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PLOTINO

PRIMEIRA ENÉADA
I. 1 (53)
O que é o ser vivente e o que é o ser humano.

§ 1. 1. 1. Prazeres e dores, sentimentos de medo e de audácia, apetites, aversões e


iracúndias – ao que estes pertencem?1
De fato, eles pertencem ou à alma, ou a uma alma usando um corpo 2, ou a uma terceira
coisa que surge duma combinação destes. E isso pode ser entendido de duas maneiras: ou como
uma mistura, ou como algo diferente que surge da mistura. Diga-se o mesmo dos resultados dessas
emoções, a saber, as ações e as opiniões. E a ser assim, devemos também investigar o raciocínio e a
crença para determinar se eles pertençam àquilo ao qual as emoções pertencem, ou se um deles sim
enquanto que o outro, não. E além disso, é mister também refletir em como os atos da intelecção
ocorrem e ao que eles pertencem, e, de fato, o que é em si o sujeito que realiza a investigação dessas
questões e produz juízos acerca dela. Mas antes disso, urge perguntarmos: o que é o sujeito da
percepção sensitiva? É daí que insta mais apropriadamente começarmos, posto que os estados acima
são ou atos da percepção sensitiva, ou não ocorrem sem a sensação3.
§ 1. 1. 2. Primeiro, cumpre entendermos se é o caso que a alma é uma coisa e a essência da
alma, outra4, pois se sim, a alma será algo composto e não haverá nenhum absurdo em que seja um
sujeito, ou seja, destes tipos de estados e, em geral, do melhor e dos piores hábitos e disposições,
isto é, assumindo que o argumento caminhar por este caminho.
Todavia, se a alma e a essência da alma identificam-se, a alma seria uma certa forma
incapaz de ser sujeito de todas essas atividades que ela transmite a um outro, mas reteria em si
mesma uma atividade que lhe é conatural, qualquer que seja a que o argumento nos revelar: neste
caso, será verdadeiro dizer que a alma é imortal se deveras aquilo que é imortal e indestrutível deve
ser incapaz de ser afetado5. Dalguma forma daria o que pertence a si mesma a um outro, enquanto
não recebe nada de coisa alguma, ou só à medida que está presente em coisas anteriores a ela, coisas
essas das quais não é separada, já que lhe são superiores6.
Ora, o que uma coisa como essa haveria de temer, visto que não é sujeita a nada exterior?
Com efeito, teme quem é capaz de ser afetado – nem também haveria de ser corajoso, pois como a
coragem conviria ao que o temor não pode estar presente? E como pode ter apetites, os quais são
satisfeitos pelo enchimento dum corpo vazio, sendo que aquilo que está esvaziado e preenchido são
diversos daquela coisa?
E como a alma poderia ser produto duma mistura?
Certamente, sua natureza essencial é imisturada 7. Como outras coisas poderiam ser
introduzidas nela? Se isso fosse para ocorrer, estaria em vias de deixar de ser em que é. E irritar-se
está ainda mais distante dela. Pois como algo poderia sentir dor senão em relação a algo? Ora,

