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Thiago de S. Serra.

1. As Potências apetitivas
Na terminologia escolástica, que se inspira na δρεξις de Aristóteles, apetite é a tendência de um
ente ao seu bem e ao seu fim. Santo Tomás subtendente neste ponto que só há inclinação para o
bem. O bem é exatamente o próprio ser, enquanto apto a provocar uma inclinação para si. Toda
forma tende para aquilo que, fornecendo-lhe complemento, é seu bem próprio.1 Nos explica o
historiador da filosofia Henrique Dominique Gardeil 2 que o apetecer representa , ao lado do
conhecimento, um dos grandes aspectos da nossa vida psíquica. Que o conhecer e o tender
para, pode implicar amor, desejo, fruição etc. Ainda segundo o historiador, a vida afetiva se
encontra organizada nos quadros de uma metafísica da ação, o princípio geral ao qual se fez
referência, sendo o de que toda a forma segue uma certa inclinação: “quamlibet formam sequitur
aliqua inclinatio”( ST I, q 80, a 1).
Desta Maneira os seres desprovidos de conhecimento estão seguindo à sua forma 3 natural
, uma inclinação ou um apetite dito natural, já entre os seres que possuem conhecimento ,
seguem à forma apreendida, um apetite dito animal, ou acima de tudo, porque se exprime num
ato elícito4. Ainda no artigo 1o da questão 80 Tomás faz a afirmação que a alma humana pode
tornar-se ou seja pode receber todas as coisas sendo as sensíveis pelos sentidos e as inteligíveis
através do intelecto como poderemos constatar mais adiante. O Aquinate assim afirma uma
potência apetitiva na alma e as divide em três: apetite natural, apetite sensível e apetite intelectivo
ou vontade.

1.1 O apetite natural


Para Tomás o appetitus naturales também chamado de “apetite inato” seria a inclinação da
natureza ao seu fim, aqui tal inclinação é o que determina necessariamente o movimento àquilo
que lhe é próprio, salvo em casos de impedimentos ou inclinação contrárias ao que lhe é natural.
Desta maneira a forma natural nos corpos desprovidos de conhecimento estão determinados e
seguem uma inclinação que lhes é natural ( ST I, q 80, a 1). Este movimento independe de um
conhecimento, ele age de forma natural, ou seja, distinguir ou não o objeto de desejo não altera o
movimento, pois é o movimento necessário e determinado pela inclinação.

1
Enciclopedia Filosofica,Centro de Studi Filosofici di Gallarate, Roma, 21979, v. 1, col. 389.
2
GARDEIL, H.D. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia, Metafísica. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, Carlos
Eduardo de Oliveira e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Paulus, 2013, p 173.
3
Aristóteles afirma que a realidade é constituída por diversas coisas particulares que apresentam uma unidade de “forma” e “matéria”. A “matéria”
é aquilo a partir do qual a coisa é feita, enquanto a “forma” caracteriza as qualidades particulares das coisas. Tomás de Aquino vincula-se
fortemente a definição de natureza de Aristóteles como princípio do movimento e do repouso per se, não por acidente ("Phys." II, 1, 192b21-23).
Tal princípio per se é forma, quando dito ativo, e matéria, quando dito passivo.
4
appetitus elicitus, por meio do qual o bem exerce atração enquanto é atualmente conhecido.
2

