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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

CAMPUS DE PALMAS
COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

CIDICLEI ALCIONE BIAVATTI

PINTURAS RUPESTRES:
O CINEMA NA PRÉ-HISTÓRIA

PALMAS, TO
2005
CIDICLEI ALCIONE BIAVATTI

PINTURAS RUPESTRES:
O CINEMA NA PRÉ-HISTÓRIA

Monografia apresentada ao Curso de


Comunicação Social da Universidade
Federal do Tocantins, como requisito
parcial para a obtenção do título de
bacharel em Comunicação Social –
habilitação em Jornalismo.

Orientador: Prof. MSc. Carlos F. M. Franco

PALMAS
2005
CIDICLEI ALCIONE BIAVATTI

PINTURAS RUPESTRES:
O CINEMA NA PRÉ-HISTÓRIA

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof. MSc. Carlos F. M. Franco - UFT

Orientador

_________________________________________

Prof. MSc. Marcos Aurélio Zimmermann- UFRJ

Examinador

_________________________________________

Profª MSc. Marluce Zacariotti – UFT

Examinadora
Aos meus pais, pela paciência, incentivo
e compreensão de que às vezes a
saudade é inevitável, mas solidifica o
amor.
Aos artistas da pré-história, pela
sensibilidade em expressar sua visão do
mundo e nos ajudar a compreender a
trajetória humana.
AGRADECIMENTOS

A Deus, força maior e provedor de nossas necessidades.

Ao meu irmão João Carlos e minha cunhada Mônica, pela força, lealdade, confiança e
carinho.

Ao meu irmão Maikel, que apesar da distância sempre esteve presente.

Ao meu irmão Jonathan, um presente de Deus para nossas vidas.

À minha irmã Sandra, pelo carinho e compreensão.

À minha irmã Tatiana, exemplo de companheirismo.

A minha tia Idelma, uma mãe na mais ampla acepção da palavra, que me amparou e corrigiu
quando necessário.

Aos meus sobrinhos Renikson e Mateus, pela alegria que me proporcionam em nossos
encontros.

A todos os meus tios e tias que de alguma forma me deram ânimo para concluir este curso.

Ao meu nono João, pelo exemplo de persistência e paciência, para quem a vida está sempre
começando. E, in memorian à Ernesta, José Otávio e Oliva, que enquanto vivos foram
exemplos de persistência para mim.

À Mariana, pessoa exemplar, fonte de inspiração e amor.

À Neuma José Carlos, Marina, Janaína, Juliana, Leonardo, David, Marina Gabriela e
Guilherme, por me fazerem sentir sempre em casa.

À todas as famílias que conquistei pelo mundo afora, em especial a José Laucir, Lizete e
Pedro, pela acolhida em todos os momentos.

Aos meus amigos-irmãos, em especial Luizinho, Luiz Melchiades e Roberto, pela


compreensão e acréscimo em meu crescimento pessoal.

Aos professores, em especial Carlos Franco, grande incentivador de meus trabalhos e


orientador de minha monografia.
“O saber e o conhecimento tecnológico
se acumulam através de tradição
cultural, de forma que a distância
material que divide as sociedades
afluentes do século XX da sociedade dos
antigos caçadores e coletores, ou seja 50
mil anos, por exemplo, não é equivalente
a uma distância intelectual inata. No
momento, somos o mesmo animal que
éramos há 50 milênios; simplesmente
sabemos mais agora do que sabíamos
antes.”

Richard Leakey
BIAVATTI, Cidiclei Alcione. Pinturas rupestres: o cinema na pré-história. Palmas – TO:
Monografia do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, Universidade
Federal do Tocantins, 2005.

RESUMO

Este trabalho é resultado de uma pesquisa que busca demonstrar a incessante busca humana
pela representação de sua história. Neste caso específico, trabalhamos com duas importantes
manifestações: as pinturas rupestres e o cinema. Embora separadas por milhares de anos, tem
algumas características bastante parecidas, como por exemplo a utilização da imagem como
suporte e o registro histórico do comportamento humano. Em nossa pesquisa foi possível
perceber a importância das pinturas rupestres no desenvolvimento intelectual da humanidade.
A partir delas o homem despertou para a necessidade de representar, ou melhor codificar sua
história de modo a não perder sua identidade no decorrer de sua trajetória histórica. Assim
surgiram a escrita, a fotografia e enfim, o cinema. Desta forma, acreditamos que não existe
técnica ou manifestação que apareça por si só. Tudo que se transforma guarda ainda em si
traços e particularidades das técnicas ancestrais. Os homens da pré-história não tinham um
projetor, mas contavam com uma mente que despertava e projetava seu cotidiano. Foi
gravando sua história com tinta, que o homem pode enfim desenhar na película do cinema um
registro vivo de sua intelectualidade.

Palavras-chave: pré-história; pinturas rupestres; cinema; comunicação.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 8

2. A ARTE NA PRÉ-HISTÓRIA .................................................................................................... 13


2.1. A TELA DE PEDRA ...................................................................................................................... 14
2.2. QUESTÃO DE ESTILO................................................................................................................. 16
2.3. PINTURAS FAMOSAS................................................................................................................. 18
2.4. O BRASIL TEM (PRÉ) HISTÓRIA PARA MOSTRAR ............................................................... 19

3. CINEMA: DA ARTE À ILUSÃO ............................................................................................... 23


3.1 A IMAGINAÇÃO ANTES DA TÉCNICA .................................................................................... 25
3.2. LUZ, CAMÊRA E AÇÃO... ........................................................................................................... 27
3.3 A IMAGEM COMUNICADORA .................................................................................................. 30

4. PINTURAS RUPESTRES: O CINEMA NA PRÉ-HISTÓRIA ............................................... 33


4.1 DA IMAGEM FEZ-SE UMA FERRAMENTA COMUM............................................................. 34
4.2 ARTE QUE IRROMPE NO TEMPO ............................................................................................. 36
4.3 O STORYBOARD NA PRANCHETA DE PEDRA ........................................................................ 38
4.4 ENCONTRO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO.......................................................... 39
4.5 PRIMITIVOS, PIONEIROS E O OLHAR CONTEMPORÂNEO................................................. 42

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 43

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 45

ANEXOS .............................................................................................................................................. 49
1. INTRODUÇÃO

Propor uma comparação simples entre o cinema atual, com sua alta definição de
imagem e som, e as pinturas rupestres, algumas com mais de 30.000 anos, parece um tanto
insensato. Entretanto, se tratarmos essas mesmas pinturas como o primeiro storyboard da
história (ou pré-história), isso não soa tão absurdo assim. Percebe-se sim, mais uma clara
tentativa humana de contar uma estória (nesse caso, história). Os desenhos feitos pelo homem
pré-histórico retratavam, em sua maioria, cenas típicas de sua rotina. Segundo Niède Guidon
(2002), durante milênios, as paredes dos sítios foram pintadas, deixando testemunho de
aspectos da vida cotidiana e cerimonial das populações dessa época.

Não se sabe ao certo qual a verdadeira dimensão das pinturas para os povos
primitivos. Atualmente, várias especulações surgem sobre o assunto. Para Gombrich (1972), é
impossível entender esses estranhos começos se não procuramos penetrar na mente dos povos
primitivos e descobrir qual é o gênero de experiência que os faz pensar em imagens como
algo poderoso para ser usado (...). Para alguns pesquisadores, esses registros têm
fundamentação em crenças e rituais ancestrais, sejam eles relacionados à caça ou ao sexo.
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Seja como for, essas pinturas, quando vistas sob a ótica da semiologia revelam outro
aspecto interessante: a utilização da imagem como suporte documental. Luís Carmelo (1997),
da Universidade Autónoma de Lisboa, diz que uma imagem apenas existe quando está diante
de nós, na sua atualidade existencial e, por outro lado, na medida em que comporte elementos
reconhecíveis. Ou seja, a representação imagética de um veado, pintada em alguma parede de
pedra, será de imediato familiar aos nossos olhos. Mas, como diz Umberto Eco (1997, apud
CARMELO), não é possível falar em imagem, sem entender que a imagem é uma coisa e que
seu fundamento – legitimador e anterior – é uma outra coisa bem diferente.

Partindo deste pressuposto e encontrando o cinema, que tem nas representações


imagéticas sua sustentação, evidencia-se ainda mais a importância da construção da imagem.
Segundo Tânia C. Clemente de Souza (2001), no cinema ela (a imagem) é usada como
imagem que é, como forma de linguagem e não como cenário. Portanto, tem aí, uma
textualidade diferente da que se vê nos outros meios de comunicação.

A exemplo do que acontece com o cinema, também as pinturas rupestres apresentam


diversos estilos. De região para região, o que muda não é somente a representação da fauna,
por exemplo. Existe uma diferença perceptível nos traços e na preocupação com o
acabamento dos desenhos. Arlindo Machado (1997) destaca imagens encontradas em
cavernas na França. Foram gravadas em relevo na rocha e os seus sulcos pintados com
diferentes cores. A luz da lanterna de quem explora essas cavernas, ao iluminar e obscurecer
parte dos desenhos, cria a impressão que o animal representado se movimenta em relação ao
espectador. Willian Meireles, professor da Universidade Estadual de Londrina, em sua
dissertação de mestrado, diz que desde o momento em que esses homens registraram imagens
do mundo que habitavam, nos tetos e paredes de cavernas que lhe serviam de abrigo, cada
figura ou séries de figuras gravadas seguiam uma disposição estética que sugeria a idéia de
movimento.

Então, deste ponto, as pinturas rupestres e o cinema seguem um caminho histórico


muito próximo. Isso porque as duas manifestações tratam de recriar em imagens o seu mundo
e mostrar como o homem se vê. Assim, “... o imaginário confunde, numa mesma osmose o
real e o irreal, o fato e a carência, não só para atribuir à realidade os encantos do imaginário,
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como para conferir ao imaginário as virtudes da realidade” (MORIN, 1970, p. 251). O filme
A Guerra do Fogo (La Guerre du Feu, 1981), de Jean-Jacques Annaud, mostra de forma
instigante o comportamento e a linguagem dos ancestrais humanos da pré-história. O enredo
se desenrola há 80 mil anos atrás, quando uma tribo que depende do fogo para proteção e
aquecimento acidentalmente tem sua chama extinta. Assim, três membros são destacados para
buscarem uma nova chama. Nesse caminho encontram outra tribo, evolutivamente mais
atrasada. Não existem diálogos, toda a linguagem do filme se baseia na expressão corporal
dos atores, diferente de tribo para tribo. Uma das raras vezes em que o cinema voltou suas
lentes para a pré-história.