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Platão, República, 429C D; 430A B; Fédão, 83B; Tim. 69D;
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aquilo que é simples na substancialidade é autossuficiente, à medida que é estável em sua própria
substancialidade. E agradar-se-á se algo for adicionado a ela, sendo que não há nada, nem mesmo
qualquer bem, que possa aumentá-la? Pois o que é, é sempre.
Além disso, não perceberá nada, nem haverá raciocínio ou opinião nela, pois a percepção
sensitiva é tomar uma forma ou também um estado corpóreo 8, e o raciocínio e a opinião sobrevém à
percepção sensitiva.
E relativo à intelecção, se tivermos de entendê-la como estando na alma, deveríamos
examinar como isso ocorre; e acerca do prazer (refiro-me ao puro prazer), se ela o possui quando
está por si.
§ 1. 1. 3. Mas quanto à alma que está no corpo, nós devemos também examinar se ela
existe anteriormente a este, ou apenas neste, já que é da combinação do corpo e da alma que “todo o
ser vivente assume seu nome”9. Se, então, por um lado, ela usa o corpo como um instrumento 10, não
tem de ser o sujeito dos estados que vêm através do corpo, assim como os artífices não são sujeitos
aos estados de seus instrumentos11; por outro lado, talvez devesse ser o sujeito da percepção
sensitiva, se, de fato, ela usa este instrumento para conhecer os estados que surgem da percepção
sensitiva do que há de externo, afinal de contas, ver é usar os olhos. No entanto, há lesões relativas
à visão, havendo com isso dor e estresse, como é geralmente o caso para tudo o que ocorre ao
corpo. Assim, também há apetites na alma que busca o cuidado deste instrumento.
Mas como os estados passariam do corpo para a alma? Pois ainda que o corpo possa
transferir seus estados a outro corpo, como um corpo os transmitiria a alma? Com efeito, isso de
certa forma seria equivalente a dizer que quando uma coisa experiencia algo, outra coisa
experiencia, pois contanto que o que usa o instrumento é uma coisa e o instrumento que usa é outra,
cada uma é separada da outra. Ainda assim, quem quer que ponha a alma como usando o corpo
separa um do outro.
Mas como eles estavam dispostos antes de sua separação pela prática da filosofia?12
Estavam, de fato, misturados. Mas se estavam misturados, seria ou como uma fusão, ou
como um entrelaçamento, ou como uma forma não separada do corpo, ou a forma controlava o
corpo como o piloto a um navio13, ou uma parte dela [ser misturava com o corpo] de uma maneira, e
a outra, de outra maneira. Digo, uma parte estava separada – aquela que usa o corpo – e a outra
estava dalgum modo misturada com ele, ou seja, encontra-se entre as partes ordenadas daquilo que
é usado. Assim, o que a filosofia faria seria verter essa parte em direção à parte que usa o corpo, e
verter a parte que usa o corpo (à medida que sua presença não é inteiramente necessária) para longe
daquilo que usa, de sorte que nem sempre o use.
§1. 1. 4. Assim, suponhamos que estejam misturados. Mas se estão misturados, o elemento
inferior, o corpo, tornar-se-á melhor, e o elemento superior, a alma, tornar-se-á pior. O corpo será
feito melhor pela participação na vida, e a alma pior pela participação na morte na irracionalidade.
De fato, como poderia aquilo que a certa medida foi privado da vida adquirir como adição uma
potência de percepção sensitiva? Por outro lado, o corpo, ao receber a vida, seria o que participa na
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percepção sensitiva e os estados que surgem dela. Assim, é o corpo que possuirá desejos, pois este é
o que gozará dos objetos de seus desejos, e temerá por si, pois ele é o que pode falhar na aquisição
de seus prazeres e ser destruído.
Deveríamos também investigar o modo como a mistura ocorre a fim de discernirmos se ela
seria impossível, como seria o caso se alguém dissesse que uma linha está misturada com o branco,
ou seja, uma natureza misturada com outra diversa 14. O conceito de entrelaçamento não implica que
as coisas entrelaçadas sejam afetadas da mesma maneira: é possível para aquilo que é entrelaçado
ser inafetado, e assim, para a alma enquanto permeia o corpo não possuir os estados do corpo, tal
qual a luz, especialmente se o permeia todo desta maneira: não haverá, então, de possuir os estados
do corpo, justamente porque é entrelaçada com ele15.
Mas estará no corpo do mesmo modo como a forma está na matéria? Se sim, então,
primeiro, será como uma forma que é separável, se é de fato uma substância, e ainda amais se é
aquilo que usa o corpo. Mas se assumirmos que ela está para o corpo como a figura impressa ao
ferro está para o machado, tendo em vista que é antes o composto de ambos, o machado, que faz o
que o ferro assim formado faz em virtude de sua figura, então estaríamos mais inclinados a atribuir
todas as afeições comuns ao corpo, mas a um em específico, isto é, ao “corpo natural orgânico que
possui a vida em potência”16, pois Aristóteles diz que é absurdo afirmar que a “alma está tecendo”,
de sorte que seja também absurdo afirma que ela é que possui os apetites e está em dor, pois estes
pertencem antes à substância vivente.
§ 1. 1. 5. O que é certo dizer é que o ser vivente é ou um certo tipo de corpo, ou a
conjunção do corpo e da alma, ou alguma terceira coisa que surgem de ambos 17. Mas qualquer que
seja o caso, é preciso ou que a alma se mantenha impassível, sendo causa de a outra parte da
conjunção ser afetada, ou que também ela seja afetada junto com o corpo, e que seja afetada
experimentando já a mesma afeição, ou uma idêntica: por exemplo, que o animal apeteça dum
modo e a faculdade apetitiva ative ou seja afetada de outro. Mas o corpo que é deste tipo há de ser
examinado depois18.
Mas ora, como o complexo é capaz de sentir dor? 19 É porque o corpo é disposto desta
maneira e o estado penetra na percepção sensitiva, a qual tem sua culminação na alma? Mas ainda
não é claro como a percepção sensitiva acontece. E sempre que a dor se origina numa crença ou no
juízo dalgum mal presente ou a nós ou a alguém com quem nos importamos, porventura há
mudança dolorosa no corpo e, geralmente, em todo o ser vivente?20 No entanto, nem também é claro
ainda qual é o sujeito da opinião, se a alma ou o complexo.
E depois, a opinião sobre algum mal não inclui o estado de dor, pois é possível que quando
se nos ocorre uma opinião, o sentimento de dor esteja completamente ausente, ou, similarmente, é
possível para o sentimento da raiva não estar presente quando uma crença que nos ocorreu está
presente, como também para uma crença sobre o que é bom, de não mover o nosso desejo. Como,
então, os estados são comuns ao corpo e à alma?

