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A produção discursiva do sintagma “ideologia do 'gender'”

Ana Josefina Ferrari


Gui Hatschebach GRR 2021 1098

Sou Frankenstein em busca de alguém


que o ame, passeando com uma flor na
mão, enquanto todos à volta fogem.
– Paul B. Preciado

Resumo:

A análise do sintagma “ideologia do ‘gender'" a partir do documento Família, Matrimônio e


“Uniões de Fato” busca percorrer os sentidos construídos desde o documento. Nosso corpus
é constituído particularmente pelos artigos 5 e 8, onde a noção de “ideologia do ‘gender’” é
exaustiva. Nossa análise mobiliza as noções de gênero desde Scott (1995) e Preciado (2018)
para cotejar ao adjetivo “gender”, grifado em itálico e entre aspas no documento. Scott nos
proporciona o detalhamento e refinamento da teoria social sobre gênero e a arqueologia da
produção epistemológica da categoria, ao lado de Preciado, que nos aponta a produção
técnico-semiótica desta última. Em nossa epígrafe citamos Paul B. Preciado, quem nos
proporcionou a imagem do teogumento Frankenstein desde a análise da ideologia de gênero,
inscrevendo a formação discursiva episcopal pela materialização dos interditos não explícitos
do matrimônio enquanto sacramento e sua secularização, notadamente a perda de hegemonia
pela territorialidade do corpo e da produção semiótico-técnica de gênero pela renaturalização
biológica e reinvestidura pelo direito canônico de tematização jusnaturalista.

Arqueologia do gênero

A produção discursiva e a circulação da categoria gênero é historicamente recente,


sendo incorporada pela teoria social e movimentos femininos para o debate da distinção dos
gêneros perceptíveis e de suas atribuições por uma dada gramática de gênero a partir da
crítica da identidade sexo e gênero, de tematização pedopsiquiátrica.

Para Joan Scott (1995, p. 71-72), o sentido conceitual da categoria advém ao gender,
termo do léxico estadounidense, visando atribuir a diferenciação social relativa aos papéis
sociais, rejeitando o “[...] determinismo biológico implícito no uso de termos como 'sexo' ou
'diferença sexual'. O termo 'gênero' enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições
normativas da feminilidade.” (SCOTT, 1995, p. 72). Sublinha ênfase a autora não somente
importar a cunhagem da categoria, mas antes o projeto de transformação social a ser
conduzido, repercutindo pela ampliação do campo de pesquisa em estudos sociais, como pela
virada epistemológica desde o envolvimento e posição das pesquisadoras e pesquisadores
frente ao mundo, considerando a subalternização e a natureza sócio-histórica das opressões
(1995, p. 73).

A categoria gênero, portanto, para as lutas sociais e, por consequência, para a


epistemologia, proporciona o cotejamento do silenciamento e de suas causas, viabilizando o
estranhamento pela naturalização da posição dada. Dito de outro modo, desvela um campo de
pesquisa e individualidades no tempo e espaço: cosmovisões, percepções e epistemologias
preteridas historicamente. Gênero, ainda na asserção de Scott (1995, p. 75), foi apreciado
extensivamente, o tornando sinônimo da categoria mulheres em sua pluriversidade,
dissociando gênero da categoria mulher pela suposta neutralidade axiológica.

Para Scott (1995, p. 86-87), (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações


sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e (2) o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder; logo, a categoria proporciona a possibilidade
analítica para nomear ao fenômeno, discutindo as contingências de intervenção, sejam estas
mudanças, transformações ou conservação, elaborando possibilidades a investigar a natureza
e causa dos processos antes desprezados. A gramática de gênero, nestes termos, é imersa aos
i. elementos perceptíveis da estruturação de gênero, como valores, mitos, costumes,
comportamento, tom de voz etc; e, ii. o sentido normativo depurado pelos aparelhos
ideológicos do Estado, como a Escola, tanto pelos documentos legais estabilizadores, como
pela prática docente, ao lado das normas jurídicas, da coação jurídico-criminal, dos ritos
religiosos, entre outros.

