manhã. Seis e quinze: dizia o
relógio do meu celular. Inacreditável: não tinha a menor ideia do tamanho
do meu cansaço. Esfreguei o rosto com as mãos, como se fosse possível
espantar as impressões daquele sonho inusitado.
Escovou os dentes, penteou os cabelos e ajustou a gravata azul. Se eu
não soubesse, diria que era um dia de trabalho como outro qualquer. Não
podia deduzir qual era a sua intenção. Será que ele já tinha decidido quem
matar? Ou iria decidir ao longo do dia? Duvidava que ele não cumprisse o
ritual, sua ambição era grande demais para isso. Por isso mesmo minha
aflição aumentava a cada minuto.
A ausência de mensagens de Stan me preocupava. Decidi visitá-lo logo
de manhã. Desejava compartilhar pessoalmente as novas informações a
respeito do lamaçal onde nos afundamos. Afinal, mais do que qualquer
outra pessoa, ele merecia saber da verdade: ela tinha quase lhe custado uma
perna. Quem sabe ele não contribuía com uma peça para solucionar nosso
quebra cabeças macabro?
Parti com Susie para o Santa Rosa Memorial Hospital de olho no
relógio: faltavam quarenta horas para o prazo limite e eu ainda não tinha a
mínima ideia do que fazer.
Cruzei a cidade numa desnecessária alta velocidade. Só me vi pensando
nas aulas que perdia na CSU quando estacionei. Ri deste pensamento que
caiu para última das minhas prioridades. Que se dane!
A cada passo sentia a pressão no centro do meu peito aumentar. Era com
se uma cobra estivesse enroscada ali. Apertando. Apertando. Culpei a
grande cruz no terceiro andar do prédio por me causar aquele estranho mal-
estar.
Livre do mal-estar, assim que deixei o elevador comecei a caminhar pelo
gélido corredor. Senti minha esperança crescer: Stan sempre teve uma
mente brilhante, seria capaz de bolar alguma ideia para o problema do
portal, bastava que eu fornecesse nova informação. Preparava o meu fôlego
para contar sobre o meu encontro com Zane. Já podia ver seu queixo caído
na bandeja de comida.
As minhas esperanças se desvaneceram assim que atravessei a porta de
número 302.
Encontrei uma cama vazia e a Sra. Kimberly chorando.
As piores associações ocorriam na minha mente. A cobra tornou a se
enroscar.
- Sra. Kimberly? O que aconteceu?
- Eles o levaram... Eles o levaram – ela repetia.
- Calma Sra. Kimberly, eu não entendo.
- Dois homens estranhos estiveram aqui agora mesmo. Eram do FBI.
Levaram meu Stan para um interrogatório. Eles disseram que é relativo a
um acesso indevido na internet. O coitado ainda não pode andar, foi levado
numa cadeira de rodas.
Meu estômago se contorceu.
- Quando isso aconteceu? – perguntei com o coração na garganta.
- Agora mesmo. Por pouco você não esbarrou neles.
Saí porta afora como um animal selvagem. Olhei para os dois lados do
corredor até onde minha vista alcançava. Do lado direito, consegui focalizar
dois homens de terno empurrando uma cadeira de rodas virando ao fundo.
Contrariando todas as regras de boa conduta, corri como se estivesse
possuído por um poder maligno. Dois enfermeiros tentaram me parar
quando pulei por cima de um grupo de cadeiras para me desviar de umas
pessoas. Ainda consegui chegar ao fundo do corredor e virar à direita a
tempo de ver, como num passe de mágica, o portal desaparecer.
- NÃO!
A dor do meu grito ecoou pelos corredores.
No chão, de joelhos, refém da confusão dos meus pensamentos, senti as
lágrimas escorrerem pela minha face. Era o fim da linha. Expressava a
minha irritação contra os dois enfermeiros e suas tentativas de me conduzir
para fora do hospital.
Devastado, olhava para cruz do terceiro andar que parecia zombar da
minha cara. Primeiro o meu tio e agora Stan – o chão estava se abrindo e
engolindo um de cada vez. Diante da minha incapacidade, só me restava
telefonar para Zane.
Após ouvir os fatos, ele afirmou:
- Acalme-se. Se eles o mantiveram vivo, deve estar no local de destino
do portal.
O eco da frase “se eles o mantiveram vivo” ficou esbarrando nas paredes
do meu labirinto mental. Creio que em algum ponto acionou um interruptor
que fez a imagem de Alexei com o detonador na mão saltar diante dos meus
olhos. A ideia surgiu de uma vez: completa. Limpa e clara como o céu azul
de verão.
- Eu tenho uma ideia.
Capítulo 9
Caos

O sol da manhã aquecia minha pele enquanto eu aguardava sentado


numa pedra. Algo dentro de mim sabia que, de alguma forma, aquele
momento era uma recarga das minhas baterias para as próximas horas.
Ansiedade e satisfação deram as mãos quando o furgão preto chegou ao
estacionamento do hospital. Assim que entrei, ele disparou:
- Antes de tudo: tem certeza de que vamos avançar com isso? Sabe que
este é um caminho sem volta, não sabe?
Eu mesmo não conseguia acreditar que a minha mente tinha sido capaz
de criar algo a partir do cruzamento de informações entre a realidade e o
mundo dos sonhos.
- Eu não preciso de certeza. Não depois de tudo que descobri nos últimos
dias.
Soltou a fumaça pelas narinas antes de arremessar a ponta do cigarro
para fora.
- OK. Neste caso, vamos andando.
Fiquei a espera que ele dessa a partida, mas ele ficou me olhando como
se esperasse por alguma coisa.
- Achei que não fosse a lugar nenhum sem ela – disse apontando para
Susie.
Só me dei conta do estado mental em que me encontrava após aquela
observação: azucrinado – a palavra apareceu assim que saí do furgão.
Pelo retrovisor podia ver seu rosto com o cigarro no canto da boca me
seguindo. Naquele ponto, eu estava cagando para seu possível passado
criminoso. O momento exigia utilizar tudo que estivesse a nossa disposição.
Isso incluía qualquer habilidade que levasse ao sucesso do nosso plano.
Antes de chegarmos ao nosso destino, paramos no açougue para comprar
dois quilos de carne bovina. Era estranho perceber que o plano dependia de
pedaços de um animal morto. Sem isso, podíamos por tudo a perder e o tiro
sairia pela culatra.
Quando chegamos à mansão, entrei no furgão para acompanhar os
preparativos. Ele apanhou uma ampola de dentro de uma gaveta, quebrou a
extremidade e salpicou o conteúdo nos bifes. Não havia nada escrito,
nenhum rótulo visível – pude conferir isto depois que ele a jogou fora, num
balde ao meu lado.
- Isso deve ser suficiente – ele disse com o cigarro entre os dentes.
Tive o cuidado de indicar o local certo para estacionar longe das câmeras
do meu tio. Eu sabia exatamente em qual área se encontrava o canil. Como
se fossem granadas num campo de guerra, arremessamos os bifes por cima
do muro. Nossas possibilidades de fracasso eram mínimas: Til devia estar
preso por causa de Esmeralda. Era apenas uma questão de tempo até que o
remédio fizesse efeito. Ativou o cronômetro do seu relógio de pulso para
marcar quinze minutos.
Dentro do furgão, os minutos pareciam horas. Minha cabeça não parava
de pensar no que tio Adam poderia estar fazendo. Será que ele já tinha
decidido quem seria sua vítima? E pior: ele teria adiantado o serviço para
mostrar eficiência e cumprir o prazo antes do tempo? Estava roendo as
unhas quando o alarme do relógio me despertou. Se tudo tivesse corrido
bem, as granadas tinham feito seu trabalho silencioso.
- Está na hora – ele avisou.
Toquei a campainha e voz de Esmeralda surgiu no interfone:
- Eddie? Que surpresa!
- Bom dia Esmeralda – me esforcei para soar alegre. – Estou aqui com
um amigo que veio consertar o sistema de alarme. Tio Adam te avisou?
- Não! Ele não me disse nada.
- Ele anda com a cabeça cheia, coitado! Muito trabalho. Pode abrir o
portão, por favor?
- Claro! – disse antes que os portões começassem a se mover.
Conforme atravessávamos o jardim, eu mantinha minha atenção no
canil. Pulsando como um tambor africano, meu coração fazia contraste com
o semblante de Zane que transmitia a frieza de um iceberg.
Chegamos até a porta da mansão sem o som de um latido: tudo indicava
que o remédio tinha funcionado. Esmeralda nos aguardava com um sorriso.
Eu estranhava a presença de Zane na mansão; era como se algo estivesse
fora do lugar, como um quadro torto na parede. De degrau em degrau,
subíamos a escada para o escritório. A cada passo desviava-me do
pensamento recorrente sobre o que eu estava fazendo.
Após arrastar lentamente a CPU, o cofre ficou evidente. Só mesmo um
milionário excêntrico para manter um cofre antigo cercado por um moderno
circuito interno de TV. Para a nossa sorte, meu tio se garantia muito na
tecnologia.
Apenas três minutos – contados no relógio -, o cara era um profissional!
Os maços de notas empilhados indicavam que ali existia dinheiro muito
mais do que o suficiente para o nosso empreendimento. Calculamos que
cerca de trinta mil dólares deveriam bastar.
- Vamos usar do feitiço contra o feiticeiro – afirmei enquanto guardava o
dinheiro na mochila.
Antes de colocarmos tudo de volta no lugar para cairmos fora, ele
apontou para uma coisa que brilhava próximo ao dinheiro, dentro do cofre.
O sol que entrava pela janela refletia no metal. Usando a flanela do estojo
de ferramentas, puxei a misteriosa peça para fora. Aos poucos, a estrela de
cinco pontas invertida com o rosto de um bode gravado no meio pode
brilhar fora da escuridão do cofre.
- Que se foda! – coloquei-o de volta na escuridão.
Após reorganizarmos tudo, fui tratar de apagar os vídeos da última hora.
Assim que pressionei a tecla delete meu sangue congelou: através das
câmeras, vi um carro na porta da mansão.
- Porra! É a minha mãe! O que ela veio fazer aqui? Justo agora?
Esmeralda vai dar com a língua nos dentes e contar que estamos aqui!
