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José Neto
(Organizadores)
Entrelinhas da Pichação:
Diálogos Sorocabanos
Sorocaba/SP
2019
A Comunicação Popular Urbana - Thífani Postali 9
Quatropê - Ed Mulato 59
História de uma vida: Desigualdade Social - Ana Maria Souza Mendes 111
APRESENTAÇÃO:
A COMUNICAÇÃO POPULAR
URBANA
Pichação, pixação, grapixo, lambe lambe,
Thífani Postali stencil, entre outras comunicações imagéti-
cas, são elementos constituintes dos grandes
centros urbanos existentes em todo o globo.
São escritos urbanos marcados na cultu- Como as demais imagens da cidade re-
ra local, nacional e mundial e sobre os quais não tidas pelas pessoas, o graffiti compõe a cultura
ficamos passivos. Marca sob marca, escrito sob urbana que temos. Essa cultura que nos une e
escrito, o graffiti como manifestação de ideias e particulariza em relação às demais pessoas do
posicionamentos, de todas as espécies, marca o mundo. Em várias situações, já disseram que
espaço duplamente, pois, de um lado, paredes, era uma segunda pele da cidade. Mas tinta em
solo e tetos recebem uma escrita (seja de letras transformação não é pele! É muito mais que
e/ou desenhos); de outro lado, os passantes e uma segunda pele. É A pele da cidade naquele
frequentadores recebem informações em no- momento, a causar espanto, discórdia, risos e
vos códigos e estéticas e o entendimento e a toda a gama de sentimentos vivenciados pelos
compreensão dessas leituras são, estritamente, urbanos.
pessoais. Trazem e causam sentimentos inco-
municáveis nessa linguagem que falamos dia- Nesse ínterim de sentimentos, a próxima
riamente, visto que são registros de códigos que volta pelo quarteirão pode trazer surpresas. Fei-
cada um, com seu repertório de vida, de simbo- to um conto policial, o suspense é o ingrediente
Sorocaba logias, interpreta como pode. do fazer e do ver o graffiti, assim como da pi-
ESPAÇO GRAFFITI Xação, espécie de corte na pele da cidade que
Não vem ao caso que o graffiti seja con- exige mais do que leitura e gosto. Exige que o
Paulo Celso da Silva O espaço urbano foi visto, por quase todo o siderado arte ou não. Isso não cabe ao crítico, te- passante esqueça, de momento, o que apren-
Doutor em Geografia Humana, professor do Programa de Mestrado século XX, como um grande quadro em branco órico ou artista definir. Mas cabe ao expectador deu e reaprenda a ver, a ler e a gostar.
em Comunicação e Cultura da UNISO. Participa do grupo de pesquisa
MidCid-Uniso. Autor de “De novelo de Linha a Manchester Paulista”, no qual as sociedades podiam escrever as suas da cidade aceitá-la como tal. Ou não. Ainda as-
“Walt Disney’s Celebration City. Reflexões sobre comunicação e histórias. Escrever pelos muros e vias não é um
cidade”, “Poblenou: território @ de Barcelona. Projeto 22 @BCN.
Estudo e considerações” e “Cidade e Comunicação”, volumes 1 e 2. privilégio das pessoas que vivem este momen-
to, ao contrário, as pessoas que vivem hoje de-
vem suas inscrições a muitos tantos que, ante-
riormente, viveram, escreveram e marcaram no
Sabia que iria receber as imagens para a sensibilidade ímpar. Tudo me agride. Da no-
construção do texto. “_ Você vai se chocar! tícia, que me marcou quando li de que o gru-
Nem vou falar muito para você ter uma pri- po terrorista islamita Boko Haram sequestrou
meira impressão sua”. Assim se findou o con- pelo menos duas mil mulheres e meninas na
vite para discorrer sobre uma imagem femi- Nigéria desde 2014, aos filhos sem pai do funk
nina que fora vilipendiada por uma pichação. fluxo, e ao estupro coletivo de uma adolescen-
Aguardei ansiosamente e, quando abri, triste- te no Rio de Janeiro, a qual, hoje, é obrigada a
mente... viver sob custódia do Estado, num programa
de proteção a testemunhas.
Não me choquei. Nada. Nadinha.
Portanto, um grito calado feito numa traves-
Nem um pouquinho? É, nem um pingo sa de um bairro qualquer de Sorocaba, o que
de surpresa. significa frente a tanta barbárie? Na realidade,
significa, sim. Muito em extensão e em conteú-
Três segundos depois, me assustei – sim do. É a pichação pornográfica sobre a imagem
– com a minha reação. Será que a amortiza- feminina a corporificação dos crimes sexuais. Há
ção dos meus sentidos chegou num nível tão um grande equívoco quando se pensa no que é
avassalador? Seria a violência real tão banal no o estupro. A imagem do monstro de falo ereto,
meu cotidiano que o “estupro” da arte figura- sem rosto, troglodita desprovido de qualquer
ria somente como a cereja do bolo? moral, não coaduna com o que encontramos
Rua Luiz Dordetto no dia-a-dia policial. O homo taradus do imagi-
Próx. Ceagesp Resposta: não sei!!! Certo é que sou de uma nário popular, que emerge das sombras numa
Rua Olinda Luz Marte
24 O Empoderamento do Animê 25
esquina e arrasta a vítima (que só o será se for ca do pichador em relação ao grafite original. com bigodes, e na idade adulta, com falos nostem o direito de se mostrar sem nos sentirmos
recatada e pudica) para a penetração forçada Até porque a imagem era linda. Ou seja, a éti- penetrando. Aprendemos que a fragilidade fe- diminutas por isso. A exposição da combinação
é uma falácia. ca dos marginalizados não está presente se o minina pede e necessita da brutalidade mascu-mulher + beleza + força é, na verdade, apenas,
assunto for mulher. lina. Que a beleza feminina, ampliada pelas mi-
a demonstração, em forma de arte, do que a
A imagem é a realidade brasileira. A ima- núsculas vestimentas que deverão ser adotadasmulher é diariamente... em sua vida, casa e tra-
gem sensualizada deve e pode ser estuprada Incomoda-me o fato da necessidade do falo pelas mulheres, é apenas um acessório para a balho... Linda + forte e mulher!!! Digna de res-
porque está à mostra. As coxas desnudas “pe- em toda e qualquer representação cultural de robustez do homem, para que o corpo feminino peito, igualdade e orgulho. Alguém que não
dem” o pênis. Os lábios vermelhos clamam nossa sociedade. O grafite inicial demonstra seja utilizado para os seus “verdadeiros” propó-
têm e não necessita de um falo para ser ela
pelo sexo oral. A cintura fina e o decote são uma mulher, um animê, que se caracteriza sitos: a satisfação do homem e a procriação. mesma. Alguém que não necessita de múscu-
convites a um ato libidinoso. Voluntário ou como uma nova forma de cultura pop, uma los para ser forte e não necessita ser humilhada
não. nova forma de idealizar o herói/heroína mo- Infelizmente, são necessárias palavras de e explorada em cada esquina para saber o seu
derna. No caso, nos deparamos com uma jo- empoderamento para entendermos o quão er- lugar. Porque o lugar da mulher é em todos os
Este é o nosso cenário. As cifras do Minis- vem mulher linda, sexy, dona de si.... heroína rada é a presença do falo naquela imagem. A lugares. E o sexo e o falo para ela são escolhas e
tério da Saúde/SVS (2011) demonstram que pelo simples fato de existir nas paredes sujas beleza do corpo feminino é um privilégio que não imposições.
a maior parte dos estupros ocorre na segun- e rabiscadas de nossa cidade, guardando e
da-feira. Os horários também são surpreen- contando sua história em uma esquina/beco.
dentes: as crianças, majoritariamente, são
violentadas entre 12h00 a 18h00. Não preciso Infelizmente, em uma sociedade patriarcal,
de qualquer pesquisa para afirmar catego- machista e sexista como a nossa, a presença
ricamente que os autores de crimes sexuais de uma linda mulher forte, com roupas curtas
Av. Juscelino Kubitschek
serão, na maioria, pessoas do convívio da (é claro!!!), em um beco escuro, não poderia fi-
vítima. O monstro de genital em riste será o car sem a presença do falo!!! Convenhamos, ela
padrasto, pai, marido, namorado, vizinho, clama pelo “pau”, seus lábios, suas coxas... seus
avô, professor, tio, amigo da família e os que seios!!! Vejo essa imagem e me reporto à infân-
já foram tudo isso (os “ex”). Fato: a violência cia, quando se pegavam imagens de mulheres
sexual está enraizada no “seio da família bra- em revista... uma caneta e... tchanam!!! Apare-
sileira”. ciam bigodes, cavanhaques... barbas e coisas
do gênero na revista.
