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Por um design transviado

Chapter · December 2020

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Guilherme Altmayer
Rio de Janeiro State University
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Bordas
Transversalidades discursivas em arte e design

Marcos Beccari &


Felipe Prando (orgs.)
Bordas
Marcos Beccari & Felipe Prando (orgs.)

Bordas
Transversalidades discursivas em arte e design

Rio de Janeiro
2020
BORDAS
TRANSVERSALIDADES DISCURSIVAS EM ARTE E DESIGN
© Áspide, 2020

co o r den aç ão edi to r i a l Wandyr Hagge e Daniel B. Portugal

pro j e to g r á f i co Marcos Beccari

r e v is ão Pedro da Costa Pereira

co nsel h o edi to r i a l

Rogério de Almeida (USP)

Gustavo Silvano Batista (UFPI)

Marcos Beccari (UFPR)

João de Souza Leite (ESDI-UERJ)

Ricardo Cunha Lima (UFPE)

Marcos Veneu (FCRB)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bordas : Transversalidades discursivas em arte e design /


organização Marcos Beccari , Felipe Prando. — 1. ed. —
Rio de Janeiro : Áspide editora, 2020.

ISBN 978-65-992238-0-8

1. Artes 2. Design 3. Design - Aspectos sociais I. Beccari,


Marcos. II. Prando, Felipe.

20-43539 CDD-745.4

Índices para catálogo sistemático:


1. Design visual : Artes 745.4
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for
necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

Áspide Editora
Rua Senador Vergueiro 30 apto. 201
Rio de Janeiro, RJ. CEP 22230-001
contato@aspide.com.br
www.aspide.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: atravessamentos marginais


Marcos Beccari & Felipe Prando 9

ARTE OCUPAÇÃO E COMUNIDADES IMPROVÁVEIS: um namoro-trança


Milla Jung 15

PLAS AYITI (PROJETO NEON): uma política das imagens


Felipe Prando 31

REVER O ÍNVISÍVEL: o direito de olhar a partir de Foucault,


Spivak e Mbembe
Marcos Beccari 41

NARRATIVAS CURATORIAIS de
cultura material popular
Yasmin Fabris 59

O RESGATE DA AURÉOLA: escritos da arte conceitual como


narrativas legitimadoras
Anderson Bogéa 77
FOUCAULT E A VIDA ARTISTA
da arte moderna
Priscila Piazentini Vieira 93

O CINEMA ENTRE O REAL E A FICÇÃO


a verdade e a mentira na contemporaneidade
Rogério de Almeida 103

A ESTÉTICA DE MANOEL DE BARROS: nomadismo ameríndio e


andarilhamento musical
dani-vi viana 115

DESIGN E A TEORIA ATOR-REDE


com foco na alimentação
Daniel B. Portugal & Flávia M. C. Soares 129

POR UM ARQUIVO TRANSVIADO: notas para uma queerização do design


Guilherme Altmayer 145

SUJEITOS CONFESSIONAIS E CONDUTAS DE NÃO VERDADE: Foucault,


Fanon e a elaboração do sujeito
Daniele Lorenzini & Martina Tazzioli 159
Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.

— Bertolt Brecht

— Michel f oucault
POR UM ARQUIVO TRANSVIADO
notas para uma queerização do design

Guilherme Altmayer1

-
lidades de queerização -
cas engendradas pelo desenho de um arquivo2 para a salvaguarda de memórias
3

