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Thífani Postali

José Neto
(Organizadores)

Entrelinhas da Pichação:
Diálogos Sorocabanos

Sorocaba/SP
2019
A Comunicação Popular Urbana - Thífani Postali 9

Olhares Da Fotografia - José Neto 13

Espaço Graffiti - Paulo Celso da Silva 18

O Brasil De Todos - Beatriz Elaine Picini Magagna 21

O Empoderamento Do Animê - Fernanda Dos Santos Ueda 25

As Ideias Por Detrás Das Palavras - Marcelo de Barros Ramalho 29

Sustentabilidade??? - Nobel Penteado Freitas 33

Travestir É Resistir e (Re)Existir - Josefina de F. Tranquilin-Silva 37


Sentimentos Controversos - Marcelo Rodrigues 41

#Maisamorporfavor - Evenize Batista 45

A Corrupção como Reflexo da Autossimilaridade Social - Danilo Vieira Vilela 47

Justiça - Aldo Vannucchi 51

Ser Ou Não Ser... - Edgar Albuquerque 55

Quatropê - Ed Mulato 59

Contra O Quê? - Roger dos Santos 63

As Mulheres e o Espaço Público - Mônica Cristina Ribeiro Gomes 67

Pensar, Desobedecer, Aprender, Viver - Rodrigo Barchi 75

Muros e Paredes Silenciosas Ganham Voz - Julio Cesar Gonçalves 79

Diálogos Opostos - Fabrício de Francisco Linardi 83


Pichação e Religiosidade - João J. C. Sampaio 87

Monumento: Esquecimento e Memória - Michelli Cristine Scapol Monteiro 91

O Tempo e o Design das Coisas - Breno Pensa Barelli 95

Tempo a Perder - Benedito Aparecido Cirino 99

Um Deus do Lado de Quem? - André Luiz Sueiro 103

O Feminino e a Paisagem Urbana - Marcélia Picanço Valente 107

História de uma vida: Desigualdade Social - Ana Maria Souza Mendes 111

A Capa É De Sorocaba! Entrevista - Thífani Postali e Isabella Pichiguelli 117

Sobre os organizadores 124


Rua Coronel José Loureiro

APRESENTAÇÃO:
A COMUNICAÇÃO POPULAR
URBANA
Pichação, pixação, grapixo, lambe lambe,
Thífani Postali stencil, entre outras comunicações imagéti-
cas, são elementos constituintes dos grandes
centros urbanos existentes em todo o globo.

Desde os primórdios, os seres humanos


se apropriaram de suportes para exercer a

8 Apresentação: A Comunicação Popular Urbana 9


comunicação. A própria comunicação huma- de autores reconhecidos nas ciências em muros
na, artificial que é, como nos lembra o filóso- de escolas e universidades, bem como também
fo Vilém Flusser, passa dos grunhidos e mími- é possível observar um grande número de men-
cas existentes na comunicação tridimensional sagens religiosas por todos os cantos da cidade.
para os suportes físicos oferecidos pela nature- Posto assim, torna-se impossível identificar o gru-
za, como as paredes das cavernas, na tentativa po que pratica tal ato considerado inconstitucio-
de traduzir a consciência através de imagens nal em nossa sociedade.
expostas em um tipo de comunicação bidi-
mensional, que tem por objetivo, além de co- A ideia desta obra não é discutir a legalida-
municar, armazenar as informações. de das inscrições urbanas, tampouco validá-las
como arte, sujeira ou crime. Também não quere-
Ocorre que, mesmo com toda a criação de mos, com isso, levantar discussões sobre apologia
diferentes meios de comunicação, chegando à à delinquência, considerando que a ideia sobre
era digital, o ser humano nunca abandonou essa pichação como sujeira pode ultrapassar o pen-
forma mais antiga, pois, em muitos casos, esse samento sobre as inscrições em muros, incluindo
suporte é o mais eficaz quando a sua intenção é as discussões sobre publicidades e propagandas
comunicar para mais pessoas. e, também, a má conservação ou descaso sobre
os diversos ambientes urbanos. Desta forma, a in-
Hoje, são nos grandes centros urbanos que po- tenção é provocar um diálogo entre as ruas soro-
demos observar formas diversificadas de comuni- cabanas e os acadêmicos, pois muitas das discus-
cações urbanas e, também, conteúdos que se re- sões propostas pelas ruas são assuntos debatidos
ferem a situações específicas de cada local. Cabe em eventos acadêmicos e ambientes seletivos, o
esclarecer que, diferente do que o senso comum que impossibilita a maioria da sociedade de par-
possa imaginar – que essas inscrições são produ- ticipar de reflexões que podem ser construtivas.
tos que têm a ver com grupos e classes sociais es- Muitas mensagens são provocativas e convidam
pecíficos –, a observação mais atenta nos leva a o indivíduo a pensar de forma mais crítica, inclu-
crer que o uso dos espaços públicos (e também sive combatendo discursos omitidos ou manipu-
privados) como suportes para comunicação é rea- lados pelos grandes veículos de comunicação,
lizado pelos diversos grupos e classes sociais que como é o caso do grafite que, tendo a sua origem
compreendem o espaço urbano. É comum en- ligada ao movimento hip hop, busca despertar as
contrarmos frases reflexivas que incluem citações populações sobre os problemas locais ou globais
que afetam o coletivo.
Rua Coronel José Loureiro

10 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Apresentação: A Comunicação Popular Urbana 11


Assim, importa esclarecer que não fizemos vogados, designers, ambientalistas, geógrafos,
distinção sobre as formas, sendo que o próprio entre outros que possuem algo em comum: são
grafite propõe o diálogo sobre as questões so- sorocabanos ou residem há tempo na cidade.
ciais, do mesmo modo, a pichação com ch, tão Essa escolha se deu pela intenção de aproximar
antiga e comum nos centros urbanos, oferece da cidade de Sorocaba os diálogos provocados.
ideias reflexivas, mas não carrega a filosofia do
grafite, sendo também utilizada como forma Enfim, esperamos que esta obra seja recebi-
de recados e situações individuais. Já o boom- da como uma fonte de diálogos que possibili-
bing, que é caracterizado pelas tags, assinatu- tam olhar para a cidade para além daquilo que
ras que têm como objetivo marcar territórios, e é visto como belo, para observar a polis como
que Lassala chama de pixação com X, aparece um lugar diverso, portanto, multicultural, onde
nesta obra como forma de chamar a atenção diversos grupos sociais buscam – ou devem
sobre os espaços e demarcações, considerando buscar – a convivência de forma dialógica e vol-
também os monumentos históricos que obje- tada para a práxis cidadã.
tivam o mesmo fim. No entanto, nos debruça-
mos em captar imagens cujas mensagens são
direcionadas à sociedade como um todo.

A ideia surgiu de meus estudos sobre comu-


nicação e cultura popular urbana e do interesse
do professor e amigo José Ferreira Neto sobre
as especificidades da cidade. Assim, durante o
Rua Luís Pessuti
ano de 2016, buscamos colecionar fotos de di- OLHARES DA FOTOGRAFIA
versos locais da cidade de Sorocaba, a fim de
produzir uma obra que servisse como ponte José Neto
para o diálogo entre as ruas e as universidades.
Para tanto, convidamos professores mestres e
doutores para dialogar com as imagens. Cada
professor discorreu sobre uma imagem que A fotografia sempre carrega consigo parte Na semiótica, segundo Lúcia Santaella, a fo-
possibilita uma tradução direcionada à sua área daquilo que a gerou, ou seja, só sinaliza o que tografia é um índice: “no índice, a relação entre
de atuação. Reunimos teólogos, filósofos, soci- realmente existe. Neste caso, ela manterá uma o signo e o objeto é direta, visto que se trata
ólogos, antropólogos, comunicólogos, peda- conexão direta com seu referente ou com aqui- de uma relação entre existentes, singulares,
gogos, jornalistas, arquitetos, historiadores, ad- lo que a produziu.
12 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Olhares da Fotografia 13
factivos, isto é, conectados por uma ligação de
fato”. Por sua própria gênese autônoma, a foto-
grafia funciona como índice. Como a imagem
fotográfica é impregnada na superfície sensí-
vel através dos raios luminosos refletidos pelo
próprio objeto, a imagem que está na foto está
existencialmente conectada com ele.

Para Vilém Flusser, “imagens são superfícies


que pretendem representar algo. Na maioria
dos casos, algo que se encontra lá fora no espa-
ço tempo”. Sua definição de imagem se aplica
à fotografia e sugere que, a partir do momento
em que a imagem fotográfica é apresentada,
um vasto campo se abre para a reconstituição
do fenômeno ou da cena apresentada. A possi-
bilidade de um aprofundamento na busca de
pistas ou marcas impressas em uma fotografia
revela possibilidades de leituras, descobertas e

análises enriquecedoras do ponto de vista da


cultura. Podemos entendê-la como a supressão
de elementos presentes em uma dada realida-
de ou cena que não serão apresentados pela
fotografia da mesma maneira como estavam.
A foto é, então, uma fina película do espaço/
tempo que traz consigo indícios que posterior-
mente poderão ser decifrados para, assim, pro-
duzirem significado.
R. José Antônio Ferreira Prestes
14 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Olhares da Fotografia 15
Segundo Boris Kossoy, um dos alicerces so- do fotógrafo, implicam em uma codificação da a fotografia era uma obra produzida sem a ação
bre o qual se ergue o sistema de representa- imagem que pode, por sua vez, acarretar fotos humana. Numa fotografia, é possível potencia-
ção fotográfica decorre da relação fragmenta- estereotipadas de determinado objeto ou fato. lizar e enfatizar os seus elementos constituin-
ção/congelamento. A fragmentação é assunto Isso, em decorrência do uso de recursos dos tes, permitindo lançá-la num outro estágio nos
selecionado real (recorte espacial); o conge- mais diversos, os quais enfatizam, criam efeitos, processos de comunicação atuais, que permi-
lamento, a paralisação da cena (interrupção além de dar um tom de encenação a uma dada tem que aquilo visto numa imagem fotográfica
temporal). realidade. seja mediado pela programação e/ou intenção
de quem a produz, no sentido de possibilitar
O que seria a fragmentação proposta por O passado que a fotografia capta e represen- um determinado efeito interpretativo por parte
Kossoy senão um recorte empreendido pela ta foi chamado por Roland Barthes de noema do observador/leitor de imagens.
fotografia enquanto signo, na concepção peir- (“isso foi”), pois o modo de fixação da imagem
ceana? Na sua incompletude, o signo não pode fotográfica só permite que algo seja registrado, Se não é possível para o ser humano per-
dar conta do real e sua dívida para com o objeto caso ele tenha existido. Ao se contemplar uma ceber de forma crítica o que acontece nas fra-
é perene. Na verdade, essa é a razão pela qual imagem fotográfica se olha para algo que, de ções de segundos, é preciso admitir, então,
os signos produzem interpretantes ou efeitos fato, ocorreu. que aquilo que é capturado pelo fotógrafo
interpretativos numa mente. através da câmera é algo que ainda não é do
A relação direta e indicativa da pré-existên- seu domínio, mas que está entre o passado e o
O recorte ou o que é capturado pelo fotó- cia do objeto que torna a fotografia inseparável futuro, algo entre o que foi percebido e o que
grafo é a forma mais próxima daquilo que, cul- do seu referencial é a característica primordial pode vir a ser.
tural e historicamente, ele tem como referência de sua condição de objeto de estudo. Esta con-
para a aplicação em suas técnicas de trabalho dição de vínculo com seu referente deve-se ao Deste modo, estando diante da fotografia
ou proposta para sua criação. O que ele tem caráter de imagem autônoma, ou aquela que pronta, são possíveis muitas interpretações, ar-
no dado momento em que acontece o alinha- não é construída, mas se auto-impregna na su- ticulando-se entre sugestões de como foi feita,
mento entre a sua impressão obtida através da perfície sensível ou emulsão através da objetiva a partir de que local, tema e dados técnicos, na
câmera e um momento fugidio é apenas a pos- da câmera fotográfica. sua construção de sentido e/ou finalidade.
sibilidade das formas, da luz, do volume, da tex-
tura ou do enquadramento que venha a, pos- Se tomarmos a fotografia apenas como
teriormente, preencher o vazio da busca por registro ou impressão produzida através da
imagens/elementos que produzam sentido. câmera via reflexão da luz pelos objetos ou
assuntos que estão diante da objetiva, volta-
As possibilidades da adoção de determina- remos aos questionamentos feitos quando de
da postura, cultural ou ideológica, por parte seu surgimento, pois as pessoas afirmavam que
Viela Crislaine Calegare
16 Olhares da Fotografia 17
espaço seus feitos. Alguns são nomes de ruas sim, é uma escolha fugaz e fragmentada, como
e avenidas. Assim também com os fenômenos resultado de um sentimento de passagem por
que nos marcam o ser e nomeiam os lugares por um lugar grafitado. Não é algo que se repete a
onde passamos. É o caso da rua/avenida Liberda- todo momento do dia. E se o trajeto se repetir, o
de, Felicidade, bairro dos Morros, Além Linha... sentimento não será o mesmo que o anterior.