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De fato, é o caso de que o apetite pertence à faculdade do apetite da alma, e a
espirituosidade pertence à faculdade da espirituosidade da alma, e, geralmente, a inclinação em
direção a algo pertença à faculdade do desejo da alma 21. Desta maneira, eles já não mais serão
comuns, mas convirão meramente à alma. Mas ora, eles pertencem deveras ao corpo, porque o
sangue e a bile devem fervilhar e o corpo estar dalgum modo disposto para mover o desejo em
direção, por exemplo, a objetos sexuais.
Concordemos que o desejo pelo bem não é um estado comum, mas convém só à alma,
como é o caso com outros estados: nenhuma teoria os atribuirá a ambos em comum. No entanto, se,
por um lado, o ser humano que deseja prazeres sexuais é o que apetece, também a faculdade
apetitiva apetece22, ainda que de outro modo. Mas como? Acaso o ser humano inicia o apetite e a
faculdade do apetite o segue depois? Mas, em geral, como poderia um ser humano ter um apetite
quando a faculdade apetitiva ainda não foi movida? Nesse caso, será a faculdade do apetite que o
inicia. Mas a partir de onde ele vai iniciar, se o corpo não está primeiramente disposto desta
maneira23?
§ 1. 1. 6. Talvez seja melhor dizer que, geralmente, é devido à presença das potências que
as coisas que as têm agem segundo elas, ao passo que essas potências são elas mesmas imóveis,
provendo às coisas que as possuem a habilidade de agir. Mas se for assim, quando o ser vivente é
afetado, a causa que dota de vida o composto é ela mesma inafetada pelos estados e as atividades
que pertencem àquilo que as possui. Mas a ser assim, viver de todo modo pertencerá não só à alma,
mas ao complexo.

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Traduzindo de outra forma: o ser humano que tem o apetite será o que possui o desejo pelos objetos sexuais,
embora doutra forma seja a faculdade da alma que possui o apetite [N. T.]
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