As frases de empoderamento represen-
tam a reação necessária e imprescindível Parece bobagem, mas é interessante perce-
para uma ação afirmativa. Mais que a imagem ber como o masculino está presente em nossas
conspurcada, fiquei perplexa com falta de éti- vidas... nas menores manifestações... na infância,
40 Sentimentos Controversos 41
alentador de uma sereia, mostra-se como reden- A propaganda torna-se o mais importante Neste réquiem de moribundos, cada um de
ção. Se os medievais buscavam a salvação da guia sobre nosso modus vivendi. Não importa nós se insere sob uma perspectiva, seja a dos
alma na igreja, nós buscamos a salvação do cor- se você gosta ou concorda com algo, mas pre- que sofrem com as consequências do sistema,
po mesmo, num shopping (pois não dá tempo cisa daquilo para mostrar aos outros que tem seja a dos que usufruem das migalhas espa-
de esperar, tudo é urgente!). A felicidade vem em e que pode fazer. O guia de como ser feliz está lhadas ao longo do caminho. O que importa é
pequenos pacotes, embrulhadinha com o dese- espalhado pelo mundo em outdoors, revistas, manter essa roda girando, mesmo que às cus-
jo de ser descoberta. “Abra a felicidade”, dizem, anúncios; passa na TV a cada instante; está tas de solidão, desigualdade, violência, intole-
pois o mundo está aí para ser curtido, devorado, à distância de um pequeno toque. Adorno rância e até da morte. Todos pagarão o preço
sempre com pressa e pouco senso crítico, com nunca esteve tão certo sobre a necessidade – alguns mais, outros menos – pela manuten-
a pequena exigência da concessão do dinheiro de se criar padrões de comportamento para ção do modelo de vida ao qual ousamos não
obtido ao longo da frustração diária como forma se definir padrões de consumo. Sabe o brin- criticar, mas aceitamos de bom grado como
de compensação por toda essa maravilha. Mas, co da protagonista da novela? Amanhã estará um presente, capaz de incutir no ser huma-
fazem-nos pensar: o que é isso diante da possi- nas mais diferentes orelhas, vindo da joalhe- no a ilusão da oportunidade e da realização
bilidade de felicidade instantânea? ria “oficial” ou do camelô, “oficioso”. Mas, o oriundas apenas de esforço próprio.
que importa é o uso, a ostentação: não para
si, mas para os outros. Estar na moda é estar Cerceados pelo ritmo frenético do mundo
atento aos outros. Não importa o que penso, em que vivemos, nos vemos – como aponta
mas o que pensam. Não importa o que sou, Zygmunt Bauman – diante de uma realidade
mas o que tenho. fluida, onde sentido e objetivo deram lugar ao
conformismo, aceitando-se como dependen- supérfluo e transitório, numa busca sem razão
tes de um sistema que os aprisiona. O traba- Impregnados por essa lógica insana, de por algo que nem sabemos bem o que é. Ser
lho realizado no emprego torna-se, ao invés de docilidade e conformismo no trabalho e de dócil e voraz nunca fez tanto sentido diante
agente de emancipação humana, um fardo a ser voracidade e dependência no consumo, nos da sua própria contradição.
carregado. Precisamos aceitá-lo da forma como é apresentada outra máxima publicitária, re-
é, pois, se há algum problema, ele está em mim, citada como mantra, para que saibamos que
não no modelo; não nas condições a que me esse é o jeito certo de se viver: “Amo muito
submetem, nem na estrutura predatória que o tudo isso”! O questionamento e a reflexão so-
mercado impõe. Tais pessoas colocam-se numa bre esse modelo de vida – se é que podemos
jornada sem rumo ao vazio do capital, mas dese- assim considerá-lo – são proibidos. A confor-
jando conquistar aquilo que talvez seja o fim úl- mação é condição para o reconhecimento por
timo do ser humano: ser feliz! – diria Aristóteles. parte de todos, da família aos amigos, da em-
No entanto, como sê-lo diante do fracasso? Eis presa à igreja.
que a voz sublime do consumo, como o canto
Evenize Batista
Jornalista, assessora de imprensa e professora universitária;
Apaixonada por arte e pintura em espaços públicos; Mãe de
trigêmeos; Mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso,
especialista em Gestão de Cidades pela Faap e graduada em
Comunicação Social - Jornalismo pela Uniso.
Temos vivido tempos difíceis para quem crê e envenenados. Vivemos tempos digitais, tem-
no bem da humanidade. É preciso ser forte para pos de menos toque, de menos abraço e vem
manter o otimismo e não se deprimir diante de alguém com essas oito letrinhas, esses oito ca-
tanto desamor manifestado em preconceito, racteres a céu aberto, e nos faz parar para ler e
em intolerância, em discriminação, violências parar para pensar em amor.
de todos os tipos e muros reais e imaginários
que têm sido erguidos aqui e acolá. Seria essa Enfim, não será possível saber qual foi a mo-
angústia a razão de alguém ter resolvido espa- tivação que levou esse alguém a sentir e, não
lhar uma mensagem sobre amor pela cidade? bastando o sentimento, transbordar em tinta
pela cidade um pedido por amor, ou seria um
Em meio a tanta informação triste, noticiário pedido de amor? A tal motivação deixamos de
negativo que se dissemina em uma audiência especular, mas sabemos que essa mensagem
que não presta atenção; gente que lê só 140 ca- não é exclusividade das ruas de Sorocaba. Ela
racteres (quando muito); gente que se acostu- está espalhada pela internet. E, acompanhada
ma a consumir só superficialmente as informa- de “por favor”, se fortaleceu em uma hashtag
ções, mas, mesmo no raso, resolve ir fundo nos que viralizou e praticamente ganhou caráter de
comentários. Neste mundo agitado de menos campanha nas redes sociais.
relacionamentos, vemos gente que julga, con-
dena e lincha com a língua ou os dedos afiados Trata-se, então, de um movimento? Parece
que sim. E se é organizado ou não, não faz dife-
rença, o fato é que nos grandes murais que são
a rua e as redes de relacionamento, esse apelo
Rua Pernambuco
44 #maisamorporfavor 45
está presente e apto a significar em cada um a rotina nos deixa? Podemos amar mais?
