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A Estrutura dos Atos Humanos

A possibilidade de dominar as emoções é uma


prerrogativa humana. De fato, nenhum animal possuí a
capacidade de sobrepor às suas emoções uma força diretiva
consciente e livre, de tal modo que possa ser dito autor e
responsável pela configuração de sua própria vida. Se há
nos animais algum grau de controle sobre as emoções, ele é
exercido pelas próprias emoções, de modo que, aberta num
panorama puramente horizontal, a alma animal se
apresenta como um palco de tensões no qual vetores
variados ora dominam, ora são dominados, a depender das
circunstâncias que os despertam. Se um coelho é capaz de
vencer sua fome, é em razão de um juízo instintivo acionado
pelo medo e não de um juízo deliberado determinado pela
consciência. Isso significa que o juízo que precede as
operações dos animais não está sob o poder do animal, mas
lhe é imposto de fora, como um código instintivo. É como se
a decisão – se é que se pode falar aqui em verdadeira
decisão – tivesse sido tomada pela espécie, e não pelo
indivíduo. Somente um ser-humano pode, diante da fome e
do medo, por exemplo, julgar os vários aspectos e
possibilidades envolvidos e decidir livremente entre um e
outro – ou entre agir e não agir -, pois nele o juízo é
racional, e não instintivo.
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Ora, dizer que um juízo é racional é dizer que ele deriva


de uma reflexão sobre a razão das coisas e dos atos: e isso é
julgar por si mesmo, e não por meio de um outro. Assim, se
diante de um determinado perigo o animal
necessariamente foge, o homem, diferentemente, reflete,
busca a razão de seu juízo e só então delibera, fugindo ou
não. O homem não segue necessariamente o juízo instintivo
da fome ou do medo, mas interioriza esses juízos e,
conhecendo e avaliando suas razões, decide por si mesmo o
que deve fazer. É nessa interioridade autoconsciente - que
vai até a razão das coisas para só então operar - que reside a
liberdade humana.
Para discernir com clareza a estrutura dos atos
humanos, convém saber que nem todo ato praticado por
um ser-humano é, de fato, um ato humano. Isso ocorre em
razão da complexidade da estrutura do próprio ser-humano,
que traz em si mais de um princípio de ação. É que o ser-
humano, pertencendo ao gênero animal, pode agir tendo
como ponto de partida exclusiva ou quase exclusivamente
seu aparato sensível. Mas pertencendo á espécie humana,
ele pode e deve agir a partir daquilo que o qualifica como
propriamente humano, ou seja, a partir de seu aparato
intelectual, constituído de inteligência e vontade. É na
medida em que a ação humana se deixa determinar, em
última instância, pela inteligência e pela vontade que ela
pode ser propriamente qualificada de humana. Assim, uma
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ação determinada exclusivamente pelo aparato sensível,


mesmo quando praticada por um ser-humano, não é ainda
um ato humano.
Antes de tudo é preciso notar que todo ato é fruto de
um apetite, e que todo apetite deriva de uma forma. Em
filosofia, chamamos forma o princípio pelo qual alguma
coisa é determinada em seu ser a ser o que é. Assim, se um
gato é um gato e não um cão, isso não pode se dar em razão
da matéria da qual ele é feito (que é a mesma do cão), mas
de um princípio formal, uma essência, que configura aquela
matéria de determinada maneira e não de outra. Na medida
em que essa forma determina um ser como algo (na
medida em que ela faz o gato ser um gato) ela o limita, o
direciona, o ordena e o inclina a agir e operar em vista de
sua finalidade própria, daquilo que lhe constitui um bem.
Assim, da forma de um ser seguem-se as diversas operações
desse ser (é em razão da forma gato que o gato vê como
gato, ouve como gato, mia e se movimenta como gato).
Todas essas operações derivam da própria forma substancial
que constitui aquele ser: são inclinações ou apetites
gerados naquele indivíduo em razão de sua forma
substancial, de seu ser, de sua natureza. Tais apetites, por
serem efeitos naturais do ser correspondente, são
chamados de apetites naturais. Todos os seres possuem
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apetites naturais, pois não há ser criado sem essência, sem