Por exemplo, uma pedra, sendo lançada para o alto necessariamente tende para baixo,
pois lhe natural o movimento de queda, inexistindo aqui algum tipo de conhecimento ou distinção
da ação de se mover para baixo, ela apenas segue a sua inclinação natural. “a essa forma natural
segue-se uma inclinação natural que se chama apetite natural” (ST I, q 80, a 1).
Já nos seres cognoscentes, Tomás diz que toda a faculdade da alma que é caracterizada
como forma e tem em si uma inclinação natural para aquilo que lhe é natural:
“Nos que têm conhecimento, cada um deles é determinado em seu próprio ser natural por
sua forma natural, de tal modo que pode receber as imagens das coisas. Por exemplo, os
sentidos recebem as espécies de todos as sensíveis , e o intelecto, as de todos os inteligíveis”
( ST I, q 80, a 1).
O apetite natural não seria uma potência 5 exclusiva da alma, mas sim uma inclinação
natural para algo, “ deve-se dizer que toda a potência da alma é uma forma ou natureza, e tem
uma inclinação natural para algo. Assim, cada um tende ao objeto que lhe convém por um apetite
natural”. ( ST I, q 80, a 1). Nos seres animados o desejo é conveniente ao animal e não apenas
um desejo que busca saciar uma ou outra potência, como exemplo, a vista para a visão ou a
audição para o ouvido, nestes seres que tem o apetite animal que segue o conhecimento a
inclinação busca contemplar o animal por inteiro.

2.2 O apetite sensível


Para o escolástico o apetite sensível é um apetite que segue, necessariamente, sua
faculdade de perceber pelos sentidos “ O movimento sensível é o apetite que segue uma
apreensão sensível” (ST I, q 81, a 1, ad 3), aqueles dotados desde apetite requer dos sentidos
externos para que isso se realize, por exemplo, o lobo avistando sua preza ou seja, quando
percebe através de seus órgãos sensitivos, é levado a lançar-se sobre ela, observa- se aqui que
movimento e causado pela inclinação de algo que está fora daquele que percebe como como
explica Tomás: “Com efeito, o ato de uma potência apreensiva não é movimento em sentido
tão próprio quanto o é o ato do apetite, pois a operação da potência apreensiva se
completa quando as coisas apreendidas estão no que apreende, enquanto a do apetite se
completa quando o que deseja tende para a coisa desejada.( ST I, q 81, a 1, ad 3) Para
5
Os escolásticos distinguiam entre dois tipos de potência. O primeiro é a potência lógica, chamada também “potência
objetiva”; é, a rigor, mera e simples possibilidade , pois pode ser definida como a mera não repugnância de algo em face da
existência. O segundo tipo de potência é a potência propriamente dita : a chamada “potência real”, não baseada no mero
quadro vazio da possibilidade ideal, mas na identidade real. Esta potência é chamada “subjetiva”( no sentido que
tradicionalmente tinha este termo, diferentemente do que teve o vocábulo a partir de Kant). Sobre essa potência pode- se
dizer que ela caracteriza a possibilidade de que algo possua realidades ou perfeições determinadas. Tomás se refere no texto a
segunda.
3

Gilson6 os animais não podem não querer aquilo que lhes deleitável, eles são movidos em
direção aquilo que lhes de desejo.
Podemos encontrar diferença entre o apetite natural e o apetite sensível, sendo que o
sensível não se limita apenas a uma única forma de ser, pois ele é capaz de receber outras
formas por suas faculdades perceptiva, além disso existe também uma diferença entre o apetite
sensível no homem e no animal, no animal observa-se uma inclinação instintiva como observado
na citação feita de Gilson anteriormente, onde ele diz que os animais não podem não querer
algo, o homem difere neste aspecto, pois nele a relação entre este apetite se dá de maneira em
que a capacidade intelectiva que se relaciona com a sensibilidade permite ao homem um
conhecimento superior ao do animal.
O homem além de conseguir captar o bem particular pelo apetite sensível tem a
capacidade de captar o bem universal por seu apetite intelectivo que apreende um objeto
diferente daquele que fora captado pelos sentidos. Assim existe no homem além do apetite que
tem relação com os sentidos um outro apetite que em boa medida usa da sensibilidade, mas tem
uma relação com o conhecimento intelectual o qual podemos nomear de apetite intelectivo.

