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As diferenças entre o homem e o animal

I - Animalidade

Segundo Georges Bataille, a animalidade possui uma natureza imanente, ou seja, uma
natureza voltada para si mesma; que busca uma imediata satisfação para as suas
próprias necessidades. Esse fato que ocorre entre o animal e sua imanência acontece,
justamente, quando um animal devora o outro. O animal que devora não reconhece no
animal devorado uma semelhança. O animal que devora não diferencia de si mesmo o
animal devorado; visto que o animal devorado torna-se um simples objeto de supressão
da necessidade do animal que devora. O animal devorado é algo sendo consumido,
enquanto o mundo é apenas uma extensão onde o mesmo encontra diferentes formas
de sobrevivência.

Entre esse animal que devora e o animal que é devorado, não há nenhum tipo de
subordinação como a relação que ocorre entre o homem e o objeto. O animal que é
devorado recusa-se a ser tornar um simples objeto. Uma vez que objeto só pode ser
dado em uma extensão de tempo, algo que é próprio do homem e não do animal. É
apenas na dimensão humana que podemos apreender o tempo, e apenas nessa mesma
dimensão que o objeto passa a existir. Logo, na dimensão animal, tal concepção é irreal,
pois a mesma não pode existir, visto que o animal está fora do tempo.

De acordo com o pensamento batailleano existe, também, uma espécie de vínculo entre
o animal que devora e o animal devorado. Uma simples diferença quantitativa, ou seja,
uma relação de força e dominação do mais forte sobre o mais fraco.
2

A imanência de um organismo vivo no mundo é muito diferente: um organismo busca


ao seu redor (fora de si) elementos que lhe sejam imanentes e com os quais deve
estabelecer (relativamente estabilizar) relações de imanência. [...] ele só está assim sob
a condição de se alimentar . Senão sofre e morre: o fluir (a imanência) do fora para
dentro, do dentro para o fora, que é a vida orgânica, só dura sob certas condições” 1.

O animal depende do outro, pois não é "um átomo de azoto, de ouro ou uma molécula
de água [que] existem sem que nada dos que os circunda lhe seja necessário” 2.
Diferente das plantas, o animal não é um organismo autônomo, depende de um
determinado contato com outro animal. O organismo vivo está separado de outros
organismos, mas, ao mesmo tempo, depende do outro para sobreviver. Mesmo que a
organicidade da vida acentue suas próprias relações com o mundo, o mesmo retira
desse mesmo mundo o organismo, tornando o organismo algo isolado. Da mesma
forma que para o homem a vida animal está fechada, isolada em si mesma, embora
dependente.

Para o homem, a vida animal segue um movimento fechado. E não há possibilidade de


acesso direto a esse mundo que não possa ser pensado através de nossa consciência.
Nosso pensamento sobre o mundo perde essa ideia de sentido que está diretamente
refletido nas coisas. Ao mesmo tempo que escapa da ideia concreta que tentamos
estabilizar por meio de nossa imaginação. Não há possibilidade de acesso a um mundo
que não possa ser refletido pela nossa consciência. Pois o mesmo pensamento que
temos sobre o mundo foge do sentido que oferecemos as coisas e, ao mesmo tempo,
foge do "não-sentido das coisas no momento em que tentamos imaginá-las sem uma
consciência que as reflita"3.

A consciência tem o poder de aderir às coisas. Entretanto, o significado dado pela

1
BATAILLE. Teoria da religião, 2017, p. 24.
2
Ibid., p. 24.
3
Ibid., p. 25.
3

consciência só tem sentido casa ocorra algo que possa dar continuidade a esse
significado. É necessário, por fim, que haja continuidade, que exista outra consciência
que possa substituir uma outra que deixará de existir em um determinado momento no
tempo; visto que o homem, assim como o animal, está ali, no tempo, até não estar mais.

Caso olhássemos o mundo sem a presença do homem e substituíssemos pelo olhar do


animal, que não é nem homem nem coisa, só poderíamos inferir o nada, pois o objeto
que integra a coisa não pode ter sentido sozinho e o sentido é somente dado pela
consciência do homem. O mundo, como objeto, não pode ser descrito de maneira
precisa. A forma com a qual empregamos sentido às coisas só pode ser feito, segundo
Bataille, da maneira poética. Esse ato poético funcionaria como uma espécie de
caminho a ser percorrido, no qual o homem submete seus próprios sentidos com o
intuito de preencher de sentido o mundo que o rodeia.

Pode-se imaginar que o animal é familiar ao homem em sua profundidade. Todavia,


mesmo que de alguma forma possamos reconhecer essa profundidade compartilhada,
consideramos os animais como simples objetos que tornam-se alimentos ou simples
ferramentas de trabalho que utilizamos de maneira arbitrária. Contudo, é certo dizer
que os animais escapam da realidade de simples categoria de objetos imposta pelo
homem no decorrer do tempo. A conduta animal se modifica a cada situação que é
apresentada.