Com a intenção de analisar o papel da construção de arquivos como um


-
gicamente suas estruturas normativas e alertam para as responsabilidades éti-

1 Doutor em design pela linha de digital <https://www.tropicuir.org/>. bons costumes. adj. Desencaminha-
pesquisa Comunicação Cultural e 3 O termo “transviado”, frequente- do; que se perdeu do caminho; que se
Artes do Programa de Pós-graduação mente mencionado neste capítulo, é
em Design da Pontifícia Universidade usado por Berenice Bento para de-
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). signar estudos/ativismos transviados, preestabelecidos ou vigentes. Figura-
Membro da Red Conceptualismos do. Vagabundo; que vive a vagar sem
del Sur, rede latino-americana para termo “queer”, uma tradução consi- rumo certo. Para mais, ver: Padilha,
- derada pertinente pela autora para Felipe; Facioli, Lara. “É o queer tem
líticas. Pesquisa práticas dissidentes pensar em um termo “guarda-chuva”
Bento”. Áskesis, v. 1, n. 4, p. 143-155,
design. E-mail: galtmayer@gmail.com. jan./jun. 2015. Disponível em: <ht-
2 dicionário, o termo transviado tem o tps://www.revistaaskesis.ufscar.br/
arquivo que serviram de inspiração
para a construção da plataforma se transviou; quem se afastou dos Acesso em junho de 2020.
O caminho proposto para esta escrita passa por uma breve introdução
aos estudos queer, com suas propostas e práticas contranormativas, enquanto
vertente de pesquisa que subsidia o pensar crítico do qual lançaremos mão
para debruçarmo-nos sobre práticas arquivísticas e o papel do design em suas
transviação.4 Longe de esgotar
o tema, e tendo em vista a impossibilidade de fornecer respostas assertivas,
interessa aqui desnaturalizar o campo do design, despi-lo de uma suposta

Em Por um design político

do articulado via suas práticas aplicadas, gerar rupturas na ordem do sensível.


“Para nós, a política é um assunto de sujeitos e modos de subjetivação, e deste

de design politizado, mas poucos em que o design foi de fato político”.5 Desta
feita, interessa aqui pensar politicamente o design ao propor uma queerização
do campo. Para iniciar esta tentativa, apresentaremos, brevemente e de forma
introdutória, os estudos queer como um arcabouço teórico referencial.

UTOPIAS QUEER: CRITICAR PRESENTES, IMAGINAR FUTUROS

-
cas e ativistas, descontentes com as políticas identitárias em curso nas práticas
ativistas que ainda trabalhavam dentro de um recorte normativo, dedicaram-se
a abrir frentes para a crítica e a desconstrução dos meca-
nismos de produção de discursos e dispositivos normativos
o Design”. Arcos Design, Edição
e identitários, centrados em reforçadores da hegemonia
especial Seminário Design.Com,
- v. 10, n. 1, 2017. Disponível em:
<https://www.e-publicacoes.
pulsória.
A partir desse gesto de levante, setores da comunida- article/view/30937>. Acesso em
junho de 2020.
5 Portinari, Denise; Nogueira,
queer (termo da língua inglesa que tem caráter Pedro Caetano Eboli. “Por um
design político. Estudos em Design,
pejorativo correspondente a estranho e a desajustado) para
v. 24, n. 3, p. 32-46, 2016, p. 33.
Disponível em: <https://estudo-
semdesign.emnuvens.com.br/
simbólicas e físicas sofridas por corpos dissidentes, subme-
design/article/view/379/255>.
Acesso em junho de 2020.

146 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


queer no fazer

Movimentos ativistas como o ACT UP,6 -


tária do estado norte-americano diante da epidemia de Aids, a qual se intensi-

estudos queer, sobretudo no que concerne à sua divulgação pública enquanto


História da sexualidade I: A vontade de
saber 7 eram levadas nos bolsos de membros do ACT UP, o que indica que Michel
queer.

análise das estruturas formativas das sociedades disciplinares. Seu pensamento

um dos mais importantes pilares de desenvolvimento das lógicas de produção

Foucault fala de um incessante investir sobre a vida, em discursos, práticas e


silenciamentos, que podemos, e devemos, ter em mente ao pensar o desenho
de arquivos.
Foucault investigou como, entre os séculos XVIII e XIX, nas sociedades

agora dotado de substância psicológica própria a partir de um processo de


patologização descrita como desvio.
Assim, não é apenas mais a prática da sodomia que está em jogo, mas,

de um lugar de desvio necessário para a construção do que seria a representa-

ajustado, considerado apropriado às lógicas de produção


6
Coalition to Unleash Power ou,
em tradução minha, Coalizão -
para Libertação do Poder na luta
te para a força de trabalho.
contra a AIDS.
7 Foucault, Michel. História
da sexualidade I: A vontade de
intensamente, discursos medicalizantes, judiciais e religiosos
Graal, 1998.