Estamos perdidos!
No monitor, pude vê-la esticar o braço de dentro do carro para tocar a
campainha - que soou em seguida. De forma sincronizada, Esmeralda
levantou a cabeça na cozinha, olhando na direção do portão.
Sem esboçar reação, após ver e ouvir meu desespero, ele falou:
- Acalme-se rapaz, eu cuido disto. Fique aqui, eu volto logo - e desceu as
escadas.
Mantinha minha atenção nas câmeras: não havia sinal dele. Após
enxugar as mãos num pano de prato, Esmeralda pôs-se a andar na direção
do interfone da sala. Novamente a campainha. Por que minha mãe tinha de
ser tão insistente? Até parece que veio à procura de sexo! Onde ele tinha se
metido? Como iria explicar minha presença ali? E como explicar Zane? Isso
sem falar nos trinta mil na mochila. Já podia ver as manchetes nos jornais
dizendo: Senhora Stephanie Coburn pega o filho com a boca na botija
durante um assalto na casa do seu próprio tio.
Por um instante, Esmeralda saiu do alcance da câmera e quando surgiu
na câmera seguinte, do outro lado da sala, cambaleou e caiu dura no sofá.
Cheguei a esfregar os olhos por não acreditar no que via. Onde estava
Zane? O que tinha acontecido? Antes que eu pudesse cair na asneira de
descer, sua mão tocou meu ombro me dando um susto dos diabos.
- Porra! Onde você se meteu?
- Está resolvido. É uma questão de tempo para que sua mãe desista e vá
embora.
- Como assim? Está resolvido? O que você fez?
- Usei o mesmo remédio que usamos no cão com a empregada de seu tio.
- Espere aí! Acha mesmo que vou cair nessa? Eu não tirei o olho da tela.
Você não teve nada com isso!
- Apliquei o remédio numa área onde as câmeras não alcançam. Por isso
você não me viu. Agora nós temos um álibi: quando ela acordar, não vai
saber dizer se sonhou com a nossa presença na casa. Se for sensata, nunca
vai falar sobre o assunto, para não descobrirem que dorme no serviço.
Minha mãe continuava a esperar junto do portão ao mesmo tempo em
que a versão mexicana da bela adormecida jazia no sofá da sala. Recostei-
me na cadeira enquanto esfregava o rosto com as mãos. Ainda foram
necessários dois toques na campainha para que ela desistisse. Suspirei
aliviado quando vi o carro manobrar, desaparecendo do alcance das
câmeras.
- Eu preciso de um cigarro. Estou lá fora a sua espera.
Aquele era um bom momento para começar a fumar, pensei.
Terminei de apagar os arquivos que denunciavam a nossa presença e
configurei o sistema para voltar a funcionar depois de dez minutos, tempo
suficiente para sairmos dali. O relógio do computador anunciava: meio dia
e cinco - restavam pouco menos de trinta e seis horas para o prazo final.
Com o braço para fora da janela e o cigarro pendendo entre os dedos, ele
me aguardava no furgão. Olhei ao redor para me certificar de que não havia
sinal de minha mãe. Não conseguia imaginar o que ela tinha vindo fazer
aqui, logo de manhã, sabendo que meu tio não estava. Algo me dizia que
aquilo não era boa coisa.
Antes de partir com Susie, olhei para a minha mochila. Podia sentir o
peso dos maços de notas dentro dela; nunca tinha segurado tanto dinheiro
na minha vida. Zane olhava fixamente na minha direção, como se estivesse
à espera do meu próximo passo. Passei os braços pelas alças da mochila
dando as costas ao dinheiro. A segunda parte do plano nos aguardava.
Ele tornou a me seguir durante o caminho, eu conhecia um atalho que
nos faria poupar tempo. Por duas vezes a minha ansiedade me fez disparar,
e foi necessário esperá-lo.
O sol do meio da tarde fazia os carros reluzirem no estacionamento da
CSU. Zane tirou da mochila mil dólares e perguntou-me se achava
suficiente para seduzi-lo. Por esse valor eu achava que ele venderia a
própria mãe, respondi.
- OK. Não temos tempo a perder. Vá até lá e traga-o aqui. Eu cuido do
resto.
A lembrança de Stan na cama do hospital fazia com que a minha raiva
entrasse em ebulição. Teria que conter a minha vontade de esmurrar-lhe a
cara.
Os corredores da universidade pareciam estranhamente estranhos.
Procurei passar despercebido pelos colegas: acenei de longe para a linda
garota ruiva que vestia uma jaqueta azul e uma camisa rabiscada com
código de programação da linguagem Java. Evitava o contato como se eu
fosse um organismo infectado: qualquer um que falasse comigo, corria o
risco de adquirir a doença. A verdade é uma coisa que causa uma febre sem
cura.
Cheguei perto o suficiente da sala para avistá-lo ao fundo. Enviei uma
mensagem pelo celular pedindo que viesse me encontrar para uma
oportunidade de negócio imperdível. Sabia que aquilo iria despertar sua
curiosidade. Pude ver quando levantou a cabeça da mesa para ler a
mensagem. Espreguiçou e respondeu: ok.
Surgiu bocejando e com a cara amassada pela posição em que dormia na
sala:
- E aí? Qual é a jogada?
- Eu e meu sócio queremos o contato da máfia russa, estamos dispostos a
pagar por isso – minha barriga vibrava.
Ele começou a gargalhar. Seu ar de deboche e desprezo só aumentava a
minha vontade de quebrá-lo ao meio.
- Que espécie de brincadeira é essa? Foi para isso que me chamou? –
puxou o maço de cigarros do bolso. Inutilmente bateu no fundo sem que
nada aparecesse.
Continuei:
- Façamos assim: você vai até o estacionamento comigo conhecer o meu
sócio e eu continuo a fingir que não sei que nos enganou com aquela estória
de software em cluster e seis máquinas para quebrar a segurança do fórum.
Como um semáforo muda do verde para o vermelho, seu rosto
transformou-se. Amassou o maço vazio e jogou no chão do corredor.
- OK. Você ganhou a minha atenção. Vamos lá.
Caminhamos lado a lado em silêncio. O turbilhão de pensamentos e
sentimentos durante o caminho não permitiu que minha vontade de
esmurrar seu nariz diminuísse. Sem fazer ideia de como meu corpo chegou
até o estacionamento, senti alívio quando o vi encostado no furgão
fumando. Assim que nos aproximamos falei:
- Mostre a ele.
Como se tivéssemos ensaiado aquele movimento, ele lançou o maço de
notas amarrados num elástico na direção de Alexei, que o apanhou como
uma bola de baseball.
- Leve-nos a máfia russa – Zane disse antes de tragar – Queremos
comprar explosivos.
Boquiaberto, ele contava a quantia em suas mãos.
- Em que você se meteu Eddie? Esqueça. Eu não quero saber. Tenho que
dar um telefonema antes.
- Esteja à vontade.
Sacou do celular e começou a falar em russo. Bastou uma dúzia de
palavras para que Zane saltasse em seu pescoço e começasse a gritar. Com
as costas pressionadas contra o furgão, vi seus pés levitarem quando ele o
agarrou pelo colarinho e o empurrou para o alto. Com a força de um touro,
o manteve pendurado apenas com a mão esquerda enquanto arrancava o
celular de seu poder desligando-o. Pela primeira vez vi o horror estampado
no rosto de Alexei. Senti meu sangue drenar quando o veículo se deslocou
um pouco para a esquerda conforme ele exercia a pressão. Após alguns
segundos, ele finalmente soltou-o no chão e virou-se para mim dizendo:
- Esse desgraçado ia armar uma emboscada. Disse para a pessoa do outro
lado da linha que tinha dois arenques defumados que pretendiam fazer
negócio. É um código que significa dois defuntos com dinheiro – Alexei
continuava no chão tentando recuperar o fôlego, com a mão na garganta –
possivelmente eles nos matariam antes que pudéssemos dizer o que
queríamos – chutou-lhe o estômago com força.
Colocou de volta na boca o cigarro que estava no chão. Jogou o celular
no peito de Alexei, que permanecia contorcido em dores. Eu não conseguia
me mover.
- Você vai tornar a ligar e dizer que vai apresentar dois negociantes que
precisam de explosivos C4. Nem pense em fazer algum truque seu pedaço
de merda! Eu já falava russo antes de você nascer.
Dito isto, deu a mão para que ele se levantasse. Lembrei-me que ouvi
alguém dizer, ou li em algum lugar, que bastava um segundo para que a
vida tomasse outro rumo. Estava tão perplexo com a cena que quase senti
pena dele. Quase.
O filme russo sem legendas recomeçou: ele tornou a fazer a ligação.
Mesmo sem entender uma palavra, consegui perceber o tom de desculpas
pela ligação anterior. Como dois imãs, seus olhares cruzavam-se de vez em
quando. Quando desligou foi logo dizendo:
- Está tudo arranjado. Vou dar-lhes o endereço para que...
- Não senhor! – abriu a porta lateral do furgão – Você vem conosco –
disse empurrando-o para dentro após tomar seu celular.
Contrariando meus instintos, deixei Susie na CSU e partimos os três
juntos para o Plummer Park em West Hollywood. A adrenalina aumentava
conforme avançávamos, comecei a sentir medo. Afinal, eu estava a
caminho da máfia russa para negociar explosivos! Por mais que eu revisasse
os eventos, dando motivos para a minha mente, o medo permanecia. Como
se fosse possível ler os meus pensamentos, Zane quebrou o silêncio:
- Não se preocupe. Quando chegarmos lá, você fica no carro enquanto eu
e o rato traiçoeiro lidamos com o assunto.
Concordei com a cabeça, mas não tinha certeza se aquilo me deixava
mais calmo. Tinha que encontrar uma maneira de lidar com os possíveis
efeitos colaterais decorrentes da minha ideia. Precisava pregar na minha
mente os motivos que me trouxeram até aqui: salvar Stan e impedir que
meu tio se tornasse um assassino. Não havia espaço para pânico.
Meus pensamentos a respeito da minha insegurança foram chutados para
fora de minha mente com o grito agonizante de Alexei, vindo do fundo do
furgão. Zane gritou de volta dizendo para que ele parasse com a encenação,
mas ele permanecia no chão engasgado. O grito abafado que saía de sua
garganta indicava que ele não podia respirar por qualquer razão.