São escritos urbanos marcados na cultu- Como as demais imagens da cidade re-
ra local, nacional e mundial e sobre os quais não tidas pelas pessoas, o graffiti compõe a cultura
ficamos passivos. Marca sob marca, escrito sob urbana que temos. Essa cultura que nos une e
escrito, o graffiti como manifestação de ideias e particulariza em relação às demais pessoas do
posicionamentos, de todas as espécies, marca o mundo. Em várias situações, já disseram que
espaço duplamente, pois, de um lado, paredes, era uma segunda pele da cidade. Mas tinta em
solo e tetos recebem uma escrita (seja de letras transformação não é pele! É muito mais que
e/ou desenhos); de outro lado, os passantes e uma segunda pele. É A pele da cidade naquele
frequentadores recebem informações em no- momento, a causar espanto, discórdia, risos e
vos códigos e estéticas e o entendimento e a toda a gama de sentimentos vivenciados pelos
compreensão dessas leituras são, estritamente, urbanos.
pessoais. Trazem e causam sentimentos inco-
municáveis nessa linguagem que falamos dia- Nesse ínterim de sentimentos, a próxima
riamente, visto que são registros de códigos que volta pelo quarteirão pode trazer surpresas. Fei-
cada um, com seu repertório de vida, de simbo- to um conto policial, o suspense é o ingrediente
Sorocaba logias, interpreta como pode. do fazer e do ver o graffiti, assim como da pi-
ESPAÇO GRAFFITI Xação, espécie de corte na pele da cidade que
Não vem ao caso que o graffiti seja con- exige mais do que leitura e gosto. Exige que o
Paulo Celso da Silva O espaço urbano foi visto, por quase todo o siderado arte ou não. Isso não cabe ao crítico, te- passante esqueça, de momento, o que apren-
Doutor em Geografia Humana, professor do Programa de Mestrado século XX, como um grande quadro em branco órico ou artista definir. Mas cabe ao expectador deu e reaprenda a ver, a ler e a gostar.
em Comunicação e Cultura da UNISO. Participa do grupo de pesquisa
MidCid-Uniso. Autor de “De novelo de Linha a Manchester Paulista”, no qual as sociedades podiam escrever as suas da cidade aceitá-la como tal. Ou não. Ainda as-
“Walt Disney’s Celebration City. Reflexões sobre comunicação e histórias. Escrever pelos muros e vias não é um
cidade”, “Poblenou: território @ de Barcelona. Projeto 22 @BCN.
Estudo e considerações” e “Cidade e Comunicação”, volumes 1 e 2. privilégio das pessoas que vivem este momen-
to, ao contrário, as pessoas que vivem hoje de-
vem suas inscrições a muitos tantos que, ante-
riormente, viveram, escreveram e marcaram no

18 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Espaço Graffiti 19


Na Sorocaba contemporânea não é di-
ferente. Gerações de passantes já incorporaram
os escritos, dizeres e imagens que marcam a
pele com acento sorocabano. Por ruas e ave-
nidas, filosofias de passagem, pequenas frases
ou apenas palavras para nosso quebra-cabeça
diário: abaixe o vidro... tire o capacete...

Em alguns momentos nessa cidade, as


mídias utilizam adjetivos específicos como van-
dalismo, crime, contravenção... Em outros, ilus-
tração, comunicação, tudo depende em que
totem, monumento ou em qual lugar está, nem
sempre diferenciando graffiti de pixação.

Esse exercício de marcar a pele da ci-


dade com pixações não deixa ninguém in-
diferente. Confronto com autoridades? En-
frentamento à sociedade capitalista? Sujeira?
Invasão de propriedade? Uma fase da vida de
alguns jovens? Os questionamentos são mui-
tos e as respostas, as mais diversas, contradi-
tórias e longe de consenso.
Rua Almirante Barroso

Graffitar ou piXar. Esse confronto que O BRASIL DE TODOS


não existe entre os praticantes nos fazem pen-
sar que ficaremos com os dois, com suas distin- Beatriz Elaine Picini Magagna Importante iniciar a análise da imagem com
tas formas de expressar.
Formação: mestrado em Educação, graduação em Pedagogia e em o que, na música, nos define enquanto povo.
Letras, curso técnico em enfermagem, especialização em medicina
antroposófica e chinesa. Coordenadora do PROEJA-Uniso – A Aquarela do Brasil de Ary Barroso brilhante-
Programa de Educação de Jovens e Adultos da Universidade mente mostra a diversidade cultural do povo
de Sorocaba. Docência nos ensinos superior, profissional e
fundamental. Diretora de Escola – implantação de Gestão brasileiro. O “mulato inzoneiro”, manhoso, a
Participativa Escolar em 1993. “mãe preta”, o gingado e o ritmo nos identifi-
Produção: organização e participação em artigos e livros
acadêmicos. Autora de poesias e contos infantis. cam: o nosso “Brasil brasileiro”.

20 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos O Brasil de todos 21


Ao ouvir a melodia, consegue-se visualizar em uma série de problemas sociais, econômi- descreverá as atitudes do nosso povo em um
todas as imagens, de norte a sul, os “coquei- cos, políticos e pedagógicos. momento histórico de transformação.
ros” e as “fontes murmurantes” que compõem
a paisagem, exibindo na mente, de forma ma- O espaço escolar precisa ser lúdico, agradá- Neste exato momento, os homens e mu-
gistral, a grandeza e a beleza do Brasil. As ma- vel e prazeroso para crianças, adolescentes e lheres deste imenso país, banhados de grati-
nifestações culturais populares, a diversidade adultos; além do envolvimento de uma equi- dão, com a sensação de dever cumprido, irão
e a influência da imigração que compõem a pe de profissionais colaborando com o traba- assinalar o caminho, que muitos tentaram
nação brasileira. lho do professor: psicólogo, terapeuta ocu- desviar.
pacional, fonoaudiólogo, dentista, médico e
Ao ritmo da música, a imaginação nos leva assistente social. Os auxílios culturais, físicos, Mesmo com o erro ortográfico observado
às várias danças folclóricas: o gingado da emocionais e sociais necessários ao processo na imagem, imposto pela falta de comprome-
baiana na orla de Amaralina, em Salvador; o de formação do aluno. timento na implantação de políticas públicas
efetivas para a educação, esse brasileiro ou
Uma escola que ofereça a oportunidade de brasileira expressou o que lhe ia ao coração.
formação, preparando-os para a autonomia Naquele momento, como um grito de alerta,
desejada, ou seja, torná-los sujeitos de seus nos lembra da máxima do povo: “unidos, po-
processos histórico, social, existencial, cultu- demos tudo”.
ral, consciente e concreto, auxiliando na cons-
fandango do Sul com o seu movimento gra- quezas e abundância aqui encontradas, do
trução do reconhecimento como sujeitos de Pode-se deixar a correta grafia de lado
cioso; o samba no pé dos passistas das escolas Pau-brasil ao Pré-sal, ao longo dos séculos,
direitos e deveres, embasados por atitudes quando se consegue ver a grandeza da men-
de samba de São Paulo e Rio de Janeiro; um favorece a poucos.
éticas e cidadãs. sagem, pois um problema de fácil correção
poema em movimento na disputa entre o boi
ortográfica não pode macular a riqueza da
Garantido e o Caprichoso, no Amazonas. Belas O lucro, o consumo e o mercado são as tôni-
O momento político vivido no país passa- frase e o desabafo.
e ricas manifestações. cas do momento, poucos falam em humanizar-
rá, o amargor das diferenças ideológicas dará
-se. Um dia, talvez, esse afã pelo lucro imedia-
lugar à doçura que envolve a nossa cultura. Com a alma banhada pelo som da músi-
Em meio a essa diversidade, o imaginário to e pela acumulação de bens dará lugar a um
As reformas necessárias ao país serão feitas, ca, e interpretando, também com o coração,
do povo brasileiro, entre tantas dificuldades, pensamento mais igualitário. Não só o Brasil,
o povo assim exige. A história será escrita de o nosso autor desconhecido, leio claramente
ainda exala esperança, a alegria latente her- mas a humanidade precisa desse caminho.
outra forma, com dignidade, igualdade, espe- que, em nosso país, “há união do povo” e essa
dada dessa profusão de etnias, raças e credos,
rança e felicidade. ação tão brasileira, típica da nossa cultura ou
as culturas dentro da cultura. A educação, ainda hoje, no Brasil, necessita
culturas, “nos fortalece a cada dia”.
de um olhar mais carinhoso e responsável. Uma
A educação com qualidade para todos se
A história do Brasil não o favoreceu. O política pública mais eficaz viabilizaria um novo
efetivará e a gramática da mensagem ficará Afinal, unidos, somos fortes: “Brasil, meu Bra-
desenvolvimento rápido, esperado pelas ri- cenário para a educação. O país ainda esbarra
para trás, deixando apenas a essência, que sil brasileiro, vou cantar-te nos meus versos!”.
22 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos O Brasil de todos 23
O EMPODERAMENTO DO ANIMÊ

Fernanda Dos Santos Ueda


Mestre em Educação na Linha do Cotidiano Escolar. Ingressou no
ensino superior como Professora de Direito Penal e Constitucional
na Universidade de Sorocaba em 2006. Professora da Academia de
Polícia Coriolano Nogueira Cobra. Delegada de Polícia do Estado
de São Paulo empossada em 1998. Especializou-se no combate
a violência de gênero como titular de Delegacias de Defesa da
Mulher por 14 anos

Sabia que iria receber as imagens para a sensibilidade ímpar. Tudo me agride. Da no-
construção do texto. “_ Você vai se chocar! tícia, que me marcou quando li de que o gru-
Nem vou falar muito para você ter uma pri- po terrorista islamita Boko Haram sequestrou
meira impressão sua”. Assim se findou o con- pelo menos duas mil mulheres e meninas na
vite para discorrer sobre uma imagem femi- Nigéria desde 2014, aos filhos sem pai do funk
nina que fora vilipendiada por uma pichação. fluxo, e ao estupro coletivo de uma adolescen-
Aguardei ansiosamente e, quando abri, triste- te no Rio de Janeiro, a qual, hoje, é obrigada a
mente... viver sob custódia do Estado, num programa
de proteção a testemunhas.
Não me choquei. Nada. Nadinha.
Portanto, um grito calado feito numa traves-
Nem um pouquinho? É, nem um pingo sa de um bairro qualquer de Sorocaba, o que
de surpresa. significa frente a tanta barbárie? Na realidade,
significa, sim. Muito em extensão e em conteú-
Três segundos depois, me assustei – sim do. É a pichação pornográfica sobre a imagem
– com a minha reação. Será que a amortiza- feminina a corporificação dos crimes sexuais. Há
ção dos meus sentidos chegou num nível tão um grande equívoco quando se pensa no que é
avassalador? Seria a violência real tão banal no o estupro. A imagem do monstro de falo ereto,
meu cotidiano que o “estupro” da arte figura- sem rosto, troglodita desprovido de qualquer
ria somente como a cereja do bolo? moral, não coaduna com o que encontramos
Rua Luiz Dordetto no dia-a-dia policial. O homo taradus do imagi-
Próx. Ceagesp Resposta: não sei!!! Certo é que sou de uma nário popular, que emerge das sombras numa
Rua Olinda Luz Marte

