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A ética das virtudes

(Notas e resumos de aula)

I. Introdução
Em primeiro lugar temos que nos perguntar o que é “ética”. Em segundo lugar temos que
nos perguntar o que é “virtude”.
A ética é a investigação tanto do “caráter” e quanto do “costume”; uma investigação sobre
como funciona o caráter e sobre como ele se relaciona com os costumes de uma determinada época
e sociedade. Digo que é uma investigação “única” porque o “caráter” e o “costume” são as duas
significações do termo ethos, que tomados como objeto de estudo de uma ciência redundam na ética
– o estudo do ethos. E há já aí uma razão para a ética antiga grega ser conhecida como a ética da
“virtude”, visto que as virtudes são compreendidas como disposições do caráter, relacionadas com
tudo aquilo que fazemos e que, se levadas a termo de um modo preciso (que devemos considerar),
tem como efeito um comportamente moral e excelente e, com isso, levar à felicidade.
Vejam que aparece aqui o termo “moral”, que precisa ser circunscrito, já que ele é muito
importante para as éticas modernas que possuem um ponto de vista diferente da ética da virtude. A
ética NÃO É a “moral”, mas estuda TAMBÉM a moral – como sistema de valores considerados
corretos ou incorretos numa determina realidade – e por isso a moral é uma PARTE da ética, já que
a ética interroga como são possíveis estes valores, quais as qualidades que eles nos comunicam e
porque são eles que devem ser seguidos e não outros. A ética então pressupõe sempre um espaço
ou um intervalo, seja este entre a intenção e a ação no indivíduo e em âmbito particular, entre o
indivíduo e a sociedade, num ambito coletivo. Ela sempre tematiza esse intervalo ou espaço que é
constitutivo da noção de sujeito ético, na medida em que somos dotados de vontades e capazes de
ações, e que no caso dos gregos se mede/equaciona através do conceito de “virtude”. Portanto, DF a
“ética das virtudes” é uma posição ética que toma a “virtude” como fundamental para decrever
estas relações que enumerei e para prescrever como devemos lidar com este espaço/intervalo que
nos é constitutivo.