Para Paul B. Preciado (2018), por outro aspecto do fenômeno, a gestão técnica dos
afetos percebe a matéria e a economia política da corporeidade e do desejo. Sua análise
perpassa a somatopolítica desde a compreensão da formação sócio-histórica do capitalismo,
destacando o autor duas formações históricas pretéritas ao desenvolvimento
farmacopornográfico. As duas primeiras estruturações são i. o capitalismo escravista de tipo
colonial; e, ii. o capitalismo industrial, notadamente erigindo suas trilhas até o fordismo,
esgotado ao período do acordo de Bretton Woods; o marco de transição do segundo regime
ao hodierno, interstício das décadas de 1940 a 1970 se faz no ocidente pelo ocaso de
possibilidades históricas, a Espanha fazendo apontar a causalidade pela inflexão na Guerra
Civil, ao lado da Segunda Guerra Mundial, transição esta, por uma perspectiva econômica
stricto sensu, a não abolir a dependência, mas antes incorporar ao novo governo da vida os
sistemas anteriores ao produzir novos laços a emergirem dos escombros do urbanismo, da
psique e ecologia por debaixo das ruínas deixadas pela Segunda Guerra (PRECIADO, 2018,
26-27).

Neste novo quadro emerge, na asserção de Preciado, a (re)elaboração de quatro


categorias: i. sexo; ii. sexualidade; iii. gênero; e, iv. identidade sexual. Estes artefatos de
“gestão política da vida” a perceberem as mudanças decorrentes ao período posterior à
década de 1930 (PRECIADO, 2018, p. 27) delineiam um dos marcos da situação histórica
haver decorrido pela emergência das mulheres na interface pública, e pela ascese e
notoriedade da homoafetividade em espaços antes interditos, decorrendo o produto das lutas
sociais em campos discursivos próximos; ao lado das lutas sociais, situa a indústria
farmacêutica forjada ao interim da fabricação sintética de moléculas a rearranjar ao decurso
do século XX as percepções e, acentuadamente, a patologização das divergências de gênero e
sexualidade; e, a partir de 1941, com o fabrico bioquímico das tecnologias e produtos
comercializáveis, avulta considerar (PRECIADO, 2018, p. 29):

[...] o pedopsiquiatra norte-americano John Money cunha o termo ‘gênero',


diferenciando-o do tradicional termo ’sexo’, para denominar o
pertencimento de um indivíduo a um grupo de comportamento e expressão
corporal culturalmente reconhecido como ’masculino’ ou ’feminino’. É
famosa a afirmação de Money de que é possível (usando técnicas cirúrgicas,
endocrinológicas e culturais) ‘mudar o gênero de qualquer bebê até os
dezoito meses’.

A patologização das identidades sexuais divergentes ao binário - estabelecido seu uso


clínico por Harry Benjamin em 1954, definindo “transexualismo” como patologia -,
conjuntamente à elaboração dos artefatos bioquímicos e cirúrgicos em emergência, a pílula
anticoncepcional produzindo a dissociação da reprodução biológica ao prazer voluptuoso do
sexo, primeiro sendo comercializada pela Searle & Co., sob o nome comercial Enovid,
combinando em sua formulação mestranol e noretinodrel (PRECIADO, 2018, p. 30), sua
contraparte química para a masculinidade destacado pelo fabrico bioquímico da molécula de
sildenafil, em 1988 pela Pfizer, precipitado por distúrbios cardiovasculares e pela disfunção
erétil masculina (PRECIADO, 2018, p. 32), suas implicações advindas inclusive de
experimentos militares pela CIA ainda na década de 1950, envolvendo eletrochoque e o uso
de drogas psicodélicas e alucinógenas.

As tecnologias biopolíticas reelaboram o fluxo semiótico-técnico, de suas estruturas


bioquímicas aos artefatos discursivos, reconstruindo corporeidades por suas tecnologias a
modificarem a percepção, como o “bromazepan, Special K, Viagra, speed, cristal, Prozac,
ecstasy, poppers, heroína)” (PRECIADO, 2018, p. 36); artefatos tecnológicos de um novo
regime em ascenso, a indústria farmacopornográfica converge novos elementos técnico-
industriais e uma nova produção de artefatos discursivos a respeito das configurações viáveis,
reestruturando aspectos do colonialismo do século XIX ao implementar a expansão ao
decurso da década de 1970, a endocrinologia, a psiquiatria e a psicologia atuando aí enquanto
discursos científicos clínicos.