24 O Empoderamento do Animê 25
esquina e arrasta a vítima (que só o será se for ca do pichador em relação ao grafite original. com bigodes, e na idade adulta, com falos nostem o direito de se mostrar sem nos sentirmos
recatada e pudica) para a penetração forçada Até porque a imagem era linda. Ou seja, a éti- penetrando. Aprendemos que a fragilidade fe- diminutas por isso. A exposição da combinação
é uma falácia. ca dos marginalizados não está presente se o minina pede e necessita da brutalidade mascu-mulher + beleza + força é, na verdade, apenas,
assunto for mulher. lina. Que a beleza feminina, ampliada pelas mi-
a demonstração, em forma de arte, do que a
A imagem é a realidade brasileira. A ima- núsculas vestimentas que deverão ser adotadasmulher é diariamente... em sua vida, casa e tra-
gem sensualizada deve e pode ser estuprada Incomoda-me o fato da necessidade do falo pelas mulheres, é apenas um acessório para a balho... Linda + forte e mulher!!! Digna de res-
porque está à mostra. As coxas desnudas “pe- em toda e qualquer representação cultural de robustez do homem, para que o corpo feminino peito, igualdade e orgulho. Alguém que não
dem” o pênis. Os lábios vermelhos clamam nossa sociedade. O grafite inicial demonstra seja utilizado para os seus “verdadeiros” propó-
têm e não necessita de um falo para ser ela
pelo sexo oral. A cintura fina e o decote são uma mulher, um animê, que se caracteriza sitos: a satisfação do homem e a procriação. mesma. Alguém que não necessita de múscu-
convites a um ato libidinoso. Voluntário ou como uma nova forma de cultura pop, uma los para ser forte e não necessita ser humilhada
não. nova forma de idealizar o herói/heroína mo- Infelizmente, são necessárias palavras de e explorada em cada esquina para saber o seu
derna. No caso, nos deparamos com uma jo- empoderamento para entendermos o quão er- lugar. Porque o lugar da mulher é em todos os
Este é o nosso cenário. As cifras do Minis- vem mulher linda, sexy, dona de si.... heroína rada é a presença do falo naquela imagem. A lugares. E o sexo e o falo para ela são escolhas e
tério da Saúde/SVS (2011) demonstram que pelo simples fato de existir nas paredes sujas beleza do corpo feminino é um privilégio que não imposições.
a maior parte dos estupros ocorre na segun- e rabiscadas de nossa cidade, guardando e
da-feira. Os horários também são surpreen- contando sua história em uma esquina/beco.
dentes: as crianças, majoritariamente, são
violentadas entre 12h00 a 18h00. Não preciso Infelizmente, em uma sociedade patriarcal,
de qualquer pesquisa para afirmar catego- machista e sexista como a nossa, a presença
ricamente que os autores de crimes sexuais de uma linda mulher forte, com roupas curtas
Av. Juscelino Kubitschek
serão, na maioria, pessoas do convívio da (é claro!!!), em um beco escuro, não poderia fi-
vítima. O monstro de genital em riste será o car sem a presença do falo!!! Convenhamos, ela
padrasto, pai, marido, namorado, vizinho, clama pelo “pau”, seus lábios, suas coxas... seus
avô, professor, tio, amigo da família e os que seios!!! Vejo essa imagem e me reporto à infân-
já foram tudo isso (os “ex”). Fato: a violência cia, quando se pegavam imagens de mulheres
sexual está enraizada no “seio da família bra- em revista... uma caneta e... tchanam!!! Apare-
sileira”. ciam bigodes, cavanhaques... barbas e coisas
do gênero na revista.
As frases de empoderamento represen-
tam a reação necessária e imprescindível Parece bobagem, mas é interessante perce-
para uma ação afirmativa. Mais que a imagem ber como o masculino está presente em nossas
conspurcada, fiquei perplexa com falta de éti- vidas... nas menores manifestações... na infância,

26 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos 27


R. João de Almeida Melces
AS IDEIAS POR DETRÁS DAS
PALAVRAS

Marcelo de Barros Ramalho A palavra é um ato de consciência. Tudo


Possui Doutorado en Variedades del Español en Ámbitos
Profesionales y en el ELE e Máster en Experto en Español como
aquilo que se pensa na mente humana é um
Lengua Extranjera en Ámbitos Profesionales - UNIVERSITAT não lugar, a  οὐτοπία, de onde se originam as
DE BARCELONA. Atualmente, atua na graduação em Letras, na
Habilitação em Português-Espanhol, como professor titular da
ideias, que são formas de consciência que se
UNIVERSIDADE DE SOROCABA. fazem visíveis no mundo da matéria, criando
e recriando, para bem ou para mal, o entorno
que nos toca viver.

As Ideias por detrás das Palavras 29


Diante da grandeza dessa criação, Emilio Lle- Teorizar a frase pintada no muro, com sua dis-peitamos nada. O respeito tem de estender-se
dó dá por certo que a vida é uma experiência posição e cor própria: “Consuma menos. Ame a mais coisas. Tem de estender-se à natureza.
incessante. E vamos aprendendo a olhar, a as- mais.”, possibilita-me contemplar e interpretar Deveríamos respeitar os seres vivos. Outras cul-
sombrar-nos com a natureza que nos rodeia: as ideias implícitas de ordem. turas, que chamamos primitivas, consideram sa-
árvores, as nuvens, a luz, o mar, a terra, os frutos gradas uma fonte, uma árvore. E para nós, isso é
da terra. Comenta também que foram os primei- O consumo alienado torna-se para as massas um objeto de comércio, de exportação, de venda
ros filósofos que nos iniciaram nesse assombro um dever suplementar à produção alienada. Dito ou aluguel. No que se refere ao respeito, estamos
e começaram a especular, a “teorizar” – que é consumo é todo o trabalho vendido de uma so- fatais, assevera.
uma forma de olhar – sobre o que chamaram de ciedade, que se torna globalmente mercadoria
Στοιχεῖα, os “elementos”, os princípios funda- total, cujo ciclo deve prosseguir, conforme des- Sampedro também questiona quais são os
mentais da vida: a água, o ar, a terra. creve Guy Debord em seu livro intitulado “A So- fins da vida. Para que vivemos? E responde: es-
ciedade do Espetáculo”. tamos vivos para viver. Para fazer-nos, para rea-
lizarmo-nos. Para dar, de cada um de nós, tudo
José Mujica, ex-presidente de um país pe- o que se pode dar, porque assim teremos tudo
queno e que está em uma esquina importante aquilo que se possa receber.
do mundo, como tem por costume dizer, sus-
tenta que quando você gasta, no fundo, o que A ideia dos fins da vida já nos foi dada, de acor-
está gastando é o tempo de vida que se lhe foi. do com εὐ αγγέλιον, a boa notícia, por Χριστός, o
Ademais, acrescenta que a felicidade não é uma Ungido, há mais de dois mil anos, e pode ser lida
Nicolau de Cusa, autor da “De Docta Ignoran- questão material. Sua definição sobre o consu- em Lucas, nesta parábola:
tia”, afirma que “Deus é tudo e em tudo e não é mismo é a de Sêneca: “pobres são aqueles que
nada no todo”. Dessa forma, o humanista renas- precisam de muito”.
centista parte de uma ideia de que tudo o que
foi criado, incluindo o homem, é a imagem de O capitalismo não é que seja mau em si. É que
Deus. Tudo é manifestação de um único modelo, já está esgotado, segundo a visão do economista
mas não é uma cópia, e sim um signo de esse Ser espanhol José Luis Sampedro. Foi muito bom em
Absoluto e, ao mesmo tempo, único e múltiplo. seu tempo. Foi uma força criadora a que deve-
mos muitíssimas coisas. Mas, terminou. E não é
Pensar é vida; pensar é um ato de criação, apto para os problemas e soluções de hoje.
da mesmíssima natureza espiritual, intelectual,
emocional e física de Deus, que é espírito, e que Põe também em destaque que ao poder atu-
se manifesta de inúmeras formas neste plano al não interessa formar cidadãos, mas sim con-
terrestre. sumidores e produtores. Diz que hoje não res-
30 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos As Ideias por detrás das Palavras 31
“E eis que se levantou um certo doutor da lei, sua obra “¿Para qué sirve realmente la ética?”,
tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para her- faz eco da intenção das palavras de Cristo, so-
dar a vida eterna? bre o amor e o cuidado com o outro, deste
modo: “Resulta ser que os seres humanos não
E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? somos só egoístas, inteligentes ou estúpidos,
mas também somos, entre outras coisas, se-
E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor res predispostos a cuidar de nós mesmos e de
teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua outros. Para isso nos preparou o mecanismo
alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu en- da evolução, selecionando a propensão a cui-
tendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. dar como uma das atitudes indispensável para
[...] manter a vida e reproduzi-la, e a levamos já na
entranha de nossa humanidade”.
E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem
de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos sal- Eis aqui, pois, algumas palavras e ideias por
teadores, os quais o despojaram, e espancando-o, detrás das realidades que desenham o mundo.
se retiraram, deixando-o meio morto. “Assim, uma pessoa, com uma educação mo-
desta, que sabe ler a realidade, é uma pessoa
E, ocasionalmente descia pelo mesmo cami- culta; e não os doutores surdos, que não sabem
nho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. escutar e ler a realidade”, assegura Eduardo Ga-
leano.
E de igual modo também um levita, chegando
àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo.
R. Dona Carmela Capossoli de Freitas

Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou


Sustentabilidade???
ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima com-
paixão;
Nobel Penteado Freitas A indução ao consumo talvez seja um dos
Graduado em Ciências Biológicas com mestrado e doutorado
maiores problemas que os sistemas econômi-
E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitan- em Biologia Vegetal pela UNESP. Coordenou e participou de
projetos de pesquisa e extensão, tendo aprovado projetos junto cos capitalistas causam para a conservação da
do-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu ani- ao CNPq, Fehidro e PROEXT. Foi membro da Comissão Assessora natureza. O consumo, pela sociedade humana,
mal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; de Avaliação da Área de Tecnologia em Gestão Ambiental e é
avaliador do INEP. Atualmente é professor titular da Universidade de produtos, materiais e serviços das mais di-
[...]”. de Sorocaba, onde ministra aulas e coordena o Núcleo de Estudos versas áreas e formas é fortemente influenciado
Ambientais da Uniso e o Curso de Ciências Biológicas.
Neste segundo milênio, Adela Cortina, em pela propaganda e por imagens consideradas