As pinturas rupestres são divididas em tradições. Cada tradição tem estilo e


preocupações próprias. A Fundação Museu do Homem Americano - FUMDHAM, localizada
em São Raimundo Nonato – PI, investiga duas tradições: a Nordeste e a Agreste. Embora se
localizem na mesma região, as pinturas dessas tradições apresentam muitas diferenças entre
si. A primeira, apesar de ser mais antiga, apresenta um aprimoramento técnico superior à
segunda. Esse esmero atesta que já existiam instrumentos e tintas desenvolvidos para
atingirem os resultados procurados. Era encontrada uma grande variedade de cores, obtidas de
pigmentos naturais e misturadas com gordura animal, sangue e cera de abelhas, entre outros
materiais.

Como se vê, a busca em se aprimorar técnicas e equipamentos não é recente. Como


esclarece Niède Guidon (2002), a matéria-prima que utilizaram foi o ocre (óxido de ferro) que
a natureza oferecia sob a forma de blocos incrustados no arenito da serra. Aprimoraram
procedimentos de preparo para obter uma tinta com a plasticidade suficiente para ser aplicada
utilizando instrumentos. Até mesmo a ausência de preocupação com um acabamento mais
apurado pode ser intencional. Se levarmos em conta que tudo não passa de estilo, novamente
seremos remetidos aos dias atuais. Um exemplo são as animações feitas em flash. Apesar de
toda a evolução técnica existente hoje, muitos indivíduos preferem criar desenhos simples,
com traços no lugar de pernas e braços e uma esfera como cabeça. Essa opção não prejudica
em nada a idéia ou a mensagem transmitida.
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Percebemos que independente da época em que o ser humano se situa, está presente a
necessidade de expressão. O homem desenvolveu a escrita, a imprensa e a fotografia. Mas
antes, utilizou o desenho. Fez da pedra o primeiro “fotograma” e, como acontece hoje, da
imobilidade total de seus traços, a ilusão para que a mente perceba o movimento.

Creio que não possamos considerar esta uma pesquisa inédita. Entretanto, temos que
reconhecer não existirem tantos trabalhos correlatos. Isto por si só já justificaria esta
empreitada. Existem, porém outros fatos a destacar, como a paixão do pesquisador pelo
cinema, ligado aos intrigantes traços das pinturas rupestres, por exemplo. Os dois temas aqui
investigados tem algumas características em comum. Podemos destacar a utilização da
imagem como suporte a principal delas. Essa imagem (ou imagens) tem um motivo. As
pinturas rupestres são retratos imagéticos milenares da história cotidiana de seus criadores. O
cinema joga com a imagem há bem menos tempo. Porém, o fascínio que causa nos
espectadores não é tão diferente do que o provocado pelas pinturas rupestres nos
pesquisadores. De qualquer forma, se trata da história humana. E os dois assuntos estão em
extremos diferentes nessa contagem cronológica. Mas são partes da mesma ambição:
aprisionar a imagem e reproduzir o movimento.

Portanto, nosso objetivo é demonstrar a analogia entre as pinturas rupestres e o


cinema. Para tanto, dividimos nosso trabalho em sessões. No primeiro capítulo, descrevemos
as pinturas, suas características e as hipóteses sobre as motivações dos seus autores. No
segundo capítulo, tratamos especificamente do cinema, sua história, a arte cinematográfica e a
sua relação com a comunicação. E, finalmente, no terceiro capítulo expressamos os aspectos
que aproximam as duas manifestações.

Consideramos este assunto de grande interesse para a comunicação e para a sociedade.


Não podemos desprezar a importância da pictografia no surgimento da escrita. E advento da
escrita obviamente foi de grande valia para o desenvolvimento intelectual da humanidade.
Assim como também é necessário reconhecer a importância do cinema. Sua característica
documental é muito utilizada seja com registro histórico ou fomentador de ideologias. Assim,
estamos convictos da importância da pesquisa e, reforçando o descrito acima, a história da
sociedade humana talvez nunca seja plenamente entendida. Entretanto, é nossa obrigação
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investigar melhor as pistas deixadas por nossos antepassados. Nessas entrelinhas podem estar
as chaves para implementar o pensamento crítico social.
2. A ARTE NA PRÉ-HISTÓRIA

Pudéssemos entender quais as razões do ato criativo humano, certamente


decifraríamos este intrigante ser. Entretanto, com o passar do tempo, e mesmo com toda a
evolução tecnológica, algumas iniciativas de nossos ancestrais continuam desafiando nossa
compreensão. Façamos então, uma viagem ao passado, mais especificamente ao período
histórico conhecido como paleolítico superior. Isto representa um deslocamento temporal de
cerca de 30.000 anos. Estamos ainda na pré-história, já que a história inicia-se oficialmente
com o advento da escrita, ou seja há uns 6.000 anos. Nesta época, surgem algumas das
manifestações artísticas mais fascinantes de toda a trajetória humana: as pinturas rupestres.
Embora não se saiba ao certo qual o significado das pinturas rupestres, vê-se aí uma das
primeiras tentativas humanas de estabelecer comunicação.

A denominação arte rupestre, que comumente se utiliza para designar manifestações


como as pinturas, nem sempre é aceita pelos estudiosos. G. Martin afirma que é natural
existirem polêmicas quanto ao uso do termo e a metodologia adotada para o estudo desses
vestígios, pois os pesquisadores discutem sobre pontos de vista divergentes, "procuram
respostas diferentes às mensagens que as pinturas e gravuras rupestres proporcionam"
(MARTIN, 1997, p. 21). Ou seja, cada pesquisador, imerso em sua área de estudo, tende a
observar com mais atenção os aspectos ligados à sua pesquisa. Joaquim Perfeito da Silva, da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, cita Bourdieu (apud RIBEIRO, 1995, p. 28)
para quem, “(...) a classe dos objetos de arte seria definida pelo fato de que existe uma
percepção guiada por uma intenção propriamente estética, isto é, uma percepção de sua forma
mais do que sua função”. Edithe Pereira, pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, de Belém no
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Pará, conta na Revista Pesquisa, de novembro de 2004 que o etnólogo alemão Theodor Koch-
Grümberg, que em 1907 percorreu o Rio Negro, no interior da Amazônia, afirmou que as
pinturas rupestres não queriam dizer nada. Eram apenas o resultado do ócio indígena.
Diferentemente de Koch-Grümberg, a professora de arte Fayga Ostrower afirma que:

Nada, nessas imagens, é ingênuo ou infantil; as obras representam uma


expressão de adultos para adultos. E, evidenciando a mais alta realização
artística na maestria técnica e no pleno domínio da forma, desde o início
cristalizam na arte a essencialidade de formas expressivas. (OSTROWER,
1983, p. 298).

De qualquer forma, a intenção de executar estas pinturas tem como uma de suas
características marcantes a obstinação dos artistas. Imagine-se hoje, percorrendo até um
quilômetro no interior de grutas escuras e úmidas apenas para rabiscar paredes. Obviamente,
não podemos considerar que este ato seja obra de um pichador pré-histórico. Mesmo que não
vivessem em um ambiente agitado, diria até caótico, como nos nossos dias, é difícil crer que
elaborassem suas pinturas simplesmente para passar o tempo. Principalmente se levarmos em
consideração que ainda viviam de forma nômade. E, embora não seja improvável em alguns
casos, a simples ornamentação das cavernas não é uma das hipóteses mais defendida entre os
pesquisadores, como sugere FRUTIGER (1999, p. 83) ao afirmar que “naquele tempo, o
homem ocupava sua mente com atividades bem mais vitais do que qualquer tentativa de
registrar a linguagem.” isto porque para ele “(...) os desenhos em cavernas devem ser
avaliados como evocações mágicas, resultantes do medo de fenômenos sobrenaturais,
simplesmente por motivos de sobrevivência e para satisfazer o instinto natural”.

2.1. A TELA DE PEDRA

A necessidade de manter-se vivo levou o homem a desenvolver ferramentas que o


auxiliasse nesta tarefa nada fácil. Um simples pedaço de pedra poderia fazer a diferença em
sua busca por alimentos. Entretanto, mesmo em meio a inúmeras dificuldades, surgem estes
impressionantes registros visuais. Para Frutiger (1999, p. 228), “supõe-se que a primeira
ilustração da história humana tenha sido a marca da pegada na argila e, em seguida, o
decalque da palma da mão colorida sobre a rocha”. Agora, mais do que viver fisicamente,
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nossos ancestrais passam a existir também intelectualmente. As mãos que antes agiam única e
exclusivamente para garantir a sobrevivência, deixam para a posteridade uma prova da
trajetória evolutiva do homem, “de fato, como se fossem uma extensão física da mente, as
mãos se tornam o órgão executor do pensamento, vindo a caracterizar todo o fazer humano. A
mão é vital na humanização do homem.” (OSTROWER, 1983, p. 296).

Muitas são as especulações acerca dos motivos que levaram o homem a transformar as
cavernas que serviam de abrigo em uma verdadeira tela de pedra. Para Anne-Marie Pessis
(2003, p.75), diretora científica da Fundação Museu do Homem Americano – Fumdham, “as
pinturas rupestres são uma porta de entrada para o conhecimento da vida na pré-história, mas
devem ser observadas com um olhar que permita ir além do mostrado, sem interpretações
infundadas.” Ela afirma ainda que as grandes preocupações de nossa sociedade, em parte,
continuam sendo as mesmas das sociedades primitivas. Louis-René Nougier, que é professor
de arqueologia pré-histórica na Universidade de Toulouse na França, atribui as mãos
impressas nas paredes da gruta da Gargas (Altos Pirineus), à práticas médicas. Segundo
Nougier (1979, p.32), as mãos mutiladas pela seqüência de enregelamentos, resultado das
rigorosas condições climáticas a que eram impostas, seriam untadas de ocre para aliviar e
curar. Então, o fato de apoiá-las serviria para facilitar o tratamento. Em outras imagens, as
mãos eram apoiadas na rocha e pulverizadas com pigmento. O resultado é conhecido como
mãos em negativo, já que aparece apenas sua silhueta sobre desenhos de animais na parede da
caverna. Mas provavelmente, isto não tem nada a ver com técnicas medicinais. Para Ostrower
(1983, p. 296), nessas imagens o homem põe, literalmente, a mão sobre o mundo.

A magia era o maior motivador da arte rupestre. Isto, pelo menos, é o que defende a
maioria dos estudiosos do assunto:

É evidente que alguns destes caçadores transformados em artistas, têm


prazer em representar estes animais. Mas na origem estas obras, ainda que
medíocres, tinham uma finalidade precisa, um motivo profundo: muito mais
do que desenhos e pinturas, significava criar o próprio animal, fazer um
gesto útil, vital, de magia criadora. Assim nasce um rito. (NOUGIER, 1979,
p. 30).

