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Revista Teste Treinamento SEER / UERJ

METÁFORA EM MARINA COLASANTI


José das Couves (UERJ)
Fulano de Tal (UFRRJ)

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Introdução

Apresentaremos neste trabalho uma mínima seleção de contos de Marina


Colasanti como amostra para a análise da metaforicidade que circula o universo literário
da autora. A escolha por um corpus literário, porém, não é simples e necessita que seja
justificada, para que não ocorramos em equívocos. Ainda assim, equívocos são
inevitáveis. Na tentativa de minimizá-los, abrimos esta introdução com a
contextualização tanto de nossa escolha, quanto da época da produção dos textos aqui
apresentados.

Marina Colasanti, em entrevista (COLASANTI, 2007), afirma não ter sido


militante do movimento feminista brasileiro, que teve o fervor de suas reivindicações na
década 1960 e sua consolidação culmiado na década de 1980 (PINTO, 2003). Embora
não tenha sido militante, Colasanti sempre esteve envolvida com os temas do
feminismo, tanto como colunista em jornais e revistas femininas da época, quanto como
membro – de 1985 a 1989 – do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que teve
grande importância para a inclusão de modificações que contemplavam algumas das
reivindicações do movimento feminista na Constituição de 1988.

Em meio a essa efervecência, em 1986, Marina Colasanti publica seu livro de


minicontos Contos de amor rasgados. Repleto de contos curtíssimos, o livro tem um fio
condutor baseado nos relacionamentos entre homem e mulher que não deram certo ou,
se deram, algo errado aconteceu na relação. A imagem da mulher representada nos
minicontos é de uma forma geral submissa ao homem, seguindo um modelo que o
movimento feminista tentava mudar. Para uma autora antenada com o movimento, era

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de se esperar que a mulher fosse representada, na literatura da época, de forma


independente, com autaestima elevada, segura de si. O livro surpreendeu com uma
imagem oposta a isso, em que a mulher era submissa e angustiada, que saía sempre
prejudicada no saldo do relacionamento.

A imagem da mulher nos minicontos foi o que nos orientou na escolha de nosso
material de análise. Quase a totalidade do livro é repleta de minocontos altamente
metafóricos, beirando algumas vezes a literatura fantástica. Entendemos que foi através
de uma linguagem figurada que Marina Colasanti mais investiu na conscientização do
público feminino, tocando fundo nas consequências da submissão, deixando o final dos
contos sempre aberto para a reflexão.

Selecionamos quatro textos nos quais a linguagem figurada é mais evidente,


embora não sejam os únicos: o Prólogo: Enfim, um indivíduo de idéias abertas, que
abre o livro e possui um único personagem masculino; o Por preço de ocasião, primeio
miniconto que segue o Prólogo apresenta personagem masculino e feminino, com
masculino como agente; o Até que a palavra fosse possível, com personagem masculino
e feminino no mesmo nível de agenciamento; e o Prova de amor, com personagem
masculino e feminino, ssendo o feminino o agente. Buscaremos entender as estruturas
que nos revelam os conceitos da Linguística Cognitiva e a sua relevância para as
estórias contidas nos contos.

A análise de contos à luz da cognição não é tarefa fácil. Em primeiro lugar,


porque um texto literário difere daquele do cotidiano em vários aspectos, com uma
estrutura mais elaborada, simbólica, tanto com relação a elementos tipicamente
literários, que carrega em si características de um gênero textual próprio – como o
enredo, que estrutura a história que narra, estabelece a relação com outros textos, define
os protagonistas, busca a verossimilhança (MESQUITA, 1987) e o foco narrativo, que
revela ou omite o narrador (LEITE, 1991), para ficarmos somente em dois aspectos –
quanto ao seu status, tratando-se de um texto que não circula no dia a dia, sendo o seu
acesso não espontâneo, ou seja, não está em outdoors ou na mídia, não deparamos com
ele por acaso, pelo contrário, seu acesso é facultativo ou arbitrário. Diferentemente de
um editorial, ou artigo de opinão em um jornal, a linha argumentativa de um texto
literário passa mais pela verossimilhança que pela estrutura argumentativa tradicional.