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 147


-
vos que intentam a regulação e a condenação dos corpos vadios e dissidentes.

Gender Trouble, e outras que seguiram,


8
Butler

O sistema operante da cisheteronorma administra a visibilidade e o


reconhecimento público dos corpos tendo, como resultado, os corpos normais
e os corpos abjetos, socialmente marginalizados, estigmatizados e tidos como
ameaças à disciplina estabelecida pelo que é “natural”.
-

etc.), corpos transviados, desviados, feito abjetos... emitem


outros códigos, outros desejos sociais e politicamente dis-
8 Butler, Judith. Gender Trouble.
cordantes, distintos dos promovidos pela norma e, portanto,
New York: Routledge, 1990.
trazem à luz outras formas de estar, de se organizar. São 9 O termo cisheteronormativo
refere-se a um conjunto de práti-
impelidos a uma insurreição crítica que não apenas se dedi-
cas e dispositivos legais, médicos
ca a desconstruir e dar a ver ordenamentos opressivos, mas e sociais que trabalham para
que os comportamentos sejam
propositivas da liberdade do desenho do próprio corpo, e
ditados por normas dominantes
a partir da noção de heterosse-
-

Nessa linha, a pesquisadora Guacira Lopes Louro, criada a partir desse conjunto de
normas para designar os indiví-
uma das precursoras dos estudos queer na educação, no
duos considerados anormais e
Brasil dos anos 2000, entende que, mais do que buscar uma
nova identidade, as práticas queer
diferença: “queer representa claramente a diferença que não foi atribuído ao nascer. Muitas
outras pessoas não se sentem
quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressora e perturbadora”.10 -

Queerizar trata-se, portanto, de engendrar meios


mais, ver: <http://transliteracao.
para imaginar outros mundos e maneiras de desorganizar com.br/leiladumaresq/2014/12/o-

práticas normativas e pensar outros modos de subjetivação.


julho de 2020.
Em Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity, José 10 Louro, Guacira Lopes. Um
corpo estranho: ensaios sobre
-
queer. Belo
sar fora da cisheteronormatividade, um pensar de mundos

148 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


-
das — segundo o autor, “a utopia nos possibilita criticar o presente a partir de
um pensar sobre o que pode ser”.11
Manifesto
contrassexual, 12
-
-
sivas e falsamente tolerantes; não se trata de uma luta contra a proibição, mas
sim a partir da contraprodutividade, ou seja, a produção de formas de prazer e

DESEJO DE ARQUIVO: HISTÓRIAS E FICÇÕES

-
rias, memórias e imaginários desde um viés questionador, interessa conceber
estratégias para encarar o design por um viés queerizado, pelo que nos pro-
pomos a pensar no que pode ser, que desenho e contornos pode ganhar, um

organizado via plataforma tropicuir.org.


-
viada, penetraremos por camadas de entendimento do desenho político de
arquivos, à luz de entendimentos proporcionados por aberturas teóricas como
as de Michel Foucault, Jacques Derrida e Achille Mbembe, cujos olhares ampliam
horizontes também para o pensar no design, sobretudo quanto ao seu papel na
construção e, também, na desconstrução de sistemas de controle de informa-
-
das para a transgressão à norma.
Tomamos como ponto de partida o entendimento
dos arquivos como repositórios documentais de memórias
Crui-
sing Utopia: The Then and There
of Queer Futurity. New York: NYU
-
Press, 2009, p. 35, trad. minha.
12 Preciado, Paul B. Manifesto tuem os saberes.
contrassexual: práticas subver-
Em A arqueologia do saber,13 Michel Foucault buscou,
Paulo: n-1, 2017. através do método de trabalho arqueológico, sistemas,
13 Foucault, Michel. A Arque-
dinâmicas e mecanismos que fazem, de coisas ditas, práticas
ologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 149


enunciados que, ao longo dos tempos e espaços, conformam áreas autônomas,
-
dade, família etc.).
Através desta arqueologia, o autor apontou caminhos para a compreen-
são sobre como os saberes (construção de verdades) emergem de acordo com

