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Ética e Deontologia Profissional

1. Para uma definiçãogeral da Ética


A palavra Ética tem suscitado algumas desconfianças, geradoras de mal-entendidos. Por isso,
começaremos por defini-la pela negativa:
− A Ética não é um sistema de proibições puritanas descabidas (Discute os fundamentos da
acção humana enquanto humana, e não a sua inibição).
− A Ética não é um sistema ideal, nobre na teoria, mas inútil na prática (A sua finalidade é
orientar a prática e não produzir discursos; se falha a orientação para a prática, o argumento
sofre necessariamente de defeito teórico).
− A Ética não é um sistema de regras curtas e simples, do tipo "Não matar", "Não roubar",
que não respeita a complexidade do conhecimento científico ou da vida contemporânea
(Dirigindo-se à pessoa como sistema aberto, respeita o princípio da complexidade no
domínio do ser e do conhecer).
− A Ética não é algo inteligível apenas em contexto religioso (O bem não se resume a "aquilo
que Deus aprova", tese que já Platão refutou há 2500 anos).
− A Ética não é uma criação subjectiva ou meramente relativa a uma dada cultura
(profissional ou outra). Embora só exista na e pela acção do sujeito, sendo, por isso,
concretizada de modo pessoal, cultural e histórico, pressupõe a possibilidade do encontro
axiológico (debate quanto aos valores e respectiva hierarquia) e postula um esforço de
ajustamento das posições e atitudes de cada sujeito ou interpretação culturalmente situada a
um horizonte de universalidade dos juízos éticos.

A pergunta pelo Bem de qualquer acção humana (esta decisão é boa? esta acção é boa?) é a
pergunta que, de forma intuitiva, todos os seres humanos colocam a respeito de si mesmos ou de
outros como sujeitos da mesma acção. A resposta, porém, pode ser dada a diferentes níveis:
a) apreciação e cálculo das consequências da acção em causa;
b) existência de um conjunto de ideias ou princípios que a justificam racionalmente;
c) confronto dos pontos anteriores com o sentido da responsabilidade humana.
A resposta presente na alínea a) restringe-se à análise de “factos”, da qual resulta um “deve e
haver” das decisões individuais ou de grupo. Pergunta pela eficácia ou utilidade da acção em causa,
a qual conduz a nova questão: utilidade para quem? eficácia em que direcção?. O perigo de
confusão da pergunta ética com a pergunta pela utilidade ou eficácia da acção salta à vista. E quem
duvidará que quanto mais eficaz é o mentiroso, maior a mentira, ou seja, “máxima eficácia no mal é
maior perversidade”? Porém, a apreciação ética do facto em apreço não é indiferente à
consideração e cálculo das suas consequências.
A resposta b) assume a natureza racional do ser humano e a sua capacidade de fundamentar as suas
decisões. Porém, arrisca-se a inverter a ordem da decisão ética, transformando as razões para uma
escolha (a concretizar, a seguir) na argumentação ou justificação retórica pós-decisão,
eventualmente centrada no interesse egoísta do indivíduo ou do grupo.
A alínea c), sem excluir as anteriores, é a única que coloca o acento na dimensão ética
propriamente dita. Presente na própria fonte da reflexão filosófica, a Ética apresenta-se desde
Lévinas como filosofia primeira que conduz o ser humano à reflexão sobre a sua responsabilidade
de ser precisamente humano, a qual é responsabilidade pelo outro e por si mesmo. Isto é, a
responsabilidade de, conhecendo a sua própria circunstância (as suas coordenadas físicas,
históricas, culturais, etc.), responder fundamentadamente (e ainda que apenas diante de si mesmo)
em nome do Bem e para um Bem maior.