que vê, lê, pensa e sente. Com maior ou menor
profundidade na interpretação, no efeito que E quando alguém faz o pedido ou a suges-
essa mensagem causa, ela surgiu e continua tão por mais amor, também podemos pensar
sendo, inegavelmente, uma semente. nos gestos de amor. Como nos relacionamos
com a vida, com as pessoas conhecidas e até
Assim, conseguimos ver que a criatura gra- com as desconhecidas. Sim, dá para ter amor
fitada segura com cuidado e oferece o cora- pelo desconhecido. O amor transborda e pode
ção como uma flor. A cicatriz aparente não estar presente em qualquer tipo de relação, dá
deixa dúvidas de que não foi fácil chegar ali para fazer com amor, falar com amor, até dá
e ele estende aquilo que tem, mesmo maltra- para corrigir com amor.
tado. É o melhor que tem a dar. Ao mesmo
tempo que nos pede, aquele indivíduo nos Voltando à inspiração do início deste texto,
dá primeiro o seu próprio amor, gesto de que foi o contraponto do desamor, da angús-
compaixão diante das dores e angústias que tia cotidiana, é justamente esse conceito que
permeiam a vida de cada um. o boneco andrógeno nos sugere desconstruir
com amor. Se conseguirmos mudar o foco, po-
Cada um sabe o quão combalido está o pró- demos reverter o jogo do mal, podemos pre-
prio coração, mas, diante do apelo anônimo do encher espaços e relações com o que é bom e,
grafite, somos convidados a pensar no assunto pelo menos, tornar melhor, mais leve, mais afe-
e sobre como nos comportamos no cotidiano. tivo, mais afetuoso o nosso dia-a-dia.
E, em se tratando de amor, fica o convite para Praça Frei Baraúna
refletirmos sobre o que amamos. Nesse aspec- E assim, aquela semente que não foi plan-
to estão as pessoas e nossos relacionamen- tada, mas sim pintada no muro de um colégio, A CORRUPÇÃO COMO REFLEXO DA
tos com elas, sejam nossos pais, nossos filhos, terá germinado e ajudado a mudar o rumo, mu- AUTOSSIMILARIDADE SOCIAL
nossos companheiros, nossos amigos e nossos dar o assunto, mudar o clima, mudar a forma
bichos de estimação. Mais que isso, podemos de nos relacionarmos. E, se não é possível sa- Desde sempre o tema “corrupção” é presente
Danilo Vieira Vilela na ”boca do povo”. É assunto recorrente no bo-
olhar para essas relações e pensar como ama- ber quem foi que deixou aquele recado capaz Doutorando em Direito Político e Econômico na Universidade
mos e como temos manifestado e vivido as de atingir nossos corações, a melhor forma de Presbiteriana Mackenzie (Bolsista Mackenzie). Mestre em Direito teco, no elevador, na redação do vestibular, no
Obrigacional Público e Privado pela UNESP, Especialista em Direito
relações de amor. Temos estado próximos ou agradecer, certamente, é acolher aquele pedi- Processual (UEMG), Direito Penal e Processual Penal (UCDB)
jornal e na internet. É um tema tão presente no
presentes nas vidas dessas pessoas, temos con- do, aceitar o convite para amar e disseminar a e Direito Empresarial e Advocacia Empresarial (Anhanguera- dia-a-dia que até mesmo os corruptos adoram
Uniderp) e MBA em Gestão Empresarial (UNESC). Professor na falar de corrupção. Por isso, não é de se estranhar
seguido dizer que amamos, temos conseguido corrente do bem. Universidade de Sorocaba. Advogado.
sentir o amor, mesmo com o pouco tempo que que o tema tenha chegado aos muros da cidade.
Ed Mulato
Ademir Barros dos Santos: Coordenador da Câmara de Preservação
Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da
Universidade de Sorocaba – Uniso; mestrando em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – campus Sorocaba.
Pesquisador de negritudes, com foco em história, cultura e
religiosidade de matriz africana.
Encontramos, pelos muros da cidade, a se- Pior: durante mais de meio milênio que o
guinte pichação: “4P – Poder para o povo preto!”. mata. Por qualquer motivo. Ou, mais claramente:
pelo mero motivo de pertencer ao povo preto!
Mas, por que “poder para o povo preto”?
Ou será “Poder para o povo preto?”. Para que Exagero? Infelizmente, não: os Estados Uni-
será, afinal, que o povo preto quer poder? Ou, dos, mesmo quando foi comandado por alguém
ainda: o que será que o povo preto não pode do povo preto, ainda continuou em convulsão
e quer poder? social causada pelo assassinato, puro e simples,
de pretos porque pretos. Em outras palavras: de
Na verdade, parece que o Poder é que não qualquer cidadão que se atreva a pertencer ao
quer o povo preto: afinal, há mais de meio mi- povo preto.
lênio vem ele afirmando que o povo preto não
tem qualquer saber, que sua cultura é inferior, Sim, é lá, nos Estados Unidos. Porém, por que
que sua religiosidade se resume a adorar o de- alguém, no mundo, se julga no direito de matar
mônio, e por aí afora. gente de cor preta? Ou de jogar bananas em
campos de futebol, chamando de macacos joga-
Para além, há que se atentar que há mais de dores de cor preta? Isto, também na Rússia e no
meio milênio que o povo branco atira o povo Japão, que sequer conviveram com a escraviza-
preto para as beiras da sociedade e o coloca em ção de africanos. Assim também aqui, no Brasil.
favelas, confinado em insanas periferias.
No Brasil. Onde meninas são agredidas a
pedradas, apenas porque adeptas de religiões
Quando se chega ao século atual é que se Mônica Cristina Ribeiro Gomes O feminismo está nas ruas, representado
coloca, de forma mais prática, a noção de um Jornalista, Mestra em Comunicação e Cultura e professora. na paisagem urbana. A mensagem deixada no
país que, ao longo da história, dialogou de per- muro chama a atenção para a temática femi-
to com a violência e com a exclusão. O grande nista, desafiando a própria lógica de ocupação
pulo do gato que se tem hoje é a vasta e efi- do espaço público, se considerarmos que esse
ciente rede de comunicação. espaço é moldado pelas experiências conven-
cionadas como masculinas.
66 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos As Mulheres e o Espaço Público 67
Tanto é assim que a divisão social entre mas- das por muitas mulheres, faz com que sejam le- e de violência extrema, como o estupro. Pizan profunda. Para o feminismo, são fundamen-
culino e feminino custou às mulheres o lugar vadas a mudar seu percurso ou mesmo a deixar cria essa bela metáfora de liberdade e ação fe- tais e urgentes as transformações que venham
de coadjuvantes nas narrativas dos fatos histó- de ir a determinados lugares. minina em pleno século XV. a eliminar qualquer tipo de discriminação ou
ricos – isso quando não foram de todo excluí- violência contra elas, seja no ambiente domés-
Ao utilizarmos a perspectiva do gênero tico ou público. Pois se trata disso: superar as
para a compreensão da realidade social, pode- desigualdades que persistem sobre a condição
mos notar o quanto é ambígua a própria defi- feminina. Depois de tantas lutas históricas –
nição de público, quando aplicada a homens e pelo voto, pela igualdade de salários, pelo fim
mulheres. Os significados mudam e deixam à da violência doméstica, entre tantas outras em
das, em determinados momentos. Como cons- As restrições à livre participação das mulhe- mostra a maneira como a linguagem também curso – ainda é preciso reforçar a que veio o
tata Michelle Perrot, a história das mulheres foi res no espaço público estão na base da cultu- opera na hierarquização das diferenças sexu- feminismo e desfazer as incompreensões que
silenciada nos arquivos, a partir de uma verten- ra ocidental. Confinadas à vida doméstica na ais. Como lembra Perrot, o homem público é teimam em deslegitimar um movimento que é
te predominante na historiografia que dá visibi- Grécia Antiga, a elas não era permitida a vida importante, tem uma função social reconhe- plural em suas reivindicações. Desqualificá-lo
lidade aos grandes feitos da vida pública, como na polis, o que significa ter negado o direito à cida; já a noção de mulher pública frequen- faz parte de uma estratégia conservadora que
a política, lugar tradicionalmente ocupado pe- cidadania e estar fora da vida pública. Quando temente está associada a outros significados, tenta neutralizar seu potencial de transfor-
los homens e que sempre colocou restrições essa possibilidade é negada às mulheres, isso que se referem à “mulher comum que perten- mação, como pontua a filósofa Márcia Tiburi:
à participação feminina. Perrot defende que a significa diminuir sua humanidade. Nesse sen- ce a todos”, nas palavras da autora. “Fala-se mal do feminismo para sustentar uma
cidade, compreendida como representação da tido, Hannah Arendt lembra que a convivência
posição que ele põe em perigo”.