32 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Sustentabilidade??? 33


saltando-se aqui a poluição do solo, da água e digna. Esta fartura quantitativa de alimentos
da atmosfera, sem falar na destruição das áreas no planeta foi possível de acontecer graças ao
naturais para a implantação das estruturas ur- que se chama de revolução agrícola. Técnicas
banas. O que é mais grave, e muitas vezes não de produção baseadas em grandes áreas de
percebido, é que para manter e sustentar uma monocultura, com usos intensivo de insumos,
cidade é necessário a exploração de extensas como nutrição mineral baseada em adubos
áreas externas a este núcleo organizacional, químicos e irrigação e controle de pragas e da-
pois o fornecimento dos recursos e insumos ninhas por meio de agroquímicos, permitiram
necessários ao seu funcionamento passa pela esta revolução. Esse tipo de produção agrícola,
produção de alimentos, recursos para geração provavelmente, tenha sido um dos principais
de energia e todos os demais insumos para os culpados aqui no Brasil pela destruição de im-
processos produtivos e de manutenção da so- portantes ecossistemas, como a Mata Atlântica
ciedade ali presente. e o Cerrado.
positivas, que remetem ao sucesso, bem-estar
e ao prazer em geral. Essa história começa a to- Quando a avaliação do consumo é focada Como fugir desta lógica da produção, do cres-
mar forma com a chamada revolução industrial, nos alimentos, a história também é longa. Num cimento e do consumo altamente valorizados?
quando no, século XVIII, teve início o modo de determinado momento da trajetória da huma-
produção organizado e com o uso de máqui- nidade, quando as cidades já eram estruturas
nas, inicialmente movidas a vapor proveniente bem estabelecidas e o aumento populacional
da queima do carvão e posteriormente movi- era crescente no planeta, o economista inglês
mentadas por energia originária de diferentes Malthus (1978), elaborou uma teoria que previa
fontes, com destaque para aquelas advindas a falta de alimentos no planeta. Ele profetizava
do petróleo e seus derivados. Neste processo que a humanidade teria problemas de abaste-
de industrialização, ocorreu o desenvolvimen- Questões profundas como estas são enfrenta-
cimento de alimentos, pois a população crescia
to que possibilitou e estimulou a formação das das muitas vezes, sem uma discussão mais am-
numa velocidade maior do que a produção de
cidades. Do ponto de vista ecológico, em geral, pla e que considere todas as suas consequên-
alimentos, prevendo que chegaríamos a um
as cidades são muito ruins, pois esta organiza- cias. Hoje, boa parte da população do planeta,
ponto de desabastecimento. Esta previsão não
ção física e espacial da sociedade humana con- em especial a parcela com mais recursos finan-
se consolidou e hoje o planeta produz alimen-
centra o consumo de recursos naturais e, con- ceiros, é induzida a consumir bens, produtos e
tos em quantidades que seriam suficientes para
sequentemente, também concentra a geração serviços que muitas vezes não são necessários
o abastecimento de toda a população. Porém,
de resíduos, sejam sólidos, líquidos ou gasosos. a sua sobrevivência, ou seja, são supérfluos. É
fruto de uma forte desigualdade, uma quanti-
Esta fisiologia urbana, se não controlada, é ca- óbvio que o ser humano necessita de recursos
dade enorme de pessoas não possuem acesso
paz de causar graves impactos ambientais, res- para um pouco além de sua sobrevivência, pois
aos alimentos necessários a sua sobrevivência
34 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Sustentabilidade??? 35
o lazer, a cultura e a diversão, por exemplo, são que contraria frontalmente a tendência natural.
importantes para a felicidade humana. A gran- E como se consegue isso? Estes ambientes arti-
de questão a ser equacionada é: como atingir ficiais de produção são obtidos pelo uso inten-
um patamar de consumo suficiente para as ne- sivo de agroquímicos para inibir as populações
cessidades básicas das pessoas, sem continuar de vegetais e animais que tentam ocupar esta
a agredir o meio ambiente? E mais ainda, trata- área, e que nós chamamos de pragas. Também,
-se de como mudar alguns paradigmas, como a como não se tem mais reciclagem de matéria
noção equivocada de que os produtos maiores, orgânica, é necessário o uso de adubos quími-
mais brilhantes, mais viçosos, são os melhores, cos para estas culturas. Assim, o veneno que
como ocorre frequentemente quando se trata está na nossa mesa, e que nos foi vendido com
de escolher produtos para nossa alimentação. a estética para acreditarmos que é o ótimo, re-
Como será que se conseguem aqueles tomates presenta muito bem todo o desequilíbrio am-
enormes e bem formados? Aquele repolho ou biental provocado pelo ser humano no planeta
um figo sem pragas? Produtos assim, que no Terra. Será que Marte será o próximo?
imaginário da maioria das pessoas são os me-
lhores, na verdade retratam a forma violenta
com que o ser humano trata o seu ambiente.

Qualquer ambiente com condições mínimas


para a sobrevivência de seres vivos, como exis-
tência de umidade, temperaturas médias e luz,
tende a dar suporte ao aparecimento de inúme- R. Dimas de Melo
ras espécies para ocupar este ambiente, caso
TRAVESTIR É RESISTIR E
bastante comum no Brasil, nos ecossistemas
aqui existentes, como Cerrado, Mata Atlântica
(RE)EXISTIR
e Amazônica, que abrigam milhares ou milhões Dizem-nos: somos Sapien-Sapiens! Como
de espécies a cada hectare. Se uma área dessas Josefina de Fatima Tranquilin-Silva supor tal racionalidade, se somos seres de
Doutora em Antropologia; pesquisadora de pós-doutorado nas
for desmatada e em seguida abandonada, com temáticas juventude, gênero e ativismo digital, no Programa de subjetividades? Seres de produção de cultura,
o tempo, novos milhares de espécies a ocupa- Pós-graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da ESPM/ de afeto, de caos, de horrores? O progresso, o
SP, com financiamento da FAPESP. Professora das faculdades de
rão. Portanto, esta é a lógica natural da ocupa- Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Design
mito, a fé, a ordem, a ciência, o Estado, o caos,
ção dos espaços na terra. Porém, para a produ- da UNISO e compõe o corpo docente do C. U. Belas Artes, em as existências são da ordem do antropo, e isso
cursos de pós-graduação stricto sensu. demonstra que por mais que se tentem impor
ção agrícola tradicional, o que se busca é um
ambiente onde só ocorra uma única espécie, o
36 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Travestir é Resistir e (re)existir 37
ordens definidoras às estruturas sociais, ali exis- Sexo, gênero, identidade de gênero, orien- vel. Percebemos, então, que os processos das gos, corpos considerados como “excremento”,
tem humanidades, e estas encontram brechas tação sexual: o biopoder, aquele que controla urbanias são mais que manifestações de uma que vêm ao encontro da construção das narra-
para burlar a ordem e o poder. As subjetivida- nossos corpos, e o poder farmacopornográfico, cidade. Na verdade, são os processos de imagi- tivas de ódio, as quais encontramos em todos
des dão vazão aos modos de vidas, aos modos aquele que controla nossas entranhas, classifi- nários múltiplos que as urbanizam. os lugares, inclusive nos muros da cidade e nos
de existir, às maneiras de fazer. cam nossa sexualidade dentro de parâmetros muros digitais. São os sapiens, excessivos e des-
da normalidade e do patológico. Desta forma, Por isso, “Travestir é Resistir”. E ser aniquilado. viantes, que as edificam.
Prefiro acreditar, como diz Edgar Morin, que o “bio” nos define e assim mantém-se o poder
somos Sapien-Demens! Um ser formado, ao heteronormativo e o binômio de gênero. De um lado, no cemitério público mais an-
mesmo tempo, por 100% natureza e 100% cul- tigo da cidade de São Paulo, um coletivo de
tura. Um ser excessivo, portanto, desviante. Um A filósofa Judith Butler nos ensina que os gê- drag queens fez ecoar o Canto de Ossanha,
ser de imagem-imaginário: imagens que elabo- neros são performáticos, ou seja, quando o po- de Toquinho e Vinícius de Moraes, na tarde de
ramos e aquelas que emolduramos; imagens der percebe que pode controlar nossos corpos uma quinta-feira (17/11/2016), em frente ao
abstratas construídas na imaginação; imagens e produzir a disciplinarização do gênero, acaba Terreno 22, Rua 25, do Cemitério Consolação.
que um dia denunciaram, nas cavernas, os nos- por deixar clara uma falsa noção de estabilida- A performance abria as homenagens a Andréa
sos desejos, sonhos, cotidianos. Hoje, as realiza- des corporais. Na verdade, eles nunca foram e de Mayo, transexual que, naquela tarde, rece-
mos nos espaços públicos das cidades. Somos nunca serão estáveis. Então, por que temos que beu uma placa com seu nome social, 16 anos
criaturas de imagens e figuras. Representações escolher a qual gênero pertencemos? Qual é a após seu falecimento. Iniciativas maravilhosas
simbólicas! nossa identidade de gênero? Que orientação iguais a essa se unem aos inúmeros eventos
sexual temos? Se pertencemos ou não ao Sex científicos e ativistas, e aos outros tantos ati-
Caminhar etnografando as ruas, os edifícios, Box? Por que nos importamos tanto com os de- vismos digitais concretizados pelas juventudes São muros. Literalmente muros. Que segre-
os tapumes das construções, as casas, os muros sejos sexuais do outro? brasileiras. Basta dar uma caminhada pelas car- gam. Que colocam as nossas emoções em con-
é perceber urbanias, apreender uma cidade co- tografias digitais e chegaremos ao encontro de domínios. Em um capitalismo feito de condo-
municacional: ali há corpos de todos os tipos, As imagens que representam essas pergun- infinitas delas. mínio. Onde tentamos encontrar identidades,
desejantes e desejáveis; há subjetividades e tas e suas respostas estão nos espaços das ci- prazeres e desejos que sejam semelhantes aos
subjetivações; há relações insuportáveis com o dades, que são também espaços constituídos Do outro lado, a atualização da TDor 2017 nossos, para não termos de dar de cara com o
Eu e com o Outro. Portanto, as cidades defla- de cartografias simbólicas e isso faz com que revela um total de 325 casos de assassinatos re- Outro, que confronta o nosso Eu.
gram quem somos. Nestes contextos, os cami- determinadas corporalidades sejam grafadas latados de pessoas trans, entre 01 de outubro
nhantes decodificam as linguagens dos corpos. nos espaços públicos como sinal de resistência, de 2016 e 30 de setembro de 2017. Essa atuali- “Travestir é Resistir”. É manter-se vivo
Os corpos denunciam os gêneros, aqueles acei- mas também, e infelizmente, como pedido de zação mostra um aumento de 30 casos de pes- diante de tantos muros. É (re)existir até onde
táveis e aqueles repudiados: corporalidades e aniquilamento, pois são corporalidades cujas soas trans assassinadas em relação aos 12 me- não der mais!
corporeidades. existências são imperdoáveis nas performan- ses anteriores, com a maioria tendo ocorrido no
ces da trama cotidiana: repúdio e expulsão da- Brasil (171), México (56) e Estados Unidos (25). (In)felizes esses Sapien-Demens que somos.
quele que é diverso, por isso mesmo intolerá- Repúdio, violências, mortes, assédios, expur-

38 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Travestir é Resistir e (re)existir 39


SENTIMENTOS CONTROVERSOS

Prof. Me. Marcelo Rodrigues


Formado em Filosofia, psicopedagogo e mestre em educação,
leciona para o ensino superior nas áreas de Filosofia Jurídica,
Metodologia Científica e especialização em educação. Professor na
rede pública e particular de ensino médio na cidade de Sorocaba
e psicopedagogo atuante no ensino superior, busca refletir sobre
a realidade por meio da ação do ser humano no mundo e suas
consequências.

Diante da voracidade efervescente do mun- Ao reverter a culpa pelo fracasso ao sujeito,


do das oportunidades e dos negócios, unida à elimina-se qualquer responsabilidade em rela-
docilidade da propaganda, estandarte das von- ção ao modelo do mercado, tido como infalível.
tades que sequer sabemos que temos, a contra- Nada pode derrubá-lo, aliás, não existem moti-
dição ganha perfeita harmonia, como sugere a vos para isso. As únicas falhas existentes estão
imagem que inspira esta reflexão. presentes nos indivíduos, ineficientes, incapa-
zes. A essa alienação – resgatando Marx – une-
Num mundo guiado pelas leis de mercado, -se o fetiche do profissional-modelo, que aceita
mais e mais fazem sucesso as práticas de coa- pequenos salários em troca de pomposos títu-
ching e exemplos de superação e de conquis- los, que trabalha além da jornada em nome da
tas que tentam nos convencer de que todos, necessidade da empresa, que compra a ideia
sem exceção, podemos ser vencedores – da de um produto ruim, mas que gera lucro, e que,
copeira ao presidente da empresa – com de- ao ser demitido, entende que sua colaboração
terminação e força de vontade. E mais: se você naquela instituição não é mais necessária, sen-
não está feliz ou ainda não atingiu o sucesso, do hora de alçar novos voos. Esse profissional
fique calmo: saiba que a culpa é somente sua! “perfeito”, que se recicla como lixo para voltar
Isso será dito de forma delicada, é claro, quase a ser útil, torna-se inumano, subjugado pela ilu-
como um afago diante do desespero, envolto são de que, se assim o for, o sucesso baterá à
no discurso da meritocracia, da autopromoção sua porta.
e do marketing pessoal.
R. Dona Carmela Capos- Frustrados, muitos desses não vencedores
soli de Freitas aquiescem em sua condição e se rendem ao