2.2.1 Distinção das faculdades concupiscível e irascível


Diz Aquino que : “ Sendo o apetite sensitivo uma inclinação que se segue à apreensão dos
sentidos, como o apetite natural é uma inclinação que se segue à forma natural, deve portanto
haver na parte sensitiva duas potências apetitivas: uma pela qual a alma é absolutamente
inclinada a buscar o que lhe convém na ordem dos sentidos, e a fugir do que pode prejudicar, é a
concupiscível7; a outra, pela qual o animal resiste aos atacantes que combatem o que lhe convém
e causam dano, é a irascível8.” ( ST I, q 81, a 2, ad 3)
Para Tomás o apetite sensitivo é uma potência genérica e se divide em duas faculdades,
sendo a tendência que vai em busca do que lhe é conveniente, agradável , facilmente alcançável
pelo sujeito que está voltada ao bem sensível e busca evitar tudo o que possa ser nocivo sendo
resistente aos agentes contrários, é como já vimos, a chamada potência concupiscível. Já a
potência irascível tem como seu objeto “aquilo que é árduo”, ou seja, é um impulso a luta que
busca vencer e dominar aquilo que se opõe a um bem difícil de ser alcançado, mas que lhe é
apropriado ou que convém ao sujeito e busca superar e prevalecer a adversidade, tanto irascível
como concupiscível não têm o mesmo objeto, sendo que muitas vezes contrariada a
concupiscível ou seja não busca o que é deleitável ao sentido, mas vai em busca do que é útil ao

6
GILSON, É. Le Thomisme: introduction au systeme de saint Thomas d’Aquin. V I . Paris Libraire Philosophique J. Vrin 1922,
p.184.
7
Do latim “concupere”, ato de deseja ardentemente.
8
Do latim “irascor” ato de irar-se.
4

animal. “às vezes a alma contrariamente à inclinação da potência concupiscível, se ocupa de


coisas tristes, a fim de, em conformidade com a potência irascível , lutar contra as adversidades”.
( ST I, q.81, a.2), ainda segundo Tomás a faculdade concupiscível tem de certa forma a faculdade
irascível como sua defensora porque combate tudo aquilo que lhe é contra o bem conveniente “
Assim, quando a concupiscência se ascende, a cólera diminui, e reciprocamente , ao menos na
maioria dos casos. Disso fica claro também que a potência irascível é uma espécie de
combatente defensor da concupiscível, insurgindo-se contra aquilo que impede o que lhe é
conveniente”( ST I, q 81, a 2).

2.2.2 As faculdades estimativa e cogitativa.


Para Tomás tanto a potência irascível como a potência concupiscível obedecem a parte superior
da alma, mas isso ocorre de maneira diversa no homem e no animal onde neste último flui de
modo natural o apetite sensitivo pela potência estimativa que é o sentido pelo qual as coisas
sensíveis são apreendidas como úteis ou nocivas ao animal, “ Por exemplo, a ovelha, julgando o
lobo como seu inimigo, o teme.”( ST I, q 81, a 3). A ovelha como todos os animais desprovido de
razão percebe através da potência estimativa que lhe dá apenas a percepção do que lhe é útil ou
não, fazendo com que o animal busque naturalmente o bem particular que neste exemplo é sua
auto preservação como nos diz o Gardeil: “ É um fato que os animais se opõem em busca de
certos objetos ou fogem deles não apenas à medida que têm uma relação favorável ou
desfavorável com tal sentido particular, mas também à medida que são úteis ou nocivas à
natureza do indivíduo considerado em sua totalidade” 9. No homem este processo que é realizado
no animal pela potência estimativa se dá através da potência cogitativa, ou razão particular a qual
compara as intenções individuais.
“ No lugar da estimativa, há no homem, como já se explicou, a cogitativa, que alguns denominam
razão particular, por que compara entre si as representações individuais. Por isso, o apetite
sensitivo no homem é, por natureza, movido por ela.”( ST I, q 81, a 3 ). Novamente segundo
Gardeil: “De modo preciso a “cogitativa “se distingue da “estimativa” no fato de que tem um
campo de atuação mais extenso e sobretudo, por poder, em virtude de sua proximidade com as
faculdades superiores, efetuar na ordem concreta aproximações que encerram as sínteses
propriamente intelectuais”10
As ações corporais do homem podem ser comandadas pela potência cogitativa, “quando
quero escrever é a cogitativa que coloca, em relação ao meu espírito, aquela pluma determinada