esfera pública, é um espaço sexuado onde os é um aspecto fundamental para a plena realiza- Ambígua é também a relação das mulheres
homens comandam as principais instâncias de ção da condição humana. É esse “viver junto” com o espaço doméstico. Embora seja o lugar Diante desse histórico da relação das mu-
poder. Por isso, os acontecimentos históricos que cria a própria noção de espaço público. Do da intimidade, onde, a princípio, se pode usu- lheres com a vida pública, a introdução de uma
são apresentados como realizações eminente- contrário, isolados, nos tornamos impotentes fruir de descanso e segurança, é nesse círculo pauta feminista no espaço urbano com a frase
mente masculinas. para agir no mundo. que se registram alguns dos maiores índices “Feminismo salva vidas” não deixa de ser uma
de violência contra a mulher brasileira. Metade pequena e bem-vinda transgressão. É também
Do discurso histórico para o cotidiano, as mu- O direito das mulheres à cidadania foi te- das mortes violentas de mulheres ocorre em um lembrete: continuamos aqui, resistindo e
lheres reconhecem o quanto o espaço público é matizado ainda pela escritora Christine de ambiente familiar, dados que contribuem para buscando a ressignificação desse espaço que,
hostil à sua presença, em várias circunstâncias. Pizan, que utiliza a literatura como contesta- colocar o Brasil como o quinto, entre 83 países, durante muito tempo, impôs limites à nossa
Na rua, por exemplo, desde cedo aprendem a ção da condição de inferioridade imposta às com a maior taxa de homicídio feminino. atuação. E, sim, vamos falar sobre feminismo,
se acostumar com o assédio, uma prática que mulheres. Em resposta a uma sociedade misó-
como convida a mensagem.
foi naturalizada, disseminada como um com- gina, a escritora cria a cidade das damas, um Diante dessa realidade, temos ainda a re-
portamento masculino aceitável. O sentimento lugar imaginário onde mulheres de todas as sistência ao entendimento do papel do fe-
de estar exposta a gracejos inconvenientes e ao épocas poderiam viver a salvo das diversas minismo e de como ele pode contribuir com
risco de ser tocada na rua, situações já enfrenta- situações de depreciação intelectual e moral, reflexões e ações para uma mudança cultural
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Rua Epitácio Pessoa Rua Gonçalves Ledo
70 71
Rua Epitácio Pessoa Avenida São Paulo
72 73
PENSAR, DESOBEDECER,
APRENDER, VIVER
Rodrigo Barchi
Doutor em Educação pela Unicamp, Mestre em Educação pela
Uniso, Especialista em Educação Ambiental pela EESC/USP,
Geógrafo pela Uniso. É professor coordenador do Curso de
Geografia da Uniso, militante ecologista, autor de dezenas de
artigos sobre educação ambiental, pedagogia libertária, ecologia
política e filosofia política da educação ambiental.
Nunca fui um pich(x)ador. Meu moralismo Mas as pich(x)ações strictu sensu – ou seja,
infanto-juvenil, vindo de uma criação conserva- nos/dos muros e fachadas – deixaram de me
dora, me fez ser, até meados da juventude, um incomodar quando resolvi inverter minhas lei-
respeitador da propriedade alheia. Não queria turas e perspectivas sobre a cidade, o meio am-
problemas com a polícia, com violência, e o biente, a educação, a ética e a política. Deixei
próprio risco da invasão e da escalada furtiva de ver essas esferas do pensamento de modo
nos edifícios me impediram dessa ação. utópico e passei a compreendê-las em suas
múltiplas heterotopias. Uma inversão para lá
Minha turma era outra. Fazia parte dos cabe- de nietzscheana-deleuzeana, que permite fu-
ludos da música extrema: satânica, anárquica, girmos da busca pela perfeição e pela verdade
contestadora, ruidosa, licantrópica. A qual, a para nos deixar levar pelos encontros furtivos
seu modo, também era uma pich(x)adora das entre os pensamentos das diferenças.
instituições tradicionais, mas em forma de so-
noridade, de vestimenta, de postura resistente Inverter meu pensamento me fez perceber
e contrária. Havia um combate intenso contra não mais a cidade apesar da pich(x)ação, mas
as sociedades conservadoras contemporâneas, a cidade através da escrita das paredes. Nesse
seus símbolos religiosos, suas posses osten- exercício de pensamento – que em prática pro-
tosas, suas pseudo boas condutas pessoais, fessoral se torna práxis, pois nossa prática de
suas aparências aceitáveis, seus modos de vida ser/estar na cidade também muda – pude per-
normalizados. Se minha fuga para a extrema ceber que as promessas urbanísticas e arquite-
esquerda não foi através das pich(x)ações, foi tônicas de criação de urbes sustentáveis, ple-
Rua Pernambuco
através das ruidosas sonzeiras. namente integradas à natureza, acabam muito
Ocorre, porém, que ambas parecem querer Vai que um dia a gente escuta!
dizer a mesma coisa. A rústica tevê, pintada em
uma parede, pedindo para ser menos vista, tem
igual significado que o menino segurando pipa
com a bandeira estadunidense, desenhada pe-
los Gêmeos. O negro excluído, projetado por
Basquiat, expressa, lá no fundo, a mesma ideia
que o traço perpetuado por Joy, chamando a
atenção para as amarras de um sistema no qual
poderosos e manipuladores meios de comu- R. Major João Elías
nicação nos fazem (e são) marionetes em um
mundo onde, sabe-se à exaustão, somente o DIÁLOGOS OPOSTOS
um por cento da população mais abastada de-
tém todos os poderes. Vivemos uma época em
que o Estado perde cada vez mais espaço para Fabrício de Francisco Linardi Foi-me dado, como um belíssimo desafio,
as organizações que, de fato, têm o poder eco- Arquiteto, Mestre e doutorando em Urbanismo pela Universidade o de escrever com liberdade sobre um assun-
nômico e ditam regras. Católica de Campinas. Professor do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de Sorocaba.
to que tem sido de meu interesse por um bom
tempo: a cidade. Porém, teria como ponto de
Todas as regras, até mesmo o que é arte e o partida uma peça gráfica de um fragmento
que não é. Contudo, independente de amarras, da cidade de Sorocaba, capturada pelo olhar
de fibras óticas, de conexões, de manipulações
82 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Diálogos Opostos 83
atento do fotógrafo. Ao vê-la pela primeira vez, des na expectativa de extravasar suas opiniões.
considerei-me presenteado, pois o presente e Suas motivações são induzidas, única e exclu-
a pessoa presenteada se aproximam por afini- sivamente, pela necessidade de se manifestar.