Ouvi em alto tom os palavrões dos dois pedestres que passavam quando
numa manobra arriscada ele parou o carro.
Zane pulou para trás e apanhou o cigarro aceso do chão.
- Merda!
Rapidamente abriu o armário e pegou uma pequena ampola de vidro.
Quebrou a extremidade e o fez engolir o conteúdo. Apanhou um cilindro
com uma máscara na ponta que estava pendurado na parede e colocou no
rosto dele. Pela agilidade com que fez aquilo tudo eu julguei que não era a
primeira vez. Com a boca seca e o coração palpitante, eu assistia impotente.
Aos poucos, Alexei foi recuperando a cor enquanto respirava o ar do
cilindro.
- Ele teve uma reação anafilática aos meus cigarros de mentol.
Empurrou a máscara para o lado para poder falar.
- Mentol? Mentol que nada! Que porra de cigarro é este? – tossiu – Tem
gosto de inseticida!
Zane sorriu antes de dar uma forte tragada. Soltou a fumaça para o alto.
- Você ainda está em choque. Não sabe o que está dizendo. Aceite este
pequeno incidente como um incentivo para parar de fumar – disse voltando
para a direção. - E também para deixar de roubar cigarros alheios -
concluiu.
Ainda precisei de algum tempo até que o meu coração voltasse ao
normal. Através do retrovisor podia ver seus olhos vermelhos lacrimejando.
Ele permaneceu quieto, com o cilindro na mão, colocando a máscara de
volta ao rosto de vez em quando.
Os últimos raios de sol daquele dia ímpar se despediam quando nós
chegamos ao endereço do encontro: uma casa branca rodeada por uma cerca
baixa em madeira. Um jardim exuberante e colorido cobria metade da casa
– a camuflagem ideal para quem não quer ser observado. As seis latas de
lixo na rua fizeram minha imaginação funcionar loucamente: pensei que as
elas pudessem ser usadas para despachar corpos das vítimas de negociações
mal sucedidas. Fui trazido de volta à realidade com o barulho da porta
batendo quando Zane saiu do carro.
- Fique aí. Eu volto logo – disse ao abrir a porta lateral para que Alexei
pudesse sair. Entreguei-lhe pela janela a mochila com o dinheiro.
Passaram pelo pequeno portão de madeira em direção à porta da casa.
Alexei caminhava na frente. De onde eu estava ainda consegui ver Zane
tocar a campainha; um homem alto, careca de cavanhaque abriu a porta.
Minha garganta secou após a porta fechar.
Assim que o primeiro minuto se passou, como um disco arranhado,
surgiram pensamentos. Os dois estavam lá executando o meu plano para
salvar o meu amigo e o meu tio. Acuado, sentia-me como um covarde.
Quando meti a mão no puxador para abrir a porta o som do primeiro tiro me
fez recuar. Instintivamente abaixei-me. O pipocar dos sons, que passariam
facilmente por fogos de artifício, era apavorante. Queria olhar para a casa,
mas o medo me impedia. Meu coração parecia pedir para sair de meu corpo,
tamanha era a pressão em que pulsava. Foi durante uma pausa entre o
diálogo das armas que criei coragem para levantar e espiar a casa.
Lentamente ergui a cabeça na altura da janela.
A casa emanava uma luminosidade forte do seu interior. A intensidade
da luz aumentava a cada segundo. Em pouco tempo, tornou-se insuportável
olhar na sua direção. Tampei os olhos com as mãos e permaneci assim até
ouvir um estranho som seguido de uma vibração. Não consegui associar o
que ouvi com nada no mundo. Meus dedos tremiam, mas aos poucos
criaram coragem para separarem-se permitindo que eu voltasse a ver a casa.
As latas de lixo tinham sido derrubadas e seu conteúdo estava espalhado
por todo lado. A frágil cerca de madeira estava toda retorcida. O jardim
tinha sido consumido. Os galhos secos que restavam emanavam fumaça.
Arrancada, a porta da casa encontrava-se jogada no meio do jardim. Se meu
coração não saísse pela garganta naquele momento, poderia me considerar
imortal pelo resto dos meus dias.
Ele surgiu da porta carregando uma enorme bolsa e arrastando Alexei na
outra - parecia em estado de choque: andando com passos curtos e
desordenados ao mesmo tempo em que olhava para baixo. Conforme se
aproximaram, pude notar que tremia mais que uma vara verde. As manchas
de sangue em sua roupa e seu rosto faziam um contraste com a aparência
impecável da roupa de Zane.
- Não é o sangue dele – afirmou enquanto o empurrava para dentro.
Jogou a bolsa logo a seguir fazendo com que Alexei começasse a gritar em
russo e espernear.
- Não dá para fazer uma omelete sem quebrar os ovos – disse depois de
me entregar a mochila de volta. Seu rosto tinha um ar de insatisfação.
Entrou no carro e disse algumas palavras em russo que foram suficientes
para calar a boca de Alexei.
Eu continuava a não acreditar no que tinha visto. Assim que ele colocou
o furgão para andar, minha perplexidade falou por mim:
- Posso perguntar o que exatamente aconteceu?
- Uma confusão! Não dá para confiar nessa gente! – acendeu um cigarro
- Um imbecil inventou de lançar uma bomba de fogo fátuo que fez com que
ninguém conseguisse enxergar. Você deve ter visto o clarão, não viu?
Começaram a atirar para todo lado. São tão burros que acabaram por atingir
uns aos outros. Estavam todos drogados.
Eu sabia que aquilo não era verdade. O clarão só surgiu após o tiroteio
cessar. Ele estava mentindo. Através do espelho retrovisor, o rosto de
Alexei era a perfeita expressão do horror.
Cinquenta minutos depois, chegamos ao estacionamento da CSU. Eu
estava tão perturbado, que não me lembrava de ter deixado Susie lá.
Assim que abriu a porta para Alexei sair, segurou-lhe pela gola da
camisa e tornou a dizer qualquer coisa em russo. No momento em que o
soltou, ele começou a correr como se estivesse sendo perseguido por um
pitbull com raiva.
- Não precisamos mais nos preocupar com ele. Vai usar o dinheiro para
sua viagem de volta a Rússia, local de onde ele nunca devia ter saído.
Antes que eu pudesse questionar sobre a verdade do incidente com a
máfia russa, ele foi mais rápido:
- Quase me esqueci de te avisar: o dinheiro de seu tio não foi utilizado.
Como se não acreditasse no que acabei de ouvir, abri a mochila para
conferir: os maços de notas continuavam lá. No meio da confusão fui
incapaz de perceber seu volume.
- Você não vai me dizer o que aconteceu, não?
- Eu já disse – soltou uma baforada -, você não quer acreditar.
Abriu a enorme bolsa para me mostrar os explosivos. Não eram muito
diferentes do que tinha visto em filmes: pacotes retangulares embalados por
papel pardo onde era possível ler “C4”, além de alguns dizeres no alfabeto
cirílico.
- Isso deve dar conta do recado.
De repente, vi tudo ao meu redor começar a girar como num carrossel
desgovernado. Tive que me apoiar para não cair. Zane veio me acudir ao
perceber o meu mal-estar. Lembrei-me de que estava sem comer desde o
café da manhã, sem contar que a adrenalina do dia devia ter consumido
todas as minhas calorias de reserva. Depois de me recuperar, fui para a
cantina da universidade fazer um lanche. Ele permaneceu no
estacionamento, preparando os explosivos.
Senti minha boca salivar enquanto olhava as fotos dos sanduíches
penduradas na parede da cantina. Pedi um cheesseburger com bacon,
batatas fritas e uma Coca-Cola. Precisava repor minhas energias, ainda
tínhamos muito trabalho pela frente.
Escolhi uma mesa perto da janela, diante da grande TV. De onde eu
estava também podia ver o furgão no estacionamento. Senti minha
mandíbula doer de satisfação, na primeira dentada no cheeseburger. O som
do bacon crocante triturado nos meus dentes era como música para o meu
estômago. As batatas fritas marcavam o ritmo; tudo regido pelo doce
líquido negro.
Um segundo: foi o tempo necessário para que uma imagem na TV me
tirasse do transe gastronômico. A legenda que dizia “Máfia russa em West
Hollywood” me fez saltar da mesa para pedir ao funcionário que
aumentasse o volume. O noticiário declarava:
- No final desta tarde a polícia atendeu um chamado em West Hollywood
feito por vizinhos que disseram ter ouvido tiros de uma casa próxima. O
endereço, conhecido por abrigar imigrantes russos, era na verdade a sede
principal da máfia russa em Los Angeles. Foram encontrados doze corpos
carbonizados de uma forma que os peritos não conseguem explicar.
- A temperatura necessária para criar este tipo de combustão está na casa
dos 1000º C – dizia um sujeito de óculos, jaleco e luvas. - A questão mais
intrigante é que isto parece que aconteceu de dentro para fora. Os corpos
mantiveram suas formas embora seja praticamente impossível removê-los
sem que se desfaçam em cinzas.
A câmera filmava os corpos de longe para abrandar a violência das
imagens – ainda assim algumas pessoas na cantina viravam o rosto. A
notícia foi capaz de realizar o impensável: acabar com minha fome. Por
mais que eu usasse a minha imaginação para visualizar o que Alexei
deveria ter presenciado dentro daquela casa, não conseguia chegar a lugar
algum. Primeiro o misterioso sono de Esmeralda e agora isso. Sete horas -
dizia o relógio do meu celular. Faltavam vinte e nove horas para o prazo
expirar. No meu íntimo, sentia que meu tio realizaria o ritual o quanto antes.
Talvez ainda hoje. Além disso, precisava livrar Stan das garras dos malditos
alienígenas. Algo em mim deveria estar preocupado com os métodos de
Zane, mas a verdade era uma só: eu não me importava. Ele era a única
pessoa capaz de salvar o dia. Ponto.
Solicitei ao funcionário um saco para guardar o resto do lanche.
Enquanto aguardava, olhava para o estacionamento: teria de me esforçar
para que ele não percebesse que alguma coisa em mim estava diferente.