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Algumas considerações sobre os conceitos da Linguística


Cognitiva

A proposta inicial para os estudos dos minicontos era partir do conceito de nicho
metafórico como categoria de análise. Por ser uma “unidade de análise da metáfora em
uso” (VEREZA, 2013, p.111), entendemos que esse conceito daria conta das análises,
uma vez que toda a linguagem metafórica nos minicontos é episódica e surgem a partir
de uma construção online. Para Vereza

o nicho metafórico não remete a uma única metáfora cognitiva, mas a


toda uma rede metafórica que vaiu sendo tecida em uma unidade
semântico-discursiva construída textualmente. (VEREZA, 2013, p.
111)

Os textos não apresentaram necessariamente uma única metáfora conceptual


subjacente que lhe dê suporte, como a metáfora sistemática implica (ibid.), apesar de o
Texto 2 apresentar um bom exemplo, a sistematização ali é opaca, tratando-se mais de
um nicho metafórico que sistematiza a metáfora conceptual mulher é objeto. Nos
demais textos, embora algumas metáforas conceptuais apareçam como pano de fundo
(off-line), elas não estão a serviço de um sentido uno. As metáforas nos minicontos vão
sendo construídas no próprio texto (online) e as metáforas conceptuais são criadas a
partir do nicho, algumas já conceptualizadas, outras não (Op. cit., p.110).

Optamos por não restringir nossa análise em uma categoria específica – o nicho,
no caso – porque isso deixaria de fora outras questões importantes para a compreensão
dos textos. Metáforas ontológicas e orientacionais (LAKOFF; JOHNSON, 2003)
frequentemente aparecem no nicho, são instanciadas, mas não são ativadas (VEREZA,
2013, p.111-2), uma vez que são “materializadas verbalmente”, mas não estão no foco
do sentido, permanecem off-line, apenas construindo a base do sentido metafórico do
miniconto como um todo.

Atestaremos, no Texto 3, a importância da metonímia para a construção do


sentido, em especial a que refere a parte pelo todo (LAKOFF; JOHNSON, 2003, p. 31
§38). Ainda assim, as metonímias no miniconto servem ao nicho metafórico. Ao
apresentar partes do corpo, aciona frames que serão manipulados ao longo do miniconto
com a finalidade de extrair-lhes os sentidos.

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O conceito de frame (enquadre), isto é, “estruturas mentais que moldam a


maneira que vemos o mundo” (LAKOFF, 2004, p.XV apud VEREZA, 2013, p.114) nos
será essencial, dada a sua importância na compreensão das metáforas em uso. Segundo
Salomão, Torrent e Sampaio,

todo processo de significação linguística constitui o enquadramento


contextualizado (framing) de uma situação, que se apresenta
estruturada por uma constelação de elementos que a distinguem de
outras situações. (SALOMÃO; TORRENT; SAMPAIO, 2013, p.9)

Assim, entendemos que o frame exerce um papel fundamental para a garantia de


que o sentido desejado seja minimamente atingido, uma vez que o nicho metafórico é
construído, como veremos, sobre enquadramentos contextualizados, criando uma
imagem que estabelecerá um sistema de restrições/ampliações semânticas1. Entendemos
que as restrições ou ampliações semânticas, que são responsáveis por limitar ou
expandir os sentidos autorizados em determinado discurso, estão, nos minicontos,
diretamente relacionados aos frames. Se um vocábulo como hipotenusa, de acordo com
Salomão, Torrent e Sampaio (2013, p.10), “perfila (ou põe em perspectiva)” um sentido
outro mais amplo, de um conjunto, o do triângulo retângulo, ao mesmo tempo em que
coloca os catetos numa posição subfocalizada, entendemos que os frames são
responsáveis por acionar imageticamente os sentidos subjacentes. Numa expressão com
“vi a lua”, é o frame que traz a imagem da noite, deixando de fora os sentidos de
claridade, sol, dia. Na linguagem em uso, em especial nos minicontos, essa imagem é
contruída online, fazendo com que imagens sejam acionadas em enquadramentos
inusitados, como em ideias abertas (Texto 1) – uma metáfora que aciona o enquadre
inusitado de recinto (container), aberto x fechado, e não o enquadre tradicional de
inteligentes/boas x tolas/ruins do senso comum. Dessa forma, é o frame que dá a
sustentação para que a metáfora seja corroborada numa inteligibilidade e não se perca,
embora possa não ser atingida em função do conhecimento de mundo, repertório, do
coenunciador (destinatário).