dade. De infinitas possibilidades de clicks do Já o conteúdo dessa mensagem suscita uma
fotógrafo, deram-me um olhar que mostra exa- interpretação interessante. Por que alguém
tamente aquilo que me inspira quando me po- se arriscaria a transgredir a mensagem oficial,
nho a falar de cidade: suas contradições. ‘Nossa Cidade Sempre Limpa’, para passar a
mensagem de RE-CI-PRO-CIDADE? Palavra
Assim, quase de pronto, me veio a estrutu- aparentemente inocente e que revela pouca
ra sobre o que deveria escrever e, mais do que violência na voz reprimida. Conforme foi escri-
isso, me veio a certeza sobre qual ponto de to, com sílabas separadas, soa como se o autor
vista esse texto deveria se desenvolver. Deixa- diversidade de manifestações. Dessas, o foco sentisse a necessidade de colocar algumas tan-
ram-me a tarefa mais difícil e instigadora, a de do fotógrafo ressalta duas, que se colocam tas exclamações em cada pausa: RE!!!CI!!!PRO!!!-
sujeito interpretante. Aquele que se preocupa como contradições: CIDADE!!! Como se chamasse a atenção para
com as leituras possíveis dos fatos e, sob o peso o óbvio que ninguém mais vê. O significado
da subjetividade, procura aflorar uma questão Nossa Cidade Sempre Limpa – “Linguagem literal de reciprocidade quer dizer: a relação in-
mais profunda. O que é que só ele vê? Oficial”, fruto do cuidadoso traço do profissio-
nal publicitário que atende à demanda de um
Como arquiteto e urbanista que sou, não pos- administrador público, estampada com cores
so fugir de minha formação que, por caracterís- que remetem à bandeira local, foi aplicada em
tica, examina a cidade como palco da vida dos um equipamento urbano que é símbolo de lim-
homens para, a partir disso, repensá-la. O meu peza. A composição texto-figura procura pas-
interesse está na apreensão do real e, para isso, sar a ideia de um bom trato do espaço urbano e dissociável entre duas partes, isto é, elementos
é parte fundamental do meu trabalho ler a cida- de respeito a seus cidadãos. Seu conteúdo não que respondem sensivelmente a ações aplica-
de em sua quase totalidade. E isso significa estar diz muito além da mensagem de ‘cidade limpa’ das sobre o outro.
atento aos códigos verbais e não-verbais através como ideologia, isto é, da necessidade de afir-
dos quais se revelam muitas das contradições. mação de um trabalho bem feito. Se volta não A beleza da imagem está na tensão da con-
para quem faz, mas para aquele que recebe o tradição das duas mensagens, que se apresen-
De olho na imagem, ela me causa inicial- serviço público. tam como códigos distintos e opostos. Até que
mente um choque! Um fragmento do real que ponto a limpeza da cidade será posta à prova
exprime a essência das relações humanas tra- RE-CI-PRO-CIDADE – “Linguagem Marginal”, pela contravenção de um pixo? Seria a própria
vadas no território urbano. Partindo da inter- fruto de uma transgressão. A manifestação re- linguagem oficial elemento de deslegitimação
pretação dos códigos textuais, percebe-se uma primida, explosiva, daqueles que gravam pare- de outros códigos da cidade? Enfim, o que a
84 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Diálogos Opostos 85
imagem nos mostra é que o olhar preocupado bulário português, a voz que diz RE-CI-PRO-CI-
com a apreensão do real requer o entendimen- DADE, mostra compaixão com todos aqueles
to da própria essência da cidade como múlti- que merecem ser ouvidos.
pla, plurissígnica. A única certeza que sugere é
que não pode haver cidade unívoca. Já sobre a beleza das cidades, essa é ampli-
ficada na medida em que são reconhecidos e
As múltiplas vozes abrigadas no domínio respeitados seus códigos contraditórios e recí-
da cidade se confrontam em eterna disputa, procos, buscando harmonia na sua pluralidade.
na busca pela afirmação de suas legitimidades,
de modo que a cidade se coloca como um ele-
mento vivo, dinâmico, que se desfaz e faz-se
a todo momento, procurando manter-se em
lógica. É ordem e desordem estabelecida em
si mesma, na busca pela manutenção de uma
coerência interna própria e tão abstrata quanto
a lógica que mantém uma chama acesa. Os dois
códigos evidenciados na imagem escancaram,
como fragmentos, a complexa relação ordem-
-desordem que está sempre presente nas cida-
des. A relação recíproca desses códigos é que a
ordem impõe-se pela desordem, assim como a
desordem impõe-se pela ordem. Av. Carlos Sonetti
Na praça Frei Baraúna, conhecida pelo edifí- mória que deveria ser lembrada pela coletivi-
cio que abrigou o primeiro fórum da cidade de dade e, assim, perpetuada como história. Mais
Sorocaba, um obelisco foi marcado com picha- que adornar, o monumento tinha um ideal de
ção. Para muitos dos passantes, o monumento preservação de memória, mantida por meio de
integra-se naturalmente à paisagem urbana e um vínculo emocional com a comunidade.
é pouco perceptível, quase inobservável. Quan-
do se questiona ao transeunte o significado da- A construção de obeliscos é uma prática
quele marco, poucos sabem responder. Porém, que remonta ao Egito Antigo. Ele era feito de
a quase todos, a pichação é incômoda. A arte uma única pedra (monolítico) de quatro lados,
urbana marginal ganha, assim, mais atenção contendo uma pirâmide no topo e estava re-
que o próprio monumento, que está esvaziado lacionado ao culto ao deus Sol. Muitos obelis-
de significado, já que o cidadão não sabe o que cos foram transportados para Roma durante a
ele representa. conquista do Egito e passaram a simbolizar a
potência do Império. Posteriormente, sobretu-
A palavra Monumento, originada do latim do durante o papado de Sisto V (1585-90), eles
monumentum, significa “lembrar”. Ao se cons- foram associados ao catolicismo e tornaram-se
truir um monumento público, pretendia-se representações do triunfo da Igreja Católica so-
evocar o passado, celebrando um evento ou bre as civilizações pagãs. Muitos deles, até hoje
homenageando pessoas. As construções des- presentes em Roma, passaram a conter símbo-
ses símbolos eram dotadas de valor rememo- los católicos como a cruz. O obelisco tornou-se
rativo intencional, ou seja, os seus promotores um símbolo muito utilizado para realização de
Praça Frei Baraúna
pretendiam inserir no espaço urbano uma me- homenagens públicas. Presente em inúmeras
Estamos sem tempo! “Estou correndo para O que conhecemos sobre o design enquan-
fazer isso ou aquilo”, é o que dizemos rotineira- to ciência ainda é muito recente, remonta no
mente envolvidos na multitarefa, na velocida- mais tardar à primeira fase da industrialização,
de e na multipresença. A busca pela aceleração no entanto, mais intensamente, a partir do
do mundo foi alcançada na modernidade com início do século XX. Nestes cem anos que se
o avanço tecnológico em todas as áreas e, tal- passaram, o termo design se popularizou, mas
vez, a mais significativa, com a aceleração da o seu significado tornou-se raso. Gui Bonsie-
comunicação. pe mostra que temos uma relação superficial
com o design na sociedade, na indústria e,
Vale ressaltar que nos relacionamos com o inclusive, entre os próprios profissionais e as
mundo através dos bens imateriais, nossa cul- escolas da área. Toda nossa cultura do design
tura, língua, hábitos; e dos bens materiais, casa, está voltada às relações de mercado, em que
objetos, etc. Ambos influenciam-se diretamente. há um forte estímulo ao consumo de produ-
Um determinado costume pode ditar qual a rou- tos fabricados em massa. Em consequência,
pa adequada a ser concebida, feita e usada em cresce a exploração, a extração das matérias-
um velório, da mesma forma que um aplicativo -primas, a fabricação com mão de obra barata,
de um smartphone define novos padrões de agressivas estratégias de venda e descarte rá-
comportamento, por exemplo. O design encon- pido. Nunca se consumiu tanto e se descartou
tra-se neste cerne, na materialização das coisas. tanto na história da humanidade.