Decidi apelar para o copo de Coca-Cola: caminhei na direção do furgão
bebendo pelo canudo e me esforçando para que o meu olhar não cruzasse
com o dele.
- Já voltou? Veja, escolhi este lugar para a próxima fase – apontou para
um ponto no surrado mapa todo remendado por adesivos. Tratava-se de
uma fábrica abandonada em Temple City. Ficava a uma hora de distância de
onde estávamos.
Ainda com o canudo na boca, eu olhava para o mapa escondendo minha
vontade de olhar em seus olhos para descobrir o que – realmente – tinha
acontecido em West Hollywood. Concordei com sua proposta e me preparei
para partir com Susie para casa – ainda precisava apanhar o material
necessário para mais tarde.
- Tem certeza de que está tudo bem? – ele perguntou antes de entrar no
furgão.
Acenei com a cabeça sem olhar e parti.
Em casa, estranhei a ausência de meu pai e minha mãe. Corri para o
notebook para espiar a mansão: não havia sinal de vida. Encarei aquilo
como uma oportunidade de privacidade para recolher o que faltava. Desta
forma ninguém questionaria o que eu estava fazendo. Apanhei a câmera de
filmar da estante e espremi o notebook na mochila no meio dos maços de
notas.
Lembrava-me de ter sobrado uma lata de tinta branca da última vez que
pintei a cerca de casa. Confirmei minha suspeita tão logo abri o armário da
dispensa.
Saí de casa o mais rápido que pude. Queria garantir que não esbarraria
nos meus pais. Zane me aguardava do outro lado da rua com seu
inseparável amigo entre os dedos.
Partimos.
Durante o caminho, acompanhava o movimento na mansão. O relógio
marcava oito e trinta e cinco e as luzes continuavam apagadas. Minha
ansiedade ditava o tom dos meus pensamentos: será que ele estava agindo
naquele exato momento? Diante da impossibilidade de conseguir uma
resposta fechei meu notebook, precisava me concentrar no nosso próximo
passo.
As cenas do noticiário onde os corpos carbonizados jaziam retorcidos no
chão voltaram a me rodear. O pensamento de que eu estava ao lado de uma
pessoa extremamente perigosa insistia em alfinetar a minha mente.
Desconhecia quais os truques que ele carregava na manga, mas não sentia
medo. Desde o nosso primeiro contato que sentia uma estranha sensação de
segurança na sua presença. Até agora tinha explicado aquilo através dos
meus medos, mas começava a duvidar disto. Cheguei até ali, contrariando
todo o meu bom senso e tudo indicava que tinha sido a coisa certa a fazer.
Cerca de uma hora depois, o carro começou a sacolejar por causa do
terreno irregular. Avançávamos através do denso matagal onde não se
enxergava um palmo diante do nariz. Em circunstâncias normais jamais
passaria por ali. Nem em sonhos.
- Estamos quase lá.
Paramos perto do enorme prédio abandonado. O brilho da lua cheia
derretia as finas nuvens que ousavam circular por ali. Longe das luzes da
cidade, o céu nos brindava com um espetáculo astronômico que,
infelizmente, não tínhamos tempo de apreciar. Assim que desligou os faróis
fomos obrigados a utilizar nossos celulares para iluminar nosso caminho.
Paramos por um momento: com galhos secos e pedaços de tecido ele
improvisou uma tocha. Para o meu ingênuo alívio, a enorme bolsa com os
explosivos era responsabilidade dele. Caso aquilo explodisse não faria a
mínima diferença: nenhum perito seria capaz de dizer quem estava
carregando.
O som do silêncio era ensurdecedor, a tal ponto que internamente meus
ouvidos produziam um estranho zumbido. Era como se dentro da minha
cabeça, cigarras cantassem numa árvore durante uma tarde quente de verão.
Às vezes ele se tornava tão alto, que era difícil afirmar qual som estava em
primeiro plano. O som dos nossos passos era a única coisa que atenuava a
potência do zumbido.
Descíamos um longo corredor de paredes de cimento completamente
pichadas. Latas de cerveja e garrafas quebradas marcavam o ambiente como
os últimos vestígios de civilização. A alça da lata de tinta esmagava meus
dedos. Caminhava com cuidado. Era difícil acompanhar seu ritmo. Seus
passos largos faziam o peso que ele carregava parecer inexistente.
Paramos diante de uma grande porta de metal cuja ação do tempo se
fazia notar pela ferrugem presente nas porcas. Ao forçar a entrada, ela
respondeu abrindo com um ranger estridente.
Entramos num amplo salão onde as enormes janelas verticais davam-lhe
um ar gótico. Os vidros quebrados permitiam que o ar gelado da noite
tornasse menos impactante o cheiro de mofo no ambiente. Imediatamente
indiquei a parede ao fundo como local ideal para o nosso projeto. Ele
providenciou iluminação, improvisando duas tochas com material que se
encontrava ali: cabos de vassoura, panos velhos e produtos de limpeza
inflamáveis. Assim que consegui enxergar a parede, comecei a pintar a
mensagem.
Enquanto escrevia os números, ouvia o ruído das ratazanas que
passavam ali perto. Elas eram os proprietários da antiga fábrica que
reclamavam da nossa presença. Para elas, nós éramos estranhos invasores.
Ele tinha preparado a câmera com o tripé. Limpei o suor da testa apesar
do frio. Afastei-me para ter noção do resultado do trabalho. Parecia bom.
Assumi a posição para iniciar a gravação.
Antes de pressionar o botão REC, ele perguntou:
- Está pronto rapaz? Podemos prosseguir?
Respirei fundo.
- Sim. Só gostaria de ter certeza de isso irá funcionar. Quero dizer, será
que eles vão aparecer?
- Saberemos em breve.
Vi a luz vermelha acender ao mesmo tempo em que ele fez um sinal com
a mão.
Hesitei por um segundo. Apenas o segundo necessário para constatar que
não existia bloqueio.
- Meu nome é Edgar Coburn. Sou o responsável pela invasão do fórum
Devil’s Friend. Vocês pegaram a pessoa errada. Estou aqui para propor uma
troca: levem-me no lugar de Stan.
Parei por um momento, a raiva me consumia, não consegui evitar.
- Eu sei quem são vocês! – gritei chutando o balde de tinta.
Apontei para a mensagem na parede:
– Venham me pegar nestas coordenadas seus alienígenas de merda! -
terminei mostrando o dedo médio bem na direção da lente.
- Eu gosto do seu estilo rapaz – disse após desligar a câmera e soltar a
fumaça pelas narinas.
Abriu o zíper da grande bolsa com os explosivos. Com a ajuda de uma
fita cola prateada, ele começou a amarrá-los. Primeiro em grupos de cinco
e, a seguir, em grupos de dez. Perdi a noção de quantos pacotes ele juntou,
mas no final a coisa toda se tornou um bloco único no tamanho de um ar
condicionado. Ligou o detonador com um timer numa ponta do bloco e o
pôs de volta na bolsa. Especulei qual seria a capacidade de destruição da
coisa. Dois quarteirões? Três?
Meu coração pulsava forte. Liguei meu notebook para enviar o vídeo.
Continuava sem saber de onde tinha surgido a ideia de enviá-lo pela conta
de tio Adam. Ainda estava sob o efeito da raiva que apareceu durante a
gravação. Enquanto copiava o arquivo da câmera para o notebook, de pé, ao
meu lado, ele acompanhava tudo o que eu fazia. Era como se tivéssemos
apenas uma bala no tambor do revolver: contávamos que a recepção do
vídeo seria tão inusitada, que eles acabariam por ceder, trazendo Stan de
volta. Era nossa única chance. Se não fizéssemos alguma coisa, talvez
nunca mais tornasse a ver meu amigo. Isso para não pensar na possibilidade
de meu tio matar alguém da empresa. Não havia escolha: aquilo tinha que
funcionar.
Recapitulamos o plano: ele se esconderia com os explosivos enquanto eu
negociava a troca. Tinha que dar um jeito de mantê-los entretidos enquanto
ele despachava os explosivos pelo portal. Neste cenário ideal, Stan voltava
e nós mandávamos os bastardos pelos ares. O fórum Devil’s Friend se
tornaria uma vaga lembrança na mente dos seus miseráveis frequentadores.
Mas havia a outra possibilidade: eles apareciam sem Stan e me levavam
a força. Decidi acreditar quando ele disse que tinha um plano B caso isso
ocorresse. Naquele ponto, eu acreditava em qualquer coisa.
As imagens sobre a máfia russa continuavam a flutuar na minha mente
me dando uma estranha certeza de que tudo acabaria bem. Será que a minha
sanidade tinha sido afetada pelos acontecimentos? Não havia tempo para
ponderar. O arquivo estava pronto para ser enviado. Ele se posicionou no
escuro de tal forma que de onde eu estava não podia vê-lo. Minha mão
começou a tremer antes de clicar no botão para iniciar o upload. Posicionei
o cursor em cima do botão. Respirei fundo e cliquei sem olhar.
Tempo de espera: menos de dois minutos.
Como um pavio aceso ligado a um barril de pólvora, a barra de status do
indicador de progresso fazia seu percurso na direção dos cem por cento.
Sem saber qual seria o ruído daquela explosão, eu aguardava na penumbra.
O silêncio continuava ensurdecedor. O único som, além do zumbido
interno dos meus ouvidos, era o do fogo das tochas em contato com o vento
que vinha das janelas quebradas. Em vão, meu olhar procurava por ele no
meio da escuridão. Cem por cento. Fechei a tampa do meu notebook
tornando a escuridão ainda mais escura. Restava-me apenas aguardar.
Aguardar.
O som de uma descarga elétrica surgiu atrás de mim. Assim que me
virei, vi um túnel surgir do nada. As paredes do túnel eram escuras com
anéis concêntricos formados por pequenas luzes azuladas. Senti minha
garganta seca. Dois homens loiros vestindo ternos surgiram pela passagem.
Eu não era capaz de dizer se eram os mesmos que encontrei na entrada do
hospital. Os arrepios percorriam minha coluna vertebral como serpentinas
de carnaval. Paralisado, eu pensava no que dizer. Pararam bem na minha
frente, a uma distância que se eu esticasse o braço era possível tocá-los.