40 Sentimentos Controversos 41
alentador de uma sereia, mostra-se como reden- A propaganda torna-se o mais importante Neste réquiem de moribundos, cada um de
ção. Se os medievais buscavam a salvação da guia sobre nosso modus vivendi. Não importa nós se insere sob uma perspectiva, seja a dos
alma na igreja, nós buscamos a salvação do cor- se você gosta ou concorda com algo, mas pre- que sofrem com as consequências do sistema,
po mesmo, num shopping (pois não dá tempo cisa daquilo para mostrar aos outros que tem seja a dos que usufruem das migalhas espa-
de esperar, tudo é urgente!). A felicidade vem em e que pode fazer. O guia de como ser feliz está lhadas ao longo do caminho. O que importa é
pequenos pacotes, embrulhadinha com o dese- espalhado pelo mundo em outdoors, revistas, manter essa roda girando, mesmo que às cus-
jo de ser descoberta. “Abra a felicidade”, dizem, anúncios; passa na TV a cada instante; está tas de solidão, desigualdade, violência, intole-
pois o mundo está aí para ser curtido, devorado, à distância de um pequeno toque. Adorno rância e até da morte. Todos pagarão o preço
sempre com pressa e pouco senso crítico, com nunca esteve tão certo sobre a necessidade – alguns mais, outros menos – pela manuten-
a pequena exigência da concessão do dinheiro de se criar padrões de comportamento para ção do modelo de vida ao qual ousamos não
obtido ao longo da frustração diária como forma se definir padrões de consumo. Sabe o brin- criticar, mas aceitamos de bom grado como
de compensação por toda essa maravilha. Mas, co da protagonista da novela? Amanhã estará um presente, capaz de incutir no ser huma-
fazem-nos pensar: o que é isso diante da possi- nas mais diferentes orelhas, vindo da joalhe- no a ilusão da oportunidade e da realização
bilidade de felicidade instantânea? ria “oficial” ou do camelô, “oficioso”. Mas, o oriundas apenas de esforço próprio.
que importa é o uso, a ostentação: não para
si, mas para os outros. Estar na moda é estar Cerceados pelo ritmo frenético do mundo
atento aos outros. Não importa o que penso, em que vivemos, nos vemos – como aponta
mas o que pensam. Não importa o que sou, Zygmunt Bauman – diante de uma realidade
mas o que tenho. fluida, onde sentido e objetivo deram lugar ao
conformismo, aceitando-se como dependen- supérfluo e transitório, numa busca sem razão
tes de um sistema que os aprisiona. O traba- Impregnados por essa lógica insana, de por algo que nem sabemos bem o que é. Ser
lho realizado no emprego torna-se, ao invés de docilidade e conformismo no trabalho e de dócil e voraz nunca fez tanto sentido diante
agente de emancipação humana, um fardo a ser voracidade e dependência no consumo, nos da sua própria contradição.
carregado. Precisamos aceitá-lo da forma como é apresentada outra máxima publicitária, re-
é, pois, se há algum problema, ele está em mim, citada como mantra, para que saibamos que
não no modelo; não nas condições a que me esse é o jeito certo de se viver: “Amo muito
submetem, nem na estrutura predatória que o tudo isso”! O questionamento e a reflexão so-
mercado impõe. Tais pessoas colocam-se numa bre esse modelo de vida – se é que podemos
jornada sem rumo ao vazio do capital, mas dese- assim considerá-lo – são proibidos. A confor-
jando conquistar aquilo que talvez seja o fim úl- mação é condição para o reconhecimento por
timo do ser humano: ser feliz! – diria Aristóteles. parte de todos, da família aos amigos, da em-
No entanto, como sê-lo diante do fracasso? Eis presa à igreja.
que a voz sublime do consumo, como o canto

42 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Sentimentos Controversos 43


#MAISAMORPORFAVOR

Evenize Batista
Jornalista, assessora de imprensa e professora universitária;
Apaixonada por arte e pintura em espaços públicos; Mãe de
trigêmeos; Mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso,
especialista em Gestão de Cidades pela Faap e graduada em
Comunicação Social - Jornalismo pela Uniso.

Temos vivido tempos difíceis para quem crê e envenenados. Vivemos tempos digitais, tem-
no bem da humanidade. É preciso ser forte para pos de menos toque, de menos abraço e vem
manter o otimismo e não se deprimir diante de alguém com essas oito letrinhas, esses oito ca-
tanto desamor manifestado em preconceito, racteres a céu aberto, e nos faz parar para ler e
em intolerância, em discriminação, violências parar para pensar em amor.
de todos os tipos e muros reais e imaginários
que têm sido erguidos aqui e acolá. Seria essa Enfim, não será possível saber qual foi a mo-
angústia a razão de alguém ter resolvido espa- tivação que levou esse alguém a sentir e, não
lhar uma mensagem sobre amor pela cidade? bastando o sentimento, transbordar em tinta
pela cidade um pedido por amor, ou seria um
Em meio a tanta informação triste, noticiário pedido de amor? A tal motivação deixamos de
negativo que se dissemina em uma audiência especular, mas sabemos que essa mensagem
que não presta atenção; gente que lê só 140 ca- não é exclusividade das ruas de Sorocaba. Ela
racteres (quando muito); gente que se acostu- está espalhada pela internet. E, acompanhada
ma a consumir só superficialmente as informa- de “por favor”, se fortaleceu em uma hashtag
ções, mas, mesmo no raso, resolve ir fundo nos que viralizou e praticamente ganhou caráter de
comentários. Neste mundo agitado de menos campanha nas redes sociais.
relacionamentos, vemos gente que julga, con-
dena e lincha com a língua ou os dedos afiados Trata-se, então, de um movimento? Parece
que sim. E se é organizado ou não, não faz dife-
rença, o fato é que nos grandes murais que são
a rua e as redes de relacionamento, esse apelo
Rua Pernambuco
44 #maisamorporfavor 45
está presente e apto a significar em cada um a rotina nos deixa? Podemos amar mais?
que vê, lê, pensa e sente. Com maior ou menor
profundidade na interpretação, no efeito que E quando alguém faz o pedido ou a suges-
essa mensagem causa, ela surgiu e continua tão por mais amor, também podemos pensar
sendo, inegavelmente, uma semente. nos gestos de amor. Como nos relacionamos
com a vida, com as pessoas conhecidas e até
Assim, conseguimos ver que a criatura gra- com as desconhecidas. Sim, dá para ter amor
fitada segura com cuidado e oferece o cora- pelo desconhecido. O amor transborda e pode
ção como uma flor. A cicatriz aparente não estar presente em qualquer tipo de relação, dá
deixa dúvidas de que não foi fácil chegar ali para fazer com amor, falar com amor, até dá
e ele estende aquilo que tem, mesmo maltra- para corrigir com amor.
tado. É o melhor que tem a dar. Ao mesmo
tempo que nos pede, aquele indivíduo nos Voltando à inspiração do início deste texto,
dá primeiro o seu próprio amor, gesto de que foi o contraponto do desamor, da angús-
compaixão diante das dores e angústias que tia cotidiana, é justamente esse conceito que
permeiam a vida de cada um. o boneco andrógeno nos sugere desconstruir
com amor. Se conseguirmos mudar o foco, po-
Cada um sabe o quão combalido está o pró- demos reverter o jogo do mal, podemos pre-
prio coração, mas, diante do apelo anônimo do encher espaços e relações com o que é bom e,
grafite, somos convidados a pensar no assunto pelo menos, tornar melhor, mais leve, mais afe-
e sobre como nos comportamos no cotidiano. tivo, mais afetuoso o nosso dia-a-dia.
E, em se tratando de amor, fica o convite para Praça Frei Baraúna
refletirmos sobre o que amamos. Nesse aspec- E assim, aquela semente que não foi plan-
to estão as pessoas e nossos relacionamen- tada, mas sim pintada no muro de um colégio, A CORRUPÇÃO COMO REFLEXO DA
tos com elas, sejam nossos pais, nossos filhos, terá germinado e ajudado a mudar o rumo, mu- AUTOSSIMILARIDADE SOCIAL
nossos companheiros, nossos amigos e nossos dar o assunto, mudar o clima, mudar a forma
bichos de estimação. Mais que isso, podemos de nos relacionarmos. E, se não é possível sa- Desde sempre o tema “corrupção” é presente
Danilo Vieira Vilela na ”boca do povo”. É assunto recorrente no bo-
olhar para essas relações e pensar como ama- ber quem foi que deixou aquele recado capaz Doutorando em Direito Político e Econômico na Universidade
mos e como temos manifestado e vivido as de atingir nossos corações, a melhor forma de Presbiteriana Mackenzie (Bolsista Mackenzie). Mestre em Direito teco, no elevador, na redação do vestibular, no
Obrigacional Público e Privado pela UNESP, Especialista em Direito
relações de amor. Temos estado próximos ou agradecer, certamente, é acolher aquele pedi- Processual (UEMG), Direito Penal e Processual Penal (UCDB)
jornal e na internet. É um tema tão presente no
presentes nas vidas dessas pessoas, temos con- do, aceitar o convite para amar e disseminar a e Direito Empresarial e Advocacia Empresarial (Anhanguera- dia-a-dia que até mesmo os corruptos adoram
Uniderp) e MBA em Gestão Empresarial (UNESC). Professor na falar de corrupção. Por isso, não é de se estranhar
seguido dizer que amamos, temos conseguido corrente do bem. Universidade de Sorocaba. Advogado.
sentir o amor, mesmo com o pouco tempo que que o tema tenha chegado aos muros da cidade.

46 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A Corrupção como Reflexo da Autossimilaridade Social 47


Muitos veem na corrupção um agir ines- rem sido alcançados, a Administração Pública Já no âmbito privado, da mesma forma que
crupuloso daqueles que detêm o poder e, em continua infestada por práticas que, sob nova fomos moldados a acreditar no brasileiro como
favor de seus próprios interesses, prejudicam roupagem, reproduzem o padrão coronelista o “homem cordial”, do que resulta a falácia de
o interesse público e a coletividade por meio do início do século passado. Destarte, tanto o que não existe racismo, intolerância ou machis-
de negociatas e trocas de favores espúrios. E nepotismo quanto a reiterada troca de favores, mo entre nós, também somos direcionados
está certo quem pensa assim. A corrupção é, la- muitas vezes acobertada pelos supostamente a acreditar que o “jeitinho brasileiro” é razão
mentavelmente, ínsita à esfera pública, espaço legais “cargos comissionados”, são alguns dos de orgulho para, malandramente, nos darmos
onde deveria ser ampla a preocupação com o fatores responsáveis pela perpetuação das prá- bem nas mais diversas situações.
interesse coletivo. ticas de corrupção no espaço público, das quais
resultam escândalos que alimentam os noticiá- A expressão “corrupção” vem de decompor
Em razão disso, diversas foram as tentativas rios, que os exploram nem sempre com a devi- ou deteriorar algo, significando, assim, a forma
de aperfeiçoamento da Administração Pública. da objetividade e imparcialidade, ou seja, nem pela qual se deturpa a norma legal ou costu-
Assim, Vargas, ao submeter a Administração à sempre de forma menos corrupta. meira com o intuito de ludibriar terceiros em
legalidade, tentou, sem sucesso, afastar as prá- benefício próprio ou de outrem. Assim, a prá-
ticas patrimonialistas então dominantes. Já nos Contudo, a corrupção não se resume à esfe- tica de furar uma fila, ultrapassar pelo acosta-
anos noventa, uma nova Reforma Administra- ra pública. Ao contrário: é cultural, social e, mui- mento ou “colar” diante de uma avaliação nada
tiva, partindo da premissa da eficiência, tentou tas vezes, introjetada como algo natural. Ou- mais são que alguns dos inúmeros exemplos de
estabelecer padrões e condutas aptas a supe- trossim, ainda que a solicitação de privilégios já
rar a histórica confusão feita por aqueles que constasse na carta dirigida ao Rei de Portugal,
insistem em gerir o público como se privado quando os portugueses aqui chegaram, a cor-
fosse. Novo insucesso! Apesar de avanços te- rupção não é “privilégio” brasileiro, tampouco
manifesta-se diferentemente de outros luga-
res, como, muitas vezes, o complexo de vira-la-
tas nos induz a imaginar. práticas corruptas (cada vez menos) aceitas no
cotidiano.
A corrupção está presente em todas as socie-
dades, independentemente do contexto histó- Se o agente público que recebe propina
rico ou geográfico. Onde quer que haja meios para deixar de autuar o infrator é corrupto, isso
de se obter favorecimentos espúrios, lá estará se dá porque alguém o corrompeu. Se o candi-
o germe da corrupção, cujo desenvolvimento dato é corrupto porque “compra o voto”, só o
será diretamente proporcional à impunidade e é porque o eleitor o vende. Da mesma forma,
à aceitação social. as práticas cotidianas só são repetidas porque