A crise do petróleo ao final do século XX catalisa nova subsunção: corpo, desejo e


subjetividade como valores a serem expropriados, ao passo do surgimento e desenvolvimento
do maior mercado da internet, a indústria pornográfica, modelo por excelência para a
cibereconomia, gerando aproximados 350 novos sites diariamente, ampliando
exponencialmente seu acesso e consumo a populações para além do Estado Nacional
(PRECIADO, 2018, p. 40-41), dispondo “[...] investimento mínimo, venda direta do produto
em tempo real e formato único, satisfação imediata para o consumidor.” (PRECIADO, 2018,
p. 41-42).

O capitalismo pós-fordista aglutina a indústria farmacêutica (científica, médica e


cosmética), a indústria de guerra e a indústria pornográfica como tripé macroeconômico a
perfilar estantes de corpos, sua aparência contida pelo controle farmacopornográfico da
subjetividade, sua matéria-prima em moléculas e mercadorias a atuarem pela angústia, tédio e
sofrimento psíquico em estados variados e distintos, modulando a perene circulação de
estados mentais induzindo ao relaxamento e bem estar individual, alopáticos e artefatos
discursivos a gerirem condutas e emoções, o fluxo semiótico-técnico configurando a
tecnociência tornada possível a subscrever a mercadoria da subjetividade, vertendo a
produção farmacopornográfica sua forma de gestão da vida pelo controle desde sua
elaboração, arraigando setores antes não mobilizados.

Ainda para Preciado, a indústria farmacopornográfica tem sua gênese ao estertor do


século XIX, carecendo nomear o objeto equivalente ao de força de trabalho para a economia
política clássica, para o qual Preciado propõe Potentia Gaudendi, aos termos da “[...]
potência (presencialmente ou virtual) de excitação (total) de um corpo.” (2018, p. 44), onde
tais possibilidades não distinguem espécie, sexo ou sexualidade, atuando na estrutura mental
psíquica (PRECIADO, 2018, p. 44-45). Cadeia de possibilidades, não há meios materiais
para sua armazenagem ou acúmulo, incidindo sua existência enquanto potencialidade tal
numa relação, se fazendo força material a penetrar e engendrar as massas, a estimulando
indiferentemente ao gênero, situando a corporeidade a transcender o imediato sensível, não
havendo coincidência ao corpo pré-discursivo à pele ou carne. Para Preciado, a acepção de
vida se estabelece, como o parafraseamos, para além do imediato sensível e, logo, não pode
ser reduzida no plano sensível ao mero dado biológico (PRECIADO, 2018, p. 46).

Os artefatos, deste modo, tanto as tecnologias e moléculas bioquímicas, quanto os


dispositivos discursivos, se produzem numa manufatura, os meios de comunicação se dando
ao caminho de formas humanas objetivadas pela linguagem, as tecnologias e discursos
produzidos como extensões de sua corporeidade. A Potentia Gaudendi, assim, é uma
tecnologia de poder a agrupar: i. biopolítica; e, ii. necropolítica; enquanto força a metabolizar
a subsunção da subjetividade, sua lógica se faz estruturar pelo tecno eros a subsumir gênero e
sexualidade num conjunto articulado de ideias, valores, desejo e afeto, disputando a formação
psíquica e seu projeto subjacente, modulando os dispositivos da identidade sexual e do
desejo, reduzidos à masculinidade e feminilidade binárias, cisgênero e heterossexual, ao
converter toda diferença em “diferença tecnobiopolítica” (PRECIADO, 2018, p. 49).

A patologização das identidades dissidentes e de sexualidades divergentes preocupa a


norma enquanto tal e se faz construir pela expectativa social de abjeção, notando Preciado a
respeito da heterossexualidade devir a uma “[...] tecnologia de procriação politicamente
assistida. No entanto, depois dos anos 1940, o corpo sexual molecularizado foi introduzido na
maquinaria do capital e forçado a modificar suas formas de produção.” (2018, p. 50). Por
meio do fluxo semiótico-técnico, o poder descentraliza sua operação, arraigando as
existências prático-sensíveis (PRECIADO, 2018, p. 51).

Para o autor, a indústria farmacopornográfica muda e transforma o desejo em aspecto


de “força produtiva” para o capital, reelaborando pela produção sexual o controle e
planejamento demográfico descentralizado e a articulação discursiva influindo àquela
(PRECIADO, 2018, p. 53). A produção sexual, enlevo, se dá pelo controle da produção de
óvulos, pela coleta de esperma, fertilização in vitro e inseminação artificial, como pelo
monitoramento do parto e de sua gestão clínica desde a ultrassonografia (PRECIADO, 2018,
p. 53-54), reestruturando a divisão sexual do trabalho.