Havia alguma coisa em suas presenças que eu não conseguia colocar em
palavras. Era como se uma espécie de força magnética emanasse de seus
corpos. Antes que pudesse expressar minha indignação pela ausência de
Stan, fui tomado pelo pânico quando descobri que não conseguia mover
nenhum músculo do meu corpo. O plano B! O plano B! Era a única coisa
que minha mente repetia como se fosse capaz de falar com Zane através de
telepatia. Eles me olhavam fixamente, sem piscar. Os dois pares de olhos
azuis pareciam pedras preciosas: ao mesmo tempo em que me atraía, eu
queria desviar o olhar. Era mais forte! Muito mais forte do que a minha
vontade.
A sombra refletida pelas tochas foi o que me tirou do transe. Pude notar
a surpresa surgir em seus rostos. Algo havia sobrevoado as nossas cabeças.
Tão assustados quanto eu, eles olhavam em todas as direções. A sombra
tornou a surgir acompanhada de um estranho som. Livre para me mover,
não conseguia decidir o que fazer: continuava paralisado, mas desta vez sob
o efeito da minha indecisão. Novamente o som: era como o bater de asas. A
sombra nocauteou o primeiro alienígena que caiu sobre uma mesa de
madeira quebrando-a em vários pedaços. O que era aquilo? Comecei a
gritar por Zane. Voou contra a luz das tochas projetando a sombra de um
par de asas com envergadura de cinco metros! Vi o pânico surgir no rosto
do outro alienígena ao ver aquilo. Tentou correr na direção do túnel, mas
teve um armário arremessado contra seu corpo. Corri para a escuridão, na
fútil esperança de encontrar abrigo. Tateava no escuro a procura de
esconderijo; acabei por me esconder agachado atrás do que julguei ser um
sofá. Arrisquei olhar para o túnel no momento exato em que aquilo entrou
como um torpedo desgovernado. Onde estava Zane? Teria entrado? Estava
preparando os explosivos? O que teria acontecido? Não fazia sentido.
Ofegante, arrisquei outro olhar: Stan estava lá dentro, em algum lugar. Eu
precisava ajudá-lo! A realidade era uma só: eu estava sozinho nisso. Era
tudo ou nada!
Sem pensar, corri para dentro do túnel.
A súbita queda de temperatura fez os cabelos dos meus braços
arrepiarem. Era frio, muito frio. Imediatamente notei a mudança na acústica
do ambiente: não havia qualquer espécie de reverberação no som dos meus
passos contra aquele estranho tipo de revestimento do piso. Atravessava o
corredor sem fim com medo de esbarrar num alienígena ou naquele
monstruoso pássaro.
Cheguei numa encruzilhada com quatro caminhos alternativos. Até ali a
minha vista alcançava a entrada por onde havia passado. A partir daquele
ponto, qualquer decisão me colocaria longe da entrada e eu poderia me
perder. Dei-me conta de uma espécie de escotilha na parede que marcava a
bifurcação dos caminhos. Decidi espiar através daquele vidro, procurar
identificar onde eu me encontrava. Assim que me aproximei, pude ver o céu
negro estrelado. Meu coração quase saiu pela boca quando olhei para o
outro lado.
Lá estava o planeta Terra.
- Puta merda! – foi o que consegui dizer em voz alta.
Antes que pudesse me recobrar da impressão e decidir qual caminho
seguir levei um esbarrão e fui enganchado por um braço forte.
Voava pelos corredores numa velocidade alucinante. As enormes asas
brancas batiam desesperadamente percorrendo o caminho de volta. Assim
que atravessamos o portal fui solto, caindo às cambalhotas e derrubando
uma série de coisas pelo caminho. Senti meu braço esquerdo se machucar
em farpas de madeira e cacos de vidro. Quando consegui recuperar o meu
senso de orientação pude perceber que a coisa tinha deixado Stan mais a
frente.
Um estrondo me derrubou de volta para o chão: era o anúncio de seu
pouso, imaginei. A pouca visibilidade trazida pelas tochas me dava certeza
de que aquilo estava agachado logo à frente, cerca de uns três metros, mas
me mantinha na ignorância a respeito de sua forma. Pela sombra projetada
na parede, pude notar novamente a envergadura das asas. Por mais que me
esforçasse, continuava a não entender o que era aquilo.
Ouvi o ruído de alguma coisa riscando no escuro.
Novamente.
Foi só na terceira vez que pude entender.
Seu rosto iluminou-se com a chama do fósforo. Acendeu o cigarro. Deu
uma profunda tragada e disse:
- Não dá para fazer uma omelete sem quebrar os ovos. Desculpe por isso
rapaz – apontou para os arranhões no meu braço.
Eu estava boquiaberto. Sem saber o que dizer.
- Está na hora – disse após olhar o relógio de pulso.
O som da explosão vindo do túnel veio acompanhado de um tremor de
terra. Pude ver as chamas alastrando-se. Antes que pudessem chegar ao
nosso destino, o portal desapareceu.
- Pegue seu amigo e me espere lá fora. Ainda tenho que cuidar destes
dois indivíduos – disse apontando para os dois alienígenas no chão.
Na minha cabeça se instalou um verdadeiro maremoto de perguntas.
- Você é um...
- Não sou o que você está pensando – disse interrompendo meu
raciocínio. - Desista de tentar entender. Qualquer definição que possa
encontrar será contaminada pelo que esses bastardos inventaram para vocês.
Ainda vai demorar algum tempo para que a humanidade se livre de todo
este lixo acumulado – disse antes de chutar um dos alienígenas na barriga.
- Espere! Eu preciso entender! Afinal quem é você? – insisti.
Tragou.
- Não há nada para entender. Este é o meu trabalho. Eu os persigo pelos
quatro cantos do universo. É sempre a mesma coisa: eles arrumam algum
planeta primitivo onde possam subjulgar os seres através do
bombardeamento do inconsciente coletivo. Desta forma eles mantém sua
fonte de alimento. A cartilha diz que não devemos envolver outras raças no
processo de limpeza, mas estou tempo demais neste planeta miserável para
continuar a seguir as regras. Foi só envolver você na equação que
resolvemos isso em menos de vinte quatro horas, não é verdade? Qual o
problema se uma entre sete bilhões de criaturas fique sabendo da verdade?
Bastou um pequeno empurrão.
- Empurrão?
Tragou novamente.
- Acha mesmo que teve aquele sonho sozinho? – sorriu – Mas não se
preocupe, a minha interferência foi mínima. O crédito é todo seu.
O maremoto em minha mente tinha se transformado num verdadeiro
tsunami.
- Vamos lá rapaz – fez um sinal com a mão indicando a saída - Preciso
terminar meu trabalho. Ajude seu amigo a sair e me espere lá fora.
Levantei Stan do chão. Ele se apoiou no meu ombro enquanto pulava
numa perna só.
- Um anjo me salvou Eddie! Um anjo. Eu voei com um anjo – ele repetia
em estado de choque.
Aos poucos fomos andando para fora do prédio. Antes de cruzar pela
porta de metal arrisquei uma olhada para trás.
Após retirar um estranho objeto de seu casaco, ele tornou a voar
apontando aquilo para os alienígenas. Faíscas e raios começaram a sair do
objeto. Aos poucos, todo o seu corpo adquiriu uma luminosidade violeta.
Ao mesmo tempo em que eu via, não acreditava no que via! Ele estava em
plena combustão! Como se um holofote tivesse sido ligado, todo o
ambiente se iluminou. Apavorados, os dois alienígenas procuravam fugir
daquela força, mas era inútil. Seus corpos adquiriam um contorno azulado
enquanto se debatiam no chão como dois animais indefesos. Neste
momento, uma estranha vibração tomou conta do meu corpo. Pânico! Ao
identificar o mesmo estranho som que ouvi na casa da máfia russa empurrei
Stan porta afora no exato momento em que labaredas consumiram tudo o
que estava ao seu redor.
Caímos como dois pinos de boliche. A violência do choque fechou a
pesada porta de metal. Rapidamente ajudei Stan a se levantar e retomamos
o caminho. Eu estava tão apavorado que o carregava o seu peso com
facilidade em passos rápidos. Em choque, ele insistia em cantarolar:
We scream! We shout! We are the fallen angels!
We scream! We shout! Whoa-oh, whoah-oh-oh-oh!
Consegui descobrir o furgão no meio da escuridão iluminando o
caminho com o meu celular. Com cuidado, acomodei-o nos fundos sem
saber o que aconteceria a seguir.
Como se nada tivesse acontecido, Zane surgiu poucos minutos depois,
com o cigarro entre os dentes e sua roupa impecável. Quem o visse, nunca
saberia que ele esteve em combustão há poucos minutos. Bastou um gesto
seu para que Stan calasse a melodia do Black Veil Brides e caísse em sono
profundo.
- Vamos levá-lo de volta para o hospital. Ele passou por muita coisa,
precisa se recuperar.
Saquei do celular e avisei a Sra. Kimberley: nós estávamos com Stan.
Ela tinha permanecido no quarto do hospital, orando. Tudo indicava que
suas preces tinham sido atendidas. Mas não pelo tipo de anjo que ela fosse
capaz de imaginar.
Antes que eu pudesse fazer alguma pergunta, tentar extrair alguma coisa
daquele misterioso ser que tinha se tornado meu parceiro nas últimas horas,
lembrei-me de espionar tio Adam. Para a minha surpresa, ele e minha mãe
apareceram na tela numa espécie de discussão. Ela apontava o dedo na cara
dele ao mesmo tempo em que ele gesticulava os braços com fervor. Apesar
de não ter garantias, senti que aquilo indicava que ele ainda não tinha
realizado o ritual. Seja lá o que fosse, era uma forma de ganhar tempo.
Chegamos ao hospital por volta das dez horas da noite. A Sra. Kimberly
nos aguardava na entrada com dois enfermeiros e uma maca. O abraço de
agradecimento que ela me deu me trouxe de volta a realidade; nas últimas
horas estive tempo demais envolvido com o sobrenatural que por pouco não
tomei consciência de que tinha conseguido realizar. Era verdade: ele estava
a salvo. Mas ainda faltava prevenir a desgraça de meu tio. Permaneci diante
da porta do hospital até que a maca com os enfermeiros saísse do meu
campo de visão. De onde estava, pude olhar para Zane, que me aguardava
no furgão com o cigarro na mão. Corri ao seu encontro, não podíamos
perder tempo.