forma substancial, e não há essência que não determine um
ser a agir e a operar de determinada maneira – assim, o
fogo apetece o alto, a terra apetece o baixo, a planta
apetece o alimento, o olho apetece a luz e a inteligência
apetece a verdade.
No entanto, alguns seres, além da forma substancial,
que determina sua existência enquanto determinada coisa,
possuem a capacidade de receber a forma de outros seres -
não materialmente, mas formalmente. A essa capacidade
nós chamamos conhecimento. Conhecer é, portanto,
receber a forma de outro ser abstraída da matéria. Assim,
um leão conhece um cordeiro na medida em que recebe em
sua mente a forma sensível que ele possui (sua imagem
visual, por exemplo). A este conhecimento, recebido pelos
cinco sentidos, chamamos de conhecimento sensível. Um
homem, por outro lado, além de conhecer o mesmo
cordeiro visualmente, o apreende intelectualmente, pois
recebe em sua mente não somente sua forma sensível, mas
também sua forma inteligível (quer dizer, não percebe
somente sua cor, formato ou figura, mas também sua
essência, sua razão de ser). A esta apreensão chamamos de
conhecimento inteligível.
De um modo ou de outro, como de toda forma se
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segue uma inclinação, nos seres dotados de conhecimento


haverá não somente o apetite natural, consecutivo de sua
forma substancial, mas também um apetite sensível e um
apetite inteligível, consecutivos das formas apreendidas
pelos sentidos e pela inteligência. Se tomarmos o exemplo
de um homem, podemos dizer que em razão de sua forma
humana ele apetece naturalmente o conhecimento, em
razão de seu conhecimento sensível ele apetece o sabor de
uma fruta conhecida, e em razão de seu conhecimento
inteligível ele apetece o valor nutritivo desta fruta.
Em todos esses casos o que se apetece é sempre
apetecido na forma de um bem. Toda inclinação é inclinação
para o bem, ou seja, para algo que é conveniente ao ser que
apetece. De fato, a primeira coisa que nos convém é nossa
própria existência e, portanto, ela é a primeira coisa que
naturalmente apetecemos, nosso primeiro bem. Como de
nossa existência se seguem operações próprias, por elas
apetecemos bens externos, complementares à nossa
existência. Por exemplo, o leão apetece o alimento em razão
da operação nutritiva que existe em sua alma. De forma
semelhante, os seres humanos apetecem naturalmente a
verdade. O alimento e o conhecimento, na medida em que
são apetecidos em razão de inclinações naturais, são
chamados bens naturais. Mas os leões, dotados que são de
conhecimento sensível, apetecem também bens sensíveis
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ou particulares, como o doce, o frescor e o prazer sexual. Os


homens, enfim, capazes de conhecer a essência das coisas,
apetecem o bem imaterial, universal ou o bem honesto.
Portanto, à forma substancial de cada ser corresponde
um apetite natural por um bem natural; à forma sensível
apreendida por um animal corresponde um apetite sensível
por um bem particular; e, enfim, à forma inteligível
apreendida por um ser-humano corresponde um apetite
intelectivo por um bem universal. Todos esses bens, por
serem bens, devem ser convenientes ao ser que lhes
apetece, ou seja, deve corresponder em um grau ou outro à
sua natureza. Embora isso ocorra, nem sempre esses bens
concordam entre si. Por exemplo, para adquirir o bem do
alimento o animal pode pôr em risco sua própria existência,
que é um bem superior ao bem do alimento e em vista do
qual o alimento é um bem. Isso quer dizer que o alimento
só é um fim para a ação do animal na medida em que é um
meio para se atingir um fim superior, que é sua
sobrevivência. Da mesma forma, para garantir o bem da
espécie o animal perseguirá a fêmea, mas ele a perseguirá
em vista de um bem sensível, que é o prazer sexual, o qual,
embora seja a finalidade de uma de suas operações, está
para o bem da espécie como um meio está para uma finali-
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dade superior. No caso do ser-humano esses conflitos são