2. Especificidades da abordagem ética


Costuma fundar-se a abordagem ética na pergunta “Que devo fazer?”, querendo com isto sublinhar
que apenas ao ser humano é dada a oportunidade de escolher, agir e reflectir sobre a acção, ou seja,
que a acção humana se distingue da ocorrência necessária de determinado efeito quando se coloca a
causa, própria do mundo físico. Numa palavra, a pergunta “Que devo fazer?” pretende fazer notar
que a abordagem ética se distingue do agir instintivo e necessário e envolve a reflexão sobre o
sentido do agir humano, a qual pode traduzir-se numa explicação coerente..
Porém, como explica Savater, a pergunta “Que devo fazer?” acarreta outras: “E porque devo fazê-
lo?” ou “Que ocorre se não faço o que devo?”. Assim, para este autor, a noção de dever não é a
primeira noção da Ética, antes é necessário encontrar um fundamento para o mesmo dever.

Em alternativa, outros propõem a pergunta “Que posso fazer?”. Esta pergunta como fundamento da
decisão e do agir ético tem a vantagem de reconhecer as circunstâncias e condicionantes do agir
humano, mas torna-se ambígua, pois evidencia também a eventualidade de diferentes opções
possíveis decorrentes da liberdade humana, a qual, por sua vez, exige uma justificação da opção
efectivamente escolhida (“se posso fazer a ou b, por que razão escolho a?”).
Savater (1991, 28-30) fundamenta a abordagem ética na pergunta “Que quero fazer?” Ao
apresentar esta pergunta, não aponta para um querer parcial, momentâneo e caprichoso, mas para o
“querer que radicalmente me constituiu”. É o querer humano que afirma a não identidade entre o
meu agir e o “ter de ser” da natureza, a negação da relação necessária (física) de causa-efeito que aí
ocorre. A possibilidade de querer é, pois, a primeira e fundamental especificidade da ética.
É deste querer radical que brotam normas e valores, isto é, “o meu querer é o meu dever e a minha
possibilidade: o dever é o que o querer funda; a possibilidade, o que o querer descobre”.
Savater traduz como objecto deste meu querer radical o “chegar a ser plenamente eu, isto é, ser
não-coisa, manter-me numa totalidade aberta na qual possa confirmar-me como autodeterminação,
ou seja, como criação e liberdade”.
Desta descoberta e afirmação, Savater retira como consequência: para conseguir chegar a ser
plenamente eu, devo (1) ser reconhecido(a) por outro(s) sujeitos a quem, pela minha parte,
reconheço também dotado(s) deste querer radical e infinito; (2) instituir uma comunidade de
sujeitos da qual, por princípio, ninguém fique excluído, na qual se estabeleçam relações de
autêntica e explícita reciprocidade e onde a ninguém seja vedada nem reduzida a abertura infinita
do possível..

3. Para uma definiçãogeral de Deontologia


Fruto das desconfianças e mal-entendidos que no início referimos, ganhou terreno a palavra
Deontologia, usada pela primeira vez por Jeremias Bentham no título de um tratado de moral
publicado postumamente em 1834: Deontology or the scíence of morality. Do ponto de vista
etimológico, diremos que se compõe de duas palavras gregas: déon, deontos que significa "o que se
deve fazer", ou seja, aquilo a que, por dever, somos obrigados a realizar; e logos, isto é, discurso,
tratado. Portanto, deontologia será, etimologicamente, o “discurso ou tratado acerca daquilo que se
deve fazer”.
Assim, a deontologia toma como objecto do seu discurso sobre o "a-fazer" aquilo que, por dever, se
nos impõe como tarefa indeclinável, quer enquanto projecto, quer enquanto realização concreta. A
Deontologia é, pois, o “estudo ou tratado dos deveres”. Cabe, porém, perguntar: dever de fazer ou
dever de ser? Dever ou deveres? Para comigo? Para com o outro? E quem é este outro? O vizinho?
O cliente? O membro da mesma comunidade? O desconhecido? E com que justificação? A justiça?
A equidade? A felicidade? O prazer? O direito? A utilidade? O bem próprio? O bem comum? O
bem presente? O bem futuro? Questões que são sempre vivenciais e, simultaneamente, apontam
para a necessidade de princípios clarificadores e universais.