A assim chamada “ideologia de gênero”

O engajamento ideopolítico de setores conservadores da Igreja Católica demandou a


elaboração do conceito de “ideologia do 'gender’”, sua fabricação atuando por esteio pela
salvaguarda moral das instituições, mobilizando biodispositivos pela reinvestidura da
família natural desde o desprezo pelos estudos de gênero e todo campo da teoria social
feminina. A ofensiva anti gênero1 emerge pelos movimentos religiosos institucionais e seus
matizes laicos, apoiados na cunhagem do conceito, artefato discursivo a conter a estratégia
em disputa e seu projeto de intervenção.
O cerceamento e obstrução abrangem os direitos parentais e reprodutivos, o
restabelecimento de hierarquias familiares desde o tropos de gênero, como por seu ponto
nevrálgico na Educação - campo em disputa, a saber, a interdição do debate na educação
sobre gênero, sexualidade e diversidade repatriam ao campo da família mononuclear suas
prerrogativas, a hierarquia familiar a desconsiderar e ojeriza pela despatologização das
homoafetividades e, mais recentemente, das identidades transgênero.

A capilaridade social destes movimentos mobiliza para além do catolicismo, seu


centro gerador, arraigando denominações evangélicas neopentecostais, dentre outras, ainda
que ulteriormente. Para tal posição discursiva, os direitos sociais pela equidade teriam seu
ponto de apoio na difusão da categoria gênero, por sua capacidade a desvelar a historicidade
da produção e reprodução do caráter de determinação estrutural da opressão em sua
gramática estruturante, inscrito pela territorialidade a desnaturalizar as diferenças sexuais
ditas naturais, lançando pelo construtivismo de gênero uma i. psicologização da formação
cultural da vida psíquica dos afetos, mediada ineliminavelmente pelas relações sociais, se
dando ao seu interior, e em contradição para com estas; o afeto, desde logo, não se dá
somente pela escolha individual, porquanto, ao lado do desejo, emoções e sentimentos - não
1
Para Junqueira (2018, p. 451), a ofensiva conflui por “[...] setores e grupos interessados em promover uma
agenda política moralmente regressiva, especialmente (mas não apenas) orientada a conter ou anular avanços e
transformações em relação a gênero, sexo e sexualidade, além de reafirmar disposições tradicionalistas, pontos
doutrinais dogmáticos e princípios religiosos 'não negociáveis'.”
somente as estruturas psíquicas, mas antes o conjunto de objetivações pelos valores, normas,
condutas e, mesmo, ao gênero perceptível.
Ainda para o autor, as atuações prioritárias residem ao Direito, Saúde e Educação, a
última decupando a mais incisiva e assertiva, interrompendo propostas de visibilização,
enfrentamento às discriminações, notadamente desde a categorização de uma agenda
extemporânea ao complexo educacional, onde se pode notar, com o autor, a denominação
“propaganda de gênero”. Sustentação tal tem seu ponto de apoio na família mononuclear,
contra a qual resguardam o teor ilibado frente à dissuasão, criança e família aparecendo por
descritores imputados ao regime discursivo compulsória pela cisgeneridade e
heterossexualidade, economia política moral e de valores (JUNQUEIRA, 2018, p. 453).

Ao largo da polemização anti gênero, os fenômenos perquiridos pelas investigações