São, portanto, os conceitos de nicho metafórico e de frame, embora outras


categorias não estejam descartadas, que nos orientarão nas análises que apresentamos a
seguir.

1
Para sistema de restrições semânticas, ver MAINGUENEAU, 2007, cap.5.

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As Análises

As análises aqui apresentadas não esgotam todas as possibilidades de


interpretação. Nossa preocupação é o levantamento dos elementos básicos para o
suporte aos sentidos produzidos no texto.

Não deixaremos de fora, porém, um comentário sobre o título do livro: Contos


de amor rasgados. É possível desmembrá-lo em três enquadres (frames) que foram nele
entrelaçados:

1 ) Contos de amor – aciona o frame (off-line) de um gênero literário específico,


texto curto com personagens amorosos envolvidos em uma história de amor.

2) Amor rasgado – expressão de uma época. Embora ainda possa ser acionado,
este frame pode se perder no curso da história. O sentido de “rasgado” poderia assumir
uma acepção negativa se o domínio fonte, numa metáfora ontológica, for “papel” (amor
é papel); porém, na expressão “amor rasgado”, acreditamos que a acepção tenha origem
na segunda acepção do Dicionário Aurélio (AURÉLIO, 2010) – vasto, amplo, extenso,
desembaraçado (tal como em “céu rasgado”) –, uma vez que o senso comum é positivo,
com sentido aproximado em “amor é amplidão”. Quem viveu um amor rasgado, o viveu
intensamente.

3) Contos rasgados – aqui acontece frame episódico, que promove um


reenquadre (reframing), uma vez que os contos rasgados, já não são mais contos de
amor. O reenquadre ocorre online, pela concordância do plural, que remete “rasgado”
aos contos, desfazendo o primeiro enquadre (contos de amor), fazendo crer que, se eram
de amor, os contos não serviram, foram rasgados, anulando, assim, a metáfora
ontológica de “amor é amplidão”.

O sentido trazido pelo título – contos de amor que não deram certo – permeia o
livro como um todo. Porém, o Texto 1, como prólogo, nos apresenta apenas um
personagem e a relação com o “amor que não deu certo” será inferido na leitura dos
contos subsequentes.

Texto 1
Prólogo
Enfim, um indivíduo de idéias abertas

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A coceira no ouvido atormentava. Pegou o molho de chaves,


enfiou a mais fininha na cavidade. Coçou de leve o pavilhão, depois
afundou no orifício encerado. E rodou, virou a pontinha da chave em
beatitude, à procura daquele ponto exato em que cessaria a coceira.
Até que, traque, ouviu o leve estalo e, a chave enfim no seu
encaixe, percebeu que a cabeça lentamente se abria.
(COLASANTI, 1986, p.11)

O Texto 1 nos apresenta, logo no subtítulo, uma metáfora orientacional que


permanece off-line. O sentido aberto é bom (em oposição a fechado é ruim) não está
explícita, mas vem à tona quando instanciada na metáfora do container “ideias abertas”
(ideia é container). Essa orientação é cognitiva, sendo que aqui o seu sentido bom é
inferido no contexto, uma vez que aberto é ruim fica inviabilizado pelo fato de vir
precedida do advérbio “enfim”. Aqui, a sobreposição de ideias abertas à expressão do
sentido comum de cabeça aberta garantem a legibilidade da metáfora, uma construção
online.