9
GARDEIL, H.D. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia, Metafísica. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, Carlos
Eduardo de Oliveira e Paulo Eduardo Arantes. São Paulo: Paulus, 2013, p 72.
10
Ibid, pág. 73.
5

que está entre meus dedos para traçar os caracteres sobre a página branca diante de mim ”11,
mas ela também é movida e guiada pelo intelecto e é por este fato que o raciocínio silogístico,
extrai de proposições universais conclusões particulares. “Mas a mesma razão particular é
movida e dirigida pela razão universal, e é por isso que, no raciocínio silogístico, extraem-se de
proposições universais conclusões particulares”. ( ST I, q 81, a.3). Desta maneira o intelecto
dirige por meio da cogitativa o apetite sensitivo que se distingue em irascível e concupiscível.
Devemos salientar que a cogitativa indica a ação a ser realizada, porém a ação só
executada quando a vontade ou apetite superior assente: “ O apetite submete-se à vontade
quando à execução, que se realiza por meio da potência motora”. (ST I, q 81, a3). Nos animais os
apetites concupiscível e irascível fazem com que imediatamente tenha uma ação, como
exemplifica Tomás: “a ovelha que tem foge imediatamente “( ST I, q 83, a3) isso ocorre pois não
há um apetite superior que se oponha a sua ação de fuga. O homem por sua vez não faz este
movimento de imediato, ele aguarda a ação do apetite superior que é à vontade.
No entanto pode haver casos em que a vontade atue efetivamente sobre os apetites sem
aderir aos raciocínios lógicos da razão, quando a razão por ela mesma não consegue acalmar os
membros agitados, a vontade imperativamente os doma e acalma.
A vontade diferente das faculdades irascível e concupiscível vai em busca do bem
universal como diz Gardeil: “a vontade tem como objeto o bem e o fim considerados
universalmente, as outras potências não visam senão os bens que são próprios para si”12, por
isso não existe nela uma diferenciação entre potências apetitivas como a irascível e a
concupiscível. Para Tomás tanto a irascível como a concupiscível são potências que obedecem a
razão e ele usa da obra de Aristóteles para sustentar sua constatação: ”Com efeito, em todas as
potências motoras ordenadas, a segunda não move senão em virtude da primeira; por isso, o
apetite inferior não pode mover se o apetite superior não consente nisso. É o que quer dizer o
Filósofo, no livro II da Alma: “ O apetite superior move o inferior, como uma esfera celeste
superior move a inferior”, desta maneira podemos observar que existe uma obediência natural
dos apetites inferiores à razão a qual o Aquinate usa A República de Platão para sustentar sua
fala “o Filósofo no livro I da República: “É preciso considerar no animal um poder despótico e um
poder politico: a alma domina o corpo por um poder despótico, o intelecto domina o apetite por
um poder político e régio” ( ST I, q.81, a. 3 , ad 2).
No poder político e régio aquele que tem sob comando homens livres, não exerce um
poder pleno sobre eles, afinal o homem livre tem a possibilidade de resistir as ordens dadas a ele,
já no poder despótico aquele que comanda tem pleno poder sobre seus comandos uma vez que