Ao desenhar um animal na parede rochosa, o homem primitivo acreditava adquirir


poder sobre ele. Segundo suas crenças, o desenho não era apenas uma projeção, mas sim, o
próprio animal. Ostrower (1983, p. 302), diz que naquela época, a magia não era mera
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superstição. Segundo ela, que teme ser mal interpretada por outros pesquisadores, a magia era
a ciência da época:

Reunia os conhecimentos acessíveis ao homem, o resumo de experiências


coletivas e possíveis interpretações de fenômenos naturais. Instrumento de
luta pela sobrevivência, diante de um mundo totalmente incompreensível e
incontrolável, a magia consistia sobretudo em crenças e práticas baseadas no
fator da imitação para controlar um fenômeno ou apoderar-se de um objeto,
no caso o animal. (OSTROWER, 1983, p. 302).

Além da magia ligada à caça, descrita acima, existe também a hipótese que liga as
pinturas a uma espécie de pedido de desculpas ao animal. O homem pré-histórico não se
sentia destacado da natureza. Portanto, não se considerava superior a nenhum animal. Matava-
os apenas para garantir a sobrevivência sua e de sua prole. O homem se identificava com o
animal e o considerava um oponente digno e poderoso. É possível que ao se alimentar de sua
carne, quisesse transferir as qualidades de força e coragem do animal para si mesmo. Segundo
Ostrower (1983, p. 305), estes homens primitivos chegaram a imaginar que em tempos muito
remotos, certos animais tivessem sido seus próprios antepassados e, “ainda hoje se sabe de
tribos que se presumem descendentes de cavalos, de leões ou de bisontes”.

Para os artistas pré-históricos não deve ter sido difícil considerar a rocha como suporte
ideal para as suas pinturas. Como sabemos, não havia ainda tecnologia para confeccionar telas
de tecido. Portanto, depois de escolher o local, faltava agora o principal: as tintas ou
pigmentos. As pinturas descobertas até hoje utilizavam principalmente o branco, preto e o
vermelho. Tudo era retirado da natureza. Eram utilizados desde pigmentos naturais como o
urucum e até mesmo sangue. Misturavam também cera de abelha, gema de ovos, excrementos
animais e água. Do óxido de ferro poderiam retirar as cores vermelho e ocre. O preto era
elaborado a partir do manganês ou da cinza da queima de material orgânico.

2.2. QUESTÃO DE ESTILO

Provavelmente os artistas do paleolítico, apesar de conferirem importância às suas


obras, não tinham noção da dimensão estilística destas pinturas. Isso não quer dizer que não
tivessem estilo, até porque como afirma Ostrower (1983, p. 294), “...o estilo de uma obra
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sempre corresponde a uma visão de vida – visão pessoal ou, mais amplamente, visão cultural
de determinada sociedade num determinado momento histórico”. Ou seja, o cotidiano
simples que marcava suas vidas, determinava suas obras. Mas o que é estilo afinal?
Primeiramente, convém esclarecer que estilo não se caracteriza apenas artisticamente. O estilo
deve ser visto como um princípio normativo do fazer em geral, “uma vez que todo ato se
origina em valores que, conscientemente ou não, o indivíduo tem para conduzir sua vida,
resulta que qualquer atividade – de qualquer pessoa e em qualquer campo – representa, no
fundo uma questão de estilo.” (OSTROWER, 1983 p. 295).

Para facilitar as pesquisas, é comum se dividir as pinturas de acordo com suas


características. Pesquisadores do FUMDHAM, que investiga a vida dos homens pré-histórico
na Serra da Capivara – PI estudam as tradições Nordeste e Agreste. Segundo eles, “para cada
tradição é possível distinguir-se diferentes estilos que são definidos a partir de
particularidades que se manifestam no plano da técnica de manufatura e pelas características
da apresentação gráfica da temática.” (PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA,
1998, p. 62). Mesmo estando localizadas na mesma região, as pinturas dessas tradições
apresentam muitas diferenças entre si. A primeira, apesar de ser mais antiga, apresenta um
aprimoramento técnico superior à segunda.

Muito embora os desenhos das cavernas representem as primeiras e mais


antigas manifestações artísticas (milhares de anos antes mesmo do começo
da arte egípcia, chinesa e hindu), já nos encontramos face a obras magistrais.
Nelas, não há nada de primário ou de arte “primitiva” – por mais primitivas
que se possam considerar as formas sociais em que então vivia a
humanidade (tomando como parâmetro seu desenvolvimento posterior).
(OSTROWER, 1983, p. 298).

Um aspecto que intriga os pesquisadores é a presença de diferentes estilos num mesmo


sítio arqueológico. Poderiam dois povos distintos, com habilidades gráficas, terem vivido ali
em épocas diferentes, ou um as diversas gerações de uma etnia desenvolveram outras técnicas
de manipular pigmentos. Levando-se em consideração que é impossível nominar os autores
das pinturas rupestres, as duas teorias são possíveis.
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2.3. PINTURAS FAMOSAS

Na Europa estão localizadas as pinturas rupestres mais famosas do mundo. No vale do


Rio Ardèche, na França, existem cerca de 20 grutas com pinturas. Porém, até a descoberta das
pinturas da gruta de Chauvet, em 1994, sua importância, para os estudiosos, estava bem
distante de Lascaux, também na França, e Altamira, na Espanha. A princípio, julgando ser as
pinturas de Chauvet mais recentes, os pesquisadores especularam que a arte rupestre tivesse
evoluído por fases. Jean Clottes, diretor da equipe de investigação da arte de Chauvet, disse à
versão eletrônica da National Geographic Magazine, edição portuguesa, que, “atendendo ao
sombreado subtil, ao engenhoso uso da perspectiva e à elegância das linhas, as obras de arte
de Chauvet encontravam-se sem dúvida no topo da evolução”.

Entretanto, estas teorias não se sustentaram. Após as datações pelo método do carbono
14, uma surpresa aguardava os pesquisadores, como o próprio Clottes, descreve no mesmo
texto para a National Geographic Magazine: “com quase o dobro da idade das descobertas nas
grutas mais famosas, as imagens de Chauvet representavam não só o apogeu da arte pré-
histórica, mas também o seu início”. Enquanto Lascaux tem cerca de vinte mil anos, Chauvet
apresenta registros que variam entre trinta mil e quinhentos e trinta e dois mil anos. Outro
ponto interessante, é a constatação de que cerca de seis mil anos mais tarde, outros homens
tenham visitado a gruta. Porém, Chauvet nunca foi habitada. Por isso, existem muitas
suposições sobre o significado das pinturas. As mais difundidas dizem respeito à práticas de
magia, intimamente ligada a caça e a fertilidade. Elas vão desde o xamanismo, quando um
xamã em transe executaria a arte rupestre, até a tentativa marcação das estações do ano,
através da representação dos pêlos dos animais. Outros, defendem a manifestação da arte pela
arte, e não seriam mais do que ornamentações das cavernas.

As pinturas e gravuras que predominam são representações de animais, como na


maioria das grutas européias do paleolítico. Como descreve Janson (1993, p.40), o que
impressiona e, mais do que isso, intriga, é que pela capacidade de retratar tão realisticamente
os animais, supõe-se que os artistas pré-históricos pudessem também fazer isso com auto-
retratos. No entanto, são poucas as pinturas representando humanos. E, os que são
encontrados, são meros esboços ou partes do corpo, como cabeças, mãos, pênis ou vulvas.
Isso estabelece que escolhiam o que queriam desenhar, por qualquer que seja o motivo.
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Dentre os animais mais freqüentemente retratados estão os leões, com setenta e quatro
desenhos, os mamutes com sessenta e seis e os rinocerontes com sessenta e cinco
representações.

Em Altamira, no norte da Espanha, se encontra uma das figuras mais impressionantes


registradas na pré-história: o Bisão Ferido (15000-10000 a.C.)

É uma imagem viva e realista, assombrosa pela agudeza da observação, pelo


traçado firme e vigoroso, pêlos matizes sutis que dão volume e relevo às
formas ou, talvez ainda mais pela força e dignidade da fera agonizante.
(JANSON 1993, p. 40)

Na região de Dordogne na França, em 1940, um grupo de adolescentes descobriu as


pinturas da gruta de Lascaux. Janson (1993, p. 40), ao comparar Lascaux com Altamira,
descreve suas pinturas como “igualmente impressionantes, embora menos perfeitos nos
detalhes, são os bisões, veados, cavalos e touros (...), correndo ao longo das paredes em
selvagem profusão, alguns apenas esboçados em preto, outros inteiramente pintados de cores
vivas, mas todos com um misterioso sentido de vida.” Lascaux é inclusive conhecida nos
meios científicos especializados, como a Capela Sistina da Pré-história. Uma alusão à
magnífica obra do pintor Michelangelo, considerado um dos maiores pintores de todos os
tempos.

2.4. O BRASIL TEM (PRÉ) HISTÓRIA PARA MOSTRAR

O Brasil tem uma das maiores concentrações de arte rupestre do mundo. As pinturas
se espalham de norte a sul do país. Da Amazônia ao Rio Grande do Sul são descritos sítios
arqueológicos:
Um sítio arqueológico é um local no qual os homens que viveram antes do
início de nossa civilização deixaram vestígios de suas atividades: uma
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ferramenta de pedra lascada, uma fogueira na qual assaram sua comida, uma
pintura, uma sepultura, a simples marca de seus passos. (PARQUE
NACIONAL SERRA DA CAPIVARA, 1998, p. 48)

Nosso trabalho aborda principalmente as ocorrências no Parque Nacional da Serra da


Capivara, no estado do Piauí. No parque existem cerca de 60 mil pinturas (ou gravuras).
Atualmente são cadastrados mais de 700 sítios, sendo que mais de 600 apresentam pinturas. A
Unesco o declarou Patrimônio Cultural da Humanidade em 1991.

Os sítios com manifestações pictóricas encontradas no parque pertencem


principalmente às tradições Nordeste e Agreste. A primeira tem cerca de 12.000 anos e se
caracteriza principalmente por grafismos identificáveis, como figuras humanas, animais,
plantas e objetos, além dos chamados grafismos puros, “que são as unidades de um código do
qual somente os autores possuíam a chave”. (PARQUE NACIONAL SERRA DA
CAPIVARA, 1998, p. 48). Quatro temas predominam nos grafismos da tradição Nordeste: a
dança, as práticas sexuais, caça e manifestações rituais em torno de uma árvore. Os desenhos
desta tradição têm uma boa técnica gráfica, com contornos completamente fechados. As
figuras humanas geralmente são menores que as representações animais. Pesquisadores do
Fumdham, que atuam no Parque, afirmam que as variações cenográficas e o aperfeiçoamento
das técnicas presentes nas pinturas atestam a evolução cultural das populações da região,
destacando que “observa-se uma evolução dos efeitos gráficos e uma adaptação dos recursos e
procedimentos utilizados” (MUSEU DO HOMEM AMERICANO, 2001, p. 19).