A metáfora do container, que comporta um dentro/fechado e um fora/aberto,


reaparece em outros momentos. O “ouvido”, renomeado para “cavidade”, depois
“orifício” e “pavilhão” metonimicamente monta, na progressão do texto, o sentido de
cabeça, lugar onde residem as ideias. Esse lugar – a cabeça – está trancado/fechado até
o momento em que a chave acerta o lugar e ele é, enfim, aberto.

A passagem de uma situação (cabeça fechada, ideias presas) a outra (cabeça


aberta, ideias soltas) é construída no texto através de uma linguagem figurada, pautada
por metáforas tradicionais. A coceira é o incômodo que vai retirar o indivíduo de sua
estagnação estado inicial; a cabeça, a mente antes fechada; a chave, o meio pelo qual
sua mente será aberta.

Essas imagens são criadas por nicho metafórico (online). A metáfora conceptual
aberto é bom é bastante comum em língua portuguesa, mas não apenas. Seria possível a
formulação de sentido negativo para aberto, como em “sua intimidade aberta
incomodava a vizinhança”, em que aberto é ruim.

O nicho aqui promove a separação de ambiguidades do termo polissêmico


“cabeça” (lugar do raciocínio/mente, parte do corpo humano), revela que se trata da
mente – lugar/recinto do raciocínio (container). Embora outros elementos pudessem

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ludibriar o leitor, como coceira, ouvido, pavilhão, a garantia de que não se tratava de
uma cirurgia médica é dada pelo acionamento de frames que envolvem destrancamento
por chave e cabeça aberta.

O Texto 2 apresenta uma metáfora sistemática por ocasião do nicho metafórico.

Texto 2
Por preço de ocasião
Comprou a esposa numa liquidação, pendurada que estava,
junto com outras, no grande cabide circular. Suas posses não lhe
permitiam adquirir lançamentos novos, modelos sofisticados.
Contentou-se pois com essa, fim de estoque, mas preço de ocasião.
Em casa, porém, longe da agitação da loja – homem escolhendo
mulher, homem pagando mulher, homem metendo mulher em saco
pardo e levando às vezes mais de uma para aproveitar o bom negócio
– percebendo que o estado da sua compra deixava a desejar.
“É claro”, pensou reparando na sujeira dos punhos, no
amarrotado da pele, nos tufos de cabelos que mal escondiam rasgões
do couro cabeludo, “eles não iam liquidar coisa nova.”
Conformado, deitou-a na cama pensando que ainda serviria para
algum uso. E, abrindo-lhe as pernas, despejou lá dentro, uma por uma,
brancas bolinhas de naftalina.
(COLASANTI, 1986, p.13)

A metáfora ontológica mulher é objeto é construída no Texto 2. Uma variação


de metáforas conceptuais surgem ao longo do texto para reforçá-la. Mulher é compra é
repetida em “comprou a esposa”, “escolhendo, pagando e metendo mulher no saco”,
sendo reforçada por mulher é objeto velho e barato em “adquirir lançamentos novos e
modelos sofisticados”, “bom negócio”, “amarrotado da pele”, “sujeira dos punhos”, ,
“rasgões no couro cabeludo”. Ao final, “despejou lá dentro” introduz a metáfora do
container. As variações das metáforas conceptuais, no entanto, servem de apoio para
corroborar o metaforema que emerge no texto, a metáfora mulher é objeto, sendo que
esse objeto é container. Podemos afirmar, por assim dizer, que houve aí a
sistematização metafórica que culminou na metáfora conceptual mulher é objeto.
Porém, essa conceptualização, embora seja um senso comum, não é garantida como
universal. Ela, de fato, surge por meio de uma sistematização que ocorre num nicho
metafórico e é por ele garantido.