11
Ibid, pág.73.
12
Ibid, pag. 170.
6

estes são escravos. Já no homem este poder despótico é visto naquele que a alma exerce sobre
o corpo, de maneira que os membros do corpo nada podem fazer para ir contra uma ordem régia
vinda diretamente da alma “se diz que a alma domina o corpo com um poder despótico , pois os
membros do corpo não podem de nenhuma forma resistir às suas ordens”( ST I, q. 81, a, 3, ad.
2), porém pode-se notar que a razão tem a possibilidade de convencer a potência irascível e a
potência conceptível pelo poder político, pois ambas possuem o que lhes é próprio e que lhes
permite resistir a razão.
Nos animais o apetite sensitivo é movido pela estimativa como já podemos observar, no
homem é pela cogitativa, mas não só, também pelas imagens e pelos sentidos. Aquino nos diz
que a irascível e a conceptível resistem a razão quando imaginamos ou sentimos algo agradável
mesmo sendo este agradável pela razão proibido ou ainda, sendo algo desagradável sentida ou
imaginada que vá contra ao que é prescrito pela razão.

3. A vontade
Para o Aquinate, a vontade tem como objetivo único alcançar o Bem, mas, tal objetivo não
é um simples Bem, sua busca é chegar a causa de todas as coisas, o Bem no sentido absoluto
que para Tomás é Deus. Mas, ele nos chama a atenção para um outro tipo de bem, que não é
absoluto, mas um produto do intelecto humano e pelo o qual sempre a vontade humana tenderá a
buscar com maior frequência.
Para o escolástico o caminho do conhecimento intelectual humano passa pelos sentidos e
posteriormente são feitas imagens ou fantasmas que seriam a semelhança dos objetos.
Tais imagens ficam dependente de outra operação que é exercida pelo intelecto para qual
Tomás denomina de abstração, esta operação é realizada pelo intelecto agente, este intelecto
age na imagem e dela colhe sua essência e dessa operação se tem a forma inteligível do objeto
que até então fora conhecimento sensível. Em seguida, o Aquinate apresenta o intelecto possível
que seria como uma “folha” em branco, que ao receber o que lhe é própria, no caso as imagens
inteligidas, faz com que algo que fosse potência se torne ato e com isso, com esta intelecção
possa ser criado conceitos intelectivos. Pois bem, a vontade atua juntamente com o intelecto
quando tende aos bens inteligidos, assim , podemos dizer que o desejo seria a vontade em
marcha rumo seu alvo que é o Bem. Este movimento, esta ida ao bem é necessária a vontade e
por ser algo de grande importância para seguirmos os caminhos de Tomás, o próprio vê que deve
ser exposto sua visão de necessário, ele diz que: “necessário é aquilo que não pode não ser”. O
necessário poder ser visto de duas formas: (1) em razão de um princípio intrínseco ou (2) em
razão de princípio extrínseco.
7