Do sentido primeiro de "estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de moral", a Deontologia


passou a ser entendida modernamente como o "estudo de determinada classe de deveres, próprios
de determinada situação social, sobretudo profissional".
Quer no seu sentido original, quer no que é hoje mais corrente, a Deontologia pressupõe, uma
teoria geral da acção humana, isto é, uma Ética geral e uma teoria especial de acordo com a(s)
tarefa(s) humana(s) em questão (as diferentes éticas e deontologias profissionais). Uma e outra
implicam de forma indissociável, quer a dimensão prática do agir livre e racional que caracteriza o
ser humano, e, portanto, o confronto com a norma que o rege, quer a sua fundamentação racional e
explícita.

Na perspectiva actual, entende-se a Deontologia como envolvendo:


a) um código de direitos e deveres num âmbito concreto de acção;
b) uma reflexão crítica sobre esse código;
c) uma reflexão dinâmica sobre esse código;
d) o procedimento ético concreto num âmbito delimitado.

A. A Deontologia parte do trabalho da compilação metódica e articulada de disposições legais


e de preceitos relativos ao seu campo de acção específico. Fala-se assim em deontologia
médica, jurídica, desportiva, educacional, etc, em cada uma das quais se especificam os
deveres e os direitos consignados nessa mesma prática profissional. A deontologia implica,
portanto, um conhecimento detalhado de todas e cada uma das acções inerentes à prática
profissional em causa, no que se refere às competências que ela exige e à rede de relações
que implica.
Contudo, a Deontologia traz consigo a noção primordial que o profissional, qualquer que
seja a função social que exerce, é Pessoa. A obtenção de um diploma e a inserção numa
carreira profissional, para além de o habilitarem tecnicamente, constituem-no sujeito
privilegiado num determinado campo de acção, isto é, instituem a circunstância que o torna
ser histórico e único cujas escolhas definem e concretizam um projecto de vida para si
mesmo e para a sociedade em que se insere.

B. Por isso, o trabalho de sistematização de normas e preceitos de natureza legal,


consuetudinária ou outra, conduz à exigência de reflexão sobre o sentido das mesmas
normas. Quer dizer, a deontologia não pode quedar-se pela apresentação de
comportamentos estereotipados e sua repetição mecânica, mas exige a análise crítica das
suas eventuais potencialidades para gerar situações de promoção do bem da pessoa não só
em campos específicos (ao nível biológico, psicológico, social, afectivo, cultural, moral,
etc.), mas na sua globalidade, como sistema holístico.
C. O eventual desajuste que este trabalho reflexivo venha a revelar implicará da parte do
sujeito uma atitude criativa de transformação da realidade, a qual não se reduz à construção
de modelos teóricos, mas a uma actuação efectiva para o aperfeiçoamento de
comportamentos e estruturas.

D. O correlato dos pontos anteriores corresponde à actuação concreta do sujeito que em cada
situação da sua vida profissional se toma capaz de discernir o sentido das opções que tem a
fazer e de justificar os seus comportamentos de modo consistente e coerente, não em função
do bem próprio e imediato, mas, quanto lhe seja possível prever, pelas potencialidades da
sua acção para o desenvolvimento próprio até ao máximo das suas capacidades e da
comunidade envolvente até ao limite do género humano.

Em conclusão:
Assim como a Ética se não reduz a um conjunto de regras curtas que ignoram a complexidade da
vida, assim também a Deontologia não pode resumir-se ao ponto A atrás enunciado. Com efeito, a
própria existência de códigos de deveres e direitos inerentes a uma dada profissão resulta da prévia
dialéctica entre a sua acção comprometida (cf. C. e D.) e a reflexão dos envolvidos sobre o sentido
e finalidade últimas da sua acção enquanto profissionais e enquanto pessoas (B). Assim como a
existência da lei não dispensa a reflexão sobre a Justiça – constructo que suporta a própria
existência da Lei – assim também a Deontologia não pode restringir-se a códigos e regulamentos
produzidos num dado momento histórico por um dado conjunto de profissionais.
A Deontologia profissional é, pois, o lugar por excelência para apreciar a formação pessoal, a
formação profissional (em termos teóricos e práticos) e a capacidade de integração e unificação de
ambas. É ainda o espaço propício à definição de um plano pessoal de formação contínua que
contemple estas mesmas dimensões.

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