Meu tio se encontrava sozinho na mansão no momento em que partimos.
Da janela de seu quarto, com uma bebida na mão, ele olhava para o seu
Porsche estacionado. Continuava a confiar na minha intuição de que ele não
tinha executado o ritual. Ainda demoraria algum tempo até chegarmos ao
nosso destino. Enquanto isso, meu tsunami particular de perguntas
permanecia ativo: queria saber quem ele era, sua origem e suas motivações.
Como funcionava o seu poder? Como ele entrou no meu sonho? Será que
ele era capaz de ler pensamentos? E essa coisa com os cigarros?
- Você é um bocado insistente rapaz! Não pode simplesmente desistir de
tentar entender? O centro intelectual das criaturas tricerebrais deste planeta
é uma verdadeira bagunça! Não é a toa que há séculos vocês tentam se
destruir uns aos outros!
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele tinha se antecipado. Sim,
ele era capaz de ler pensamentos!
Após uma longa tragada, ele continuou:
- Ouça, nenhuma destas respostas vai trazer alguma diferença para a sua
vida. Procure manter o foco na tarefa que tem pela frente. Você não sabe
qual será a reação do seu tio ao ser confrontado com a verdade. Tenho
certeza de que esta conversa mudará a sua vida para sempre.
Ele tinha razão. Aquilo foi o suficiente para silenciar minha mente até o
final do caminho.
Paramos a uns cem metros da mansão. Meu tio continuava a transitar
pela casa com o copo na mão. Apanhei minha mochila com os trinta mil
dólares - vinte e nove para ser mais exato, lembrei-me de descontar a parte
de Alexei.
- Penso que é melhor que faça isso sozinho. Se precisar da minha ajuda
estarei aqui fora.
Toquei a campainha da mansão. Era um daqueles momentos onde os
segundos parecem horas, e os minutos parecem dias. Após quase duas
semanas de espera, tornei a tocar. Desconfiada, a voz do meu tio surgiu pelo
interfone.
- Eddie? O que está fazendo aqui?
- Posso entrar tio? Está frio aqui fora – menti.
- Claro! Desculpe-me. Eu não esperava por visitas.
Lentamente o portão se abriu. Til veio me recepcionar com a bola de
tênis babada na boca. Era um alívio saber que ele estava livre daquela
influência maligna.
Atravessei o jardim sob a luz do luar lembrando-me das palavras de
Zane. Aquela conversa iria mudar a minha vida. Será que eu estava
preparado para qualquer coisa?
Ele abriu a porta com um sorriso amarelo no rosto e me recebeu com um
abraço caloroso. Imediatamente culpei o álcool pelo calor.
- Precisamos conversar.
- O que aconteceu? - ele perguntou ao perceber as minhas roupas sujas
de terra e meu braço machucado - Você se meteu em alguma espécie de
confusão?
O riso incontrolável tomou conta de mim. Ele me olhava sem entender
coisa alguma.
- Eddie, está tudo bem? Você tomou alguma coisa?
Aquilo ficava cada vez mais engraçado. Após muito custo, consegui
retomar o meu fôlego.
- O único que se meteu numa confusão dos diabos foi você – disse
enxugando as lágrimas.
- Não entendo. O que quer dizer?
O cansaço do meu corpo me fez sentar no sofá. Precisa de algum
conforto. Ele acompanhou meu movimento sentando-se numa cadeira.
- Ouça: não dá para fazer uma omelete sem quebrar os ovos, portanto
vou tentar ser o mais direto possível: há poucos dias, eu e meu amigo Stan
invadimos o fórum Devil’s Friends na Deep Web.
Seus olhos arregalaram-se de repente.
- Eu sei de tudo. Sei que você participa do fórum e que toda a sua
riqueza é fruto das práticas macabras que você vem desenvolvendo ao
longo do tempo – senti uma paz imensa ao dizer aquilo – Estou aqui para te
ajudar. Aquilo não é o que parece. Você e todos os outros estão sendo
enganados.
Congelado, ele olhava fixamente para a foto de tia Glenda e Nathan na
parede.
Após algum tempo, sem dizer nada, levantou-se e caminhou na direção
do armário de bebidas. Através do espelho no fundo do armário, pude ver
quando ele apanhou o pequeno estojo preto. Sua manobra foi tão rápida que
só me dei conta do que tinha nas mãos quando ele se virou.
- Nunca imaginei que este momento chegaria – senti minha garganta
secar quando vi a pistola apontada na minha direção.
– Você sabe Eddie, quando sua tia e Nathan morreram naquele acidente,
uma parte minha morreu junto. Os dias passavam e eu pensava que a dor
iria diminuir – balançou a cabeça em negação. - Como pude ser tão idiota?
A dor não diminui. Como se não bastasse, logo a seguir fomos obrigados a
lidar com a doença de seu pai, lembra? Embora eu já fosse um homem rico
naquele momento, não fui capaz de fugir de um questionamento que
nenhum dinheiro do mundo é capaz de responder: qual é o sentido da vida?
Qual o propósito disto tudo? Sofrer? Não consigo aceitar isto! – gritou
olhando para o alto.
Meu coração esmurrava o meu peito por dentro pedindo para sair.
- Eu estava muito confuso. Foi então que percebi que o fim justifica os
meios, entende? Fui atrás de alguma garantia. Algo que pudesse manter
nossa família longe da dor e do sofrimento de uma vez por todas. A
resposta parecia estar em viver uma vida de luxúria, mesmo que tivesse que
pagar com a minha alma. Tudo indica que fui ingênuo ao pensar que este
segredo morreria comigo. Agora não sei se sou capaz suportar a vergonha...
- Espere tio! – levantei-me em pânico – Vamos conversar.
- Não se preocupe. Não apanhei isto por sua causa – apontou a arma para
a própria cabeça – Eu não me importo de ir para o inferno.
- Não! – gritei - Você não precisa fazer isso! Acredite em mim! Deixe-
me te mostrar a verdade!
- Eu já conheço a verdade há muito tempo! – sua mão tremia - Desde
que minha esposa e meu filho morreram naquele acidente!
- Escute! – tornei a gritar – O fórum não é nada do que está pensando!
Não existe nenhuma força diabólica por trás daquilo! Acredite!
- Não existe? Olhe a sua volta! Pense na recuperação do seu pai! Como
você explica isso tudo? – a arma permanecia trêmula.
- Acalme-se tio. Eu sei que aquela parte que julga que morreu ainda está
aí. Eu posso senti-la toda vez que estou com você.
Vi uma lágrima começar a rolar pelo seu rosto.
- Por favor, não faça isso! Pense na família!
Abaixou a arma aos poucos. Desabou em lágrimas como uma criança em
meus braços.
- Desculpe-me Eddie. Espero que possa me perdoar.
Lentamente puxei a arma de sua mão enquanto lembrava-me do meu
pensamento ao cruzar o jardim: nada no mundo podia me preparar para
aquilo.
Fui até a cozinha apanhar um copo d’água com açúcar. Lembrei-me dos
tempos em que minha mãe fazia aquela mistura para acalmar os nervos. Foi
o que me ocorreu no meio da confusão. Mesmo sem saber se aquilo
funcionava de verdade, entreguei-lhe o copo. Depois de apontar uma arma
para a própria cabeça, qualquer coisa era válida.
Como uma faca afiada os latidos cortaram o silêncio da noite. Bastaram
apenas alguns segundos para que se tornasse claro que havia algo errado lá
fora. Nunca tinha escutado Til uivar daquele jeito. Imediatamente imaginei
que Zane pudesse ter entrado na mansão preocupado com a minha demora.
Deixei meu tio na sala e corri para fora. Tive o cuidado de levar a arma
comigo temendo uma recaída de sua parte.
Decidi não acender as luzes de fora, deixando o luar iluminar a piscina e
suas curvas sinuosas. Til uivava na direção das árvores que ficavam ao lado
da casa de jogos. Quando me viu, começou a latir como se me chamasse
para verificar alguma coisa. Procurei caminhar lentamente respeitando a
minha intuição.
- Calma meu amigo. Calma – falei baixinho quando cheguei perto dele.
Olhei para as árvores, na direção em que Til apontava.
Antes que eu pudesse reagir, ele surgiu.
Seus olhos azuis pararam nos meus.
Paralisado.
Eu queria usar a arma, gritar por Zane ou pelo meu tio, mas era inútil.
Nenhum músculo me obedecia. Aos seus pés, Til permanecia dócil como
um cãozinho cocker spaniel .
Uma estranha vibração começou a percorrer o meu corpo dos pés a
cabeça. Senti como se o topo da minha cabeça estivesse aberto e fosse
penetrado por um tubo. Era como uma espécie de força magnética
emanasse de seu corpo. De repente, ouvi uma voz na minha cabeça dizer:
- Desculpe por esta abordagem invasiva, mas preciso ler os seus registros
akashicos para ter conhecimento de todos os eventos – ele disse.
Preso dentro do meu corpo congelado, eu observava o meu pânico
crescer a cada segundo. Aquilo era forte demais! Agarrei-me a tola
esperança de que Zane fosse capaz de ouvir meus pensamentos de longe e
interiormente continuava a gritar pelo seu nome. Após alguns minutos de
tortura, sua voz tornou a falar na minha mente.
- Nos últimos dias você esteve em contato com um ser do planeta
Melanthius cuja única missão era destruir o comando estelar do projeto
Pangeia. Sem saber, você o ajudou a ser bem sucedido. Graças ao Sagrado
Infinito Caos de Possibilidades eu estava numa missão no módulo de
manutenção, fora da nave mãe no momento da explosão. Após identificar
esta localização, abri um túnel dimensional espiralizado para cá, mas a
energia necessária para esta operação consumiu meu módulo.
- Zane! Socorro! Preciso de ajuda! – eu continuava a gritar mentalmente.
- Por favor, entenda: você está desperdiçando sua energia. Ele já está
longe daqui. Além disso, ele não tem interesse em te ajudar. O equilíbrio do
seu ser ainda pode ser reestabelecido. Você ainda tem a chance de anular o
conteúdo gravado nas bobinas do seu registro akashico.