Um terço de meu tempo diário me é surru- como nos ensina Henri Bergson (1859-1941).
piado, sem que eu saiba quem me rouba. Ou A inteligência é árbitra do tempo de ser. Ela or-
talvez saiba, quando identifico as estruturas ganiza a existência dos seres. Seu instrumento,
do sistema de vida na sociedade atual. Ao lon- a razão. O que possibilita a expressão da ideia
go do tempo de existência, ou no curto perío- de tempo, mas não expressa o tempo mesmo.
do da vida, uma fração me é tomada, o que re- Pois este é sensível, porém, não comunicável.
duz minha totalidade, o que altera o usufruto Percebido e não publicado.
de minha plenitude.
Quando pensamos ter tempo, pensamos
Mas isso seria válido se eu fosse proprietá- ter outras coisas. Na verdade, nos acredita-
rio do tempo. Não sou. O tempo me possui. mos proprietários. Mas o que é propriedade?
Não posso impedi-lo de ser ou de não ser co- É somente uma ideia. Não é uma ideia com-
migo. De me guiar ou desviar, se é que há uma posta, não há nenhum objeto material corres-
via a seguir. Aliás, não posso nem entendê-lo, pondente a tal ideia. Justamente por isso, ela
como inteligentemente gostaria. Falamos de toma a forma absoluta, se justifica como ver-
dois tempos. Tempo de ser e tempo de fazer. dade. Válida, pelo vazio de materialidade, tor-
Porém, a ação é subordinada ao tempo de ser. na-se base das ações da humanidade. Orien-
Este é plenitude, o outro é fragmento. Como o ta as relações entre seres humanos. Assim, o
fragmento é quantidade, o pleno é qualidade. tempo é tomado como produto que pode ser
possuído, emprestado, comercializado, perdi-
Assim, temos uma dialética dos tempos: do ou doado.
Estrada do Ipatinga
um é o da existência, outro é o da inteligência,
Tempo a perder 99
Sendo assim, quando um artesão, como com- O tempo comprável se traduz em “força de rem tempos. Um de seus poderes basilares é
preendeu Karl Marx (1818 – 1883), gastava oito produção”. O que for produzido nesse tempo o de desaparecer nas abstratas corporações.
horas a produzir um par de sapatos, este produ- pertence ao comprador. O operário é pago O sonho delas é o de se libertar completa-
to era a materialização do tempo quantificável com o próprio produto por ele realizado. Tudo mente da necessidade de se comprar tempo.
e do tempo vivido pelo realizador do objeto que é realizado a mais, no intervalo comprado, Como percebemos isso? Ao ir a um caixa ele-
novo no mundo humano. Isso, dentre outras pertence ao comprador: “a mais valia”. Grande trônico e realizar o próprio serviço pelo qual
possibilidades, nos permitiria a percepção da negócio para o comerciante, péssimo para o pagamos a um banco.
variabilidade qualitativa dos produtos, pois cada produtor que continua a receber, agora na for-
artesão sentia diversamente seu próprio tempo. ma salário, o mesmo que recebia quando pro- Os prestadores de serviço vivem cotidia-
Ao cabo do processo, surge a expressão de pelo duzia na forma artesanal. O operário não perde namente a dialética entre felicidade e seu
menos alguns aspectos da identidade do produ- somente ao produzir mais do que o necessário, contrário. Realizar a atividade pela qual são
tor, aqueles da conexão com o tempo mesmo. perde algo mais valioso, do ponto de vista do remunerados, quando vendem parte de seu
Características da subjetividade inseridas na ob- projeto de humanidade, pois desaparece a co- tempo, é desconfortável, pois no fundo ven-
jetividade material do produto. Os sapatos como nexão entre tempo de produção e tempo de dem partes de si mesmos. Tendem a pensar
cristalização do “vir a ser” do sapateiro. existência subjetiva; a temporalidade plena.
R. Henrique Dias
A paisagem urbana mostra-se alterada com nhecer-se como um corpo político. Esse escla-
as mensagens que estampam em seus muros. recimento, sobre o que querem as mulheres e
São recados que nos levam a refletir a respeito no que elas acreditam, começa a fazer sentido
do cotidiano existente: injustiça, esperança, ati- quando o campo explorado tem uma nova di-
vismo, inconformismo, consumo exacerbado, mensão, um novo horizonte, que só é possí-
lutas invisíveis, miséria material, moral e espi- vel a partir da conquista de novos direitos e
ritual, condição social injusta e muitos outros da ocupação de novos papéis; um processo de
temas. As frases e imagens provocam uma con- modernização da sociedade brasileira, após a
versa com quem está passando e transformam- abertura política, por exemplo, permite a exis-
-se em processos de ressignificação dos acon- tência de uma imprensa feminista, discutindo
tecimentos, que não podem ser ignorados. questões das mulheres.
Jovem, mal saído da adolescência, então, Os sonhos do nosso jovem são comuns a to-
com tamanhos desproporcionais nos sonhos, dos os recém-saídos da meninice: ter uma vida
na rebeldia e até no próprio corpo. Como um tranquila, viver a velhice sem a angústia todo o
sem número de outros jovens, criado com seus tempo estampada na face do avô, já sem força
irmãos no núcleo familiar mais fácil de se encon- suficiente para produzir de forma a atender às
trar atualmente: o casal de avós e a mãe. Ela com necessidades da mulher, da filha e dos netos.
menos de quarenta e ele, apesar do desgaste do Que dizer então das angústias que povoam o
corpo, mal chegado aos sessenta. Para prover a cotidiano da mãe, que por vezes enfrenta jorna-
família, ao todo seis, o avô e a mãe trabalhavam. das de doze horas em enfermarias, somadas a
outra jornada de horário integral, a de mãe?
Embora o bairro onde moram seja residen-
cial, é bem distante do centro da cidade, o que Sonha com uma vitória, muito maior que a do
obriga a todos ao deslocamento por meio do time do coração ao vencer o campeonato, que
transporte público para irem à escola, ao tra- ainda não sabe nominar, mas sabe que, para
balho, e, eventualmente, para tratar da saúde e conquistá-la, terá que driblar muitos obstáculos.
para compras, isso quando conseguem escapar
do providencial ‘fiado’ do armazém ali da es- Frequenta uma escola da rede pública, onde
quina, em se tratando de comida e mais alguns o conteúdo de informações, na maior parte das
produtos essenciais. Nada a acrescentar à con- vezes, não lhe diz nada, não faz parte do seu
tinuidade do mês sobre o salário: este sempre cenário de vida, distando anos-luz da sua rea-
acaba primeiro. lidade. Onde ficam os castelos, os teatros ou a
Rua João de Almeida Melces
biblioteca, não aquela salinha acanhada com
Também no livro didático deparou-se com Para expressar toda sua indignação, há mui-
outro termo e, após explicação em sala de aula to formada, desenha um menino empunhando
e a insistência dos noticiários, tem certo domí- a bandeira nacional, alusão a um sem número
nio sobre a palavra corrupção e a abomina. de valores: masculinidade e força no torso nu;
postura ereta a significar o orgulho ao se auto-
Juntando todas as informações, seus so- escolher para empunhar o símbolo da pátria. O
nhos, seu mundo interior em ebulição, seu menino/jovem, ou vice-versa, tem a expressão
112 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos História De Uma Vida: Desigualdade Social 113
A cena está pronta. Se alguém vai julgar o sombra de dúvida, faz falta para equipamentos
seu trabalho, não lhe interessa. Seu recado está e realizações que beneficiem a população, que
ali. Por algum tempo, indelével. proporcionem impulsos para a mais possível
realização do ser humano.