Os animais que não comem um semelhante da mesma espécie não têm, contudo, o
poder de reconhecê-lo como tal, de maneira que uma situação nova, em que a conduta
normal não é ativada, pode bastar para remover um obstáculo sem que ele sequer
tenha consciência de tê-lo removido. Não podemos dizer de um lobo que come outro
que ele esteja violando a lei que afirma que, normalmente, os lobos não comem uns aos
outros. Ele não viola essa lei, simplesmente ele se encontrou em circunstâncias nas
quais ela não vigora mais4.

4
Ibid., p. 27.
4

O animal não identifica o outro como igual a si ou mesmo diferente. Há uma diferença
não só de grau mas de percepção. O animal que devora, busca a imediata satisfação do
desejo que o domina no momento da caça. O animal que está presente no mundo,
submete o outro através da força para que possa saciar os desejos mais primitivos e
irracionais que guiam sua existência. Essa vontade de supressão desse desejo é o que
permite ao animal continuar existindo. Para o animal há apenas uma continuidade no
mundo no qual o mesmo está inserido e, nesse sentido, o animal perde sua semelhança
com o homem. A apatia do olhar animal, como Bataille demonstra, torna o mundo
apenas uma extensão de sua própria realidade. No sentido de que, para o animal, a
morte do outro, por exemplo, não introduz nenhuma diferença direta, pois “o animal
está no mundo como a água está na água".

O animal comido é morto, depois cozido, vale dizer que é tratado como uma coisa
separada, como uma coisa bem distinta, da qual se pode dispor e fazer exatamente o
que se quiser. O homem trata o animal como um campo de possibilidades que lhe são
subordinadas [...] aliás, ele só o come morto, é o animal morto que é considerado por
ele, e é considerado como uma coisa5.

Já o homem começa a entrever na morte, aspectos transcendentes a partir da morte de


outro animal. A partir do movimento no qual o mesmo está morto ou domesticado; ou
seja, quando o outro animal torna-se coisa. As outras formas de transformação do
animal pelo homem ocorrem na prepação de um alimento. Para que o animal seja
transformando em objeto, que tenha sua condição transformada em objeto, o animal
deve estar morto e, em seguida, devorado, pois o mesmo "só chega a ser plenamente
coisa sob forma de assado, de grelhado, de guisado [...] [e] o homem jamais come algo

5
Ibid., p. 107.
5

sem antes transformá-lo num objeto”6.

O homem tem a inclinação de transformar aquilo que devora. Tende a transformar


àquilo que devora em coisa, utilizando-se, primeiramente, de técnicas mais primitivas e
evoluindo, através de tempo, a técnicas cada vez mais avançadas de preparo, de
transformação. De modo que o preparo da carne esteja cada vez mais distante da
imagem do animal que possa compartilhar, em algum nível, alguma profundidade com o
homem. Agindo dessa forma e projetando a ideia de que àquilo que está sendo
preparado nunca foi mais que uma coisa, um objeto posto unicamente com o propósito
de satisfazer suas necessidades mais imediatas.

II - A ferramenta

Para Bataille, "a posição do objeto, que não é dada na animalidade, o é no emprego das
ferramentas"7. Os objetos cuja a finalidade se aperfeiçoam diante de um determinado
resultado que são obtidos através e a partir da consciência. O objeto, como ferramenta,
introduz o homem ao mundo de forma participativa. O mundo não está subordinado ao
homem, mas a ferramenta, por sua vez, "está subordinada ao homem que a emprega,
que pode modificá-la à vontade, com vistas a um resultado determinado" 8. A
ferramenta, em última instância, abre a possibilidade para que o homem consiga
participar da exterioridade do mundo que são/estão separadas dele.

A participação do homem no mundo, agora é dada através da ferramenta que faz


interações diretas com os elementos que o cercam. Embora esses mesmos elementos
ainda estejam longe de serem totalmente subordinados ao homem, é através da
ferramenta que o mesmo participa e, até certo ponto, é capaz de modificar os

6
Ibid., p. 36.
7
Ibid., p. 29.
8
Ibid., p. 29.
6

elementos exteriores onde o homem se encontra presente.

Na posição de uma coisa, de um objeto, de uma ferramenta, de um utensílio, ou


naquele de um plano e objetos (em que os diversos semelhantes do sujeito e o próprio
sujeito assumem um valor objetivo), o mundo onde os homens se deslocam é ainda, de
uma maneira fundamental, a continuidade do sujeito 9.

O valor da ferramenta só é dado em vista de seu resultado, o que a diferencia do sujeito


e do mundo. O tempo utilizado pelo homem para a fabricação da ferramenta postula
um fim, a ferramenta então é subordinada a esse fim. Para Bataille, a única forma
possível da ferramenta ser libertada do fim na qual foi fabricada e de seu servilismo é
através da arte. A ferramenta detém o poder de não só subordinar o mundo e
transformá-lo, modificando-o como, também, possui o poder de modificar o próprio
sujeito que a utiliza. Transformando não só a natureza como, também, por extensão, o
mundo e o sujeito. Ao fabricar a ferramenta, o homem tem diante de si a possibilidade
de modificar alguns aspectos da natureza, subjugando-as a seu poder e criando uma
espécie de ligação a essa mesma natureza subjugada.