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Assim, acionando frames de venda, loja, compra, e metáforas “nicho-


sistemáticas”, a narrativa constrói um império masculino no qual a mulher sequer tem
voz ou vez, reiterando a imagem clássica hegemônica do homem provedor.

O Texto 3 é mais complexo, porque o papel das metonímias tem tanta relevância
quanto as metáforas.

Texto 3
Até que a palavra fosse possível
Brigavam, se digladiavam, sofriam. E ainda assim se queriam.
Razão pela qual decidiram viver em separação de corpos.
Da estrutura aparentemente compacta de carne, ossos, músculos
trancados na elasticidade da pele, separam um a um os sentimentos,
embora alguns, entretecidos nas fibras como invisíveis ligaduras
daquele palpitar, parecessem indispensáveis para a sustentação do
todo. Mesmo esses, com firmeza de bisturi foram retirados,
amputando-se também aquelas partes do sentir mais entranhadas,
cujos limites já não mais se distinguiam, afogados em sangue.
Por fim, livres de tudo o que lhes provocava atrito e
desencontro, deitaram-se lavados sobre a cama, brancos corpos
possuindo-se sem nenhuma pergunta. E sem qualquer perigo de
resposta.
(COLASANTI, 1986, p.67)

O primeiro parágrafo termina com uma expressão jurídica – separação de corpos


– termo usado para se referir ao primeiro passo de uma separação litigiosa. O caráter
litigioso veio nas ideias embutidas na metáfora conceptual relacionamento é combate
(“brigavam” e “digladiavam”). O frame de “casamento em crise” é acionado pelo termo
“separação de corpos”. Essa configuração, portanto, será desfeita a partir do segundo
parágrafo, no qual a sequência metonímica quebra as expectativas do primeiro.

“Carnes”, “ossos”, “músculos” e “pele” são partes pelo todo, metonímia para
corpo. Um corpo que é container, trancado sob a pele, onde se guarda os sentimentos.
Sentimentos esses que são separados da estrutura compacta subcutânea do container. Os
sentimentos assumem outras metáforas conceptual (no caso, ontológicas): sentimento é
tecido (entretecidos na fibra), sentimento é pilastra (sustenta o todo) e, pela metonímia
“partes do sentir”, sentimento é membro (amputado). O léxico aqui é especializado,
entranhas, fibras, palpitar, bisturi, amputação, sangue, elasticidade da pele, carnes,

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ossos, músculos, forçando frames de saúde > medicina > cirurgia, implicando o
sofrimento pela separação.

O último parágrafo retoma os corpos, agora na metáfora corpo é objeto (algo


que se possui, que se lava). Emerge, aí, a metáfora conceptual branco é paz (brancos
corpos). Seguindo o parágrafo anterior, as sentimentos por metonímia em “tudo” e
geram a metáfora sentimento é sólido (provoca atrito).

Na progressão textual, se entendermos corpos como metonímia para


pessoas/seres/gente, no caso, o casal. O casal aparece no primeiro parágrafo como
pessoas jurídicas, o casamento (em crise). No segundo parágrafo, o corpo é fragmentado
(metonímias: carne, osso, músculos e pele). No último parágrafo, temos o casal que
saindo de um relacionamento jurídico, com sentimentos emaranhados, passando pela
sofrimento da separação, chegando a um relacionamento pacífico, sem sentimentos
turbulentos (sem perguntas, nem respostas).

Dada a linguagem extremamente figurada, o nicho estrutura metáforas


conceptuais – ora já consolidadas, como branco é paz, ora candidatas à consolidação,
como sentimento é pilastra – que trazem à tona os mapeamento dos elementos fonte
para a estabilização dos sentidos, garantindo a verossimilhança.