-
mento, entre outras formas de forjar a história como a conhecemos.

discursos em si, mas de estabelecer um olhar sobre enunciados, este conjunto

achados a uma cronologia, mas interrogar o que já foi dito, as “coisas ditas”

14

que este teórico inclui o arquivo em sua arqueologia dos saberes, como um
sistema de enunciados que tem acontecimentos de um lado, e coisas (estrutu-
ras) de outro. O autor fala de como, nas tecnologias das práticas discursivas,
se encontram em atuação sistemas que determinam enunciados (regras que

(produção de verdade).
-
mínio de aparecimento e arcabouço que suporta acontecimentos: “o arquivo
é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares”.15 Esses dois elementos — acon-
tecimentos e coisas —
poder que logo darão um sentido ao discurso.

como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nascem segundo


16

Ao contrário do que podemos entender por ideal de


salvaguarda atribuído ao arquivo, no qual o acontecimento
14 Ibidem, p. 149.
estaria protegido do enunciado, por deste ter escapado no
15 Ibidem, p. 147.
ponto da instauração do arquivo para memórias futuras, 16 Ibidem, p. 146.

150 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


que
17

-
rável do enunciado. Na sua origem, o arquivo é constitutivo do discurso, logo,
politicamente responsável pela produção discursiva que abriga e comunica.
Mais do que ser um repositório do que foi proferido em discurso, e para além

faz o trabalho de diferenciação dos discursos, em toda a sua multiplicidade, e

virá a se tornar arquivo. Registros que são subsídios para a escrita de histórias e

Já Achille Mbembe, em The Power of the Archive and its Limits


o arquivo é produto de um julgamento, o resultado de práticas de um poder

documentos, enquanto outros são rejeitados. O arquivo é, segundo o pensador,


-
sos e atribuir status hierárquico de “não arquivável’ a outros: “O arquivo não é
um dado, é um status”.18
Status que garante visibilidade, uma posição na hierarquia, e, principal-

matéria para que discursos sejam transformados em verdades. O destino do


arquivo está localizado fora da sua própria materialidade ao se tornar parte de
uma história com a qual colaborou.
Jacques Derrida, por sua vez, no seminário Mal de arquivo
pensar o fazer arquivístico evitando trazer um conceito absoluto para o termo

17 Ibidem, p. 147. dá título ao seminário, representa a ameaça de pulsão de


18 Mbembe, Achille. “The Power
morte, de agressão, de destruição —
of the Archive and its Limits”. In:
Hamilton, Carolyn et. al. (Eds.).
. Dordrecht:
e preservação do que foi documentado e arquivado.19
Springer, 2002, p. 20, trad. minha.
19 Derrida, Jacques. Mal de ar- O argumento que mais nos interessa dentre os
quivo: uma impressão freudiana.
apontamentos deste trabalho de Derrida acerca do arquivo
Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001. é a noção de que a estrutura que sustenta, que dá forma ao

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 151


materiais e meios tecnológicos utilizados num dado momento: o que entende-
mos ser, portanto, uma questão também do design.

DESIGN COMO MEIO: OPERAR DISCURSOS, RESPONSABILIZAR FORMAS

O design, campo ainda em estruturação conceitual quanto às suas impli-

elucidação dos processos discursivos imbricados no fazer design. Para tal, incli-
namo-nos a pensar o design como técnica que sugere caminhos para dar forma
e propor meios de distribuição da informação — algo que “in + forma”, 20 ou seja,
que dá forma a algo: vaso comunicante.

repensar como essas estruturas se materializam, que critérios são utilizados e a

constituído: privilégio de arquivo.