O primeiro por estar na estrutura e operação de alguma coisa se divide em dois tipos,
sendo eles, o material e o formal, o princípio material é o que recebe a forma e se mantém com
ela como sendo seu efeito, já o princípio formal é aquele que comporta a forma, ela pode ser vista
dentro do campo lógico, como início de uma forma abstrata do intelecto. O Doutor Angélico nos
dá dois exemplos, sendo um do princípio material e outro do princípio formal. Sobre o princípio
material diz Tomás:” todo composto de contrários deve necessariamente corromper-se” 13.
Desta maneira o que ele nos diz é que tudo o que tem forma e matéria, ou ainda, tudo o
que tem ato e potência são compostos de opostos e estes estão sujeitos a determinações e às
mutações substanciais. A matéria é o elemento principal sendo ela o início da recepção das
formas, a matéria sendo princípio de individualização, mutação, multiplicidade, quantidade e
corrupção assim temos como necessidade natural tudo o que por ser composto necessariamente
se corrompe14.
Ao princípio formal cabe um exemplo advindo da geometria: “os três ângulos de um
triângulo são iguais a dois retos” 15. Neste exemplo ele diz que necessariamente é “absoluta” tal
resultado na definição mas não no que diz respeito aos compostos de contrários – que se
corrompe necessariamente – mas apresenta de forma completa a razão da forma do triângulo. O
princípio extrínseco se mantém fora e pode ser a causa final ou a causa eficiente, em sentido
restrito, ele é o que determina o movimento de um ente desde o princípio da ação, assim o fim
torna – se objeto do movimento uma meta a ser atingida, por assim dizer, o fim é o primeiro na
intenção daquele que age e o último na execução.
O Aquinate nos concede dois exemplos a este respeito: ele diz que “a alimentação é
necessária para a vida"16, afinal para que se atinja o objetivo de se manter vivo, deve-se se
manter alimentado, neste exemplo o alimento é o meio extrínseco que possibilita alcançar o
objetivo que é a manutenção da vida, algo necessário ao homem e um princípio intrínseco. Tal
necessidade será chamado de necessidade de fim por Tomás.
O segundo exemplo Tomás usará cavalos para demonstrar que estes são um meio para
atingir um fim, sendo este fim a viagem: “o cavalo é necessário para a viagem”,17 mais um vez o
escolástico de Aquino nos apresenta o cavalo como um meio para atingir um objetivo que seria a
viagem, todavia alguém que viaja tem de fato como objetivo um destino, logo o destino é o
principal objetivo do viajante. Assim a viagem torna-se um fim intermediário, mas necessário, do
qual o viajante faz uso para chegar em seu objetivo. Para esta necessidade Tomás chama de
Necessidade de utilidade.
13
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v II, 1 parte, q 82, a1
14
A corrupção aqui pode ser vista como alteração, geração e transformação, mas não como aniquilamento.
15
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v II, 1 parte, q 82, a 1
16
Ibid
17
Ibid
8

Como causa eficiente do princípio extrínseco Tomás dá o exemplo de alguém que é


constrangido e não pode fazer nada contra este exemplo apresenta a necessidade da coação,
onde existe uma força que age externamente e é causa da sua própria ação e causa uma ação
em outro que não consegue fazer nada por si próprio, mas só responde a ação que recebeu
externamente. Em suma, a necessidade da ação rompe completamente com a vontade própria
“Esta última necessidade repugna inteiramente à vontade, pois chamamos violento o que é
contrário à inclinação de uma coisa”.18 A coação é dita como violenta por vir do exterior, e fazendo
um caminho contrário as inclinações naturais sendo que estas últimas e as inclinações voluntárias
tem origem na natureza e na vontade, diferente das ações violenta. Para o escolástico, não existe
a possibilidade de algo ser ao mesmo tempo coercivo e voluntário, uma vez que o coercivo é
contrário à inclinação de qualquer coisa que seja voluntária e o que possa ser coercivo ou
violento vai contra a uma inclinação natural da coisa e rompe o movimento da vontade.
De todo modo, quando existe um fim que só pode ser alcançado por um meio, a
necessidade de tal fim não fará a vontade ser excluída. Diz Tomás que “quando se tem a vontade
de atravessar o mar, é necessário à vontade que queira um navio”. 19 É necessário a vontade de
um meio para atingir um fim, no limite, Tomás diz que é necessário que a vontade queira buscar
um meio que possibilite atingir um objetivo que neste exemplo o meio seria o navio e o objetivo a
travessia do mar. Apenas a vontade desejando o meio é que será possível atingir o fim. Deste
modo, se na intelecção dos primeiros princípios encontra-se a origem de todos os nossos
conhecimentos especulativos, a vontade necessariamente vai em direção ao Bem ou ao fim
último, que se encontra na origem de todas as nossas operações voluntárias. Para Gilson 20 na
obra, O Tomismo: introdução ao sistema de São Tomás de Aquino, ele comenta que a natureza
de cada coisa e a origem de todo o movimento encontram-se sempre num princípio imóvel
universal. Este princípio constitui-se como uma necessidade de todas as coisas que são de certo
modo, provenientes dele e se a origem de nossas operações voluntárias se encontra no Bem,
significa que ele é um princípio imóvel ao qual a vontade tende.
Existe na vontade um movimento, ou melhor, existe nela um princípio intrínseco que faz
com ela busque seu fim último que é a felicidade, a vontade aderindo ao seu fim último faz com
que ela realize sua natureza, tal como o alimento realiza a necessidade de sobreviver, ao seu
modo, a vontade depende do bem para realizar sua necessidade de ser feliz. Para Rousselot 21, a
vontade é a faculdade que tende ao seu objeto próprio, o desejo do fim não é a obtenção do fim e
sim o movimento em sua direção.
18
Ibid
19
Ibid
20
GILSON,É. Le Thomism: introduction au système de Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1922, pp 184 – 200.
21
ROUSSELOT, P. A Teoria da Inteligência Segundo São Tomás de Aquino. Tradução de Paulo Menezes. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p.
59.
9