Texto 4
Prova de amor
“Meu bem, deixa crescer a barba para me agradar”, pediu ele.
E ela, num supremo esforço de amor, começou a fiar dentro de
si, e a laboriosamente expelir aqueles novos pêlos, que na pele
fechada feriam caminho.
Mas quando, afinal, doce barba cobriu-lhe o rosto, e com
orgulho expectante entregou sua estranheza àquele homem: “Você não
é mais a mesma”, disse ele.
E se foi.
(COLASANTI, 1986, p.165)

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O Texto 4 as metáforas conceptuais são inusitadas e referem-se à imagem da


mulher, que assume o papel de agente de suas ações. Ora candidata a ontológica,
Mulher é roca (começou a fiar), ora orientacional, mulher é container (dentro de si,
expelir e fechada, pela metonímia da parte pelo todo – a pele).

O frame de “barba” é perspectivizado em dois momentos distintos: num


parágrafo, o foco recai sobre o sacrifício do nascimento dos pelos sobre a pele, evocado
por metáforas orientacionais (container – dentro de si; expelir – e ferir caminho...);
noutro, há um outro perfilamento de sentido para algo que causa orgulho, explicitados
nas metáforas barba é comestível (doce) e vestimenta que encobre (cobriu). Ocorre aqui
um entrelace de frames (VEREZA, 2013, p.118), cujo efeito faz surgir o sacrifício e o
prazer na progressão textual, na estrutura do nicho.

O nicho metafórico faz revelar a atitude passiva da mulher diante do amado, que
se transforma e essa transformação aciona o frame de “mulher’, que ao se tornar
barbada passa a ser uma aberração da natureza.

Conclusão

As análises, embora um tanto sumárias, nos levam para além da construção da


narrativa elaborada por Marina Colasanti.

Partindo da premissa de que quanto mais verossímil é o texto narrativo, mais


próximo da realidade, maior será sua capacidade de promover a catarse, uma das
principais funções do texto literário segundo Gustavo Bernardo (1999). A
verossimilhança é construída, nos minicontos aqui analisados, por uma linguagem
figurada bastante complexa, beirando a literatura do fantástico, com mulheres barbadas,
corpos grudados, mulheres enfiadas em pacotes e cabeças abertas com chave.

Esse universo altamente figurativo permite o estabelecimento de um estatuto


para a inscrição dos minicontos na arte literária e, concomitantemente, acionam recursos
imagéticos por meio da cognição, que darão o suporte necessário ao texto; texto esse
que pretende propor uma crítica a determinada postura de dominação-submissão,
combatida pelo pensamento feminista da época. O suporte cognitivo é o que permite o
encaminhamento dos sentidos em direção ao seu objetivo final, é o nicho metafórico
que vai construindo o conjunto figurativo na progressão textual (online), além de criar

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uma rede de imagens pela manipulação de enquadres que já são estabilizados em um


sentido primeiro, mas que são, no texto, perfilados de forma inusitada. Inusitado, mas
possível a partir do sentido primeiro, o que garante o foco.

Nos minicontos, o mapeamento dos frames de chave, compra, corpo e mulher,


garante, respectivamente, o sentido de cabeça aberta, mulher-objeto, crise matrimonial e
aberração.

A proposta de analisarmos os elementos metafóricos nos revelou que, apesar de


a narrativa estar construída de forma pouco próxima do real, a verossimilhança aparece
pela explicitação da elaboração de nichos metafóricos que criam ou trazem à tona
metáforas conceptuais e frames como fiadores que garantem o real na narrativa. Dessa
forma, Marina Colsanti pôde optar por se libertar do sentido duro das narrativas
clássicas, alçando voo sofisticado por uma linguagem figurada.

Essa opção, porém, não é tão fácil como requentar almôndegas. A linguagem
figurada exige, como vimos, uma capacidade de condensação de sentidos às vezes
díspares, às vezes paradoxais, para conseguir um sentido outro, mais impactante. É
através dessa linguagem impactante que Marina Colasanti constrói um universo
feminino submetido ao homem, ou numa relação de crise, numa situação de completa
desvantagem para a mulher.

Contos de amor rasgados é o espelho de uma época em que a vilência simbólica


do homem sobre a mulher ainda era dominante.

Referências

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