A partir desses argumentos, soa um alerta relativo à responsabilidade
política do campo do design, entendido aqui como máquina — dispositivo
gerador de procedimentos e estruturas de sustentação da arquitetura de

arquivos. O design também enuncia; logo, trata-se de um agente atuante na

as formas pelas quais os registros serão providos de sustentação, por quem

mortes anunciadas.
Nesse sentido, Derrida pergunta “a quem cabe, em última instância, a
-
21
incitando-nos a questionar
para além do conteúdo do arquivo e a conjecturar sobre o sujeito arquivador.

20 Cardoso, Rafael. Design para


um mundo complexo. São Paulo:
Ubu Editora, 2016.
Marshall McLuhan, teórico fundamental para a com-
21 Derrida, Jacques. Mal de
preensão dos fenômenos informacionais e comunicacionais arquivo, op. cit., p. 7.

152 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


-

mensagem é veiculada, isto é, o meio, é tão importante quanto o teor transmi-


tido pelo mesmo: “os suportes são determinantes na mensagem: os conteúdos

trabalho humanos”. 22
Já o sociólogo espanhol Manuel Castells, por sua vez, em consonância

XXI, defende, em Communication Power, que qualquer possibilidade de mudança


social deve passar por um processo de reprogramação das redes de comunica-
ção, as quais constituem o ambiente para o processamento imagético e simbóli-
co de informação em nossas vidas. 23
Ora, se até aqui procuramos tensionar o campo do design, torna-se
imperativo pensar também o papel do designer como agente político em seus
processos de enunciação. Desde a instauração de uma sociedade de redes,
alicerçada na cultura digital globalizada através das tecnologias de comunica-

não somente aplicada, mas também responsável social e politicamente por sua
atuação — localizar os saberes que gera, assumindo sua implicação enquanto
dispositivo que, além de operar discursos, projeta suas formas.
Frente ao entendimento de que o designer é corresponsável pelos ditos
e não ditos que constituem discursos normativos, podemos recorrer a Donna
Haraway, em Saberes localizados, para evidenciar que uma proposta epistemo-
lógica de saber situado é uma ação política que reconhece que a produção de
-
22 McLuhan, Marshall; Lapham ligada, da subjetividade de quem a realiza. 24 Relatar o ponto
Lewis. Understanding Media: The

Press, 1994, p. 12, trad. minha. fazer, neste caso, design. Bem como leva em consideração
23 Castells, Manuel. Commu-
que, em realidades tão diversas, é preciso compreender que
nication Power
University Press, 2009. são muitos os olhares possíveis para analisá-las.
24 Haraway, Donna. “Saberes
Não se trata, ademais, de atestar que tudo pode o de-
para o feminismo e o privilégio signer que se coloca e que se localiza. Muito pelo contrário, a
da perspectiva parcial”. Cadernos
pesquisadora feminista frisa que esse não é um lugar isento
Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponí-
vel em <https://periodicos.sbu. de reavaliação crítica, de desconstrução e interpretação; até
-
porque, segundo a autora, a visão é sempre uma questão do
gu/article/view/1773>. Acesso em
junho de 2020.

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 153


25
questiona.

Uma condição parcial e situada do conhecimento oferece, portanto, uma


-

nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver”. 26

fundamental na instituição de acontecimentos arquiváveis, é não apenas des-


construir um campo que evita lançar um olhar crítico sobre sua epistemologia,
mas também criar possibilidades futuras de construção de saberes, técnicas e
processos mais abrangentes, coletivizados e localizados. Um design queerizado
deve, portanto, engajar-se em criar espaços de contestação. Cabe, assim, ao de-

TRANSVIAÇÕES: ESTRATÉGIAS CONTRACISHETERONORMATIVAS

Derivado do latim designare, o design é aqui pensado não somente como

Para tal, a queerização do design de arquivo envolve não 25 Ibidem, p. 25.


26 Ibidem, p. 21.
somente buscar uma desheteronormatização de suas bases
estruturais, 27 mas também abrir caminhos para tentativas Julieta; Pizarro, Javiera; Posada,
Diego. “ARXIU DESENCAIXAT:

Re-visiones, n. 8, 2018. Madri:


Universidad Complutense de Ma-
Queerização, segundo o artigo Queerizando o design, drid. Disponível em <http://www.
-
de Denise Portinari, consiste em abrir os olhos do campo
SIONES/article/view/293/558>
- Acesso em junho de 2020.