A tradição Agreste se inicia há cerca de 10.000 anos. As pinturas são geralmente


maiores que as pertencentes à tradição Nordeste. Sua principal característica é a
predominância das figuras humanas. Já as figuras de animais são raras. As cenas retratadas de
forma estática são maioria. Movimentos são perceptíveis apenas em cenas de caçadas. Os
grafismos puros são mais abundantes que na tradição Nordeste. Os desenhos apresentam
péssima qualidade, sendo difícil até o reconhecimento de algumas espécies animais. Sua
distribuição territorial é bem semelhante à da tradição Nordeste, mas, ao contrário desta
última, não é originária da área do parque.

Além da Serra da Capivara, podem-se destacar também os sítios encontrados no Pará.


São 111 lugares que contêm gravuras ou pinturas, e ás vezes ambas num mesmo sítio. São
representações bastante peculiares, com muito pouca semelhança com as pinturas e gravuras
21

encontradas no resto do país. As cenas não são identificáveis. Normalmente trata-se de figuras
estáticas, com predominância de figuras humanas, e, como acontece na Tradição Agreste, a
representação animal é rara. Para Edithe Pereira, pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, “as
gravuras rupestres dessa região se assemelham mais às que encontramos nos demais países
amazônicos”.

As pinturas da Gruta da Pedra Pintada, no Pará, datadas em 1990, têm idade estimada
em 11.200 anos. A datação dos sítios brasileiros é motivo de muita polêmica. Utilizando os
métodos de termoluminescência e carbono 14, a equipe da pesquisadora Niède Guidon, do
Fumdham, em entrevista à Revista Pesquisa, de novembro de 2004, diz ter encontrado
pinturas feitas há 48 mil anos. A arqueologia tradicional sustenta que o homem chegou a
América há cerca de 12 mil anos. Guidon diz que “os europeus aceitam estas datações, mas
alguns norte-americanos não”.

Dúvidas à parte, as pinturas rupestres carregam em si mais do que simplesmente o


esforço de alguns artistas, “os desenhos configuram uma amostragem da história da pintura,
em que são representados os temas principais que interessavam às sociedades da época. Falam
dos valores, ritos e mitos que aparecem confundidos em uma única manifestação cultural.”
(MUSEU DO HOMEM AMERICANO, 2001, p. 17). Ou seja, estes desenhos são prova viva
da necessidade primitiva que temos de deixar marcada nossa existência. É intrínseco da
consciência humana documentar nossa história:

A possibilidade de representar graficamente o mundo sensível é resultado,


em parte, da capacidade da espécie humana de tomar distância em relação a
ela mesma, posicionar-se em relação aos outros e ter, como consequência do
processo de evolução, uma consciência reflexiva. Estes componentes
formam a capacidade da espécie, e suas potencialidades desenvolver-se-ão
no processo de construção da cultura. (PESSIS, 2003, p. 56).

Pode-se deduzir daí que as pinturas rupestres tenham desencadeado várias


ramificações criativas na humanidade. Suas representações da realidade cotidiana dos artistas
pré-históricos podem ser comparadas com inúmeras formas atuais de registrar nosso modus
vivendi. A escrita como conhecemos hoje, por exemplo, se desenvolveu a partir de uma
escrita pictográfica. Outra forma bastante usual em nossos dias como suporte documental, é o
cinema. Ora, o cinema tem como sustentação o fotograma estático, que ao ser projetado em
um intervalo de tempo, passa a ilusão de movimento. Do mesmo modo, alguns artistas do
22

paleolítico superior produziram suas pinturas de tal forma que o observador, ao se


movimentar diante delas, tem a nítida impressão de sentir a cena se movendo. Esta feliz
coincidência me fez estudar mais profundamente esta ligação entre as pinturas rupestres e o
cinema.
3. CINEMA: DA ARTE À ILUSÃO

Antes de abordar diretamente a ligação cinema x pinturas rupestres proposta no


capítulo anterior, considero pertinente discorrer, mesmo que rapidamente, sobre as origens e a
história técnica do cinema. Estabelecer uma data para configurar como início do cinema causa
controvérsia entre os pesquisadores:

Quanto mais os historiadores se afundam na história do cinema, na tentativa


de desenterrar o primeiro ancestral, mais eles são remetidos para trás, até os
mitos e ritos dos primórdios. Qualquer marco cronológico que possam eleger
como inaugural será sempre arbitrário, pois o desejo e a procura do cinema
são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos. (MACHADO 1997,
p. 14)

Quando se buscam informações em textos especializados sobre o início do cinema,


uma técnica parece ser unanimidade: o teatro de sombras. O teatro de sombras surgiu na
China por volta de 3.000 a.C. Eram projetados, sobre um fundo qualquer, figuras humanas,
animais ou objetos. A ação, narrada pelo operador, girava em torno de príncipes, guerreiros e
dragões. Uma evidência de que a temática do cinema primitivo já estaria ligada à fantasia, aos
mitos espetaculares. Por alguns instantes, as imagens trazem o incrível, confundido em
sombras reais, para um mundo palpável.

Arlindo Machado, em seu livro Pré-cinemas & pós-cinemas, relata que no século XV,
um dos maiores gênios de toda a história da humanidade, o italiano Leonardo da Vinci,
descreveu o que mais tarde, no século XVI, o físico napolitano Giambattista Della Porta
desenvolveria com o nome de câmara escura. Uma caixa com um orifício coberto com uma
24

lente. Os raios refletidos pelos objetos exteriores, reproduzem a imagem invertida no fundo da
caixa. Na metade do século XVII, o alemão Athanasius Kirchner, utiliza um processo inverso
ao da câmara escura. Este invento é chamado de lanterna mágica. As imagens desenhadas em
uma lâmina de vidro, são projetadas pela iluminação da luz de uma vela.

Estes são alguns exemplos de como o homem tem necessidade de representação de sua
cotidianidade, seja de forma imaginária ou real. Talvez possamos encarar isso como uma
forma de demonstrar sua força, “não é somente um sonho da humanidade que o cinema
realiza, mas também uma série de velhas realidades empíricas e de velhas técnicas de
representação que ele perpetua” (COMOLLI 1975, p.45 apud MACHADO 1997, p. 14). A
partir do século XIX, baseado no fenômeno na persistência retiniana, o físico belga Joseph
Plateau construiu, em 1832, o fenaquisticópio. Basicamente, um disco com várias imagens, do
mesmo desenho, em posições diferentes. Ao rodar o disco, em uma sucessão de dez imagens
por segundo, o desenho parecia se mover. Entretanto, o experimento mostrou-se equivocado,
pois as imagens se sobrepunham na retina, misturando-as:

Mas, por um paradoxo próprio da cinematografia, se o fenômeno da


persistência da retina não diz respeito ao movimento cinemático, ele é
todavia uma das causas diretas de sua invenção, pois foi graças às
indagações (equivocadas) em torno desse fenômeno que nasceram as
máquinas de análise/síntese do movimento. (MACHADO 1997, p. 20/21).

Segundo Machado (1997, p.66), o fisiologista francês Étienne-Jules Marey, com a


intenção toda própria de analisar e decompor o movimento, inventa em 1878 o fuzil
fotográfico. Na verdade, um tambor forrado internamente com uma chapa fotográfica
circular. Para basear seus estudos, toma como modelo a experiência do inglês Edward
Muybridge, que em 1872 instalou 24 câmeras fotográficas ao longo de uma pista de corridas
de cavalos. Os obturadores das máquinas estavam ligados a fios que atravessavam a pista e
eram rompidos com a passagem do animal. Assim, os obturadores eram disparados
sucessivamente, registrando o movimento do cavalo pose a pose. Em 1887, o mesmo Marey
desenvolve a cronofotografia. Diferentemente das experiências de Muybridge, o francês
Marey utiliza uma mesma placa sensível para registrar as diversas sucessões de imagens,
sobrepondo-as. Visto como uma grande revolução, “... o método de Marey teve um impacto
fulminante na aventura da arte moderna e ensinou toda uma geração de artistas a reinventar a
visão” (MACHADO 1997, p. 67).
25

A história técnica do cinema tem no norte-americano Thomas Alva Edison outro


grande colaborador. Edison, que dentre outros inventos também inventou a lâmpada
incandescente, desenvolveu o filme perfurado. Em 1890, roda alguns filmes curtos em seu
estúdio. Um ano depois, inventa o cinetoscópio, onde roda os filmes feitos anteriormente. O
inconveniente é que apenas um espectador por vez pode assistir ao filme no interior da
máquina. Em 1895, finalmente ocorre a chamada primeira exibição pública da história do
cinema. Os irmãos franceses Auguste e Louis Lumière, filhos de um fotógrafo e dono de uma
indústria de filmes e papéis fotográficos, aperfeiçoam o cinetoscópio e idealizam o
cinematógrafo. O aparelho é movido por uma manivela e utiliza negativos perfurados,
substituindo a utilização de várias máquinas fotográficas possibilitando ainda a projeção das
imagens para o público. Então, em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café, em paris, são
exibidos alguns filmes rudimentares. George Méliès tentou, em vão, adquirir um dos
cinematógrafos dos irmãos Lumière. Ricardo Costa, em artigo publicado no Jornal da
Educação de junho de 1982, e encontrado no site www.bocc.ubi.pt, assim define a
contribuição de Miélès:

Até 1914 Miélès realiza centenas de filmes cuja eficácia se fundamenta na


ilusão e fantasia, cria imagens alucinantes e chega a fabricar actualidades
trucadas. Constrói hábil e cuidadosamente cenários que lhe permitem criar
no filme a ilusão da realidade. (COSTA, 1982)

Então, Miélès desenvolveu seu próprio cinematógrafo, baseado no modelo existente.


Foi a partir daí que o cinema se modificou.