Amanhece. Nosso jovem se recolhe, anôni-
mo como sempre foi para o mundo. A vida se- Desigualdade Social: não tem sido este o
gue. Um tanto preocupante para ele, que quis lema mais praticado no país, desde seus primei-
apenas expor o que lhe vai na alma. ros dias? No começo, contra o índio, em segui-
da, contra o mestiço, enorme, e ponha enorme
A Lei vai exibir a lista de sansões impostas a nisso, contra o negro, contra o pobre, contra a
quem conspurca um símbolo nacional. Não fal- mulher trabalhadora, contra o doente, e a lista
tarão protestos dos órgãos públicos, da mídia, que não termina.
do avô demonstrando ira pelo dinheiro da tin-
ta e, ao mesmo tempo, culpa porque falhou na Pode e deve terminar. Pode, pelo menos, ser
função de educar; da mãe, porque ela consegue reduzida. Para tanto, basta que cada um de nós
ouvir sirenes e viaturas em busca do seu meni- trate o outro como gostaria de ser tratado.
no, e tantos mais que não dá nem para contar,
e, se ele não tinha autorização para a ‘arte’, até
do dono do muro... Pensa: _ Foi mal!
O visitante que anda atento pelas ruas de So- cais da cidade, sejam públicos ou privados, de
rocaba percebe uma comunicação com traços mensagens que buscam provocar a reflexão da
bastante específicos e registrados em diversos população. Isso porque o movimento hip hop
locais da cidade, comuns aos olhos dos soroca- tem como finalidade chamar a atenção das pes-
banos. São as artes de Will Ferreira e Michel Japs,
soas para os mais variados problemas que uma
que expressam de maneira bastante significativa sociedade carrega, especialmente, para as diver-
a representação do ser humano, especialmente gências e negligências existentes nos grandes
aquele que ocupa os grandes centros urbanos. centros urbanos. Para tanto, utiliza a música, a
Dessa parceria, surgiu o Fite, projeto que tem dança, o grafite, o DJ, entre outros elementos
como objetivo fomentar a produção artística culturais, para disseminar mensagens de resis-
do grafite em consonância com a necessidade tência, ou seja, em muitos casos, informações
também mercadológica, ou seja, que atende a que objetivam dialogar com a sociedade sobre
diversas instituições que buscam agregar a lin- olhares diferentes dos oferecidos pelos grandes
guagem do grafite em seus espaços. Por isso, as veículos de comunicação. Por esse motivo, o co-
artes de Will e Japs estão estampadas não só nos nhecimento tornou-se um especial elemento do
muros da cidade, mas em diversos ambientes in- hip hop, pois o seu fundador, Afrika Bambaataa,
ternos de empresas, comércios, centros educa- alega que a pessoa que se dispõe a participar do
cionais e culturais, produtos variados, projetos movimento deve estar munida de conhecimen-
governamentais etc. to para sempre transmitir mensagens de amor,
paz, união e resistência, já que o hip hop passou
Cabe ressaltar que o Fite produz traba- a ser tratado de modo distorcido pela mídia e
lhos que não fogem à filosofia do grafite, que é pela sociedade, como uma cultura que faz a apo-
um elemento fundamental do movimento hip logia à criminalidade, o que está bem distante
hop, ou seja, Will e Japs preenchem diversos lo- de seu propósito original.
116 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 117
Posto assim, podemos observar que So- fazendo o mural chama mais atenção
rocaba é uma cidade privilegiada por ter artis- que o próprio mural. Depois o mural
tas como Will e Japs, que, de modo dialógico, permaneceu por um bom tempo,
conseguem ocupar diversos setores sociais, mas o que marcou em mim, ficou
valorizando a arte de resistência e garantindo na memória, foi isso: ver o cara lá,
pintando.
mais espaços para a estética e a voz das ruas.
Por esse motivo, não poderíamos deixar de co-
Will Ferreira: Não me lembro, sinceramente, do
roar esta obra com as capas ocupadas pelo Fite.
primeiro grafite. Meu caminho foi
A seguir, apresentaremos uma entrevista rica inverso. Os primeiros contatos com
em conhecimento e explicações sobre os per- arte, por exemplo, foram as histórias
sonagens e trabalhos dos artistas que pintam em quadrinhos. A pichação, por ou-
Sorocaba. tro lado, é algo que você cresce ven- o spray foi em um projeto da pre- teiras e há também o muro das
do. Na rua, na escola, até no muro de feitura. Foi em chapa de madeirite. lamentações, em Israel. Quais são
Qual o primeiro grafite ou pichação que se lem- casa. Não tem um que eu me lembre, Foi todo simbólico: fiz um perso- os muros do grafite e da pichação?
bra de ter observado? em especial. Por estar em todo lugar, nagem sendo engolido pela es-
é isso que fica gravado na memória. curidão. Ele tentava alcançar uma Michel Japs: O muro do grafite e da pichação são
Michel Japs: No meu bairro, via mais pichações do lâmpada, ou seja, alcançar a luz. Já muros de um mesmo terreno. Pra
que grafites. Não tem como não ver E o seu primeiro? De que tratava? Onde foi? na rua, o primeiro grafite também quem é do grafite e da pichação,
a pichação, então, esse foi o primeiro foi em um evento da prefeitura, na não há separação entre um e outro,
contato visual. Já o primeiro grafite, Michel Japs: Fiz meu primeiro grafite usando látex Avenida Dom Aguirre. Foi em um apesar da diferença de percepção,
observei quando na esquina de casa, e rolinho, não era nem spray. Foi muro enorme. Era um desenho até pra quem vê. A diferença é que
a uns 50 metros de onde eu morava, depois de uma oficina sobre Grafite simples, inspirado em histórias em a pichação vem pra incomodar,
tinha um cara fazendo grafite na e Hip Hop. A gente assistiu um filme, quadrinhos, com poucos traços e colocar o dedo na ferida, não está ali
esquina. Era um grafite bem elabora- Beat Street. Lá tinha toda a cultura cores. Mas também já tinha toda para ser bonito, ninguém gosta. Já o
do, já tinha fundo, eram umas letras, Hip Hop, o rap e um personagem uma simbologia: era um personagem grafite é arte, vem pra falar alguma
algo muito bem feito pra época. Fui que era grafiteiro. A oficina foi volta- segurando a bandeira do Brasil e no coisa, mostrar uma ideia, as pessoas
privilegiado de ver isso perto de casa. da totalmente ao Hip Hop, inclusive a meio, no círculo azul da bandeira, apreciam. Tenho mais propriedade
Aquilo me marcou, lembro muito forma de fazer grafite, com foco nas tinha um feto. Marca por isso: mostra para falar do grafite, porque é o que
bem: a imagem do cara pintando, letras. Então, meu primeiro grafite que desde sempre minha arte busca faço. Mas em geral, são os muros das
com várias latas no chão. Tinha uma teve essa influência: inventei um ter um porquê, ter um sentido. mensagens.