48 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A Corrupção como Reflexo da Autossimilaridade Social 49


contam com o beneplácito da sociedade em modelos. Desse modo, a sociedade reproduz,
geral, que, muitas vezes, vê no “malandro” o as- em si mesma, cópias dela própria. Dito de ma-
tuto, o hábil e mais apto, reproduzindo, dessa neira mais simples: assim como juntando-se
forma, um sem número de “macunaímas”, ver- várias laranjas não se chega a um saco de ma-
dadeiros heróis nacionais sem nenhum caráter. çãs, não é possível dizer que haja um sistema
corrupto composto por pessoas honestas. Se
Como evidencia o cartaz, a corrupção é o a corrupção é sistêmica e generalizada, a solu-
próprio sistema. Por isso, para combatê-la, a ção há que ser a partir da menor partícula que
saída deve ser encontrada fora do sistema. As- compõe a sociedade, o ser humano.
sim, não dá para imaginar uma reforma eleito-
ral elaborada por quem não tem interesse que
ela funcione, da mesma forma que é inviável
uma reforma educacional liderada por aqueles
que defendem interesses contrários ao ensino
crítico e emancipatório, por exemplo. No mes-
mo sentido, o enfrentamento da corrupção no
espaço público não pode ser feito à margem
dos direitos e garantias individuais, como ao
contraditório e à ampla defesa, sob o risco de
se corromper o próprio combate à corrupção,
numa espiral sem fim.
Rua Pernambuco
Se “o sistema não pode combater a corrup-
ção porque a corrupção é o sistema”, a saída JUSTIÇA
deve ser para além do sistema. Ou seja, somen-
te a reforma íntima, pautada por valores de soli- Aldo Vannucchi
dariedade e justiça social, é capaz de despertar Mestre em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana Em agosto de 2016, o Boulevard Olímpico,
em cada um o sentido de cidadania necessário de Roma, com vários cursos de Especialização, em Roma, na no Rio de Janeiro, se enfeitou com um mural de
Universidade do Estado e na Urbaniana, na Universidade de
e imprescindível para o enfrentamento da cor- Genebra e na Universidade de Louvain. Professor universitário de 2.780 metros, representando os povos nativos
rupção. componentes curriculares das áreas de Educação e Filosofia. Foi dos cinco continentes, em alusão aos anéis das
Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba
e Reitor da Universidade de Sorocaba (Uniso). Hoje é Assessor da Olimpíadas, que lá pregavam a união entre os
Na matemática, a teoria dos fractais explica Reitoria da Uniso e seu Ouvidor. povos. Como a obra maior do mundo nesse gê-
a autossimilaridade, através da reprodução de nero, entrou para o Guiness.
50 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Justiça 51
fazer as coisas falarem o que, muita vez, os renovação nacional, e, aqui no Brasil, Portinari Mas, para análise mais detida do grafite, fi-
meios habituais de comunicação não com- deslumbrava com o seu “Guerra e Paz”. xemo-nos no quadro acima, com o olhar da Fi-
portam, não aceitam ou não sabem eviden- losofia. Antes de mais nada, pelo viés antropo-
ciar. Surgiram assim os murais do mundo gre- Hoje, porém, seria cegueira culpável redu- lógico. O anonimato da obra não esconde seu
co-romano, as maravilhas de Giotto, na Idade zir a arte pictórica ao muralismo. As ruas ganha- autor. Homem ou mulher, trata-se de alguém
Média, a Capela Sistina e a Última Ceia, no Re- ram foros de tribuna popular. O que parecem, aparentemente anônimo, mas presente e ativo
nascimento, e no século XX, pinturas geniais simplesmente, rabiscos esporádicos de mau no cenário urbano. Não existe a cidade sem eles
de Picasso, Miró, Chagall e tantos outros, na gosto constituem, na verdade, manifestações e elas, pessoas cientes e conscientes de que fa-
Europa, enquanto Diego Rivera, no México, de um pensamento provocativo ou divergente, lam pela massa sem ser massa de manobra.
transformava essa arte em arma certeira da inscritas aqui e ali pela cidade. De uns cinquen-
ta anos para cá, eles, os grafiteiros de escrita O deslize gramatical – “à todos” – não lhes
própria e livre, tomaram o mundo. É gente sem enfraquece a mensagem, primeiro, porque é
voz, bradando contra as ditaduras da ideologia, seu direito fundamental ter opinião, obedecen-
do lucro, do consumo, da chapa branca, dos do ou não às regras da escrita culta e, segun-
privilégios, das chefias. do, porque o conteúdo e o objetivo dessa fala
contracultural visa, precisamente, contestar a
Assim, terminados os jogos Olímpicos, um “Nos chamam de loucos num mundo onde pretensa aplicação cega e igualitária da justiça
antigo muro abandonado da cidade foi presen- os certos fazem bombas”. Recados curtos e lan- erga omnes. Entre as duas palavras, merecem
teado com o estupendo painel de Eduardo Ko- cinantes como esse parecem se desprender de mais atenção o protesto e a denúncia do que o
bra, paulista de fama internacional nesse ofício. paredes e muros despretensiosos para acordar erro. O que aparece errado desmascara o que
Pintado com o apoio de toda uma equipe, du- os adormecidos na alienação burguesa. parece certo.
rante quarenta e cinco dias, esse trabalho me
abriu caminho para refletir um pouco sobre o A linguagem do grafite Outro enfoque do quadro merece atenção, o
sentido e a importância da comunicação visual estético, porque além de letras, também falam
pela arte da rua. A linguagem do grafite é, sabidamente, pa- os desenhos e as cores: em verde, as letras; a
radoxal. “Penso, logo desisto” parece sinal de casa rústica, ao lado, e a cruz mínima, no alto,
Desde o homem da caverna até hoje, sem- rendição e, na realidade, evidencia impulsos em azul. O verde é cor quente, cor da primave-
pre se sentiu a necessidade de mostrar a con- de uma reflexão ameaçadora. Quem pensa faz ra, do reino vegetal, dos movimentos ecológi-
dição humana encarnada nas árvores, nas pensar incautos e acomodados, porque “a pior cos e da virtude teologal da esperança, daquela
rochas, nos astros e nos animais, em diálogo prisão é a da mente”. Daí o tom evocativo e que é a última que morre. Pintadas nessa cor,
simbiótico. Das pinturas rupestres aos poe- provocante dessas mensagens: “Mão na massa; as palavras revelam certeza de atingir o alvo.
mas líricos e épicos, tudo são tentativas de nada vem de graça”. Plantam verde, para colher maduro. Já o azul

52 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Justiça 53


dos dois espaços combina de modo perfeito Amós tem consciência de que o problema
com o projeto de justiça ali exposto, porque é a fundamental da injustiça reinante na sociedade
cor mais pura, a mais profunda, a cor do firma- do seu tempo tinha como causa motriz estrutu-
mento, dotada até de significação metafísica, ras sócio-econômico-político-culturais que en-
na medida em que suaviza as formas e desma- grenavam uma máquina de moer pessoas, com
terializa o que reveste, transformando o sonho relações comerciais ajeitadas para provocar en-
do tudo azul na realidade do tudo em ordem. dividamento, aprisionar e escravizar as pessoas.

Profetismo de spray Muito dessa literatura radical de protesto e


resistência pode ser lida, hoje, revisitada pelos
Numa cidade, há os que passam, os que che- grafiteiros e sintetizada, aqui em Sorocaba, no
gam, os que saem, os que ficam, mas nem tudo JUSTIÇA À TODOS, fotografado no muro late-
está bem resolvido para todos que ali moram. ral de uma tradicional escola, à Rua Pernam-
Há os que moram na rua e os que moram onde buco. Soa como grito de confronto, com o re-
não há rua. Numa visão de conjunto, o tecido curso de uma arte transgressora, mas também
urbano ostenta, de um lado, a sonhada segre- humanizadora, porque dá voz às minorias, na
gação dos condomínios para quem pode, e, do linguagem popular de letras e desenhos colo-
outro lado, a exclusão sofrida das áreas de risco ridos. Não se fale em pichação, vandalismo ou
para quem não pode. Faltam moradias numa poluição visual. Na verdade, com tinta de spray,
cidade em que sobram casas vazias, à venda ou alguém deixou naquela superfície rude um
para aluguel. pouco do sangue de assalariados que lutam,
há anos, pela casa própria e muito das lágrimas R. Barão de Cotegipe
No velho mundo dos profetas bíblicos, es- dos que perderam seu barraco por inundação,
ses escândalos de diferente perfil, mas de igual por incêndio ou desintegração de posse. Ali, SER OU
crueldade, geraram constantes denúncias, re- em verde e azul, pinta-se a sede de justiça. NÃO SER...
gistradas pela história. “Pratiquem a justiça e
façam o que é direito”, clamava Isaías (cap. 56, Os sentidos das palavras são dinâmicos. José
Edgar Albuquerque
1), repetido por Oseias: “Semeiem a justiça” Edgar nasceu em Sorocaba. Técnico em Processamento de Dados, Saramago, escritor português, em uma de suas
(cap. 10, 12). Mais contundente ainda, a críti- graduado em Letras e Filosofia. Entre idas e vindas no ramo da
participações em fóruns sociais, destacou a
informática, um belo dia decidiu ser professor e dedicar-se à
ca apaixonada e veemente de Amós contra os educação. Mestre em Educação, divide seu tempo entre as aulas importância de compreendermos que as pala-
agentes e os mecanismos de opressão ao povo: nas universidades, a fabricação de cerveja e seus escritos filosófico-
vras e seus significados se modificam ao longo
literários. Pode ser visto nas redes sociais em:
“Odeiem o mal e amem o bem: restabeleçam a http://www.edgar.pro.br do tempo. E eu acrescento: se modificam não
justiça!” (cap. 5, 15).
54 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Ser Ou Não Ser... 55
apenas ao longo do tempo, mas em contextos Pois bem, calhou que José, mais um da Silva to bem diagramadas pelas normas da ABNT. De Maloca... vários monstro ao meu redor
distintos. Nos apropriamos das palavras e nelas qualquer, sobre nada disso sabia. José, que veio olhos murchos e cabeça baixa, pediu desculpas,
imprimimos muito mais do que aquilo que os da selva, por isso da Silva, um silvícola cujos mais que isso, pediu perdão. Sê humilde, dizia Quanto mais gente conheço, mano, me
dicionários grafam. Palavras ganham vida nos passos dos antepassados se perderam em mis- a sua avó. Bem, o fato é que Zé, assim como sinto mais só
cotidianos das pessoas, nas páginas dos livros, turas típicas da nossa brasilidade – e, também, muitos outros tantos da Silva, é feito de carne,
nos muros das cidades. porque sua história jamais foi contada pelos se- ossos e nervos. Nervos que afloraram quando o e, ato contínuo, atirou a vassoura para longe
nhores da moral – não teve a oportunidade de desprezo acumulado por anos a fio se fez sentir enquanto seus passos, carregados de antepas-
Tomemos a palavra humildade por exemplo. assistir às aulas de antropologia, filosofia e so- no olhar pontiagudo e duro como o aço das es- sados, o levou para distante daquele mar de an-
Um dos seus sentidos se encontra nos tempos ciologia que aconteciam no interior da univer- padas que o indócil docente lhe lançou. Ponha- gústias. Chega de pedradas, chega!
medievais, quando o pensamento teológico sidade. José, doravante Zé, para que ganhemos -se no seu lugar, disse-lhe o PHDeus.
predominava naquilo que poderíamos chamar intimidade, da universidade nada sabia a não Vó Dirce balançava a cabeça em sinal de re-
de “o espírito da época”. Ser humilde é ser como ser o seu ofício: faxineiro. Humilde, Zé baixava Hamlet, o jovem príncipe da dramaturgia provação. Zé, cê é louco menino? Loucura para
o servo que confia sua alma ao Senhor. Em tem- a cabeça sempre que um figurão, doutor nisso shakespeariana, assolado pela dúvida, pergun- o nosso José seria continuar submisso. Loucura
pos posteriores, já próximos do contemporâneo, ou naquilo, lhe cruzava o caminho. Ponha-se no ta a si mesmo: para o nosso Zé, silvícola, selvagem, da Silva,
Nietzsche, filósofo alemão de imponente bigode seu lugar Zé, dizia-lhe a avó, Dona Dirce, ainda seria negar sua dor e escondê-la sob o escudo.
e de fortes pensamentos, associou a humildade nos tempos de criança. Essas coisas de estudo Ser ou não ser? Eis a questão. Será mais Loucura, aquela elogiada por Erasmo, ainda
à ideia que ele mesmo cunhou, à “moral do es- não é pra gente, Zé. Sê humilde, trabalha! Tra- nobre sofrer na alma pedradas e flecha- que José de Roterdã nada soubesse, era sinôni-
cravo”. Ser humilde é uma forma de ser servil. balha... das do destino atroz? Ou pegar em ar- mo de paixão. É loucura opor-se à razão – outro
Enquanto o servo do Senhor, no contexto da mas contra o mar de angústias e comba- nome para a moral. Onde já se viu, menino, lar-
teologia medieval, o é por respeito à divindade, tendo-o, dar-lhe fim? gar o emprego assim. A vó, servil desde meni-
o servil de Nietzsche o é por medo. Medo que na à moral dos senhores, no ato insano, louco,
lhe foi incrustado pela moral. Moral – palavra José, Zé, que de Hamlet nada sabe, decidiu não via razão. Sê humilde, aplaca suas emoções
que pode significar aquele conjunto de normas, ser! Seu sangue cafuzo ferveu e em borbulhas, e faz o que é certo fazer, obedece. Mas Zé, na
de regras, de comportamentos desejados num Absorto em pensamentos enquanto varria o aqueceu-lhe as cordas vocais que, em tom fir- explosão da loucura, a loucura que merece elo-
certo momento –, quando direcionada pelos po- corredor, Zé, sem se dar conta, foi de encontro me e soberano, para a figura agora assustada gios, percebeu que não havia o que explicar à
derosos aos fracos e oprimidos, os faz acreditar ao docente que, nada dócil, despejou-lhe toda com o levante daquele moribundo, proferiu a velha Dirce. Repousando a mão sobre o om-
que ser humilde é uma virtude. Ser humilde é a sua fúria. Olhe por onde anda, animal. Enver- rima* bro cansado da vó, deixou apenas que a leve
o escudo que os protege, pois ao arrogante, ao gonhado, humilde, Zé tentou apanhar as pági- pressão dos dedos sobre a pele sofrida da anciã
soberbo, ao audacioso que, incauto, provoca o nas do relatório acadêmico que haviam caído Humildade não é escudo, nem nosso so- dissesse o que as palavras jamais conseguiriam
poder dos senhores e desafia-lhes a moral, a este ao chão, mas foi empurrado para longe. Suas fro é orgulho dizer, fossem em folhas A4, fossem em muros
resta o fio da espada, o estalido da chibata ou o mãos calejadas pela lida com a vassoura foram da cidade.
olhar de reprovação do rebanho. afastadas da brancura das folhas A4, todas mui- Se espantou pois esqueceu que vaia tam-
bém e faz barulho * Poesia da Madrugada, Nocivo Shomon.

