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A pergunta pelo Bem de qualquer acção humana (esta decisão é boa? esta acção é boa?) é a
pergunta que, de forma intuitiva, todos os seres humanos colocam a respeito de si mesmos ou de
outros como sujeitos da mesma acção. A resposta, porém, pode ser dada a diferentes níveis:
a) apreciação e cálculo das consequências da acção em causa;
b) existência de um conjunto de ideias ou princípios que a justificam racionalmente;
c) confronto dos pontos anteriores com o sentido da responsabilidade humana.
A resposta presente na alínea a) restringe-se à análise de “factos”, da qual resulta um “deve e
haver” das decisões individuais ou de grupo. Pergunta pela eficácia ou utilidade da acção em causa,
a qual conduz a nova questão: utilidade para quem? eficácia em que direcção?. O perigo de
confusão da pergunta ética com a pergunta pela utilidade ou eficácia da acção salta à vista. E quem
duvidará que quanto mais eficaz é o mentiroso, maior a mentira, ou seja, “máxima eficácia no mal é
maior perversidade”? Porém, a apreciação ética do facto em apreço não é indiferente à
consideração e cálculo das suas consequências.
A resposta b) assume a natureza racional do ser humano e a sua capacidade de fundamentar as suas
decisões. Porém, arrisca-se a inverter a ordem da decisão ética, transformando as razões para uma
escolha (a concretizar, a seguir) na argumentação ou justificação retórica pós-decisão,
eventualmente centrada no interesse egoísta do indivíduo ou do grupo.
A alínea c), sem excluir as anteriores, é a única que coloca o acento na dimensão ética
propriamente dita. Presente na própria fonte da reflexão filosófica, a Ética apresenta-se desde
Lévinas como filosofia primeira que conduz o ser humano à reflexão sobre a sua responsabilidade
de ser precisamente humano, a qual é responsabilidade pelo outro e por si mesmo. Isto é, a
responsabilidade de, conhecendo a sua própria circunstância (as suas coordenadas físicas,
históricas, culturais, etc.), responder fundamentadamente (e ainda que apenas diante de si mesmo)
em nome do Bem e para um Bem maior.
Em alternativa, outros propõem a pergunta “Que posso fazer?”. Esta pergunta como fundamento da
decisão e do agir ético tem a vantagem de reconhecer as circunstâncias e condicionantes do agir
humano, mas torna-se ambígua, pois evidencia também a eventualidade de diferentes opções
possíveis decorrentes da liberdade humana, a qual, por sua vez, exige uma justificação da opção
efectivamente escolhida (“se posso fazer a ou b, por que razão escolho a?”).
Savater (1991, 28-30) fundamenta a abordagem ética na pergunta “Que quero fazer?” Ao
apresentar esta pergunta, não aponta para um querer parcial, momentâneo e caprichoso, mas para o
“querer que radicalmente me constituiu”. É o querer humano que afirma a não identidade entre o
meu agir e o “ter de ser” da natureza, a negação da relação necessária (física) de causa-efeito que aí
ocorre. A possibilidade de querer é, pois, a primeira e fundamental especificidade da ética.
É deste querer radical que brotam normas e valores, isto é, “o meu querer é o meu dever e a minha
possibilidade: o dever é o que o querer funda; a possibilidade, o que o querer descobre”.
Savater traduz como objecto deste meu querer radical o “chegar a ser plenamente eu, isto é, ser
não-coisa, manter-me numa totalidade aberta na qual possa confirmar-me como autodeterminação,
ou seja, como criação e liberdade”.
Desta descoberta e afirmação, Savater retira como consequência: para conseguir chegar a ser
plenamente eu, devo (1) ser reconhecido(a) por outro(s) sujeitos a quem, pela minha parte,
reconheço também dotado(s) deste querer radical e infinito; (2) instituir uma comunidade de
sujeitos da qual, por princípio, ninguém fique excluído, na qual se estabeleçam relações de
autêntica e explícita reciprocidade e onde a ninguém seja vedada nem reduzida a abertura infinita
do possível..
D. O correlato dos pontos anteriores corresponde à actuação concreta do sujeito que em cada
situação da sua vida profissional se toma capaz de discernir o sentido das opções que tem a
fazer e de justificar os seus comportamentos de modo consistente e coerente, não em função
do bem próprio e imediato, mas, quanto lhe seja possível prever, pelas potencialidades da
sua acção para o desenvolvimento próprio até ao máximo das suas capacidades e da
comunidade envolvente até ao limite do género humano.
Em conclusão:
Assim como a Ética se não reduz a um conjunto de regras curtas que ignoram a complexidade da
vida, assim também a Deontologia não pode resumir-se ao ponto A atrás enunciado. Com efeito, a
própria existência de códigos de deveres e direitos inerentes a uma dada profissão resulta da prévia
dialéctica entre a sua acção comprometida (cf. C. e D.) e a reflexão dos envolvidos sobre o sentido
e finalidade últimas da sua acção enquanto profissionais e enquanto pessoas (B). Assim como a
existência da lei não dispensa a reflexão sobre a Justiça – constructo que suporta a própria
existência da Lei – assim também a Deontologia não pode restringir-se a códigos e regulamentos
produzidos num dado momento histórico por um dado conjunto de profissionais.
A Deontologia profissional é, pois, o lugar por excelência para apreciar a formação pessoal, a
formação profissional (em termos teóricos e práticos) e a capacidade de integração e unificação de
ambas. É ainda o espaço propício à definição de um plano pessoal de formação contínua que
contemple estas mesmas dimensões.