II. A virtude
O conceito de virtude qualifica, primeiramente, que tipo de caráter pode ser considerado
“bom” e que tipo de ação pode ser considerada “boa” ou, em decorrência, virtuosa. Isso significa
que é preciso CONHECER o que seja a virtude para, então, aplicá-la e AGIR de maneira virtuosa.
Há pelo menos 4 virtudes que são comuns tanto em Platão quanto em Aristóteles: coragem,
piedade, justiça e sabedoria. Não há uma tábua finalizada das virtudes ou uma obra em que todas
são apresentadas de forma resoluta. O que é preciso entender é que a Ética da Virtudes é uma ética
do caráter e da ações “boas” e “excelentes”; uma ética “aristocrática”, portanto, em que os virtuosos
são os excelentes dentro de uma acepção de aristoi tal como pensada na época. (não é a de
aristocracia como governo dos “privilegiados” apenas, como dizemos hoje que os “privilégios” são
ruins, acabam com a isonomia e não podem existir numa sociedade justa. Trata-se de um governo
dos “bons” e dos “melhores”, no sentido de que aqueles que possuem as virtudes, os sábios,
corajosos e assim por diante devem governar, escrever as leis, educar as crianças, falar em nome do
povo, representar a cidade nas competições e nas guerras etc.) Não é o homem que coloca
predicados morais nas coisas, de acordo com seu interesse que é volátil, mas ele descobre por um
esforço intelectual (por ser dotado de razão) e pela boa vontade na ação o valor moral que já existe
nelas. E a Ética trata dessa vida prática e dos meios para atingí-la, já que aquilo que é (1) “correto”
e “moral” é também (2) “excelente” e “bem feito”. Expliquemos:
O termo “virtude” congrega dois sentidos que se davam juntos na palavra grega aretê e que
são a “moralidade” e a competência ou “excelência” de uma ação. Então há virtude naquelas ações
que consideramos corretas e justas para com os outros – ajudar os necessitados, ser sincero e
honesto, não usurpar o bem alheio, restituir o que se deve etc. – e há também virtude naquelas ações
que consideramos bem realizadas – como a competência técnica para construir um móvel, para
pintar um quadro, para a oratória, para fazer um slide (ou não, quando não é caso). No imaginário
grego areté significa tanto o aspecto moral e correto de uma ação quanto a excelência e maestria
com que ela é realizada; de modo que a pessoa dotada de aretê é capaz não somente de i) saber o
que fazer (significado moral), mas de saber como fazer aquilo que ela deve fazer (significado
prático ou técnico). Isso que separamos e podemos inclusive pensar como pertencendo a duas
virtudes distintas – a moralidade e a excelência – são, na verdade, expressas juntas na palavra grega
arete que é o equivalente aproximado de nossa “virtude”. Para restituir o significado da antiga Ética
das Virtudes é preciso ter sempre isso em vista: não se trata de um “moralismo” exacerbado, como
pensaríamos hoje, que só se preocupa com a opinião pública, com a moral e o status quo, nem de
um “profissionalismo” exacerbado, workaholic oi burocrático, preocupado apenas com a técnica e
com levar às últimas consequências a técnica, seja por competição, ou por pura vaidade. Não; a
virtude como areté é a um só tempo moralidade e excelência, união esta pressuposta no uso da
palavra para a construção da Ética na filosofia antiga.
Nota sobre a questão da temporalidade:
É preciso também compreender que a filosofia grega possui uma concepção de mundo que
propicia falar da virtude como fator central das ações e da ética, e pensar que ela é a “unidade
básica” para a distinção entre aquilo que é melhor ou pior moralmente. Em suma: para o grego o
mundo é eterno, o que significa que ele não terá “fim”, mas apenas períodos de formação,
desenvolvimento e ápice, de crise e que se iniciam novamente. O tempo e a história são cíclicos e
não linerares. Isso faz com que se pense as virtudes como impregnadas nas pessoas, nas ações e nas
coisas, de forma perene, imutável, como sendo a própria natureza delas. Então, a virtude está em
todas aquelas coisas que são verdadeiras, belas e boas, e, neste último sentido, que é o sentido da
moral e que é estudado pela Ética, que a bondade e a excelência está realmente naquelas pessoas e
ações que participam da virtude e que expressam as virtudes.
Isso coloca inclusive uma diferença com a ética cristã que é, também, uma ética das
virtudes, mas que pensa juntos da virtudes naturais as virtudes ditas “teológicas” (fé, esperança,
caridade ou amor divino), em que opera uma concepção de tempo diferente da grega, já que para a
ética cristã o tempo é linear e o mundo é finito, e não cíclico e eterno. Ele teve um começo e,
portanto, deve ter um fim. Isto coloca o sentido da virtude que transparece nas ações num ideal
transcendente a elas (que é Deus), que as coordena de fora e confere seu caráter virtuoso. A
diferença entre essas temporalidades e visões de mundo é a diferença entre o “círculo” e a “linha”,
tal como aponta o prof. Newton Bignotto (1992), e isso redunda em concepções históricas da
virtude diferentes. (Sobre como noção de virtude e de tempo na Grécia deriva das tradição homérica
e das epopéias e é rejuntada na educação e na formação do homem grego – cf. a obra “Paidéia” de
Werner Jaeger (JAEGER, 1995).
Por enquanto estamos tratando dos aspectos programáticos “comuns” à ética das virtudes.
Vamos ver que Platão desenvolve e prossegue essa visão de mundo e dos valores como imutáveis e
eternos, enquanto que Aristóteles já faz certas críticas à tal concepção e imprime um novo modo de
pensar a virtude, que coloca movimento (a kinesis) neste universo pleno e imutável da Ética
Platônica. Aristóteles pode ser considerado um “reformador” desta visão de mundo grega e por
isso a sua filosofia tem diferenças importantes com relação à do seu mestre Platão.

III. Platão
Começando pelo mestre, para Platão a virtude é o bem. Ou, melhor, sem a ideia do bem não
há virtude, pois o bem é aquilo que ilumina as virtudes e as torna possíveis – que lhes confere seu
caráter virtuoso, da justiça àquilo que é justo, da coragem e da sabedoria aquele que é corajoso e
sábio e assim por diante. O bem então é aquilo que está em todas as coisas “boas”, de que todas
participam e expressam a bondade, mas que nenhuma delas esgota em particular. Ele não tem um
conteúdo preciso. Se não posso encontrar o bem por si mesmo, não obstante é possível investigá-lo
e pensá-lo, sendo os diálogos platônicos e principalmente os do período socrático tentativas
reiteradas de compreender cada uma das virtudes e do bem que há nelas. Então temos, por exemplo,
o Eutífron, que trata do que é a piedade, e da Apologia de Sócrates que diz que o objetivo da virtude
é conhecer a si mesmo – no famoso “conhece-te a ti mesmo” do Sócrates platônico –, até o livro
quarto de A república que as enumera como sendo a sabedoria, a coragem, a temperança – tripartida
como a alma, que possui uma parte irascível, outra apetitiva e outra racional – e que, juntas,
acarretam a justiça (PLATÃO, 1980, 435-444).
É também n’A República em que encontramos a passagem crucial a respeito do Bem
respeito disso, e que é preciso analisar:

Quem não for capaz de definir com palavras a idéia do bem, separando-a de todas as outras,
e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutações, esforçando-se por dar
provas, não através do que parece, mas do que é, avançar através de todas estas objeções
com um raciocínio infalível – não dirás que uma pessoa nestas condições não conhece o
bem em si, nem qualquer outro bem, mas, se acaso toma contato com alguma imagem é
pela opinião, e não pela ciência que agarra nela, e que a sua vida atual a passa a sonhar e a
dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro descerá ao Hades para lá cair num sono
completo? (PLATÃO, 1980, 534 b, c).
Essa citação congrega as principais teses da filosofia de Platão além da definição da sua
Ética.
- O bem é uma ideia, diferente da matéria e das coisas sensíveis em que ele transparece.
Trata-se da distinção entre o sensível e o inteligível, que que faz fortuna na história da filosofia, e
que neste caso aloca o bem do lado do inteligível.
- Este bem não está na aparência das coisas, que é mutável, transitória, mas no ser e na
realidade que está para além da aparência, da razão que está para além dos fenômenos.
- Distinção que já mencionamos. As coisas são “boas” porque comungam do Bem supremo e
uno; mas este Bem que está em todas elas deve estar, também, para além de todas elas e não pode
confundido com o bens particulares. Trata-se do bem em si mesmo.
- O bem é apreendido por um conhecimento seguro e não pela opinião, conhecimento este
que é a episteme e a “ciência” da Ética. Então a Ética interroga o 3) bem em si e geral que há nos
bens particulares; 2) que é a realidade dessas próprias coisas e não sua manifestação empírica; 1) e
de que temos a ideia no intelecto e não na experiência sensível, por meio dos sentidos..
O bem em si mesmo é como o Sol – diz Platão – que ilumina as coisas e que permite então
vê-las com todas as suas propriedades, mas que não pode ser observado diretamente. O Bem é [i]
princípio das ações boas, o que as torna virtuosas, e [ii] finalidade das ações boas, para o que sua
virtude tende. Note-se que a virtude é justamente o que permite esta passagem conciliadora entre
os meios e os fins, já que é preciso conhecê-la para praticá-la e que conhecer e praticar estão co-
implicados na ética de Platão1.
A quebra com este aspecto universalista da noção de bem leva à ética tal como
compreendida por Aristóteles. Dissemos antes que Aristóteles vai “mudar” esta teoria, mas que
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Assim, o Bem é aquilo que é tanto surpreendido nas relações éticas quanto re-conhecido nelas como seus aspecto
virtuoso ou bom e esta interdependência do agir e do conhecer é crucial. Agir é, primeiro, conhecer para agir e conhecer
é, desde já, já re-conhecer o Bem imbricado na ações – e a ética depende de uma “noética” como atividade que procura
o conhecimento do Bem que se manifesta tudo aquilo que é virtuoso, ou seja, que congrega ambos os aspectos do noein
grego, que significa “conceber”, “intuir”, “captar” e “reconhecer” que persiste na história da filosofia e desemboca lá
na fenomenologia e na ética fenomenológica como capacidade de reconhecer os valores no campo transcendental da
consciência.
“mantém” a virtude como operador conceitual da sua Ética. É preciso entender como.