em gênero não se produziram pela clave da autopercepção isolada de si, antes se dando por
mediação da cultura, a refratar pela elaboração sócio-histórica. Para o autor, a divergência
percebida pode ser ampliada como renaturalização dos caracteres apresentados por
substância e natureza do ordenamento da superfície discursiva e de sua materialidade, o
imposto culturalmente notado por legítimo à ordem civil, algo imutável ou inevitável.
A disputa hegemônica pretende reestabelecer a decantação sócio-histórica a qual os
estudos de gênero pretendem intervir - ora pela mudança, ora pela transformação; assim
como a categoria mulher não tem referente objetivo na realidade prático-cotidiana, as lutas
sociais são também compostas pluriversalmente. A produção das normas, deste modo, tanto
as discursivas quanto as compulsórias semiótico-técnicas, se dá inclusive por visões
epistemológicas, a posição anti gênero2 tendendo confluir para a renaturalização da
diferença anatômica fundamental, uma percepção do fenômeno de gênero desde a identidade
sexo/gênero.
2
Para Junqueira (2018, p. 454-455), os biodispositivos semiótico-técnicos decorrem “[...] especialmente a
partir da rebiologização essencializadora das concepções de família (declinada sempre no singular: a 'única
família natural', patriarcal, biologicamente radicada, fundada na união monogâmica homem-mulher,
presumivelmente por matrimônio sacramentado e indissolúvel, com prole), matrimônio (intíma comunhão de
vida e amor conjugal, e inscrito na natureza do homem e da mulher), maternidade (atributo e vocação inerente
à mulher, também mãe- esposa-afetuosa-cuidadora-submissa), filiação (biologicamente estabelecida mediante
a conjugalidade complementar homem-mulher), parentesco (equiparado à consanguinidade), sexo (realidade
fundamentalmente corpórea, ordenada e finalizada à procriação), sexualidade (ligada à complementaridade
imanente entre homem e mulher), heterossexualidade (expressão da complementaridade e única via natural de
manifestação do desejo sexual e de realização da vocação reprodutiva), identidade e diferença sexual (binárias,
fixas, inalteráveis, cromossômicas e hierarquizadas).”
Os movimentos anti gênero abrangem posições em Direitos Humanos, desde a adoção
da pena de morte, ao lado do recrudescimento de pautas vinculadas, como a maternidade
renaturalizada enquanto destino compulsório da diferença psíquica natural, a feminilidade e a
masculinidade, reinscrevendo posições em indivíduos e grupos diversos em uma antinomia
compulsória sexo/gênero, realizável ao curso da forma mononuclear da família, erigindo
limites intransponíveis (JUNQUEIRA, 2018, p. 457), ao tempo que colidem interesses e
propostas gerando alianças táticas com setores antes não mobilizados, inclusive com disputas
internas entre tais frações.
Apontam ainda os setores anti gênero a inconsistência metodológica, quando não
pela acusação “ideologia”, o desprezo ao “gender” se fazer não somente por um debate
epistemológico, mas inclusive uma posição ética e ideopolítica acerca dos temas, ao lado de
suas lutas sociais. As denominações pelos setores anti gênero percebem a circulação e
arraigamento em biodispositivos, particularmente após a década de 1990, quando cunhadas
expressões linguísticas sem referente objetivo prático sensível para a noção de gênero,
próximas à forma ideopolítica viável e necessária ao momento contingente, Junqueira (2018,
p. 459-460) cita algumas, sendo estas

[...] teoria do gender, ideologia (do) gender, ideologia de gênero, ideologia


da ausência de sexo, ideologia confusa de gênero, loucura de gênero, teoria
do gênero sexual, teoria subjetiva do gênero sexual, teoria artificiosa do
gender, teoria do gênero queer, teoria do gênero transexual, teoria do gênero
radical, ideologia radical de gênero, teoria feminista do gênero, teoria
feminista radical, teoria feminista violenta, ideologia ultrafeminista do
gender, ideologia do Women’s empowerment, ideologia pós-feminista do
gênero, ideologia do pensamento único homossexualista, ideologia
comunista do gênero, teoria americana do gender, ideologia mundialista (ou
globalista) do gênero, ideologia LGBT, ideologia do lobby gay, ideologia
ocidental homossexual e pró-aborto, ideologia sodomita, ditadura do
gender, ditadura ideológica do gender, totalitarismo de gênero, gender-
terror, genderismo, ou simplesmente gênero ou gender, em si mesmo, uma
ideologia.

Tais elaborações, percebidas suas origens eclesiais, ressonam em setores


conservadores da sociedade civil, repercutindo por sobre setores não diretamente vinculados
à institucionalidade ou afiliação ideopolítica, decorrendo um processo de secularização
inscrita à “desconfessionalização” do discurso, ampliando os espaços onde circula, tornando
menos óbvia a relação interdiscursiva de seu teor com a enunciação clerical.3
3
Faz notar Junqueira (2018, p. 460) o caráter metadiscursivo das elaborações da assim chamada “ideologia de
gênero”, a importância em nossa análise residindo, em acordo ao autor, pela caricaturização do discurso,
distorcendo a argumentação porquanto recrie um fantoche político-discursivo, despreocupados com a
A fria carne do teogumento Frankenstein: a emergência da reação beligerante