3.1 A IMAGINAÇÃO ANTES DA TÉCNICA

Imaginar é algo comum na existência humana. Isto acontece por que, segundo Novaes
(1990, p.12) “sabemos que os desejos alimentam-se de imagens(...)”, sendo possível ao
homem, através da relação desejo-imaginação, resgatar acontecimentos antigos ou projetar
seus sonhos. Bachelard (apud NOVAES, 1990, p.13) afirma que “da imaginação produtora
devem ser deduzidas todas as faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo
exterior.” Então, como teria existido o cinema se não houvesse antes a imaginação? Platão, há
26

cerca de dois mil anos, descreve (ou imagina), o que podemos definir como a primeira sessão
de cinema. Em A alegoria da caverna, como ficou conhecido o diálogo atribuído a Sócrates
com o discípulo Glauco, Platão transporta, não só o discípulo, mas também o leitor mais
atento a uma caverna onde o que se destingue são sombras projetadas pela luz do fogo.
Porém, a projeção é mais do que isso:

Ela inaugura também, na história do pensamento ocidental, o horror à razão


dos sentidos, o escárnio das funções do prazer, a repulsa a todas as
construções gratuitas do imaginário, a negação, enfim, de tudo isso que, dois
milênios depois, seria a substância de uma arte que, paradoxalmente, o
próprio Platão inventava. (MACHADO 1997, p. 28).

Talvez, Platão estivesse apenas tentando empurrar seu discípulo para fora dessa
caverna. Mostrando-lhe como a fuga da ignorância poderia ser benéfica para a conquista de
sua liberdade. O que chama a atenção, entretanto, é a descrição da máquina projetora feita
por Platão:

Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o
fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um
pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e
os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que
lhes exibem. (PLATÃO 427-348 A.C., p. 262)

Esta referência ao fogo, ou seja, a uma luz artificial que lhes projeta sombras, ou
imagens tidas como a única realidade existente, bem pode ser comparada com a luz do
projetor. Durante uma sessão de cinema, tudo o que o espectador considera real está projetado
em uma tela. Assim como os cativos da caverna de Platão, que por não conhecerem o
exterior, aceitam as sombras e as amarras como sendo a verdadeira sabedoria. Ao sair da sala
de projeção o espectador se depara com as imagens do mundo real, tem sua própria vida, seu
sentido para a alegoria. O cativo, que sai da caverna, se assusta ou se incomoda com a luz
natural, segundo Platão, se encontra com o sol e, “refletindo depois sobre a natureza deste
astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo
visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna”.
Esta caverna que nada mais é senão o mundo visível iluminado, não pelo fogo, mas pela luz
do sol, e, este cativo que se liberta é a alma que se eleva. Uma bela metáfora, semelhante às
diversas utilizadas pelo cinema para exprimir suas imagens.
27

3.2. LUZ, CAMÊRA E AÇÃO...

Algumas pessoas têm o costume de dizer, que uma imagem vale mais que mil
palavras. Provavelmente será difícil estabelecer uma autoria para este dito popular. Podemos
perceber que, apesar da simplicidade desta afirmação, é inerente ao ser humano conferir
importância ao apelo visual, independente de compreender a imagem. Na cultura ocidental,
principalmente na fundamentada sobre ensinamentos cristãos, provavelmente a primeira
menção recebida sobre a imagem é encontrada na Bíblia, no livro do Gênesis, capítulo 1,
versículo 26: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, e
segundo Joly (1996, p. 16), “do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que nós mesmos somos
imagens, seres que se parecem com o Belo, o Bem e o Sagrado”. Mesmo sem existir qualquer
registro imagético de Deus criando o homem, todos temos nossa própria criação mental deste
cenário. E, muito dificilmente duas pessoas constróem a mesma imagem mental deste fato:

A imagem mental corresponde à impressão que temos quando, por exemplo,


lemos ou ouvimos a descrição de um lugar, de vê-lo quase como se
estivéssemos lá. Uma representação mental é elaborada de maneira quase
alucinatória, e parece tomar emprestadas suas características da visão. Vê-se.
(JOLY 1996, p. 19)

Depois de milênios tentando domar a imagem, o homem enfim consegue, com o


desenvolvimento de aparatos técnicos. Agora, o cinema conseguia reproduzir, em forma de
imagens, sua própria existência. Mas isto não significa que esta novidade tenha se tornado
algo meramente mecânico:

O cinema é, antes de mais nada, uma arte, um espetáculo artístico. É também


uma linguagem estética, poética ou musical – com uma sintaxe e um estilo; é
uma escrita figurativa, e ainda uma leitura, um meio de comunicar
pensamentos, veicular idéias e exprimir sentimentos. (...) Fazer um filme é
organizar uma série de elementos espetaculares a fim de proporcionar uma
visão estética, objetiva, subjetiva ou poética do mundo. (BETTON 1983, p.
01).

E este mundo, que o cinema busca representar, está intimamente ligado com a visão do
cineasta. Produzir um filme significa muito mais que reunir um amontoado de imagens. Ao
contrário, envolve criatividade e intenção. Desde os primórdios, mesmo ao utilizar a mais
rudimentar tecnologia, os pioneiros e destemidos exploradores da imagem devem ter tido
28

alguma motivação para optar por determinado tema em suas produções. Como exposto
anteriormente, os artistas do teatro de sombras chinês tinham como tema principal o
fantástico. Muito provavelmente, isso se deve ao fato de sua cultura manter vivas algumas
lendas com fundamentadas neste aspecto. Os Irmãos Lumière, ao inaugurar a história do
cinema, escolheram temas bem comuns às pessoas da época:

[...] A saída dos operários das usinas Lumière e A chegada do trem na


estação Ciotat que em 1895 deram início à “aventurosa história do cinema”,
podem ser preciosos para o historiador não apenas por aquilo que
documentam (uma estação, o ingresso de uma fábrica, comportamentos e
vestuário dos operários etc.), mas sobretudo porque um trem, uma fábrica e
operários se tornaram objeto de espetáculo junto com outros fatos que,
centrados sobre as “fascinação do poder” como um cortejo real ou uma
coroação, tinham já por si próprios um alto coeficiente de espetaculosidade.
(COSTA 2003, p. 49)

Esta liberdade da escolha é o que torna o cinema tão poderoso. Nos primeiros anos,
envolto ainda em uma aura de novidade, o cinema se viu dividido entre reproduzir o real e
criar falsas realidades. Costa (2003, p. 49) relata que alguns pioneiros, como G. Demenij eram
contra a preparação das cenas. Para ele, as cenas deveriam ser procuradas ao natural. Já o
americano Edward H. Amet utilizou miniaturas para filmar no jardim de sua casa o naufrágio
da frota do general Cervera, na guerra hispano-americana. Embora baseado em um fato real,
as condições em que foi produzido recriou de forma ficcional um acontecimento histórico.
Para Baudrillard (apud COSTA 2003, p. 50), “o real não é apenas aquilo que pode ser
reproduzido, mas tudo aquilo que já é habitualmente reproduzido”. Não é exagerado ponderar,
então, que era muito difícil aos espectadores da época distinguir entre as imagens reais das
falsas, ou a ficção. William R. Meirelles, professor adjunto do Departamento de História da
Universidade Estadual de Londrina, diz que “a ficção é um fenômeno mental, ou seja,
expressão do imaginário humano e participa expressivamente nas instâncias das relações no
interior de uma formação social.” O cinema projeta, nestas imagens, justamente a sustentação
do imaginário individual do espectador, as relações com o seu mundo e a diferenciação dos
seus próprios interesses.

Por ser utilizada como forma de linguagem, é necessário que a imagem tenha um
significado próprio, sem estar presa ao verbal. Não que seja absolutamente independente,
mas, dependendo do aspecto abordado, a imagem pode se expressar sem precisar tomar
29

emprestada a voz. Até porque, nos seus primórdios, o cinema era mudo. Só para ilustrar,
imagine-se assistindo a um filme rodado com 16 fotogramas por segundo, (bem mais lento do
que os 24 atuais) e com uma significação bem própria. Por mais que se ache estranho, é
necessário respeitar estas particularidades. Epstein (apud MARIE 1995, p. 162), diz que “o
cinema permanece, antes de mais nada, uma arte da imagem e tudo o que não é ela (palavras,
escrita, ruídos, música) deve aceitar sua função prioritária.” Segundo Betton (1983, p. 38), “o
som destina-se a facilitar o entendimento da narrativa, a aumentar a capacidade de expressão
do filme e a criar uma determinada atmosfera. Ele completa e reforça a imagem.” Em alguns
gêneros, como documentário, a combinação do som com a imagem é muito freqüente, sendo
quase uma regra, visto o caráter didático de sua narrativa. Porém, se não houver um equilíbrio
na utilização desta combinação, a percepção da mensagem pelo espectador pode se perder.

Há muito o cinema deixou de ser apenas um bom meio de entretenimento. Ao


contrário do que imaginavam os irmãos Lumière, idealizadores do cinematógrafo, para quem
esta invenção tinha apenas interesse científico, sem qualquer apelo comercial, ele se revelou
um grande disseminador de ideologias. Para Betton (1983, p. 84), normalmente o autor se
conta em suas realizações, uma espécie de autobiografia. Ele afirma que “as idéias de um
autor coincidem com as de suas personagens ou com a apresentação de sua obra”. E, apesar
de não ser exclusividade, já que em outros meios de comunicação social também prevalece a
ideologia, o cinema, em uma visão bem particular, se sobressai ao oferecer a imagem ao
mesmo tempo em que solicita a imaginação do espectador para completar seu quadro. Alie-se
a isso, como afirma Costa (2003, p. 15), que “hoje o cinema é visto sobretudo na televisão”.
Apesar dos problemas técnicos advindos desta exibição, como imagens reduzidas e aceleradas
e margens cortadas, “(...), se pode ver muito mais cinema do que no passado”. E,
sabidamente, a televisão é um dos meios de comunicação mais utilizados pela sociedade.
Somente no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 90 %
(noventa por cento) dos domicílios têm pelo menos um televisor.
30

3.3 A IMAGEM COMUNICADORA

Por sua forma peculiar de registrar, a câmara cinematográfica com sua lente capta tudo
o que está ao seu alcance. E este não é necessariamente o mesmo limite imposto ao olho do
autor. Uma imagem feita hoje, nas ruas de uma cidade qualquer, pode não ter valor algum aos
olhos de um espectador contemporâneo. Mas se esta imagem tivesse sido feita em 1910, por
exemplo, teria grande valor histórico. E esta capacidade de manter viva a memória a história
de modo algum será desprezada pelo homem. O cinema, do ponto de vista de sua história
técnica, nasceu no alvorecer do século XX, um dos períodos de maior importância do ponto
de vista do desenvolvimento tecnológico humano. As transformações ocorridas nestes pouco
mais de cem anos, são muito significativas. Poderíamos dizer que ocorreu uma revolução no
fazer cinematográfico. Do que seria apenas uma aventura científica, nasceu um simulador de
situações fantásticas, um hábil armazenador da história e um poderoso semeador de idéias.
Moles (1973, p.179) diz que “o cinema é um sistema de comunicação, de difusão, visual,
icônico, através do espaço e do tempo, entre os seres humanos.” Dentre milhares de
espécimes animais, coube ao homem desenvolver em torno de sua figura uma cadeia de
aspectos peculiares que o tornaram ímpar. Ser criatura comunicativa é um deles. Aliás, isso
provavelmente deve ter influenciado de maneira decisiva na evolução das relações humanas.