3.1 A vontade pode não querer o bem?


Tomás22 citando Agostinho diz que é pela vontade que se peca ou se vive retamente.
Segundo Gilson23, tal como o intelecto adere aos primeiros princípios, a vontade adere aos bens.
Mas por não ter a visão direta do seu objeto próprio que é o Sumo Bem, a saber, Deus, o homem
decaído não consegue perceber de forma nítida os bens que estão necessariamente conectados
à essência divina, por isso a vontade humana volta-se a intelecção de bens particulares para
deliberar.
Destaca-se que para Aquino24 “querer” nada mais é do que um simples desejo de algo, a
vontade tem como objetivo o seu fim próprio que é o Bem. O ato de escolha livre consiste em um
consórcio entre razão e vontade em vista do mesmo resultado. A vontade não obtém tudo o que
ela quer, mas ela deseja apenas o Bem. Para Hugon 25 a vontade deve dirigir-se ao seu objeto
próprio enquanto está presente na alma. O Sumo Bem é aquele que finda todas as necessidades
da vontade e a domina assim como nosso espírito faz sua aderência aos primeiros princípios, a
alma a ver o Bem Absoluto faz com que a vontade seja dominada por um objeto maior do que ela
e dirija-se ao fim último, que é plenitude de sua realização. Porém no estado de vida atual e sem
receber uma graça divina especial mesmo querendo se vincular ao Sumo Bem, a vontade não
tem uma certeza demonstrativa do caminho que lhe faria religar-se à Deus. Com a falta de um
caminho claro a vontade não consegue tudo aquilo que deseja pois está voltada as razões de
bens particulares e juntamente com a atividade racional tem a possibilidade de escolher aderir ou
não, uma vez que a ligação que seria necessária está obstruída pelo pecado, fica evidente que
não tendo a visão clara de Deus tão necessária para a plena realização da vontade ela não
adquire tudo o que almeja. Em suma, a vontade pode não querer aqueles bens que não são
necessários para o fim último do homem.

3.2 A relação entre vontade e intelecto

Para Tomás existe uma interatividade entre intelecto e vontade. O intelecto conhece o que
quer a vontade e é do desejo da vontade aquilo o que é de conhecimento do intelecto. A
superioridade, segundo Aquinate, de uma coisa sobre outra coisa pode ser de dois modos:
absoluta ou relativa. Quando considerado em si mesmo podemos dizer que algo é absoluto e

22
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v II, 1 parte, q. 82, a 2.
23
GILSON,É. Le Thomism: introduction au système de Saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1922, pp 184 – 200.

24
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v II, 1 parte, q.83, A 4.
25
HUGON, E. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino: As Vinte e Quatro Teses Fundamentais. Tradução e Introdução: D. Odilão
Moura Porto Alegre: Coleção Filosofia, 1998, p 177.
10