IV. Aristóteles
Ao contrário de Platão, Aristóteles crê que a virtude não provém da ideia de Bem que existe
em todas as ações boas, mas no “equilíbrio” que elas podem atingir. Isso permite que a passagem
entre as duas filosofias seja analisada em detalhe pelos pesquisadores, que vêem no último período
da obra de Platão já a germinação da ética aristotélica com a ideia de metrion, ou de “medida” para
as ações e paixões.
É nesta “medida” que se decide a partir de agora a questão da virtude. Então devemos notar
que há um deslocamento do que seria, a princípio, o papel do 1) Bem para aquilo que seria, com
Aristóteles, o papel do 2) da “medida justa” (ARISTÓTELES, 1995, Lv. II, 2). Se a virtude não é
algo que está pronto no indivíduo, mas depende de seu exercício e do seu desenvolvimento, a
questão mais evidente é a de como a pessoa pode tornar-se virtuosa. Sabemos então que a
finalidade das ações não é sempre a mesma, o Bem, tal como o seria em Platão, mas a “medida” que
há nelas, a partir do equilíbrio entre o excesso e a falta de virtude que elas expressam. Todas as
diversas disposições de caráter, de que já tratamos, são virtudes. Mas elas podem ser mais ou menos
virtuosas já que oscilam entre a virtude e o vício na ação. E é assim que a virtude só se adquire pelo
exercício da moderação e do equilíbrio.
Pois mesmo aquilo que aparece como um “bem” pode se tornar um vício quando levado ao
excesso – a coragem (virtude estanque e pétria em Platão), quando exercida se torna imprudência; a
piedade em excesso, do mesmo modo, se torna licenciosidade, a sensibilidade se torna
intemperante e até libertina, e assim por diante – o que faz Aristóteles afirmar que “é das mesmas
causas e dos mesmos meios que se gera e se destrói a virtude” (ARISTÓTELES, 1995, lv. II).
Portanto a ética se decide no exercício desta polaridade, pela “qualidade” e não pelo “rótulo”
daquilo que é praticado como “virtuoso”, pois toda ação pode ser desvirtuada pelo excesso ou pela
falta, e a Ética como ciência do viver bem, deve estar atenta a este equilíbrio necessário para a
prática destas virtudes. Não por caso, a “prudência” é uma virtude que fornece um modelo para
todas as outras quando se trata de viver bem. Se “o bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (Lv
I, 1), tal como promulga o início da Ética à Nicômaco, a ética é a “sabedoria” daquilo que leva a
este bem e à felicidade como eudaimonia, como fim que deve ser buscado em si mesmo, e não
buscado com vistas em outra coisa (Lv. I, 7). Assim, praticar a virtude não pode ser algo que sirva
para conseguir alcançar outros fins – fazer caridade para colocar uma foto no Instagram, corajoso
para impressionar, buscar o conhecimento para convencer e persuadir os outros –, mas porque estas
virtudes tornam o indivíduo mais feliz e pleno desde que praticadas de modo prudente e comedido.
Ser justo, honesto, caridoso, buscar o conhecimento acarretam neles mesmos a felicidade.
Aristóteles reflete que um bem que é perseguido por si mesmo é mais perfeito do que um
bem que é perseguido por causa de outra coisa (Lv. I,7). Obviamente se o bem, no caso “viver
bem”, é o objeto de estudo Ética, uma disciplina autônoma, isto se deve ao fato dele ser um objeto
que possui um certo tipo de autonomia, de existência perene (autarquia), ou seja, porque ele é um
bem em si mesmo.
Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois
a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais [...] ninguém escolhe a
felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer
outra coisa além dela mesma. (ARISTÓTELES, 1995, lv. I, 6).

Um retorno ao platonismo? Parece que não, como se lê na crítica do díscipulo: "há quem
pense que além destes muitos bem há um outro, bom por si mesmo, e que também é a causa de
todos os outros" (Lv. I, 4). Pois o termo “bem” tem tantas acepções quanto o termo “ser” e,
obviamente, não parece ser algo Universal, ainda que a sua “procura” o seja. Aí é preciso bastante
atenção. a) “A felicidade é autosuficiente”, b) ela é alcançada pelo exercício da(s) virtude(s) com
ponderação e “justa medida”, c) não é a mesma, pois existem distintos modos de vida.
Dito isso vamos colocar algumas questões para esta teoria:

V. A unidade das virtudes


As virtudes se relacionam umas com as outras? Há alguma mais importante que as outras?
Como saber que todas são virtudes do mesmo modo e que não estamos reunindo coisas muitos
diferentes sob a mesma palavra? A questão é saber se há uma unidade das virtudes. Há especialistas
no tema, como Marco Zingano (2009) que dizem haver uma unidade das virtudes em Platão,
enquanto outros como defendem que não. Creio que um argumento interessante pode ser extraído
de Devereux (2011): primeiro, toda virtude enquanto é exercida acarreta um certo “estado interno
da alma” – um tipo de afeto quando a pessoa está sendo justa, quando ela emprega um ato de
coragem, de piedade ou de prudência. A sabedoria, por sua vez, que é uma das virtudes, também é
capaz de pensar as outras virtudes, já que é justamente o intelecto o responsável por elaborar e
discriminar tudo aquilo que acontece. Se ela não somente pensa as outras virtudes mas é ela
também uma virtude, quando ela pensa a respeito deste “estado interno da alma” que acompanha as
outras virtudes quando elas são exercidas ela também acarreta este mesmo estado de ânimo ao
pensá-las. Então somos todos possuidores da virtude do intelecto e da sabedoria; e quando
pensamos de maneira adequada aquilo que é belo, justo e bom criamos uma disposição de espírito
semelhante a quando agimos de modo nobre, justo, piedoso, temperante e assim por diante. Quando
pensamos de maneira adequada a respeito das outras virtudes não somente compreendemos o papel
que elas têm na formação do nosso caráter como também, ao pensar isso, reproduzimos este mesmo
papel e o reafirmamos. Há então uma unidade das virtudes, o que significa que todas comungam
umas das outras e mesmo com suas especificidades possuem algo em comum, e é a virtude
específica da “sabedoria” a responsável por tornar inteligível tal unidade. E que sabedoria é esta? A
sabedoria da Ética2.
Em Aristóteles essa questão da unidade é desnecessária na “forma” como é pensada por
Platão, pois em Aristóteles a “prudência” que poderia ser considerada mãe de todas as virtudes na
medida em que elas todas visam o equilíbrio é, na verdade, não o modo fundamental delas, mas o
modelo que todas deveriam seguir. Então, ainda que elas funcionem de uma mesma maneira –
sempre procurando a medida justa na ação –, cada uma ainda tem sua autonomia e especficidade
com relação às outras. Assim, ainda que a Ética a Nicômaco se abra na formulalção de que “o bem é
aquilo a que todas as coisas tendem” (Lv I, 1) ele não é um bem para além da ação, mas um bem na
ação e na experiência que, quando visa a medida justa acarreta o viver bem, a felicidade e que
precisa ser constantemente reiterada e perseguida por cada um de nós. Aristóteles diz que “uma
andorinha só não faz verão”, de modo que “uma” ação virtuosa não faz uma pessoa ou uma vida
dotada de virtude e, por isso, feliz.
Compreendemos que em ambos os casos a noção de “virtude” é central, ainda que existam
modificações importantes no saldo doutrinal de cada uma das teorias. Dois caminhos; um objetivo:
a virtude Assim, Platão e Aristóteles, cada qual ao seu modo, reúnem o aspecto descritivo e o
aspecto prescritivo daquilo que acontece à nossa volta, de modo que não há uma dissociação entre o
que “é” (ordem do Ser) e aquilo que “deveria” ou “poderia” ser (ordem do Dever). E é esta relação
entre Ser e Dever que configura o debate em torno das possibilidades e dos limites teóricos para
uma ética das virtudes na atualidade.

VI. A virtude hoje


Na modernidade o conceito de virtude vai perdendo espaço para compreensão do que é
ética. A discussão passa a ser entre “ética do dever” e “ética das consequências”, sendo que a
primeira vai pensar a ética nas ações capazes de seguir regras e de servir como regras (a doutrina do
imperativo categórico) enquanto a segunda vai pensar a éticas nas ações que acarretam melhores
consequências para o indivíduo ou para a sociedade. Nos dois casos a virtude deixa de ser o
operador central. Tome-se o contraste do segundo caso (utilitarismo) com relação a ética das
virtudes: para o utilitarista importa a melhor consequência e, portanto, o máximo de alegria e prazer
que uma ação pode suscitar, enquanto para a ética das virtudes em Aristóteles, importa um
equilíbrio entre o prazer e a dor, a alegria e a tristeza. Assim, digamos, se uma pessoa milionária