Talvez possa parecer prepotência, mas creio não ser de todo absurdo dizer que a
necessidade contribuiu muito para o surgimento da comunicação humana. Mas, muito mais do
que um bate papo na hora do jantar, garantir a sobrevivência, deve ter obrigado o homem
primitivo a desenvolver códigos que pudessem colaborar em estratégias de caça, por exemplo.
Então, desde os primeiros grunhidos até o atual estágio tecnológico, tudo se fez em torno da
comunicação. Para existir comunicação, é necessário a utilizar-se uma linguagem. Para Sfez
(2000, p.38), durante muito tempo coube à lingüística sustentar o fenômeno comunicacional.
Isto porque a capacidade de falar distingue o homem dos outros animas:

Esse atributo, a linguagem, é essencial à definição humana. E, como o


homem vive em grupo, em sociedade, a única definição plausível que disso
nos dá Aristóteles é que esse animal é animal político, isto é, fala, troca,
comunica-se em grupo. (SFEZ, 2000, p. 38)
31

Entretanto, várias áreas científicas esboçaram, a partir de pesquisas próprias, novas


definições para a comunicação. Por exemplo, a biologia, como cita Sfez, sustenta a
comunicação entre os genes. A neurofisiologia acrescenta a comunicação entre os neurônios.
Sfez ainda sugere ser possível “pensar que estamos mergulhados num universo de
comunicação fluída, como numa esfera da qual seríamos elementos pontuais, arrastados por
um movimento de conjuntos que faríamos parte”. Roland Barthes (1973, Apud TURNER
1997, p. 51), diz que a “linguagem inclui todos aqueles sistemas dos quais se podem
selecionar e combinar elementos para comunicar”. Portanto, podemos pensar que definir
comunicação depende dos interesses de cada indivíduo. No caso do nosso tema, mesmo que o
cinema não seja considerado linguagem, a utilização do som, da imagem e do figurino, por
exemplo, originam significados que atuam como linguagens:

(...) essa idéia pode ser útil em nossa análise do cinema, e para entender seus
limites, precisamos voltar a alguns princípios bem básicos. O primeiro passo
é ver o cinema como comunicação. O segundo passo é colocar a
comunicação do cinema dentro de um sistema maior gerador de significados
– o da própria cultura. (TURNER, 1997, p. 51)

Nesse ponto, ao apropriar-se dos vários elementos ditos linguagem, o cinema passa a
comunicar, transmitir significados ao telespectador. E faz isto a partir de uma ótica toda
própria do cineasta. Assim é formado por sistemas significadores como a câmara e seu uso, a
iluminação, o som a edição e a mise-em-scène. Essa combinação de escolhas induz o
espectador a experimentar na tentativa de identificar os significados de cada cena. Isto
estabelece a comunicação entre o filme e o público. E mais do que isso, realmente desperta,
como sustenta Dudley Andrew (1984, Apud TURNER, 1997, p. 120), o desejo de ter o filme.
Para ele, nunca estaremos satisfeitos por completo, “(...) somos atirados além dos limites de
seu espaço narrativo, lá fora, na fila, à espera de que o próximo filme ilumine a tela, ilumine a
caverna da nossa psique.”

Considerando as opiniões discordantes, uma coisa é certa: o cinema se transformou em


um importante meio de comunicação, e, por isso mesmo, uma grande ferramenta de registro
da história. Isto nos permite considerar tanto os documentários, como os filmes de ficção ou
filmes baseados em fatos históricos. Em sua película, divididos em fotogramas, estão
guardados mais de 100 anos do comportamento humano. São provas vivas de nossa
32

obstinação. Uma obstinação que caracteriza o ser humano e que nos faz diferentes desde os
primórdios de nossa aventura evolutiva. Estes quadros estáticos, que somente o cinema
consegue animar, nos dão, mesmo que pela ilusão, a prova de que o homem se movimenta e
desde sempre aprendeu a pintar a sua história.
4. PINTURAS RUPESTRES: O CINEMA NA PRÉ-HISTÓRIA

Pode até parecer imprudência afirmar categoricamente que o cinema é precedido, ou


mais, derivado das pinturas realizadas na pré-história. Entretanto, durante toda a trajetória
existencial do ser humano, técnicas surgiram e desapareceram, evoluíram ou foram
descartadas. Para que esta sucessão de tentativas criadoras existisse, foi indispensável um
ponto de partida. Alguém, por necessidade ou curiosidade, imaginou e desenvolveu sua idéia.
Exemplificando, parece que a pincelada dada no paleolítico superior refletiu, milhares de
anos depois, na película do fotograma:

O que estou tentando demonstrar é que os artistas do Paleolítico tinham os


instrumentos do pintor, mas os olhos e a mente do cineasta. Nas entranhas da
terra, eles construíam imagens que parecem se mover, imagens que cortavam
para outras imagens ou dissolviam-se em outras imagens, ou ainda podiam
desaparecer e reaparecer. Numa palavra, eles já faziam cinema underground.
(WACHTEL, 1993, p.140)

Em determinado momento, os artistas primitivos despertaram para a imagem.


Respeitando suas razões, deixaram para nós um registro riquíssimo de sua ousadia e exercício
de observação:

A imagem é uma ferramenta essencial para o conhecimento e para a ação.


Os autores das pinturas rupestres, para poderem realizá-las, precisaram
previamente, observar e imaginar. Somente depois puderam registrar essas
34

formas imaginadas por meio de técnicas gráficas, utilizando a imagem como


instrumento de conhecimento. (PESSIS, 2003, p. 68).

Assim, foi imprescindível aos artistas o aprimoramento das técnicas e materiais


utilizados na atividade de registrar suas impressões. Esta particularidade humana não se
deteve no tempo. Basta lembrar o que foi dito anteriormente sobre o início da história técnica
do cinema e sua trajetória até chegar ao estágio atual.

4.1 DA IMAGEM FEZ-SE UMA FERRAMENTA COMUM

Introduzir este tópico definindo o que é imagem pode parecer a saída mais simples
para compreender a sua importância. Entretanto, como afirma Joly (1996, p.13), “o termo
imagem é tão utilizado, com tantos tipos de significação sem vínculo aparente, que parece
bem difícil dar uma definição simples dele, que recubra todos os seus empregos”. Mas, esta
variedade de significados parece não atrapalhar sua relação com o homem:

O mais impressionante é que, apesar da diversidade de significações da


palavra, consigamos compreendê-la. Compreendemos que indica algo que,
embora nem sempre remeta ao visível, toma alguns traços emprestados do
visual e, de qualquer modo, depende da produção de um sujeito: imaginária
ou concreta, a imagem passa por alguém que a produz ou reconhece. (JOLY,
1996, p. 13)

Independente da definição do termo imagem, não podemos negar a importância de sua


presença no cotidiano do homem. Evidentemente, uma imagem só é concebida se houver uma
razão, ou um espectador. Aumont (1993, p. 260), diz que “(...) a imagem se define como um
objeto produzido pela mão do homem, em um determinado dispositivo, e sempre para
transmitir ao seu espectador, sob forma simbolizada, um discurso sobre o mundo real.”
Podemos perceber que esta definição vem ao encontro de nossa proposta de trabalhar as
semelhanças entre as pinturas rupestres e o cinema. De maneira simples, é possível considerar
que, pela ligação com a magia defendida pelos maiores estudiosos da arte do paleolítico, os
autores das pinturas consideravam os deuses como seus espectadores. À eles eram criadas as
35

representações e é de se supor que os artistas imaginavam que os deuses compreenderiam a


razão destas imagens. Não difere muito a visão do cineasta, que utiliza em suas produções
elementos conhecidos ou, pelo menos, familiares ao público como forma de criar uma
identificação com espectador:

A reflexão sobre a impressão de realidade no cinema, considerada em todas


as suas ramificações (determinações tecnológicas, fisiológicas e psíquicas
em relação a um sistema de representação e sua ideologia subjacente)
permanece, ainda hoje, atual, na medida em que, por um lado, permite
desmontar a idéia sempre compartilhada de uma transparência e de uma
neutralidade do cinema em relação à realidade e, por outro, permanece
fundamental para captar o funcionamento e as regulagens da indústria
cinematográfica, concebida como uma máquina social de representação.
(VERNET, 1995, P. 152).

Podemos dizer que ato de criar imagens através dos tempos modificou nossa forma de
ver o mundo. De uma aventura que remonta aos primórdios da humanidade, deu-se o
aperfeiçoamento tecnológico atual, “por toda parte no mundo o homem deixou vestígios de
suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos, nas pedras, dos tempos mais remotos
do paleolítico à época moderna”. (GELB, 1973 Apud JOLY, 1996, p.17). No que diz respeito
ao tema de nosso estudo, podemos destacar uma coincidência entre dois termos utilizados. O
cinema imprime a imagem no fotograma. A representação da arte rupestre, enquanto desenho
e pintura, é conhecida como petrograma. Digamos, de maneira simples, que a rocha tenha
sido a primeira película empregada para fixar imagens, mantendo-as em projeção permanente.

Mesmo que, provavelmente, desconhecessem por quanto tempo estas pinturas iriam
durar, os artistas do paleolítico registraram através da imagem, cenas cotidianas. Assim como
os cineastas o fazem. Cada filme rodado ou cena registrada na pedra se torna uma obra, e,
sendo assim, carrega consigo algo particular:

Registrar graficamente uma forma de apresentação é mostrar uma situação,


um fato tal como o realizador o vê e como deseja que seja visto pelos outros.
O autor da obra age sobre a realidade representada, manipula-a e arranja-a, o
que não implica que seja um comportamento calculado. Mesmo sendo
espontâneo, reflete uma intencionalidade difusa. (PESSIS, 2003, p. 69)
36

A evolução técnica do cinema, considerada pelos estudiosos, teve lugar em uma


parcela temporal muito pequena da história humana, começando por volta do século XV.
Embora dispondo de meios de comunicação precários na época, novas descobertas na área
eram bem mais fáceis de serem alardeadas do que há 32.000 anos, quando oficialmente
surgiram as primeiras pinturas rupestres. Mesmo assim, como afirma Pessis (2003, p. 53), “os
indícios descobertos sugerem que o início dessa atividade gráfica ocorre, aproximadamente,
na mesma época, em todo o mundo.” Aparentemente, de tempos em tempos, há na trajetória
evolutiva do homem o despertar de algo como uma fixação pelos elementos imagéticos.