podemos afirmar que uma coisa está em relação a outra coisa. Tomando o intelecto e a vontade
podemos visualizar a superioridade que o intelecto tem sobre a vontade, o intelecto torna-se
superior por ter o objeto da vontade compreendido em si. A razão de bem que busca à vontade
não está nela mesma, mas sim no intelecto. De modo inverso, a vontade poderá ser superior ao
intelecto quando seu objeto for superior ao intelecto, ou seja, quando o objeto da vontade supera
o objeto intelectivo.
Sendo mais nobre entender um objeto sensível do que querê-lo de modo contrário se dá
ao objeto que está acima da alma, ou seja, do intelecto. Seria mais nobre conhecer uma pedra do
que querer uma pedra, sendo que amar a Deus sendo o objeto próprio e principal da vontade é
mais nobre do que conhecer a Deus, pois Deus é mais simples e absoluto do que o conceito que
nos apresenta dele o intelecto. Evidencia-se desta maneira que o intelecto é superior a vontade
em geral e a vontade é superior ao intelecto quando em particular, sendo no caso Deus. Tomás
neste ponto se distancia do pensamento aristotélico que tem a vontade como uma espécie de
apetite pertencente a alma sensitiva, que se manifesta pela razão e não uma faculdade racional
assim como é entendido pelo Aquinate. Assim, seguindo esta linha o Doutor Angélico vai em
busca de compreender se a vontade pode mover o intelecto. Podemos ver que o intelecto move a
vontade pois está nela o conhecimento de bem como afirma Gilson quando diz que o intelecto
move à vontade por assimilar o bem que é objeto da vontade e a move a título de fim. Porém,
para Tomás uma coisa move de duas maneiras: (1) como fim e (2) como agente. O bem
conhecido é o objeto da vontade, isto é, como fim a causa final move a causa eficiente e desta
maneira o intelecto move à vontade. Em sentido contrário o agente que altera move o que é
alterado. A vontade move o intelecto e as potências da alma, isso se dá quando a potência que
visa o fim universal move as que visam os fins particulares.
A vontade visa o bem absoluto e universal. Desta maneira coloca em marcha as outras
potências que estão em sentido dos bens particulares e que são próprios de cada uma delas.
Neste sentido a vontade move o intelecto bem como todas as outras potências da alma para
realizar seus atos, vale destacar que as únicas funções que não são atingidas por este ato são as
inclinações ou funções naturais da alma vegetativa que não estão sujeitas ao nosso querer 26.
No entanto, este poder que possui a vontade sobre as outras faculdades da alma não se
manterão sempre em estado absoluto uma vez que outros fatores podem intervir. Gardeil explicita
que primeiramente e de modo imediato o impulso da vontade é exercício sobre a inteligência e
sobre seus atos. A inteligência é usada pela vontade para seus fins, sendo isso o que se produz,
como vimos no ato humano em que, sob pressão da intenção do fim, a inteligência se move em

26
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v II, 1 parte, q. 82, a 4.
11

busca dos meios próprios que podem trazer o fim, delibera a seu respeito e julga sobre aquilo que
é preferível.
Referente ao poder da vontade sobre as outras faculdades da alma – potência da
apreensão sensível, apetite sensível e motricidade – ele não será sempre absoluto visto que
outros fatores não poderão intervir assim, sobre os sentidos internos ou as paixões que estão
submetidas a influência corporais, a vontade não tem mais que um poder político. Tomás de
Aquino demonstra e afirma que o intelecto é absolutamente superior à vontade.

Conclusão

Na teoria apresentada, Tomás de Aquino mostra que a vontade se relaciona com o


intelecto e tende a razão de bem que o intelecto apresenta. Todavia, os silogismos produzidos
pela razão prática fazem com que a vontade exerça seu livre – arbítrio dando a possibilidade de
aderir ou não aos bens que lhes são apresentados. Vimos ainda que a vontade tem uma
superioridade relativa sobre o intelecto, mas o intelecto tem uma superioridade absoluta sobre a
vontade no homem que vive o estado de vida presente. Concluímos que a teoria da vontade em
Tomás de Aquino tem sua importância, mas ela é inferior e auxilia em algo maior que é sua teoria
do conhecimento.
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BIBLIOGRAFIA
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Comentários
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