Ao fulcro althusseriano da sentença “a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos”,


a linguagem constitui aos sujeitos e é pela ideologia atravessada. As formações ideológicas
operam no interior do jogo histórico a cada etapa das lutas de classe burguesas,
desempenhando distintas possibilidades pela mudança, transformação ou conservação destas
relações de produção.
Para pensar a emersão do sintagma “ideologia do ‘gender’” (G. HATSCHEBACH, A.
FERRARI, 2023), podemos elaborar a formação discursiva materializada na carta dos anos
2000 com locução episcopal e circulação transnacional. materialidade discursiva inscrita em
seus dois esquecimentos – i. esquecimento n. 1, perpassado pelo inconsciente ao exterior da
formação discursiva, recriando a origem do sentido no indivíduo abstrato; ii. esquecimento n.
2, de caráter enunciativo pela seleção e organização cosmoperceptiva da formação discursiva
que a engendra, como o sentido fosse óbvio pela experiência das coisas.
A asserção sintagmática decorre na escritura pela apresentação do entendimento da
motivação ideológica como mero ato individual (FMeUF art 5), progredindo por sobre a
identidade desde a formação das personae perceptivas de si no mundo.
Posição esta elevada desde a carta Familia a Deo Instituta, de João Paulo II em maio
de 1981, na qual exorta o matrimônio, o definindo por fundamento da igreja doméstica. Neste
documento eclesial funda o Pontifício Conselho para a Família, sucedendo à Comissão para a
Família, de seu antecessor, Papa Paulo VI, em 1973.
Ao quinto artigo de um dos documentos (FMeUF) elaborados pelo Conselho para a Família
notamos a dissociação das designadas “uniões de fato” em relações marcadas pelo signo do
biodispositivo semiótico-técnico do pacto matrimonial. O casamento e a família natural
exsurgem em oposição às uniões de fato no documento, operando um corte entre estes como
antinomia insolúvel. Eis os braços do teogumento Frankenstein.
As sequências discursivas dos artigos 5 e 8 se apoiam na noção de família natural
operada a partir do pacto matrimonial. O documento (FMeUF) é apresentado pelo Cardeal
López Trujillo em 2000, a quem preocupa por seu cargo na presidência do Pontifício
Conselho para a Família a instabilidade do objeto matrimonial frente aos divórcios crescentes
e, pretenso crescente número de uniões de fato, apresentação esta endereçada aos pastores

metodologia convencional de pesquisa científica, incluindo em seu desprezo mesmo ao referente de sua
enunciação (JUNQUEIRA, 2018, p. 461).
eclesiais e aos pastores seculares, reinscrevendo a sociedade e, desde logo, aos indivíduos à
“ordem natural”.
A difusão do construcionismo e das teorias estruturalistas, ao lado da teoria de gênero,
seriam as pernas a serem cerzidas unidas a uma estrutura por sobre a musculatura e ossada do
teogumento, padecendo as vísceras dessa criatura medonha como a coisa de Shelley pelo
ambiente individualista favorecido pelo neoliberalismo. O argumento procede ao embargo
das relações exteriores à “base desse bem comum da humanidade que é a instituição
matrimonial” (FMeUF).
A formação discursiva episcopal compõe ao todo dominante da formação ideológica,
a estruturarem, para nosso corpus o alijamento de seu lugar enunciativo, vis a “Ser marcado
com uma identidade significa simplesmente não ter o poder de nomear sua posição identitária
como universal.” (PRECIADO, 2022, p. 31).
A formação discursiva a assinalar o lugar enunciativo do eu do ego hic et nunc da
ordem natural ao discurso episcopal precipita um sujeito de discurso pela negação das
epistemologias da diferença sexual e de gênero, como as Américas não houvessem sido
descobertas, como o “imaginário do império" as desconhecesse. Ao contrário, a existência de
corporeidades não-normativas perfaz um lugar outro, ao passo que (PRECIADO, 2022, p.
40):

O mimetismo é um mau conceito para pensar a transição de gênero, porque


depende ainda da lógica binária. Ser isso ou aquilo, ser uma coisa ou imitar
outra. Ser homem ou mulher. A pessoa trans não imita nada, assim como o
crocodilo não imita o tronco da árvore, nem o camaleão as cores do mundo.
Ser trans é deixar de ser um crocodilo e se conectar com seu futuro vegetal,
compreender que o arco-íris pode se transformar em pele.