Para Pessis (2003, p. 68), “a espécie humana parece ser a única que demonstrou
capacidade de criar entidades simbólicas e materiais com a função de conservar a memória
cultural. Escrita e imagem são produtos especificamente humanos.” Esta característica
possibilitou o acumulo de conteúdos culturais, fundamentais para o desenvolvimento
intelectual da humanidade. Podemos concluir que, incluídos neste desenvolvimento
intelectual, estão as atividades cotidianas do ser humano, particulares a cada um. Apenas para
exemplificar, no caso dos povos primitivos, alguns indivíduos desenvolveram artefatos para
caça e para a guerra, outros viraram pintores. São atividades que, obviamente com tecnologias
bem distintas, atravessaram o tempo e mantêm-se vivas até hoje.

4.2 ARTE QUE IRROMPE NO TEMPO

No primeiro capítulo foi exposto que existem algumas divergências entre os


pesquisadores com relação à arte rupestre. Entretanto, depois das leituras feitas, se não
encarasse as pinturas como arte, seria contraditório compará-las com o cinema. Para Bayer
(1978, p. 15), a pré-história representa o despertar da estética, já que “a criação duma
qualquer obra de arte supõe uma certa direcção das energias do homem, que corresponde
muito exactamente ao que nós pedimos à estética.” Nesta época, o homem busca aperfeiçoar
seus utensílios, com uma preocupação voltada para uma criação mais harmoniosa destas
peças:
37

Acresce que, se a Pré-história não possui autores estéticos, os testemunhos


materiais que os nossos antepassados distantes nos deixaram constituem, em
certa medida, textos, e a sua análise não nos diz apenas que o Homo Sapiens
pré-histórico tinha um inegável sentido das formas, dos volumes e das cores,
mas também que os artistas obedeciam a certas normas ditadas por tal ou tal
concepção das representações animais, humanas e simbólicas. Isto com vista
a fins práticos, sem dúvida, mas talvez também para ilustrar qualquer ideia
do belo. (BAYER, 1978, P.15)

A sétima arte. Assim é conhecido o cinema. Segundo Stefano Stanzione, em artigo


publicado no site italymedia, esta denominação foi dada pelo estudioso italiano Ricciotto
Canuto em 1912. Janson (1993, p.12), diz que “a arte é um objeto estético, feito para ser visto
e apreciado pelo seu valor intrínseco. As suas características especiais fazem da arte um
objeto à parte, por isso mesmo muitas vezes colocado à parte, longe da vida cotidiana, em
museus, igrejas ou cavernas”.

O cinema apresenta várias abordagens possíveis. Partindo do aspecto que neste


momento nos interessa, veremos a abordagem estética do cinema. Ela estuda o cinema
enquanto arte. Como expõe Aumont (1995, p.15), “o estudo dos filmes como mensagens
artísticas”. Podemos incluir aí, aspectos ligados à técnica de produção das obras
cinematográficas. Toda imagem, incluindo também o que vemos através de nossa visão, está
delimitada em um quadro. No cinema, o que delimita o quadro é o sistema de captação da
câmera. Logicamente isto é definido pelo operador ou pelo diretor. Esta escolha é o que dá
vida à composição da imagem. Aumont (1995, p. 19) faz uma referência entre o cinema e a
pintura, no que diz respeito aos limites impostos à imagem, que, de certa forma, tem muito a
ver com nosso trabalho. Ele diz que “(...) conservemos a existência de um quadro, análogo,
em sua função, aos quadros de pintura (dos quais vem seu nome) e que se define como o
limite da imagem”. Isto para justificar que, apesar da impressão de movimento aparentada
pela imagem cinematográfica, ela é plana e tem limites definidos por um quadro:

O importante neste ponto é observar que reagimos diante da imagem fílmica


como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que
aparentemente estamos vendo. Mais precisamente, como a imagem é
limitada em sua extensão pelo quadro, parece que estamos captando apenas
uma porção desse espaço. É essa porção de espaço imaginário que está
contida dentro do quadro que chamaremos campo. (AUMONT, 1995, P.
21).
38

Se o cineasta, que dispõe de uma área relativamente limitada para gravar suas
imagens, realiza trabalhos incríveis, o que podemos dizer de artistas que dispunham de
paredões rochosos de até centenas de metros quadrados. É bem possível que a grande maioria
das pessoas que tenham ouvido falar ou que conheçam as pinturas apenas por gravuras em
livros não tenha noção da dimensão destas manifestações. Assim, inevitavelmente poderão
questionar como se pode comparar o cineasta a estes artistas. Além de realizar obras
fantásticas do ponto de vista estético, em muitas destas pinturas, inclusive encontradas no
Brasil, percebe-se uma preocupação técnica espantosa. Para exemplificar, no Sítio Toca do
Badú I, localizado na Serra da Capivara – PI, existe uma representação de figuras humanas
dispostas em planos sucessivos, o que confere a ilusão de profundidade ao mural.

O que faz do homem um ser artístico é a capacidade de imaginar, ou como diz Janson
“(...) simplesmente criar uma imagem – um quadro – no nosso espírito.” A comprovação
desta capacidade se dá ao conseguir expor sua imaginação. Gombrich (1972, p. 19), afirma
que ignoramos como a arte começou, tanto quanto desconhecemos como teve início a
linguagem. Se aceitarmos que arte significa o exercício de atividades tais como a edificação
de templos e casas, a realização de pinturas e esculturas, ou a tessitura de padrões, nenhum
povo existe no mundo sem arte.

4.3 O STORYBOARD NA PRANCHETA DE PEDRA

O cinema está intimamente ligado ao desenho. Prova disto é a utilização de uma


espécie de ensaio do que vai ser filmado. Trata-se do storyboard. Nele o cineasta desenha as
seqüências das cenas que serão filmadas. O designer gráfico Toni Rhoden diz que para se
fazer um storyboard “o desenhista precisa conhecer área de enquadramento, profundidade,
perspectiva, eixo de câmera, movimentos dela”. Segundo o site cineclik, alguns cineastas
como Sergei M. Eisenstein, Akira Kurosawa e Frederico Fellini desenhavam seus próprios
storyboards. Kurosawa tinha uma particularidade ainda mais interessante: gostava de pintar
em tamanho natural. O storyboard de seu filme Ran demorou dez anos para ficar pronto.
39

Imaginemos que fosse possível colocar lado a lado um cineasta e um artista pré-
histórico. Nosso artista do paleolítico desenharia o storyboard para que o cineasta rodasse o
filme. Obviamente que esse encontro se apresenta impossível, mas certamente teria um
resultado muito interessante. O duplo registro da história, feito por olhares bastante distintos.
O petrograma se transformaria em fotograma, proporcionando, enfim, o movimento ensaiado
pelo pintor da pré-história.

4.4 ENCONTRO PELOS CAMINHOS DA COMUNICAÇÃO

Quando se dispõe de numerosas formas de comunicação, como as existentes


atualmente, fica difícil acreditar que o homem um dia teve dificuldades para se comunicar.
Entretanto, o surgimento das pinturas rupestres tem um papel importantíssimo para o
desenvolvimento das formas de comunicação. Joly (1996, p.18) afirma que “essas figuras são
consideradas os primeiros meios de comunicação humana.” Além de introduzir no cotidiano
do homem uma forma de comunicar, a representação simbólica através da imagem propiciou
também a evolução cultural:

A tradição oral foi o instrumento principal de difusão da cultura. A espécie


humana aperfeiçoou a comunicação, que se tornou mais precisa. Aquilo que
nos primeiros estágios da cultura humana originou-se como um processo
simples de comunicação foi se tornando cada vez mais complexo. A
acumulação de conteúdos e as relações estabelecidas entre eles foram
criando a rede de comunicação. Comportamentos simbólicos, materializados
nos ritos e nas mensagens gráficas, foram criados, evitando que a informação
se perdesse no esquecimento. A palavra é fugaz, e muito da memória dos
povos se perde no tempo. (PESSIS, 2003, P.66-67)

Nesse ponto, é possível perceber que, mesmo que involuntariamente, o homem cria
formas para estabelecer comunicação e registrar a história através de elementos imagéticos. O
cotidiano da humanidade da época é gravado em cenas de rituais de caça, retratos de animais
ou até na representação de atividades sexuais. Pessis (2003, p.69) esclarece que “as escolhas
sobre como encenar graficamente o cotidiano ou o cerimonial estão relacionadas com os
40

valores e as normas culturais.” A exposição destas diferenças permite que se identifique e


diferencie os diversos grupos étnicos realizadores das pinturas. Diferentemente do que
acontece nos dias atuais, quando apesar das várias línguas faladas em todo o mundo, existem
meios que favorecem a miscigenação de hábitos e formas de comunicação. Isto porque o
maior envolvimento entre as civilizações favorece o acesso simultâneo às diferentes
tecnologias.

Voltando à pré-história, Pessis (2003, p. 69-70) esclarece que “as pinturas podem ser
consideradas a manifestação de um modo de comunicação, um processo de relacionamento
permanente entre os membros de um grupo cultural.” Ela acrescenta ainda que “esse
relacionamento ocorre como comportamento organizado, que fornece informação ao sistema
de comunicação global. Cada comunidade tem um único e próprio procedimento de
comunicação.” Assim se explicam as diferenças entre as pinturas encontradas em todo o
mundo. Como se fosse uma língua, cada grupo desenvolveu suas práticas gráficas de acordo
com as experiências vivenciadas diariamente. Então, mesmo considerando as pinturas como
uma forma de comunicação social, é praticamente impossível identificar o sentido de cada
uma delas. Para Pessis, considerar as pinturas como forma de comunicação favoreceu o
conhecimento das culturas pré-históricas:

Se, em vez de procurar meros significados, se busca identificar o que


representam as figuras, as características temáticas e técnicas e as maneiras
como foram concebidas, será possível descobrir outras informações sobre o
modo de comunicação. Identificar a maneira como os grupos se mostram
graficamente é uma forma de identificá-los pois na vida real eles também se
diferenciam. (PESSIS, 2003, p.70)

Esta afirmação pode ser aplicada nas comunidades atuais. O cinema, que também é
objeto de nosso estudo, apresenta variações conforme o local onde é produzido. Costa (2003,
p.29), corrobora nossa impressão ao dizer que “(...) o cinema é aquilo que se decide que ele
seja numa sociedade, num determinado período histórico, num certo estágio de seu
desenvolvimento, numa determinada conjuntura político-cultural ou num determinado grupo
social.” Assim, como outra produção cultural qualquer, o cinema reflete em seus filmes a
realidade do momento em que vive. Ele também encerra em si, além do registro histórico, o
olhar que o autor tem sobre a história:
41

Cada filme tem um valor como documento, qualquer que seja sua natureza
aparente. Isso é verdadeiro mesmo se ele for rodado em estúdio, mesmo se
não tem narração, nem encenação. Pela maneira que exerce ação sobre o
imaginário, pelo imaginário que transpõe, todo filme coloca uma relação
entre seu autor, seu discurso, o espectador. Além disso, se é verdadeiro que o
não-dito, o imaginário é tanto história quanto a História, o Cinema,
sobretudo a ficção abre um caminho régio em direção das zonas psico-sócio-
históricas nunca alcançadas pela análise dos documentos convencionais.
(FERRO Apud MEIRELLES, 2004)

Então, segundo Costa (2003, p. 29-30), mais que um meio de comunicação, expressão
e espetáculo, o cinema alinha-se estreitamente com a história por três aspectos básicos: pela
própria história do cinema, a história no cinema e o cinema na história. O primeiro é
relacionado justamente à historiografia do cinema, desde seu surgimento como técnica,
passando pela evolução tecnológica. O segundo reflete a utilização do cinema pelos
historiadores, como fonte de documentação histórica. O terceiro diz respeito à utilização do
cinema como ferramenta ideológica. Costa cita como exemplos a utilização do cinema como
propaganda pelo fascismo italiano, por Hitler na Alemanha e por Roosevelt nos Estados
Unidos.