A natureza passa a ser propriedade do homem. Embora, em sua profundidade, a


natureza continue sendo imanente, fechada em si mesma. A criação da ferramenta,
segundo Bataille, nega o mundo e, consequentemente, o sujeito nesse mundo.
Subvertemos a ordem natural das coisas, desviando-as de seus fins naturais, criando
limites e demarcações naquilo que é naturalmente infinito.

A ferramenta passa a ter o valor segundo um determinado resultado previsto, através


de sua utilidade prática: "o bastão cava o solo a fim de assegurar o crescimento de uma
planta, a planta é cultivada para ser comida, ela é comida para manter a vida daquele
que a cultiva...”10. Através da ferramenta, o sujeito passa a se diferenciar do animal. Não
9
Ibid., p. 35.
10
Ibid., p. 35.
7

mais como uma simples besta que busca satisfação mas, uma máquina de carne e ossos
que trabalha. E, através do trabalho, o homem se distancia de seu passado animal
como, também, abre novas possibilidades de existir no mundo.

III - A passagem do animal ao homem

É correto afirmar, após a leitura dos textos de Bataille que, a passagem do animal ao
homem ocorre em um indeterminado momento no tempo. Há um elo perdido que
impossibilita que nós, hoje, possamos de fato, estipular um momento certo onde esse
evento tenha ocorrido. É certo, no entanto, afirmar que o homem passou a fabricar
ferramentas, visto que possuímos vestígios desses objetos ainda hoje e que, a partir
deles, podemos traçar uma ideia de como esse fato ocorreu. A partir das ferramentas, o
homem teve o poder de modificar o espaço que estava ao seu redor. Pôde construir,
através de atividades laborais, novas possibilidade e formas de subsistir no mundo. Em
outras palavras, os homens "distinguiram-se dos animais pelo trabalho”11.

Ao trabalhar, o homem pôde se separar de sua identidade animal. E, a partir desse fato,
o homem começou a pensar as atividades que o distanciavam da atividade laboral.
Como, por exemplo, o corpo morto, o cadáver exposto do outro que o homem podia
considerar um igual; além da atividade sexual natural, que o desviava de sua nova
conduta. Quando, a partir dessas novas formas de se relacionar com o mundo através
de suas ferramentas e atividades ligadas a elas, o homem começou a pensar em formas
de se preservar; criando interditos (proibições), principalmente para com os mortos (o
cadáver) e para as suas atividades sexuais.

Segundo Bataille, há relatos de que o Homem de Neandertal12 (que ainda não pode ser
considerado exatamente como homem como nós o pensamos) sepultava os seus
11
BATAILLE. O erotismo, 2013, p. 54.
8

mortos. Visto que o horror da decomposição (ou seja, deixar de ser o igual)
provavelmente o assustava. Bataille aponta que desde o Paleolítico inferior13, há
evidências de trabalhos realizados por esses homens. E, ainda, que a datação mais
antiga de sepultamento que hoje conhecemos, data do Paleolítico médio14.

Embora não tenhamos muitas informações sobre as formas de subsistência do Homem


de Neandertal, é certo que trabalhavam, uma vez que suas ferramentas chegaram até
nós. Portanto,

Já que o trabalho, ao que parece, engendrou logicamente a reação que determina a


atitude diante da morte, é legítimo pensar que o interdito que regula e limita a
sexualidade também foi um contragolpe ao trabalho, e que o conjunto das condutas
humanas fundamentais - trabalho, consciência de morte, sexualidade contida -
remontam ao mesmo período recuado15.

Ao tentarmos pensar sobre essas eras passadas do mundo, podemos perceber que há
milênios entre nós e esses primeiros habitantes que podemos considerar como homens.
E dentro desses incontáveis anos, o homem se desvinculou de sua animalidade. Ao se
desprender de sua natureza primeira através do trabalho, aproximar-se da consciência
da morte (sua e de seus companheiros) e romper com a sua sexualidade natural e livre,
o homem se "liberta" de sua animalidade e pode ser considerado como algo

12
O homem de Neandertal foi uma espécie ancestral do homem. Surgiu durante o paleolítico médio. E, embora
possuísse proximidade com a espécie humana como nós a conhecemos hoje, suas características físicas divergiam
das nossas.
13
O Paleolítico Inferior foi um dos períodos pelo qual o planeta esteve em processos de mudança; datado de 2,5
milhões de anos atrás. Fora o período mais antigo da pré-história humana.
14
O  paleolítico médio foi um período de transição na pré-história humana, tendo como maior representante O
Homem de Neandertal, datado de 200 mil anos a.C.
15
Ibid., p. 54.
9

"determinado pelo conjunto dessas mudanças”16.

16
Ibid., p. 55.

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