Sem mover os lábios, ele continuava a conversa telepaticamente. Sem
escolha, fiz a minha voz se fazer presente:
- Vá se foder! Eu não acredito em você!
- Entendo. Como voto de confiança, vou devolver o controle do seu
corpo planetário. Poderá verificar o que estou dizendo por si mesmo.
No exato segundo em que senti meus músculos responderem a minha
vontade, apontei a arma para sua cabeça e puxei o gatilho.
Uma vez.
Duas vezes.
Três vezes.
- Estes dispositivos não funcionam na minha presença – ele falou na
minha mente.
Quase sem sentir os meus pés tocarem o chão, corri o mais rápido que
pude na direção da entrada. Como um animal enjaulado, agarrei-me as
barras de ferro do portão gritando pelo seu nome.
Nada.
Não havia sinal do furgão.
Ele não estava ali.
Não acreditando no que meus olhos viam, apelei para a minha audição:
saquei do celular e disquei seu número apenas para encontrar a mensagem:
“O número de telefone para o qual ligou está desligado ou se encontra
fora da área de cobertura. Por favor, tente mais tarde. Obrigado.”
- Espero que acredite em mim agora – sua voz falou novamente. Ele
continuava perto da piscina.
- Não! Vocês machucaram meu amigo Stan!
- Negativo. Nós utilizamos os seres bicerebrais apenas para vigiar os
indivíduos que podiam fazer contato com o ser do planeta Melanthius. Ele
foi o responsável pelo ataque. Quando nos demos conta de sua interferência
trouxemos o cão de volta o mais rápido possível através do túnel
dimensional espiralizado. Em seguida resgatamos o indivíduo ferido para
protegê-lo de outros ataques.
- Cale a boca! Saia da minha mente! Você não vai me convencer com
essas mentiras!
- Ajude-me a encontrá-lo. Poderá confirmar o que eu disse. Temos que
agir rápido. Ele vai tentar se comunicar com o planeta Melanthius para
avisar que a nossa nave mãe foi neutralizada. Há muito tempo que ele se
encontra isolado aqui na Terra. A única forma possível de comunicação é
através de um dos instrumentos terrestres chamados de rádio telescópios.
Neste momento ele deve estar a caminho do mais próximo daqui.
Sentia minha sanidade por um fio! Seria possível? Tudo não passaria de
um grande engano? Minhas pernas perderam a força levando-me ao chão.
Ajoelhado, olhava para o céu onde a lua cheia permanecia indiferente ao
meu sofrimento.
Foi quando ouvi novamente o som.
O bater de asas.
A sombra surgiu por trás da mansão encobrindo a lua.
Ele pousou a poucos metros do alienígena.
- Proteja-se Edgar! – gritou enquanto sacava a estranha arma de seu
casaco.
Aquelas palavras deram vida nova as minhas pernas. Eu sabia o que
estava prestes a acontecer. Disparei como um foguete na direção da piscina.
Antes de mergulhar pude ver Til correndo para os fundos da mansão.
De repente: o silêncio e o frio.
Nadei para a parte mais funda com a esperança de que o meu fôlego
fosse suficiente para garantir a minha sobrevivência. Encolhido num canto,
consegui ver quando ele levantou voo para disparar a arma.
Procurava por um culpado: o cloro da água, o meu nervosismo, a
incidência da luz da lua e uma infinidade de fatores que eu consegui
imaginar durante aqueles poucos segundos. Mas nada conseguiu me dar
uma explicação para aquilo que eu via através da água.
Não era Zane.
Não era humano.
Não era um anjo.
Subitamente as chamas preencheram todo o cenário acima da minha
cabeça aquecendo a água da piscina. Como um animal acuado, eu
procurava me encolher ainda mais esperando que aquele inferno particular
acabasse. Aos poucos, meus pulmões pediam por oxigênio.
Próximo do meu limite, minhas pernas me impulsionaram rumo à
superfície tão logo as chamas desapareceram.
Ar!
Ele desfazia o restante das cinzas do alienígena aos chutes. Deu-me a
mão para sair da piscina assim que me viu. As cadeiras ao redor foram
todas derrubadas. Do jardim, só restavam apenas alguns galhos secos
chamuscados.
- Não dá para fazer uma omelete...
- Sem quebrar os ovos – conclui a frase quase sem fôlego.
Ele sorriu.
- Para onde você foi? Eu tentei te telefonar.
- Eu não tenho culpa se vocês, diferente dos outros planetas habitados,
ainda não descobriram como produzir combustível a partir do princípio
vital. Aproveitei o tempo da sua visita para reabastecer o furgão. O mesmo
vale para o celular: a bateria descarregou. Vim ao seu encontro tão logo
senti na minha essência a presença deste ser desprezível.
Era irresistível. Prometi a mim mesmo não pensar no que tinha visto do
fundo da piscina para evitar que ele pudesse ler a informação, mas a
imagem era mais forte do que a minha vontade.
- Seja lá o que você viu enquanto estava lá embaixo, não procure
entender. Você já sabe: qualquer significado que encontre vai estar
contaminado pelo que estes malditos inventaram – disse ao mesmo tempo
em que esmagava o resto das cinzas com os pés.
- Esse bastardo disse que eu queria chegar ao radiotelescópio mais perto
daqui? Essa é boa! Assim que você levasse o desgraçado até lá, ele enviaria
uma mensagem de alerta trazendo outra nave para a Terra. Eles são piores
que as baratas: sempre sobra uma.
Olhei para a mansão a procura do meu tio. No meio daquela confusão
quase me esqueci dele.
- Não se preocupe com seu tio rapaz, eu o coloquei para dormir antes de
realizar o trabalho. Ele não viu nada – disse antes de acender o cigarro.
Obsoletas: era o que a telepatia fazia as minhas cordas vocais parecerem.
- Tudo indica que o meu trabalho aqui finalmente terminou rapaz –
soltou uma baforada. – Não vejo a hora de dispensar de uma vez por todas
estes cigarros e respirar o bom ar puro!
- Isso significa que vai partir e me deixar sem respostas? Eu não
acredito! – consegui dizer sem pensar.
Suas sobrancelhas se ergueram como dois arcos.
- Você um rapaz insistente! Já disse que nenhuma dessas informações é
capaz de transubstanciar a sua essência! Neste ponto de sua existência isso
só vai adicionar mais confusão ao que existe do inconsciente coletivo em
você rapazinho!
- Não é justo! Afinal de contas eu te ajudei o tempo todo! E pare de me
chamar de rapaz! – disse consumido pela revolta. Eu sentia raiva por ele
não revelar nada a seu respeito ao mesmo tempo em que me sentia insultado
pela palavra “rapazinho”.
- Pelo Sagrado Sol Absoluto! Até que enfim alguma coisa! Quando é que
você pensava em expressar o seu descontentamento com esta palavra?
Desde que nos conhecemos eu só a utilizo porque sei que, no seu caso, é um
potente catalisador. Só me faltava acertar na quantidade.
Quer dizer que ele se importava comigo? Quando me dei conta do que
ele havia dito, senti minha raiva diminuir aos poucos. Há quanto tempo eu
não expressava os meus sentimentos? Antes que eu pudesse me dar conta,
as lágrimas começaram a rolar pela minha face.
- É por causa disso que estes parasitas escolheram este planeta. Vocês
são capazes de coisas que em outros mundos não existem nem em sonho.
Conseguem mobilizar enormes quantidades de energia psíquica, seja para
perseguir ou negar seus sonhos e desejos. É impressionante! Lentamente, a
partir de agora, vocês vão se libertar de todo o lixo acumulado no
inconsciente. No início tudo irá ruir e o caos vai se instalar. Mas acredite:
dentro de todo fim há um novo começo.
Perseguir ou negar os sonhos... Percebi que aquela frase ia ficar na
minha mente por um longo, longo tempo.
Ele estendeu a mão na minha direção.
- Lembre-se de você mesmo, sempre e em toda parte.
Ainda fui capaz de dizer:
- Obrigado.
- Eu é que agradeço.
No momento em que nossas mãos se encontraram, dei-me conta de que
era a primeira vez que o tocava.
Escuridão.
(...)
Acordei com Tio Adam me sacudindo:
- Eddie! Fale alguma coisa! O que aconteceu? Você está bem?
Áspera como uma lixa, a língua de Til lambia o meu rosto.
- Acho que cochilei por algum tempo. Quando acordei te encontrei
estirado aqui fora no meio de toda esta confusão – ele disse enquanto
ajudava-me a levantar – Vamos lá para dentro, você precisa se secar, caso
contrário vai apanhar uma pneumonia.
Atravessamos os escombros do jardim até a mansão. Eu olhava
atentamente ao redor: não havia sinal de Zane. No céu, apenas a lua me
encarava como única testemunha da minha louca aventura.
Após me secar, ele trouxe algumas roupas velhas que eu tinha deixado
ali por qualquer razão obscura do passado. Enquanto eu vestia a calça de
moletom e a camiseta surrada do Godsmack, senti o aroma de café
preencher a casa. Ele me entregou uma xícara bem servida a seguir.
- Consegue me dizer que diabo aconteceu lá fora?
- É uma longa história... – disse esfregando os olhos – Eu não saberia por
onde começar.
No instante em que pus meus olhos no cavalo negro pude ver
claramente. Sem hesitar, apanhei as chaves do Porsche e corri para fora.
Sem entender nada, meu tio me seguiu assustado chamando pelo meu
nome.
Abri o porta-malas o mais rápido que pude.
Lá estava ele. Exatamente como na minha visão.
Amordaçado. Com as mãos e pés amarrados. Embora estivesse
desacordado, pude ver que ainda respirava: Ian MacNeil, programador
sênior python.
- No meio de tanta confusão... Quase me esqueci dele! Como você
sabia? – meu tio falou.
- Eu não posso acreditar! Você pretendia mesmo ir adiante com isso? –
perguntei num tom nervoso.
- Eu realmente não sei, só pensava em correr contra o prazo.
- Olhe para o seu jardim! Olhe! – apontei para direção do jardim com
suas árvores chamuscadas - Escute mais uma vez: não existe força diabólica
atuando por trás disso! Nenhuma! Acredite!
A imagem do que vi do fundo da piscina ressurgiu na minha mente.