Do lado de fora da sacra instituição matrimonial, Preciado assevera as bases


constitutivas das epistemologias da diferença sexual e de gênero (2022, p. 23):

A liberdade de gênero não pode de forma alguma uma distribuição mais


equitativa da violência, nem uma aceitação mais pop da opressão. A
liberdade é um túnel que se cava com as mãos. A liberdade é uma porta de
saída. A liberdade – como esse novo nome pelo qual vocês agora me
chamam, ou esse rosto vagamente hirsuto que veem diante de si – é algo que
se fabrica.

Desta sorte, Preciado pondera pelos movimentos sociais e pela hegemonia liberal a
pautar seus debates, inscrevendo os limites do debate hegemônico nas lutas sociais.
A formação discursiva episcopal deixa de reconhecer os processos de esquecimento e
ao processo por Preciado circunscrito pela crítica do regime da diferença sexual enquanto
“epistemologia política do corpo” (PRECIADO, 2022, p. 46), pelo autor descrito por sua
estruturação binária hierarquizante, em crise desde meados da década de 1940 por dois
principais vetores: i. as lutas sociais femininas e trabalhistas, principalmente no século XX; e,
ii. pelo “[...] surgimento de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos de
tornam a atribuição binária do sexo ao menos conflituosa, se não impossível.” (PRECIADO,
2022, p. 47).
A epistemologia da diferença sexual tem seus primeiros fraturamentos durante as
décadas de 40 e 50, sob este impacto contribuindo as produções teóricas e empíricas de Lacan
e John Money, o primeiro pelas investigações no campo psíquico e o segundo na diferença
anatômica, os importando “desnaturalizar a diferença sexual” (PRECIADO, 2022, p. 67).
Ao quadro discursivo da regressão diante da crise epistêmica sobre o corpo, emerge a
ideologia do “gender”, sintagma composto pelo substantivo ideologia, inscrita esta disputa
significante pelos motivos pessoais, alheando à vida privada tal conjunto de motivos e
valores, enquanto gênero é marcada em itálico e em inglês para buscar algures a pretensão de
cientificidade, por Preciado apontada esta posição discursiva por proliferar aos “processos de
renaturalização política, regressão discursiva e suspensão cognitiva.” (PRECIADO, 2022, p.
83).

A modulação do lugar discursivo

Esfera a preterir ao não-lugar as pessoas ao largo da exterioridade do biodispositivo,


incidindo pela materialidade e funcionamento do sintagma. O teogumento tem sua memória
discursiva atravessada pelos silenciamentos, silêncios que dizem não o dizendo, como ao
substantivo ideologia, o qual campo deixa trás de si um referente legado à inscrição da
exterioridade. O significante ideologia em disputa requer distanciamento sintático em
oposição ao adjetivo que o segue. O adjetivo nesta sequência discursiva dispõe a modificação
do substantivo que nomeia pela qualidade que contém.
A respeito, destacam Silva Neto e Oliveira (mimeo, p. 6):

Sendo o adjetivo essencialmente um modificador do substantivo, que serve


para indicar uma qualidade (ou defeito), como em ‘inteligência lúcida’ e
‘homem perverso’; indicar um modo de ser, como nos exemplos: ‘pessoa
simples’ e ‘moça delicada’; indicar aspecto ou aparência, como: ‘céu azul’ e
‘vidro fosco’; e indicar estado, como em ‘casa arrumada’ e ‘laranjeira
florida’.

O funcionamento linguístico das sequências discursivas 5 e 8, sobretudo, se assentam


na indeterminação referencial do que seja ideologia senão comportamento individual,
conforme o 5 artigo: “[...] escolha de uma alternativa, de um modo determinado de viver a
própria sexualidade”, acrescido ao adjetivo que qualifica aquilo que nomeia, gênero grafado
aí enquanto “teoria do gender” e “ideologia do ‘gender’”, neste último sintagma delineando
gender em itálico, aquilo que Joan Scott fizera notar (SCOTT, 1995) por vindicação de algum
estatuto discursivo-científico.
Os efeitos de sentido do sintagma nominal decorrem da indefinição referencial do
substantivo no sintagma