154 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


Abertura que se dá a partir de um processo de tensionamento e sensibilização
do campo sobre suas formas de atuar e seus escoamentos políticos, éticos e

compartilhado, do espaço comum”. 28


Para Portinari, essa queerização passa por trazer à luz a atuação do desig-
ner na produção da normatividade, uma análise sobre as maneiras como ele se

sugere o agenciamento do campo para a produção de perspectivas e práticas


contracisheteronormativas, ferramentas de articulação política transviada.
Queerizar é problematizar a normatividade e potencializar a diferença,
onde elas são produzidas: “nos dispositivos de saber e de poder, na perfor-
matividade dos discursos e das práticas, na materialização e partilha das (in)
29
Queerizar o
design trata, portanto, de pôr foco em seus processos constitutivos e atribuir

pretende não dar a ver.


Objetos de desejo, quando declara que
-
cer, principalmente no que tange aos seus aspectos ideológicos:

Longe de ser uma atividade artística neutra e inofensiva, o design, por sua própria

mídia porque pode dar formas mais tangíveis e permanentes às ideias sobre quem
somos e como devemos nos comportar. 30

consumo e os discursos a eles atribuídos, em catálogos de venda postal norte-a-


mericanos na virada para o século XX. Seu objetivo era demonstrar certas cate-

diferenças entre homens e mulheres; crianças e adultos; ricos e pobres, para de-
monstrar a atuação do campo do design como dispositivo de
28 estruturação de lógicas binárias e reforçadores de discursos
o Design”, op. cit., p. 2.
29 Ibidem, p. 14.
30 Forty, Adrian. Objetos de
desejo: design e sociedade desde
dos períodos nos quais está inserido. O autor atenta para o
1750. São Paulo: Cosac Naify,
2007, p. 12. quanto o design, na sua tarefa de conceber, projetar e dar

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 155


forma, se incumbe de reforçar e perpetuar discursos normativos que predomi-
nam no tempo e espaço em que atua, e para além dos mesmos. Como, então,

Imaginemos uma proposição de arquivo transviado: dispositivo que não


apenas conserva, mas revela, mesmo que precariamente e por fragmentos, um
-

-
-

Visitando os arquivos da Amateur Archivist, em sua página na internet, depara-

31

transviada. 32 Destruir e apagar vestígios foram, e ainda são, muito importantes

Brasil: queima de arquivo.

historicamente foi utilizada para gerar processos patologizantes, encarcera-


mento (lembremos da lei da vadiagem na ditadura militar no Brasil, que pren-

violentos para disciplinar nossos comportamentos e atos.


31 Archivist, Amateur. Nosotr*s
moriremos, ls herramientas no:
um guardião da presença heteronormativa, que vai traba-
Notas sobre um archivas queer.
Disponível em: <http://www.
amateurarchivist.net/ephimeri-
ou invisíveis, ou ainda aproveitando-se delas para atos de
de 2020.
32 Crui-
Jack Halberstam, em In a Queer Time and Place: Trans-
sing Utopia, op. cit.
gender Bodies, Subcultural Lives, 33 pondera que o arquivo 33 Halberstam, Jack. In a Queer
Time and Place: Transgender Bo-
queer não se trata de um mero repositório, mas da constru-
dies, Subcultural Lives. New York:
ção de uma memória coletiva na qual estão presentes regis- NYU Press, 2005.

156 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


das histórias neles presentes.
Halberstam fala da ideia de bloco histórico, alianças entre uma minoria

papel fundamental não somente na construção de memórias e arquivos queer,

radicalidade dos trabalhos permaneça nas mãos das “subculturas transviadas”


The Queer art of the counter archi-
ve, no qual Ann Cvetkovich, a partir de suas práticas sobre o Lesbian Herstory Ar-
chives (LHA), 34
construção de arquivos radicais [que] podem sustentar um futuro queer, ao nos
lembrar de passados queer”. 35 Para a autora, nossas comunidades transviadas

das normas e técnicas arquivísticas usuais.