galera em volta também, olhando. nome artístico para mim, MIKI, na Will Ferreira: O muro do grafite e da pichação é o
Aquele jeito de trabalhar do grafi- época. Eu tinha 12 anos. Muros têm uma porção de significados. Existe mesmo muro. A diferença é o cara
teiro, eu voltei a ver só muito tempo a expressão “em cima do muro”, que está atrás da lata. Pode ser um
depois. Acho até que o ato de estar Will Ferreira: O primeiro contato que tive com há muros que demarcam fron- cara que está ali só pra agredir. Ou
118 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 119
um outro que está ali para expor estampada na parede, por exemplo, Michel Japs: Tem um caso que retrata bem a
sua arte, seu talento, expressar uma encanta muito fácil, pelo tamanho. relação com a cidade. Foi um mural Michel Japs: O grafite na rua, na parede, é exclu-
mensagem. Mas quem sou eu pra Embora sempre vá ter quem não que fizemos na Rua Hermelino Ma- sivo de quem está naquela região,
falar da pichação? Falo do grafite, goste. tarazzo, num posto, do lado de um quando ninguém tira foto e não é di-
porque sou grafiteiro. O grafite é, Will Ferreira: Pra falar a verdade, não sou muito de semáforo, e parava muito ônibus ali. fundida, o que nem sempre aconte-
literalmente, sua mente aberta para observar, mas ouço muitos comentá- A gente ficou três dias pintando, e o ce. Muita gente pode ver, ou poucas,
todos verem. Quem tem um pouco rios, até mesmo de família e amigos. grafite durou só uma semana. Houve dependendo do lugar. Acho que a
de entendimento, vai falar: “olha, O que percebo é a repulsa e o ódio à uma falha de comunicação entre pai diferença do grafite é porque une a
esse cara está com problemas em tal pichação, enquanto a maioria gosta e filho, que administravam o posto. O capacidade de se expressar artistica-
área”. Você consegue ler a estrutura do grafite, porque muda o ambiente, filho autorizou. Mas o pai não gos- mente e a espontaneidade, a liber-
da pessoa, sua cultura, sua forma a energia do local, principalmente se tou. Era um senhor que não enten- dade. Não tem amarras, nem regras
de vida. Através dessa arte, a minha for grande e colorido. Faz bem aos deu o propósito da arte, e apagou sobre o que vai falar. E é presencial.
mente está aberta pra qualquer olhos. Dependendo da mensagem, depois de uma semana. Nós somos Você está ali. Quem vê precisa estar
pessoa olhar. E o grafite é isso: é rua. podem gostar ainda mais, se iden- desapegados, não ficamos chatea- ali pra captar a arte. Pode até ser
Tem que estar na rua. Não pode nem tificar com os personagens, com as dos. Mas muita gente ficou revoltada. apagado depois, mas o que vale é a
ter grade na frente dele. As pessoas situações que são representadas ali. Foram reações distintas à arte e que expressão realizada.
têm que conseguir pôr a mão e até representam o como a percepção Will Ferreira: Como o Michel disse, o grafite é algo
mesmo apagar, se quiserem. Mas Alguns de seus grafites já trataram de situações pode ser diferente dependendo de sem amarras. Não tem correntes. O
sempre vai mostrar o cara por trás do específicas de Sorocaba? Se sim, quem olha. cara faz o que quer. Nessa comunica-
desenho. Por mais abstrato que seja: quais eram essas situações? Rece- Will Ferreira: Uma vez teve uma greve de lixeiros, ção, ele está livre. É uma mídia aber-
você vai poder observar através das beu algum retorno do público com aqui em Sorocaba. Nessa época, fiz ta. Poderia ser comparado aos vlogs
cores, da intensidade, agressividade, impressões e comentários sobre a um de meus personagens com a e pessoal que se expressa nos vídeos.
tudo isso. obra? Como foi? máscara de palhaço, dentro de um Mas o grafite tem um impacto visual
latão de lixo. Aquele era o sorocaba- também. E o local onde é feito conta
Quando anda por Sorocaba, observa os olhares no, pagando seus impostos, mas sem muito para isso. Imagine um grafite
das pessoas para grafites e picha- a coleta de seu lixo. Foi algo simples, em frente a um museu, por exemplo.
ções? O que eles dizem? mas que, todos que viram, logo O museu é lugar que praticamente
ligaram ao fato social que estava nega o grafite como arte, o exclui.
Michel Japs: Sobre a pichação, não é pra ser bonita, acontecendo. É uma comunicação única, naquele
não vai ser elogiada por ninguém, só tempo e naquele espaço. Só o grafite
quem curte mesmo, que são poucos. Para você, qual a diferença das mensagens pode conseguir algo assim.
Já o grafite é uma coisa mais bonita, transmitidas através do grafite e as
então as pessoas costumam gostar outras correntes na grande mídia, Michel, em muitos de seus grafites, existe o
mais. O grafite impressiona muito por exemplo? Há uma comunica- mesmo personagem em diferentes
pela proporção. Uma mão gigante ção que só o grafite pode gerar? situações. Poderia nos falar sobre
120 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 121
ele? Quem é? Como se sente? Seria principalmente. O ser humano está o
ele um sorocabano? tempo todo mentindo pra ele mes-
mo. Achando que ele é rico, que ele é
Michel Japs: O personagem que faço no momen- bom, que tem que ser isso ou aquilo.
to, antes de tudo, foi um desafio de Acaba sendo o tempo todo algo
criação, porque é um personagem que ele não é de verdade. Acredito
invisível. Apenas as roupas apare- que esses narizes realmente fazem
cem, são elas que dão contorno ao lembrar o Pinóquio, o que leva o ser
personagem. A ideia é questionar a humano a mentir e as consequências
necessidade que temos de manter de tudo. Acho que a dificuldade do
uma boa aparência, mas sem ter ser humano é ser verdadeiro consigo
conteúdo. O personagem é “vazio”, mesmo. É uma crítica que faço pri-
também, porque pode ser qualquer meiramente a mim. Falo como parte
um de nós ali, qualquer um pode da humanidade. Só tem sentido se
cair nessa e acabar se sentindo, no olho primeiro pra mim: falta muito
fim, um manequim do consumismo. pra que eu vire gente. Parar de men-
Nesse sentido, o personagem pode tir pra mim mesmo, assumir meus
muito bem ser um sorocabano, já erros, assumir aquilo que eu faço que
que nossa cidade vive essa realidade. estraga esse planeta, que estraga
As mensagens do consumo e da apa- nossa realidade, que detona nossa
rência são expostas para nós a todo cultura. As coisas que eu mesmo faço
momento na vida urbana. e não contribuem para uma humani-
dade melhor. É começar a desenhar
Will, em várias de suas obras, há narizes pecu- eu mesmo e me sentir dessa forma:
liares: são grandes e parecem de mentiroso mesmo. Pelo menos, assim
madeira, lembram o personagem já estou reconhecendo, e esse “nariz”
Pinóquio. O que falta para virar- já não vai crescer mais em mim. Esse
mos gente de verdade? personagem é cheio de símbolos,
mas o que mais as pessoas guardam
Will Ferreira: Falta tudo, eu acho. Falta o ser são o nariz e a máscara. Vai ver é o
humano fazer o que ele ama, o que que está doendo nelas. Acredito que
ele gosta. Parar de ser mentiroso é assim: a gente expressa na própria
consigo mesmo, olhar pra si próprio arte e reconhece na arte do outro
e conseguir se encarar, conseguir sempre o que mais dói na gente. Pelo
olhar para os próprios medos e erros, menos é assim comigo.
Edição
Thífani Postali Carla Salles é formada em Comunicação
Social - Publicidade e Propaganda e
Revisão de texto mestre em comunicação e cultura pela
Isabella Pichiguelli Universidade de Sorocaba. Trabalha
com comunicação visual, nas áreas de
Projeto gráfico, diagramação e capa: identidade visual e design editorial.
Carla Bonfim de Moraes Salles Professora universitária no curso de
Design na Universidade de Sorocaba.
Uma das Idealizadoras do Projeto
Costurando Memórias.
Versão Digital
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