ainda mais evidentes, pois, sendo capaz de perceber bens
de natureza universal, pode o homem não somente negar o
bem sensível em nome do bem moral – como no
matrimônio – como negar a própria sobrevivência em vista
de um bem espiritual – como no caso do martírio.
De tudo isso se segue o óbvio: todo ato humano
começa no conhecimento. Esse conhecimento apresenta ao
apetite intelectivo um bem, que lhe põe em movimento,
iniciando o complexo processo da decisão humana.
Ao apetite intelectivo chamamos também de vontade.
A vontade possui como objeto adequado o bem universal
captado pela inteligência. Esse bem, que é o fim último para
o qual tende a vida humana, é o que costumamos chamar
de felicidade, e que, em última instância, corresponde à
visão intelectual de Deus. No entanto, a vontade também
pode apetecer bens particulares, sensíveis ou imateriais,
desde que eles sejam apreendidos por meio de alguma
noção universal. Assim, além de querer naturalmente a
felicidade, o homem também quer a sobrevivência, o prazer,
a boa fama, e tantos outros bens que, se são bens, o são
por participarem em algum grau da noção universal de bem.
Portanto, assim como todos os seres individuais só existem
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por participarem do Ser Universal (Deus), e assim como


todas as verdades parciais só são verdades por participarem
da Verdade Suprema, todos os bens particulares retiram sua
bondade do Bem Universal do qual participam. Esses bens
parciais são como que o objeto inadequado da vontade e,
enquanto tais, são meios para se atingir o fim último da
vontade, não podendo, portanto, satisfazer completamente
o anseio da vontade humana. No entanto, eles podem ser
apetecidos como fins parciais, em relação aos quais outros
bens aparecerão como meios. Por exemplo: todo homem
quer ser feliz, mas alguns julgam encontrar a felicidade na
fama, outros no trabalho, outros no prazer, e por isso
erguem tais bens parciais como fins em relação aos quais
irão buscar meios adequados para alcançá-los (ter amigos,
estudar, enriquecer).
Sobre isso devemos notar três coisas importantes.
Primeiro, que são coisas bem diferentes apetecer um bem
particular em razão do prazer sensível enquanto tal e
apetecê-lo em razão do fato de o bem sensível ser uma
participação de um bem mais universal. No primeiro caso há
uma paixão envolvida, quer dizer, há uma evidente atração
sensível, com reverberações corpóreas, na direção do
prazer tátil proporcionado pela união de nosso corpo com o
objeto. No segundo, não há paixão envolvida, mas a atração
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voluntária na direção do bem significado pelo prazer


sensível. O guloso, por exemplo, apetece o chocolate
passionalmente, exclusivamente em razão do sentimento de
prazer. Já o paciente pode apetece-lo em razão da
importância e da eficácia do prazer na diminuição da
tristeza. Portanto, não é da mesma maneira que os sentidos
e a vontade apetecem um bem particular. O apetite sensível
apetece o bem particular na sua particularidade sensível,
enquanto a vontade o apetece na medida em que ele
participa e é um meio para um bem universal, ou seja, na
medida em que a inteligência lhe forneceu a razão própria
daquele bem sensível.
Segundo, que a vontade apetece necessariamente a
felicidade, que é o fim último da existência humana. Isso
porque o bem da felicidade corresponde à uma
determinação imposta ao homem pelo Criador, de modo
que o homem deverá buscá-lo necessariamente. Portanto, o
homem quer necessariamente a felicidade, pois este bem
lhe foi determinado diretamente por Deus, como um
apetite natural derivado de sua essência. Como o livre-
arbítrio consiste no poder que a vontade possui para querer
ou não querer determinados bens, não há livre-arbítrio na
vontade em relação ao fim último do homem. Mas em
relação aos bens particulares, como estes, por serem limita-
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dos, são impotentes para satisfazer a vontade humana, a