56 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Ser Ou Não Ser... 57


QUATROPÊ

Ed Mulato
Ademir Barros dos Santos: Coordenador da Câmara de Preservação
Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da
Universidade de Sorocaba – Uniso; mestrando em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – campus Sorocaba.
Pesquisador de negritudes, com foco em história, cultura e
religiosidade de matriz africana.

Encontramos, pelos muros da cidade, a se- Pior: durante mais de meio milênio que o
guinte pichação: “4P – Poder para o povo preto!”. mata. Por qualquer motivo. Ou, mais claramente:
pelo mero motivo de pertencer ao povo preto!
Mas, por que “poder para o povo preto”?
Ou será “Poder para o povo preto?”. Para que Exagero? Infelizmente, não: os Estados Uni-
será, afinal, que o povo preto quer poder? Ou, dos, mesmo quando foi comandado por alguém
ainda: o que será que o povo preto não pode do povo preto, ainda continuou em convulsão
e quer poder? social causada pelo assassinato, puro e simples,
de pretos porque pretos. Em outras palavras: de
Na verdade, parece que o Poder é que não qualquer cidadão que se atreva a pertencer ao
quer o povo preto: afinal, há mais de meio mi- povo preto.
lênio vem ele afirmando que o povo preto não
tem qualquer saber, que sua cultura é inferior, Sim, é lá, nos Estados Unidos. Porém, por que
que sua religiosidade se resume a adorar o de- alguém, no mundo, se julga no direito de matar
mônio, e por aí afora. gente de cor preta? Ou de jogar bananas em
campos de futebol, chamando de macacos joga-
Para além, há que se atentar que há mais de dores de cor preta? Isto, também na Rússia e no
meio milênio que o povo branco atira o povo Japão, que sequer conviveram com a escraviza-
preto para as beiras da sociedade e o coloca em ção de africanos. Assim também aqui, no Brasil.
favelas, confinado em insanas periferias.
No Brasil. Onde meninas são agredidas a
pedradas, apenas porque adeptas de religiões

Rua José de Andrade


58 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Quatropê 59
Daí que é bom saber que poder deseja o des empreendimentos e na ocupação de car- acesso? Ou, quando o têm, constantemente o
povo preto: com certeza, não quer, apenas, o gos públicos de confiança... Lugares que lhe são é, apenas, para visitar os seus maridos, presos,
Poder. Ou o quer? Mas será que o senso co- negados, pois que relegado, consistentemente, nem sempre justamente; ou para ver, transmu-
mum, que lhe embutiu, na cabeça, a baixa au- à fantasmagórica posição da invisibilidade ins- dados em cadáveres, embora ainda mal saídos
toestima, que se lhe desenvolveu a ideia de que titucionalizada. dos cueiros, seus filhos, atirados ao chão da cor
não deve se expor em cargo público, o impede de sua pele e ao léu, que os acolhe sob o signo
de almejar a tanto? Caso contrário, talvez dei- Porém, para ele, ocupar estes lugares é pe- do “auto de resistência”...
xasse mais exposta a cara preta nos santinhos noso: trazido que foi, involuntariamente, para
das eleições... as Américas, onde foi colocado, compulsoria- Resistência essa que, no extremo, é a in-
mente, na posição de trabalhador achincalha- delével marca deste povo preto que, mesmo
Talvez, até queira o Poder Oficial. Mas, pri- do e não remunerado, desmantelado, anima- amordaçado, achincalhado, agredido e mutila-
meiro, precisa que sua cara preta apareça mais lizado, domesticado à força e a pau, além de do, perene objeto do povo branco, que o trata,
nos meios de comunicação em massa. E tam- impunemente mutilado, tanto cultural quanto sempre, como inerte e não lhe permite tornar-
bém na docência, do ensino fundamental à fisicamente, ainda se esbate para sair da condi- -se sujeito, ativo, produtivo, nem mesmo da
pós-graduação, além de na gerência de gran- ção de senzalado social. própria história, ainda assim compõe a maioria
do povo brasileiro. Isto, apesar do indubitável
Assim sendo, parece que o povo preto quer, genocídio...
mesmo, é, apenas, ser o que é: gente. Preta.
Mas, apenas, gente. Portanto, pouco adianta se o Poder consti-
tuído tudo nega ao Povo Preto. E não concede
Gente que tem saberes e quer jogar sua ca- quase nada ao Povo Preto.
provindas do povo preto. Mesmo quando estas poeira para além do mero folclore; que quer
meninas, em si e na cor da pele, sequer são pre- cantar seu samba como cultura, não apenas
tas! Portanto, basta filiar-se ao povo preto para como diversão; que quer dançar e festar sem
sofrer as agressões que atingem o povo preto! que a polícia o prenda na rua, apenas por por-
tar a pele preta; que quer rezar para além das
Sim: no Brasil. Onde se incendeiam, impu- pedras que lhe atiram; que quer ultrapassar as
nemente, terreiros de candomblé. No Brasil, fogueiras da Inquisição moderna, que destro-
onde não se encontram vendedores pretos em suas casas de culto.
nos grandes e médios magazines. No Brasil,
onde o genocídio do povo preto se reflete, es- Resta saber: qual Poder, afinal, permite, aos
cancarado, permanente e consistentemente, caras-pálidas, arrastar mulheres pretas, co-
nas estatísticas oficiais! muns, pelo asfalto a que elas, nem sempre, têm
60 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Quatropê 61
Afinal, ao Povo Preto pouco importa que o
Povo Branco, formado por protoalbinos que in-
sistem em compensar a falta de melanina com
o excesso de poder, lhe negue o direito de ser
quem é; isto porque, ao fim de tudo, nada pode
parar o Povo Preto.

Porque o que se lê nos muros pichados não


é declaração de guerra: é pedido de socorro. É
o sinal dos braços abertos para a conciliação,
que já, lá longe, se anuncia no olhar de muita
gente branca que se vê, apenas, como gente,
para além dos preconceitos de gênero, origem,
crença, cor ou “raça”.

Até porque nenhum Poder pode parar o


povo preto.

Daí os 4P: o 4, como cruz de braços abertos,


que leva a mão à têmpora em sinal de acolhi-
mento, ao lado do “P”, de paz, porque crê na
proximidade da conciliação. Rua Carmem Miranda

Daí os 4P, do poder para o povo preto; ou CONTRA O QUÊ?


melhor: 4P igual a Povo Preto Pede Paz.

Apenas, isto. É só.


Prof. Me. Roger dos Santos “Sem luta não há conquista!”. Proclamação já
Mestre em Comunicação e Cultura, especialista em História,
vista na imagem acima, esse texto denota uma
Artigo publicado, resumido, no jornal Cruzeiro do Sociedade e Cultura, graduado em História, professor na
Universidade de Sorocaba e membro do grupo de pesquisa MidCid, intenção de expressar que não há mais crença
Sul, em 13/12/16, página A2. que estuda e problematiza a mídia e os processos socioculturais. no diálogo, afinal, aquilo que se pretende mu-
dar, o que se pretende por objeto, só será al-
cançado, em tese, por meio do enfrentamento
mais contundente.
62 Contra o Quê? 63
Além das palavras de ordem e de inscrições pior colapso militar já posto em prática, que ficou Os primeiros 9 anos de república foram de
que remetem a grupos específicos, que sabem conhecido como a primeira grande guerra. A se- governos militares, além do primeiro presiden-
como decodificá-las, está também naquele muro gunda guerra matou muito mais, porém, a devas- te ter sofrido um golpe. Os governos civis que
o ano, 2016, recorte do hodierno que incita a me- tação que o conflito de 1914-1918 imprimiu foi estiveram à frente do Estado entre 1898 e 1930
mória a tantas insatisfações que as pessoas pro- inédita. Naquele início dos anos 1910, havia um estavam preocupados em cuidar de si, aquele
vam cotidianamente. desejo claro de enfrentamento das nações, espe- país para todos ainda não se concretizara. A re-
cialmente da França contra a Alemanha, fora ou- volta da vacina, em 1904, trouxe à então capital
Aquela frase imperiosa causa incômodo, pois, tros entraves diplomáticos e bélicos espalhados federal, RJ, uma verdadeira guerra civil, mas o
uma vez conclamado o combate, o enfrentamen- pelo Ocidente, principalmente na Bósnia, onde nome que se estabeleceu foi o de revolta po-
to pela força ao invés do diálogo, abre-se mão de ocorreu, literalmente, o primeiro tiro da guerra pular, afinal o Brasil é lugar de gente pacífica,
um conceito tão escasso na atualidade, a alterida- mundial. Onde o Brasil entra? construído historicamente para ser uma espé-
de. Se o autor da escrita chama à luta, quem será cie de Meca da felicidade.
o lutador? Qual o motivo dessa luta? Contra quem No mesmo recorte histórico, o país era uma re-
ou o que se lutará? Se o pretendido é uma mu- pública bastante jovem, batizada de Estados Uni-
dança no estado de coisas, sob qual prisma se es- dos do Brasil. Ao se ter por base o ano de 1914, a
tabelecerá a possível nova realidade pretendida? república brasileira tinha 25 anos, tempo suficien-
Esse ethos permanece, ao mesmo tempo, oculto te para uma nação discutir um projeto de Estado
e multifacetado. e colocá-lo em curso, no entanto, nestas paragens
a história é outra… A se considerar o sem número
Ao fazer uma rápida leitura sobre a história re- de hostilidades que aconteciam naquele momen-
cente, há exatos cem anos o mundo assistiu ao to mundo afora, no Brasil, em rápido retrospecto, Em 1924, o levante tenentista, que gerou o
pode-se considerar a Proclamação da República, bombardeio e a destruição de grande parte da
em 1889, como verdadeiro golpe de Estado, que cidade de São Paulo. Em 1930, golpe de Estado
depôs a monarquia em benefício da oligarquia. contra as oligarquias paulista e mineira, quan-
do Getúlio Vargas tirou poderes de São Paulo e
O grupo minoritário que envolvia membros do colocou o Rio Grande do Sul no mapa, sob um
exército, igreja e classes médias urbanas, além de novo viés.
fazendeiros que perderam com o fim da escravi-
dão, foi à luta, pretenderam mudanças e conse- Resumidamente, até 1945 o país viveu uma
guiram. Fora muitas ações golpistas anteriores a fase de governo provisório, constitucional e
essa, a República, verbete oriundo da língua latina ditatorial, com ações militares nesse período,
que significa coisa pública, para todos, na prática levante comunista em 1935 e, em 1938, o le-
brasileira, ficou restrita. vante integralista, versão brasileira do fascismo
Contra o Quê? 65
europeu, ambos contra Vargas, que sob a égide Nessa proposta, na qual se vê a comunica-
de Estado Novo, instalou a ditadura entre 1937 ção como caminho para a mudança, apesar das
e 1945, ano em que acaba a segunda guerra palavras de ordem grafadas naquele muro, tal
mundial e cai o Vargas ditador. ímpeto remete à memória um Martinho Lute-
ro, que ao expor seu pensamento na porta da
Na rápida experiência democrática que se igreja onde era pároco, mudou a história do
apresenta entre 1946 e 1964, é interessante co- Ocidente, pois suas palavras foram copiadas
locar que as vozes da esquerda foram silencia- territórios afora, rapidamente se alastrando
das. Na democracia brasileira, nem todos pude- pela Europa, isso em 1517.
ram falar. Os governos que compuseram esse
período foram iniciados por um militar, Dutra. De um papel pregado na porta de uma igre-
Depois, governos civis que, entre renúncias, su- ja para livros impressos e replicados internacio-
cateamento da ferrovia e propostas para ações nalmente, o que pode ser uma analogia com o
sociais, viram o Brasil sofrer mais um golpe con- presente texto, uma frase num muro, uma foto-
tra a democracia. Outra vez um grupo foi à luta grafia que viaja pelos bits da internet, conver-
e logrou êxito. sas que se entrecruzam nas redes sociais, ações
que possam ser tomadas que gerem mudanças,
Interessante que, até o momento relatado, melhor e, principalmente, mudanças pautadas
o povo não foi convidado a pensar o Estado. É no diálogo, na consciência para a obtenção de
sabido que o país ficou sob governos militares direitos constitucionais para o povo, para que
por 21 anos, e aqui já se chega a 1985. Sem dú- se possa discutir uma possibilidade de Estado
vida, houve avanços em determinadas áreas, para todos, onde possa haver poder para o R. Barão de Cotegipe
porém, saúde e educação públicas permane- povo, ou seja, um Brasil república democrática.
AS MULHERES E O ESPAÇO
cem na espera, principalmente no jogo do neo-
liberalismo e da globalização. PÚBLICO