Percebi que, daquele dia em diante, aquela lembrança iria me acompanhar
até o final da minha existência. E, junto com isso, tudo indicava que ele
tinha me deixado algo mais além de um desmaio com aquele aperto de mão.
Era melhor começar a me acostumar. Respirei fundo antes de continuar.
- Isso agora não importa. Precisamos resolver esta situação. Primeiro,
diga-me uma coisa: o que foi que você fez com ele?
- Usei um lenço com clorofórmio no estacionamento da empresa. Ele
não me viu surgir por trás.
- Tem certeza?
- Claro! Ninguém viu. Eu mesmo desliguei as câmeras de segurança
antes de agir.
- Ótimo. Vamos levá-lo de volta e deixá-lo no mesmo lugar. Com um
pouco de sorte ele vai acordar e pensar que teve apenas um mal súbito.
Partimos imediatamente para a sede da Kisses and Hughes. No caminho,
tio Adam procurava se redimir dizendo que nunca teve certeza se teria
coragem de concluir o ritual. Desisti de tentar argumentar que se isso fosse
verdade ele não teria sequestrado o coitado. Agora era mais importante a
tarefa que tínhamos pela frente do que qualquer verbalização inútil a
respeito de eventos passados.
Ele estacionou o carro a uma distância segura, longe do alcance das
câmeras do prédio. Telefonou para o segurança pedindo que ele verificasse
o banheiro do quarto andar porque tinha dúvidas se tinha deixado uma
torneira aberta. Fiquei impressionado com a maneira que ele conseguiu
brincar com o segurança dizendo que, antes de sair, devia ter urinado
pensando no jogo dos Dodgers daquela noite. Tudo muito fluído e
convincente - diabolicamente convincente, pensei. Em seguida, através do
celular, se conectou aos servidores e colocou em pausa todo o sistema para
que pudéssemos avançar.
- Temos que agir rápido, ele não deve demorar.
Tio Adam cortou as cordas que o amarravam com uma faca. Logo que
desatou o nó da mordaça notei que as marcas deixadas em seu corpo
tornariam evidente que aquilo não se tratava de um mal súbito. Sem tempo
para perfeccionismos, segurei-o pelos pés enquanto ele o apanhou pelos
ombros. Deixamos seu corpo ao lado de seu carro. Corremos para o Porsche
como duas crianças que tinham acabado de atirar uma pedra na vidraça do
vizinho.
Durante o caminho de volta, consumido pela vergonha, ele decidiu usar
o carro como confessionário.
- Sabe Eddie, tem mais uma coisa que você deve saber. É algo pessoal...
É possível que não goste do que vou te contar.
- Se é sobre você e minha mãe eu não quero saber. Isso não me diz
respeito. Só espero que vocês não façam meu pai sofrer.
Por um triz ele não perdeu a direção enquanto olhava para a mim
espantado.
- Procure entender: foi algo que aconteceu enquanto seu pai estava
internado, nós nos aproximamos... Ninguém teve culpa...
- Já disse que não me interessa!
Ele manteve silêncio por algum tempo. Em seguida concluiu:
- De qualquer forma, quero que saiba que está tudo terminado. É coisa
do passado.
Lembrei-me da estranha visita da minha mãe pela manhã na mansão e da
discussão que eles tiveram durante a noite. Conseguia ver que ele estava
sendo sincero. Algumas partes do seu corpo emanavam certas cores. No
centro do seu peito, a cor verde brilhava forte. Sem saber como, eu podia
dizer que era uma indicação de sinceridade. Eu começava a gostar daquela
nova habilidade.
Em silêncio, permanecemos com nossos pensamentos durante o resto do
caminho até a minha casa. O cansaço começava a tomar conta do meu
corpo. De repente, tudo o que eu mais queria era deitar na minha cama e
fechar os olhos. Como se fosse possível deixar para trás os acontecimentos
dos últimos dias. Mesmo que fosse por apenas algumas horas.
Por pouco não percebi que estávamos chegando. Só me dei conta de
estar diante da minha casa quando ele começou a manobrar o Porsche para
estacionar. Antes de me despedir ele ainda falou:
- Espero que possa me perdoar.
- Temos que estar presentes para a família, lembra?
Com um sorriso no rosto, ele me abraçou.
Procurei entrar em casa sem fazer barulho. A última coisa que eu
desejava naquele momento era discutir com meus pais a respeito do horário.
Desafiando todas as leis das probabilidades, encontrei minha mãe sentada
no sofá da sala olhando para a TV desligada.
- Olá Eddie. Chegou tarde. – ela disse enxugando discretamente as
lágrimas.
- Onde está o meu pai? Está tudo bem?
- Ele está dormindo, não se preocupe.
Sentei-me ao seu lado. Pude ver que no centro de seu peito a cor verde
era mais intensa do que no meu tio.
- Seu braço! O que aconteceu?
- O que? Ah! Não foi nada... Caí da moto ao passar numa poça de óleo –
menti.
- Mas sua moto estava aqui quando eu cheguei.
Por um segundo pensei em contar que consegui aquele machucado numa
fábrica abandonada em Temple City ao sair de um túnel dimensional
espiralizado carregado por uma criatura de outro planeta, mas optei pela via
mais fácil:
- Tive o acidente pouco antes de chegar a casa, mas estava com tanta
pressa de sair que decidi não parar para cuidar disto.
- Pressa de sair? Para onde ia com tanta pressa se você não usou a moto?
Merda! Teria sido mais fácil falar sobre o túnel.
- Tio Adam passou por aqui e me convidou para jantar – Bingo! Ele era
o álibi perfeito. Vi a cor verde se intensificar quando mencionei o nome
dele.
- Seu tio? E ele não se prontificou para te ajudar com os curativos? Ele é
mesmo um irresponsável! Espere um momento que vou buscar a maleta de
primeiros socorros.
Irresponsável? Queria ver qual seria a reação dela ao descobrir o que ele
tinha no porta-malas do carro.
Molhou o chumaço de algodão com a substância negra que ardia como
pimenta. Diante dos eventos dos últimos dias, era muito fácil suportar
aquela dor. Após enfaixar meu braço, cortou um pedaço de esparadrapo
com os dentes para terminar o curativo. Ela era Stephanie Coburn, minha
mãe: quando queria, se tornava a combinação perfeita entre firmeza e
gentileza.
- Já está tarde. Eu vou dormir. Sugiro que faça o mesmo. Lembre-se de
que acorda cedo amanhã.
Sim. Eu me lembrava.
Exausto, fui para o meu quarto com a intenção de desabar na cama. Mas
antes de dormir, meu corpo ainda foi capaz de reunir forças para apanhar o
contrabaixo. Ajeitei os travesseiros e me recostei. Comecei a dedilhar a
canção que surgiu na minha mente.
Is this our last chance to say all we have to say?
Hiding here inside ourselves, we live our lives afraid
So close your eyes and just believe in everything you’re told
Cause in this land of great confusion, it’s easy to give up control
Strange world, people talk and tell only lies
Strange world, people kill an eye for an eye
Strange world, dream one day we’ll see the light
Strange world, believe and everything will be alright
Epílogo
Despertar

- Quer dizer que o fórum está fora do ar? - Stan perguntou antes de
lamber as pontas dos dedos cheias de açúcar do donut. Sua boca estava
lambuzada com o recheio de geleia de morango.
Pela janela do quarto do hospital pude observar a cruz mais de perto.
Aquilo continuava a me dar arrepios.
- Sim. Não sei que tipo de informação você deu ao FBI, mas tudo indica
que eles chegaram aos administradores – disse sorrindo.
- É uma pena que eu não me lembre do que aconteceu, por mais que eu
me esforce minha memória só alcança o momento em que eles apareceram
aqui no hospital para me pegar – limpou os lábios com o guardanapo de
papel – Lembro-me da minha mãe chorando... Do meu medo crescente...
Depois disso, é tudo apenas uma grande escuridão – afirmou desapontado –
Depois acordei aqui novamente. Será que eles me drogaram? E qual o
interesse deles no fórum? Não entendo...
O mais difícil não foi omitir a verdade, o pior foi inventar uma estória
que explicasse como eu fui parar no furgão do FBI para entregá-lo no
hospital. A solução foi criar um amigo do meu tio que trabalhava para a
NSA. Sua influência teria sido responsável pelo término da investigação.
Depois de tantas mentiras esta parecia um grão de areia diante de uma
montanha.
- Não se preocupe com isso agora. O que importa é que você não foi
considerado culpado de nenhum crime. Mantenha o foco na sua
recuperação. Quem sabe sua memória não volta aos poucos?
A Sra. Kimberly interrompeu nossa conversa ao entrar no quarto.
- Rápido, liguem a TV meninos! Alguma coisa grande aconteceu.
Consegui escutar parte da notícia no rádio do carro.
O noticiário da CNN informava a respeito do crash da bolsa de valores
americana e suas repercussões. Tudo indicava que o responsável era um
grande grupo de investidores que tinha cessado suas operações naquele dia.
Envolvidos em todos os tipos de atividades, eles funcionavam como o pilar
principal de sustentação da nossa frágil economia. Aquilo era a primeira
peça que caía de um complexo jogo de dominó enfileirado. As últimas
palavras de Zane teimavam em ecoar na minha mente: dentro de todo fim
há um novo começo.
Antes de partir do hospital com Susie, parei para contemplar o céu sem
nuvens. Inexplicavelmente senti que tudo estava bem. Cada vez que eu
pensava em como as coisas se desdobraram, eu desistia de tentar entender.
Tentar entender só complicava tudo.
Deixei Susie no estacionamento da CSU. Sua cor amarela reluzia contra
o sol: ela era linda. Nem mesmo os trinta mil dólares do meu tio me fariam
trocar de moto. Vinte e nove para ser mais exato. Vinte e nove.
Lembre-se de você mesmo, sempre e em toda parte.
Às vezes o óbvio está debaixo do nosso nariz e, por isso mesmo, temos
dificuldade para enxergá-lo. Como alguém poderia esquecer-se de si
mesmo?
No balcão de atendimento da secretaria, a simpática senhora de cabelos
lisos claros e óculos aguardava pelo próximo a ser atendido: eu.
- Bom dia. Eu gostaria de cancelar a minha matrícula.

FIM

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