Das pinturas rupestres até o cinema, um longo caminho foi percorrido:

(...) com a invenção da fotografia, a atividade pictórica ficará liberada de


sua função social de registro visual de acontecimentos históricos. Ao romper
com a função de reproduzir visualmente o mundo sensível, a pintura
recupera a possibilidade de tornar-se elemento evocativo de significados.
Um retorno a atávicas formas pré—históricas de sugerir e lembrar (...)
Assim, na história dos registros gráficos, a pré-história e a história se
reencontram pela via da descoberta técnica. (PESSIS, 2003, p. 159)

Em 30.000 anos várias formas de comunicação surgiram e desapareceram. Outras


modificaram suas formas originais. A história humana somente pode ser documentada e
passou a existir a partir destes primeiros registros gráficos. Não fosse isso, certamente nem o
vocábulo história existiria. Podemos nos ver, ainda hoje, nestas manifestações primitivas,
assim como nos vemos no cinema. Ambos expressam a partir de suas peculiaridades as lutas,
crenças e esperanças de toda a sociedade humana. Além de marcar o homem como ser
comunicador.
42

4.5 PRIMITIVOS, PIONEIROS E O OLHAR CONTEMPORÂNEO

Quando se encontram referências sobre as pinturas rupestres nos livros, o que


normalmente designa esta atividade é o termo primitivo. Este termo, aplicado ao nosso
trabalho identifica, segundo Bueno (1965, p. 1004), “(...) povos ainda em estado natural, por
oposição a civilizado.” O primitivismo, que estuda as manifestação artísticas primitivas diz
que:

A única maneira válida de classificar esses desenhos pré-históricos é tentar


definir o primitivo como um estilo, com base em uma finalidade e em
algumas técnicas. (DONDIS, 1997, p. 168)

Já o cinema trata como pioneiros os primeiros curiosos de sua história. Esta diferença
de termos bem poderia sugerir um tipo de preconceito para com o homem do paleolítico e sua
capacidade. Porém, apesar da ligação do homem pré-histórico com o primitivo existia um
sentimento forte em exprimir esta arte, aliado a outra qualidade impressionante:

No homem pré-histórico, a memória estava muito desenvolvida em todos os


seus aspectos. Nas cavernas, não havia modelo, tudo era reproduzido pela
memória visual, notável em todos e mesmo perfeita em alguns. (BAYER,
1978, P. 21)

Estes homens foram os precursores da pintura que, em um processo natural paralelo a


trajetória humana, apresentou à humanidade artistas considerados gênios como Leonardo da
Vinci e Van Gogh, por exemplo. Da mesma forma, o cinema vem desde o teatro de sombras
até os Irmãos Lumière e Frederico Felini, sempre experimentando. A diferença é que os
pioneiros da cinematografia podem ser nominados, bastando folhear qualquer livro da história
do cinema para se saber quais foram os seus principais colaboradores. Apesar disto, é bem
provável que em algum momento se cometa injustiças, por esquecimento ou até por total
desconhecimento de alguma tentativa cinematográfica à época do seu desenvolvimento
técnico oficial. Aos pintores da pré-história, em virtude da impossibilidade de identificá-los
individualmente, a maior injustiça talvez seja sonegar-lhes a qualidade de artistas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas vezes, ao realizar uma pesquisa, somos tomados por excêntricos.


Independente disto, pesquisar, principalmente um assunto que não tenha sido ainda objeto de
muitos estudos, é mais do que um desafio, é uma oportunidade única de acumulo de
conhecimento. No caso de nosso trabalho, fomos questionados sobre sua relevância social,
sua relação com a comunicação e até mesmo sobre a lógica da comparação pinturas rupestres
e cinema. Acreditamos que existem várias formas de desenvolver trabalhos sociais. Estudar a
história humana é uma delas. E, no caso das pinturas rupestres, elas são o registro das
primeiras manifestações do homem como ser criador e comunicador. Assim, podemos
constatar inclusive como se deu o início da comunicação na trajetória evolutiva da
humanidade. A comparação das pinturas com o cinema, que a princípio soou absurda,
começou a fazer sentido. Ambas se originaram na manipulação da imagem. Ambas são
estáticas. A diferença é a utilização do projetor, no cinema, para criar a ilusão de movimento.

O registro histórico, favorecido pelo trabalho dos artistas rupestres e dos cineastas, tem
um valor inestimável. O homem sempre se preocupou em deixar para as gerações futuras,
uma mostra de seu cotidiano. Algumas vezes isto aconteceu até de forma involuntária. Se
considerarmos, como exemplo, que a magia foi o grande motivador dos pintores do
paleolítico, acidentalmente nos foram deixadas algumas pistas muito importantes sobre o
comportamento dos primeiros humanos. Assim, dos primeiros desenhos, passando pelo teatro
de sombras - um tipo de espetáculo surgido na China - e mesmo pesquisas com interesse
44

puramente científico, originou-se o cinema. Hoje, muito mais que uma simples projeção de
imagens, o cinema é ferramenta ideológica, arte, indústria e instrumento de comunicação.

Durante cerca de um ano tivemos a possibilidade de conhecer o trabalho de muitos


pesquisadores ligados ao tema de nosso estudo. Desta forma, o que era um assunto distante
tornou-se uma rotina. Pudemos imergir em um mundo fascinante. Parecia existir um hiperlink
sempre pronto para nos levar em uma viagem pelo tempo. Assim, foi possível conhecer mais
sobre estas duas manifestações, que embora estejam distantes cerca de 30.000 anos, tem
características que as aproximam. Esta imersão no estudo proporcionou-nos perceber o quanto
a comunicação faz parte da vida do homem. Então, se hoje as descobertas não impressionam
mais ninguém, em absoluto podemos atribuí-las ao acaso. O homem despertou para suas
necessidades há muito tempo. Deixou registros, aperfeiçoou técnicas e soube aproveitar os
estágios como elos para compor sua história. Definitivamente, não podemos hoje, depois de
pesquisar nosso objeto de estudo, refutar a proximidade entre as pinturas rupestres e o cinema.
São partes de um mesmo quebra-cabeça. Unem-se por vários aspectos, mas refletem
diretamente na comunicação. E, notoriamente comunicar-se é mais que uma prática, é sim
uma ação indispensável ao ser humano.

Atualmente, estamos atravessando um momento histórico totalmente sem precedentes.


O ritmo como se processa a evolução tecnológica nos dá a impressão de não ter limites. Em
meio a este turbilhão pós-moderno, algumas preocupações parecem não ter tanta importância.
Algumas vezes por ignorância, outras por interpretação ou interesses econômicos, surgem
questionamentos sobre por que preservar rabiscos feitos a milhares de anos se nem ao menos
sabemos o que querem dizer ou para que recuperar e exibir filmes que nem som têm. Este tipo
de raciocínio além de equivocado é altamente perigoso. Pode parecer elementar, mas ao
homem cabe a preservação do meio ambiente. E, proteger o meio ambiente não é apenas
garantir a sobrevivência da flora e da fauna. É sim manter vivos uma série de elementos que
fazem parte de nosso dia-a-dia. Inclui-se aí a história. Ela expõe a verdade sobre a
humanidade, deixando para nós a interpretação de suas pistas.
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volume 26, number 2: San Francisco, 1993.
ANEXOS

1 – FOTOS ......................................................................................................................... 50
2 – ILUSTRAÇÕES ........................................................................................................... 53
50

ANEXO 1 – FOTOS

Foto 01 - Toca da Roça do Badú I. Agrupamento de figuras humanas em planos sucessivos – Parque
Nacional da Serra da Capivara - PI
(Fonte: Fundação Museu do Homem Americano/Niède Guidon)

Foto 02 - Toca do Perna IV. Cena de sexo coletivo – Parque Nacional da Serra da Capivara - PI
(Fonte: Fundação Museu do Homem Americano/Niède Guidon)
51

Foto 03 - Seridó - Sítio Xique-Xique I. Nas pinturas rupestres do Seridó, recursos expressionistas
sugerem movimento nas figuras humanas– Parque Nacional da Serra da Capivara - PI
(Fonte: Fundação Museu do Homem Americano/Niède Guidon)

Foto 04 - Toca do Caititu I. Grafismo puro – Parque Nacional da Serra da Capivara - PI


(Fonte: Fundação Museu do Homem Americano/André Pessoa)
52

Foto 05 – Cena do filme A Guerra do Fogo (1981, Jean-Jacques Annaud)


(Fonte: http://www.allocine.fr/film/fichefilm_gen_cfilm=738.html)

Foto 06 – Bisão da gruta Chauvet (32000 anos) – França


(Fonte: http://www.hulemaleriet.enekunst.dk/cavestory_2.htm)
53

ANEXO 2 – ILUSTRAÇÕES

Ilustração 01 – Artistas das Cavernas - Pierre Joubert


(Fonte: Enciclopédia do Homem )

Ilustração 02 – Cartaz do filme Space Jam


(Fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/space-jam/space-jam.htm)
54

Ilustração 03 – Cartaz do filme 2001:uma odisséia no espaço


(Fonte: http://www.din.uem.br/~ia/a_correl/classicos/2001.jpg)

Ilustração 04 – Cartaz do filme O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro


(Fonte: www.asminasgerais.com.br/Zona%20da%20Mata/Cult%20uai%20s/Cinema/Humberto%20Mauro/019.jpg)

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