A ideologia de ‘gender’
artigo + substantivo + preposição + adjetivo

Seu artigo em número singular dispõe contradição do número com a concordância do


artigo feminino. A preposição opera enquanto articulador de causa do substantivo, o adjetivo
seguido da preposição “de” tem seu valor semântico inscrito pelo sentido do sintagma
nominal [substantivo, preposição, adjetivo], qualificando aquilo que seja “de fora” a algures
ao biodispositivo matrimonial, denominado pelo documento (FMeUF) por “uniões de fato”.
A posição discursiva sobre o corpo, sobremaneira, se faz desde o controle biopolítico
da família e da escola, compreendendo aos atravessamentos entre Estado e família, diante das
quais a Igreja Católica perde hegemonia no ocidente dada a circunstância histórica de “[...]
privatização do do amor e eliminação do caráter institucional do matrimônio” (FMeUF).
A abjeção ao "Outro” constituído no discurso episcopal é determinada pela negação
daquilo que seja o Eu discursivo ungido pelo matrimônio, alheando as dissidências à
hegemonia cisgênero e heterossexual, a qual legibilidade podemos decifrar um modelo
biopolítico à materialidade significante.
O campo enunciativo do sintagma “ideologia de ‘gender’” ecumeniza ao referencial,
dispondo alhures àquilo que seja divergente ao matrimônio, excluindo ao sujeito difuso das
uniões de fato em materialidade discursiva aos enunciados 5 e 8.
As ocorrências semântico-discursivas de família se contrapõem às assim designadas
“uniões de fato”. A partir das sequências discursivas elaboramos dois quadros comparativos
de referenciação das noções

QUADRO 1. Ocorrências de família e uniões de fato (FMeUF, art. 5)


Família Uniões de fato
A relação fundante é o pacto matrimonial A relação fundante é a equiparação
institucional à família
Valorização do afeto Menosprezo do afeto e da sexualidade
Caridade Mentalidade hedonista
Doação Amor sem responsabilidade
Estabilidade e responsabilidade consorte Instabilidade
Amor conjugal Amor individual
Compromisso perene entre o cristão e Deus Compromisso consigo
Direitos e deveres conjugais Rejeição ao matrimônio por motivos
ideológicos
Verdadeira natureza da fidelidade Modo determinado de viver a própria
sexualidade
Fonte: Família, Matrimônio e “Uniões de Fato”

QUADRO 2. Ocorrências de sexo e gênero (FMeUF, art. 8)


Sexo Gênero
Anatomia Cultura
Base da família e das relações interpessoais Ideológico, influindo nas uniões de fato
Identidade sexo e gênero Dissociação sexo e gênero
Harmônica integração (imputação) Autopercepção
Fonte: Família, Matrimônio e “Uniões de Fato”

O discurso parece, sobremodo nas sequências discursivas 5 e 8 (FMeUF), quais nos


interessam, mobilizar a territorialidade da corporeidade pelo biodispositivo da família natural,
fundando a enunciação do argumento Frankenstein, ao lado de outras situações enunciativas,
outros corpora possíveis ao mesmo objeto teórico, o qual notamos os pares opositivos entre
família e uniões de fato, e sexo e gênero, pares atravessados pela antinomia entre estado de
natureza e cultura.
O lugar enunciativo, constitutivo daquilo que se diz, se estrutura na diferença a
modular o espaço imaginário de adequação e da posição de sujeito no discurso, operando pela
antecipação sobre os termos, formando sentidos de abjeção e expectativa, sentidos operantes
não sensíveis empiricamente, o dito que circula pelo não-dito inscrito à materialidade
significante. A formação discursiva episcopal, que dá base ao sentido de família se liga ao
estado natural, como o amor conjugal tenha surgido junto à sopa primordial do caos. O
adjetivo gender, aí, aparece mobilizando a noção psiquiátrica de gênero.

REFERÊNCIAS

FERRARI, Ana Josefina. A Voz do Dono – uma análise das descrições feitas nos anúncios
de jornal dos escravos fugidos no oeste paulista entre 1870-1876 – Campinas, SP: Pontes
Editores, 2006.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um


cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Psicologia
Política, 18(43), p. 449-502.

PAVEAU, Marie-Anne (org.). Ressignificação em contexto digital / Marie-Anne Paveau,


Julia Lourenço Costa, Roberto Leiser Baronas – São Carlos: EdUFSCar, 2021.

PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de
psicanalistas – Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

PRECIADO, Paul B. TESTO JUNKIE: sexo, drogas e biopolítica na era


farmacopornográfica. N-1, 2018.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação &
Realidade, jul./dez. 1995, pgs. 71-99.

SILVA NETO, Antonio Cilírio da; OLIVEIRA, Luiz Roberto Peel Furtado de; Uso e
sistematização das classes de palavras – substantivo e adjetivo: a teoria e análise linguístico-
gramatical aplicada aos estudos morfológicos – proposta de criação de material didático.

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