34 Para mais, ver: <http://
Neste caminho para pensar o desenho de um arquivo
www.lesbianherstoryarchives.
org/>. Além desta, cito algumas transviado, esbarramos em um problema preliminar já no
outras plataformas digitais que
momento de sua concepção. Derrida declara que não have-
trabalham arquivos e memórias
transviadas: Acervo Bajuba ria arquivamento sem título, sem um nome — e por isso sem
(acervobajuba.com.br); One
-
Archives (www.onearchives.org/);
Memórias e Histórias das Homos- quiza: “sem ordem e sem ordem, no duplo sentido desta pa-
lavra”. 36 Agir sob uma perspectiva queer
blogspot.com); Instituto LGBT
(instituto.lgbt); GLBT History gesto de atribuir nomes, identidades, categorias, esse gesto
(www.glbthistory.org); Archivo
de La Memoria Trans (archivo-
delamemoriatrans.tumblr.com); serviram para patologizar e marginalizar nossos corpos.
Se o arquivo, observado por um prisma institucional,
tumblr.com); Potencia Tortillera
(potenciatortillera.blogspot.com); demanda a normatização e binarização de seus conteúdos,

com/). Acesso em junho de 2020.


35 Cvetkovich, Ann normativos, correndo o risco de serem esvaziados, embran-
Art of the Counterarchive”. In:
quecidos pelas tentativas de submeter suas práticas à cishe-
Frantz, David; Locks, Mia (Eds.).
Cruising the Archive
and Culture in Los Angeles, 1945-
de outros fundos documentais.
1980. Los Angeles: ONE National
Lesbian and Gay Archives, 2011,
p. 35.
36 Derrida, Jacques. Mal de
arquivo, op. cit., p. 56.

Por um arquivo transviado . Guilherme Altmayer 157


DESENHO DE ARQUIVO: RASTROS E TRAÇOS — ESCUTAS E FALAS

partir do revisionismo histórico, temos como ponto de partida a proposta de


escapar dos sujeitos históricos, do que é contado, para ir na direção do corpo
contador de sua própria história, criador de sua própria narrativa coletiva —
fundamento para a construção de tropicuir.org. Nesse sentido, pensar o design
de arquivo transviado passa por práticas de autorrepresentação: feito objeto,
abjeto, agora posso ser sujeito da minha memória.
Charles Morris e K. J. Rawson argumentam que arquivos queer, em suas
-

presentes, de desestabilizarmos os registros com nossas presenças e nossas

constituem, portanto, em si mesmas, uma intervenção política. 37


Nesse sentido, alinhamo-nos a Morris & Rawson em um impulso de enga-
jamento social e coletivização da memória, ao entendermos as práticas arquivís-
ticas como conectoras entre temporalidades que se fundem e traduzem-se em
-

transviada, ainda sempre por realizar, presentes na sua precariedade para


podermos imaginar futuros em nossos corpos, e nossos corpos no futuro.
-

-
nhar, através de práticas artísticas entendidas como práticas políticas, lugares
onde todas nos tornamos agentes. Testemunhos como

37 Morris, Charles; Rawson, K. J.


comunidades marginalizadas, imagens lidas aqui como atos
In: Ballif, Michelle (Ed.). Theorizing
que emergem de posicionamentos críticos para o desenho
histories of rhetoric. Illinois: SIU
político de arquivos transviados. Press, 2013.

158 Bordas: transversalidades discursivas entre arte e design


Resultantes dos primeiros anos de atividade do Grupo de

Estudos Discursivos em Arte e Design da UFPR, os ensaios

e situa nossas relações com a “visualidade contemporânea”

— isto é, com a profusão de artefatos e artifícios que

do senso comum para explorar os limites, as fronteiras, as

discursos da arte e do design são aqui confrontados com as

transversalidades que os conjugam e os ultrapassam.

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