vontade pode livremente querê-los ou não. Tudo dependerá
do aspecto que a inteligência irá enfatizar no objeto
conhecido. Como toda criatura possui aspectos bons e
ruins, de acordo com o aspecto considerado pela
inteligência ela será julgada apetecível ou não, de modo que
a vontade poderá ser por ela atraída ou não. Só Deus, Bem
Absoluto, é necessariamente julgado como apetecível, pois
corresponde adequadamente à vontade humana. Mas
poderíamos nos perguntar sobre o porquê de alguns
homens não buscarem Deus. A resposta é simples: porque
eles não compreendem a ligação necessária existente entre
Deus e a felicidade. Da mesma forma muitos não
compreendem a ligação necessária existente entre o
conhecimento e a felicidade, e, embora busquem
necessariamente a felicidade, não buscam o conhecimento,
sem o qual nenhum homem pode ser feliz. O ponto aqui é
que, embora somente a felicidade seja o bem apetecido
necessariamente pela vontade, muitos outros bens estão
necessariamente ligados à felicidade: por exemplo, a
sobrevivência, uma certa dose de prazer, o conhecimento,
etc. Tão logo conhecida a ligação necessária entre esses
bens e a felicidade, eles também serão apetecidos
necessariamente pela vontade, pois o que é necessário para
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se atingir algo necessariamente apetecido é ele mesmo


também necessariamente apetecido. Outro erro de
julgamento pode ocorrer quando julgamos necessário para
a felicidade um bem parcial que objetivamente não o é. Por
exemplo, quando julgamos o turismo ou o dinheiro como
bens sem os quais não se pode ser feliz. Nestes casos, não
havendo vínculo necessário entre o bem particular e o bem
universal, nossa vontade deveria permanecer livre para a
ele aderir ou não, de acordo com as circunstâncias. Erros
deste tipo podem ser extremamente danosos para a
personalidade humana.
A terceira coisa que devemos notar é que, estando os
bens particulares incluídos no bem universal, e, portanto,
podendo cada um deles ser apetecido em razão de um
julgamento universal, a vontade possui o poder de mover
todas as potências da alma: pois o bem buscado por cada
potência está compreendido no bem universal buscado pela
vontade. De fato, o bem deleitável, apetecido pelo apetite
concupiscível (que se segue à apreensão dos sentidos), é,
antes de tudo, um bem, e, enquanto tal, participa do bem
universal – ainda que a ele possa se opor
circunstancialmente. O mesmo raciocínio vale para o bem
útil, apetecido pelo apetite irascível. Assim, por ter por
objeto o bem universal, a vontade apetece também os bens
particulares na medida em que participam do bem universal
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- e os rejeita na medida em que aparecem como


impedimentos. Por isso podemos desejar não somente o
doce e o útil racionalmente, como podemos rejeitá-los em
vista de um bem superior (como quando despendemos uma
grande quantia para comprar e tomar um remédio amargo
em vista de nossa saúde). Ora, como o universal move o
particular, a vontade move as operações da alma que
possuem por objeto os bens particulares, incluindo a
sensibilidade, a inteligência, os apetites e a potência motora
– somente a potência vegetativa não pode ser movida pela
vontade, pois é de natureza independente da razão. Tais
potências estão para a vontade como os instrumentos estão
para o sujeito que os usa. Dizemos, portanto, que, na
medida em que a razão assim ordena, a vontade faz uso
dessas potências, seja movendo os membros do corpo, a
imaginação e o raciocínio, seja consentindo ou não nos
movimentos do apetite sensível (concupiscível ou irascível).
Em relação aos membros do corpo, como estes não
apresentam resistência à vontade – desde que não estejam
sendo movidos violentamente por agentes externos – a
vontade tem sobre eles um poder praticamente absoluto.
Assim, quando isso nos parece bom, útil ou deleitável,
mandamos nossas mãos se abrirem e elas prontamente se
abrem. Em razão desse poder, nossa vontade pode inclusive
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mover nossos sentidos externos, não diretamente em