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A circularidade surpreende: Quando se pensa a respeito da ética se está sendo, imediatamente, ético; é ético
(moralmente correto) pensar a respeito das coisas e, nisso, a respeito do seu caráter ético.
doa 10 mil reais e outra pessoa trabalhadora da classe média doa um dia do seu salário para ajudar
os mais necessitados diremos, com o utilitarista, que a melhor ação é a do milionário, já que ela tem
“maiores” consequências. Mas é isto realmente o que ocorre? Recuperar o conceito de virtude
permite jogar luz a exemplos como esse e sobre o quanto uma pessoa necessita ter um caráter sólido
e virtuoso para fazer o bem apenas porque sabe o que é melhor para a sociedade e quer o que é
melhor para sociedade. É a noção de “pessoa” que é recuperada junto disso, já que antes de seguir
normas ou de procurar aumentar os efeitos de suas ações ela simplesmente faz algo porque
considera ser o melhor e porque há uma consonância entre este senso de justiça e o seu caráter. Esta
unidade entre o caráter e ação é o que a noção de virtude permite compreender. E é ela que
reaparece no debate filosófico contemporâneo como o livro After Virtue (“Depois da Virtude”) de A.
MacIntyre (1984).
Este é um dos autores que consideram urgencial recuperar a noção de virtude na filosofia.
Para ele há um “vácuo moral” deixado pela modernidade, nessa querela entre meios e fins. Mas a
sua releitura não se faz alguns “ajustes”.
A bem da verdade, o momento histórico e a visão de mundo não são a mesma que na antiga
ética – e esta é, sim, uma dificuldade que a teoria precisa enfrentar: não há um catálogo de virtudes,
pois sabemos que algo pode ser considerado virtude ou vício de acordo com o contexto cultural e os
costumes. Assim, MacIntyre pretende fornecer uma dimensão histórica para a noção de virtude em
que toda prática pode ser uma virtude, desde que atenda a três pré-requisitos:
1) acarrete felicidade e seja buscada como um fim em si mesma
2) seja fruto de uma unidade moral na figura da pessoa que a pratica e
3) sirva como exemplo e traga maior coesão para a sociedade.
Neste caso a virtude se faz de acordo com a época e com as práticas envolvidas. Não se trata
da comunhão a um “Bem universal”, mas algo atinente à na formação do caráter, da justiça e da
correção que existem nas ações e nos valores de uma determinada sociedade. Portanto, é ainda seu
aspecto “virtuoso”, que permite recuperar a moralidade para o debate contemporâneo. É “moral”
aquela pessoa que possui a integridade de uma “unidade narrativa” em sua vida. Isto é, que vive sua
vida e realiza suas ações tendo começo, meio e fim, assim como uma narrativa consistente e
coerente, e por isso está presente àquilo quer ela quer e àquilo que ela faz, e confere um sentido
(moral) à sua vida. Enquanto unidade, este indivíduo é moral e capacitado, segundo MacIntyre,
para viver em sociedade.
Entenda-se: a pessoa virtuosa não é aquela que faz tudo e faz tudo bem, a pessoa “perfeita” e
“completa” , mas que possui unidade entre aquilo que pensa – suas intenções – e aquilo que faz –
suas ações. Por isso seria melhor falar em integridade ou integração, ou seja, naquilo que é possível
fazer de acordo com as capacidade e objetivos de cada um (seja para oratória, escrita, culinária,
esportes, aptidão para a música e tantos outros...), e não em perfeição ou flexibilização, como
muitas vezes se crê na era dos aparelhos e dos dadgets que parecem nos permitir fazer e ser “tudo”
ao mesmo tempo.
Há nessa teoria uma “dupla-implicação”: Primeiro a virtude fornece a unidade necessária à
pessoa para ser moral e excelente na sua prática; segundo, é esta unidade moral e consciente que
permite avaliar suas ações consideradas corretas, justas, boas, bem-feitas etc. A principal
contribuição de MacIntyre é então a ideia da “unidade narrativa”, que junta a concepção de a)
virtude com o b) contexto histórico-social e a recoloca no debate contemporâneo a respeito da ética.

Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad., introd. e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. da
UnB, 1985.
ARISTÓTELES. Política. Ed. Bilíngue, trad. E notas Antonio Campelo Amaral e Carlos de
Carvalho Gomes. Lisboa: Veja, 1998.
BIGNOTTO, Newton. “O círculo e a linha”. In: NOVAES, Adauto. (Ed.). Tempo e História. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.176-189.
DEVEREUX, Daniel. “A unidade das virtudes”. In: BENSON, Hugh e cols. Platão. Porto Alegre:
Artmed, 2011.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
MacINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984.
PLATÃO. A República. Trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1980.
ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. São Paulo: Paulus, Discurso Editorial, 2009
Refr

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