relação aos seus atos, que dependem da presença de
objetos externos, mas indiretamente, frustrando sua
execução ou direcionando sua focalização (fechar os olhos
para não ver algo repugnante ou intensificar seu foco para
reparar algum detalhe, por exemplo). Esse poder também
existe em relação à imaginação e aos demais sentidos
internos, pois embora ele sofra a resistência oriunda do fato
da imaginação ser movida pelas formas apreendidas pelos
cinco sentidos, a vontade pode movê-la diretamente ao seu
ato na medida em que imaginar é um bem particular
compreendido no bem universal – e pela mesma razão,
quando imaginar é um mal, a vontade pode refrear seu
movimento espontâneo, impedindo sua execução. Além
disso, está sob o poder da vontade usar da imaginação para
dispor, comparar, compor e decompor imagens mentais
internas, as quais, por sua vez, serão úteis tanto para
instigar ou mitigar os apetites sensíveis, que seguem a
imaginação, quanto para fornecer à inteligência as imagens
das quais ela precisa para inteligir e raciocinar.
Quanto à inteligência, a vontade pode evidentemente
movê-la na medida em que o inteligir está contido como um
bem especial no bem universal apetecido pela vontade.
Assim, na medida em que queremos o bem do conhecimen-
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to, podemos mover pelo menos a operação raciocinativa da


inteligência na direção da aquisição deste conhecimento –
já que o ato mesmo de inteligir escapa de nossa vontade,
pois depende de uma luz natural ou sobrenatural que nos
apresente um objeto inteligível. Quanto ao apetite sensível,
seja o concupiscível ou o irascível, por ser movido
espontaneamente pelos cinco sentidos e pela imaginação,
ele apresenta considerável resistência ao império da
vontade, a qual, no entanto, em razão de sua superioridade,
pode movê-lo, lhe dando ou não seu consentimento de
acordo com um bem superior por ela apetecido. Além do
mais, como o apetite inferior se concretiza através da
potência motora, e como esta, como vimos, está
radicalmente sujeita à vontade, ao menos em situações em
que o movimento não é súbito a vontade pode travar o
movimento corpóreo do qual depende a ação promovida
pelo apetite sensível, frustrando sua realização.
Todas as nossas potências são, portanto, num grau ou
noutro, movidas pela vontade (agimos se e quando
queremos). Mas como a vontade é ela mesma movida pela
inteligência, esta, na medida em que se desenvolve em
raciocínios variados, também pode mover as outras
potências, não como executora de seus atos (pois ela não é
um apetite), mas como ordenadora e dirigente de sua exe-
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cução. De fato, ao apresentar razões para a vontade, a


inteligência dirige a execução deste apetite, apresentando
meios elevados e melhores de atingir suas finalidades. Da
mesma forma, como a apreensão intelectual é superior à
apreensão imaginativa, a razão pode sujeitar a imaginação
e, por essa via, sujeitar o apetite sensível – que é
espontaneamente movido pela imaginação. Essa sujeição é
diferente daquela exercida pela vontade sobre o corpo, pois,
como a imaginação também é movida pelos sentidos
externos, ela apresenta resistência às razões apresentadas
pela razão, a qual, para movê-la, terá de realizar um
exercício de persuasão no qual as razões superiores se
sobreponham às inferiores. Quanto ao corpo, a razão pode
movê-lo na medida em que ele é um instrumento das
potências da alma, elas mesmas movidas, num grau ou em
outro, pela razão. Enfim, a potência vegetativa, que regula a
nutrição, o crescimento e a geração, por não ser um apetite
movido pelo conhecimento, mas um apetite natural, não é
jamais regulada pela razão, que só impera sobre as
potências apreensoras ou sobre os apetites que seguem à
uma apreensão.
Convém notar que as potências da alma, ao menos
aquelas que dependem diretamente de um órgão corpóreo,
podem apresentar resistências variadas ao império da von-
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de e da razão em função de danos ou de inclinações


naturais sofridas por esses órgãos. É assim que um olho
míope resistirá ao processo de focalização determinado pela
vontade e uma pessoa colérica resistirá mais firmemente à
razão que tente lhe persuadir a se acalmar. Da mesma
forma, uma paixão sensível, como o desejo sexual ou a
raiva, por exemplo, por produzir mudanças corpóreas,
acaba por perturbar o juízo da razão, fazendo com que um
indivíduo possa confundir a hierarquia dos bens e decidir
por um bem inferior em detrimento de um superior – o
que, para um ser humano, é um mal (como quando, por
exemplo, um homem, em razão do ardor concupiscível,
julga o adultério um bem superior à fidelidade). É
importante ainda saber que há situações em que a vontade
perde seu poder, sendo movida necessariamente pelo
apetite inferior. É o caso dos loucos, dos amantes e dos
embriagados, que se encontram tão fixados pela paixão a
ponto de perder o uso da razão e, consequentemente, da
vontade. Nestes casos, não há ato propriamente humano, o
qual só existe quando a razão não é totalmente absorvida
pela paixão, podendo a vontade se inclinar livremente para
seu objeto próprio.
Dito isto, estamos em melhor condição de
compreender como funciona o processo decisório humano.
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Do que dissemos até aqui, segue-se que um ato humano é


todo ato da vontade dirigida pela inteligência. Desses atos,
alguns são ditos elícitos, outros imperados. Os atos elícitos
são aqueles produzidos de modo imediato pela própria
vontade, e que, portanto, ocorrem dentro do próprio
sujeito. Já os atos imperados são aqueles produzidos pela
vontade na medida em que ela move as outras potências do
corpo e as utiliza como seus instrumentos.
Os atos elícitos são movimentos do apetite intelectivo
na direção dos fins e dos meios, cada um deles dirigidos por
um conteúdo da inteligência. Primeiramente, a inteligência
apresenta à vontade um conteúdo na forma de um bem. A
esse bem corresponde na vontade um primeiro ato volitivo
simples, uma espécie de amor, simpatia ou consentimento
inicial, mas sem eficácia – como quando dizemos “eu quero
me tornar um santo”, mas sem intenção de alcançar esse
fim. Em um segundo momento, a inteligência julga esse
bem do ponto de vista da exigência de meios para alcançá-
lo, produzindo na vontade a intenção, um desejo mais firme
e eficaz de atingi-lo – como quando dizemos “eu quero me
tornar santo”, mas nisso incluindo o desejo de tudo o que
for necessário para consegui-lo. Na sequência, a inteligência
entra novamente em jogo para aconselhar a vontade sobre
os meios reais e disponíveis para que o fim intencionado
seja alcançado. Essa operação aciona um terceiro movimen-
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to da vontade, produzindo o consentimento ou a aprovação


dos meios adequados. Desses meios, um é, enfim, julgado
pela razão como melhor, como aquele que deverá será
executado pela vontade, a qual, através da eleição (ou livre-
arbítrio), enfim, o escolhe.
Após a escolha do meio mais adequado para a
aquisição do bem inicialmente proposto como fim, a
inteligência ordena os meios escolhidos, a fim de que o ato
possa ser devidamente executado - pois nunca basta apenas
um meio para se atingir um fim, já que, a partir do
momento em que é escolhido, cada meio passa a ser visado
com um fim em vista do qual outro meio deverá ser
escolhido: se quero ser santo, preciso me batizar, para me
batizar preciso de um padre, para encontrar um padre
preciso ir até uma igreja, e assim até chegar nos meios mais
imediatos, que correspondem às nossas operações motoras.
A esse comando ordenador da inteligência se segue o uso
ativo da vontade, que corresponde aos atos imperados,
pelos quais ela porá em ação as outras faculdades da alma,
instrumentalizando-as (aqui a vontade determina que
falemos, que nos levantemos, caminhemos, enfim, que
realizemos as ações necessárias para alcançar o fim
almejado. Alcançado este fim, a vontade pode, enfim,
repousar no objeto em vista do qual ela foi posta em ação. A
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este repouso chamamos de fruição.


Portanto, sem levar em conta as interferências
passionais que podem entrar em jogo no processo de
decisão humana, a estrutura da ação humana pode ser mais
bem visualizada segundo a seguinte tabela:

INTELIGÊNCIA VONTADE
Intelecção do bem Volição simples
Julgamento sobre a obtenção do bem Intenção
Conselho Consentimento
Último juízo prático Eleição
Império Uso (atos imperados)
Fruição

A partir desta estrutura cremos estar em melhores


condições de compreender e aplicar as técnicas para o
domínio das emoções apresentadas na mentoria.

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