Quando se chega ao século atual é que se Mônica Cristina Ribeiro Gomes O feminismo está nas ruas, representado
coloca, de forma mais prática, a noção de um Jornalista, Mestra em Comunicação e Cultura e professora. na paisagem urbana. A mensagem deixada no
país que, ao longo da história, dialogou de per- muro chama a atenção para a temática femi-
to com a violência e com a exclusão. O grande nista, desafiando a própria lógica de ocupação
pulo do gato que se tem hoje é a vasta e efi- do espaço público, se considerarmos que esse
ciente rede de comunicação. espaço é moldado pelas experiências conven-
cionadas como masculinas.
66 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos As Mulheres e o Espaço Público 67
Tanto é assim que a divisão social entre mas- das por muitas mulheres, faz com que sejam le- e de violência extrema, como o estupro. Pizan profunda. Para o feminismo, são fundamen-
culino e feminino custou às mulheres o lugar vadas a mudar seu percurso ou mesmo a deixar cria essa bela metáfora de liberdade e ação fe- tais e urgentes as transformações que venham
de coadjuvantes nas narrativas dos fatos histó- de ir a determinados lugares. minina em pleno século XV. a eliminar qualquer tipo de discriminação ou
ricos – isso quando não foram de todo excluí- violência contra elas, seja no ambiente domés-
Ao utilizarmos a perspectiva do gênero tico ou público. Pois se trata disso: superar as
para a compreensão da realidade social, pode- desigualdades que persistem sobre a condição
mos notar o quanto é ambígua a própria defi- feminina. Depois de tantas lutas históricas –
nição de público, quando aplicada a homens e pelo voto, pela igualdade de salários, pelo fim
mulheres. Os significados mudam e deixam à da violência doméstica, entre tantas outras em
das, em determinados momentos. Como cons- As restrições à livre participação das mulhe- mostra a maneira como a linguagem também curso – ainda é preciso reforçar a que veio o
tata Michelle Perrot, a história das mulheres foi res no espaço público estão na base da cultu- opera na hierarquização das diferenças sexu- feminismo e desfazer as incompreensões que
silenciada nos arquivos, a partir de uma verten- ra ocidental. Confinadas à vida doméstica na ais. Como lembra Perrot, o homem público é teimam em deslegitimar um movimento que é
te predominante na historiografia que dá visibi- Grécia Antiga, a elas não era permitida a vida importante, tem uma função social reconhe- plural em suas reivindicações. Desqualificá-lo
lidade aos grandes feitos da vida pública, como na polis, o que significa ter negado o direito à cida; já a noção de mulher pública frequen- faz parte de uma estratégia conservadora que
a política, lugar tradicionalmente ocupado pe- cidadania e estar fora da vida pública. Quando temente está associada a outros significados, tenta neutralizar seu potencial de transfor-
los homens e que sempre colocou restrições essa possibilidade é negada às mulheres, isso que se referem à “mulher comum que perten- mação, como pontua a filósofa Márcia Tiburi:
à participação feminina. Perrot defende que a significa diminuir sua humanidade. Nesse sen- ce a todos”, nas palavras da autora. “Fala-se mal do feminismo para sustentar uma
cidade, compreendida como representação da tido, Hannah Arendt lembra que a convivência
posição que ele põe em perigo”.
esfera pública, é um espaço sexuado onde os é um aspecto fundamental para a plena realiza- Ambígua é também a relação das mulheres
homens comandam as principais instâncias de ção da condição humana. É esse “viver junto” com o espaço doméstico. Embora seja o lugar Diante desse histórico da relação das mu-
poder. Por isso, os acontecimentos históricos que cria a própria noção de espaço público. Do da intimidade, onde, a princípio, se pode usu- lheres com a vida pública, a introdução de uma
são apresentados como realizações eminente- contrário, isolados, nos tornamos impotentes fruir de descanso e segurança, é nesse círculo pauta feminista no espaço urbano com a frase
mente masculinas. para agir no mundo. que se registram alguns dos maiores índices “Feminismo salva vidas” não deixa de ser uma
de violência contra a mulher brasileira. Metade pequena e bem-vinda transgressão. É também
Do discurso histórico para o cotidiano, as mu- O direito das mulheres à cidadania foi te- das mortes violentas de mulheres ocorre em um lembrete: continuamos aqui, resistindo e
lheres reconhecem o quanto o espaço público é matizado ainda pela escritora Christine de ambiente familiar, dados que contribuem para buscando a ressignificação desse espaço que,
hostil à sua presença, em várias circunstâncias. Pizan, que utiliza a literatura como contesta- colocar o Brasil como o quinto, entre 83 países, durante muito tempo, impôs limites à nossa
Na rua, por exemplo, desde cedo aprendem a ção da condição de inferioridade imposta às com a maior taxa de homicídio feminino. atuação. E, sim, vamos falar sobre feminismo,
se acostumar com o assédio, uma prática que mulheres. Em resposta a uma sociedade misó-
como convida a mensagem.
foi naturalizada, disseminada como um com- gina, a escritora cria a cidade das damas, um Diante dessa realidade, temos ainda a re-
portamento masculino aceitável. O sentimento lugar imaginário onde mulheres de todas as sistência ao entendimento do papel do fe-
de estar exposta a gracejos inconvenientes e ao épocas poderiam viver a salvo das diversas minismo e de como ele pode contribuir com
risco de ser tocada na rua, situações já enfrenta- situações de depreciação intelectual e moral, reflexões e ações para uma mudança cultural
68 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos As Mulheres E O Espaço Público 69
Rua Epitácio Pessoa Rua Gonçalves Ledo
70 71
Rua Epitácio Pessoa Avenida São Paulo
72 73
PENSAR, DESOBEDECER,
APRENDER, VIVER

Rodrigo Barchi
Doutor em Educação pela Unicamp, Mestre em Educação pela
Uniso, Especialista em Educação Ambiental pela EESC/USP,
Geógrafo pela Uniso. É professor coordenador do Curso de
Geografia da Uniso, militante ecologista, autor de dezenas de
artigos sobre educação ambiental, pedagogia libertária, ecologia
política e filosofia política da educação ambiental.

Nunca fui um pich(x)ador. Meu moralismo Mas as pich(x)ações strictu sensu – ou seja,
infanto-juvenil, vindo de uma criação conserva- nos/dos muros e fachadas – deixaram de me
dora, me fez ser, até meados da juventude, um incomodar quando resolvi inverter minhas lei-
respeitador da propriedade alheia. Não queria turas e perspectivas sobre a cidade, o meio am-
problemas com a polícia, com violência, e o biente, a educação, a ética e a política. Deixei
próprio risco da invasão e da escalada furtiva de ver essas esferas do pensamento de modo
nos edifícios me impediram dessa ação. utópico e passei a compreendê-las em suas
múltiplas heterotopias. Uma inversão para lá
Minha turma era outra. Fazia parte dos cabe- de nietzscheana-deleuzeana, que permite fu-
ludos da música extrema: satânica, anárquica, girmos da busca pela perfeição e pela verdade
contestadora, ruidosa, licantrópica. A qual, a para nos deixar levar pelos encontros furtivos
seu modo, também era uma pich(x)adora das entre os pensamentos das diferenças.
instituições tradicionais, mas em forma de so-
noridade, de vestimenta, de postura resistente Inverter meu pensamento me fez perceber
e contrária. Havia um combate intenso contra não mais a cidade apesar da pich(x)ação, mas
as sociedades conservadoras contemporâneas, a cidade através da escrita das paredes. Nesse
seus símbolos religiosos, suas posses osten- exercício de pensamento – que em prática pro-
tosas, suas pseudo boas condutas pessoais, fessoral se torna práxis, pois nossa prática de
suas aparências aceitáveis, seus modos de vida ser/estar na cidade também muda – pude per-
normalizados. Se minha fuga para a extrema ceber que as promessas urbanísticas e arquite-
esquerda não foi através das pich(x)ações, foi tônicas de criação de urbes sustentáveis, ple-
Rua Pernambuco
através das ruidosas sonzeiras. namente integradas à natureza, acabam muito

Pensar, Desobedecer, Aprender, Viver 75


uma perspectiva libertária, de exercício das di- se incomode. Por sua vez, quando resolve falar nas-guattarianas proporcionaram foi justamen-
ferenças, a pich(x)ação é pura imanência, mem- abertamente, o faz em alto e bom som/tom, afi- te a possibilidade de criar/entender/relacionar
bro inseparável da vida urbana, que o pich(x) nal de contas, de acordo com Marta Catunda, o mundo, filosoficamente, a partir da criação,
ador entende como um amplo campo de ação, as paisagens também são sonoras. Saber ouvir no pensamento, de relações, de encontros, de
onde pode construir, constantemente, seus é um exercício educativo e formativo. sentidos, de conexões. Uma atividade prática,
projetos de transformação urbana. que não se interrompe. Freireanamente práxis.
Quando as pich(x)ações falam abertamente,
A pich(x)ação se faz difícil no diálogo com as carregam consigo o poderoso potencial edu- É, talvez – já que nos resta ainda a especula-
esferas não familiarizadas com sua linguagem. cativo de fazer pensar, já que sempre age de ção –, o que o pich(x)ador exige quando reivin-
Os traços, as iniciais, as letras, os nomes e abre- modo surpreendente, chocante, visível e fluido, dica que a escola ensine a pensar, e não somen-
viações não são para todo mundo ler. É para sa- pois dificilmente estará presente para sempre. te a obedecer. Que a escola seja a promotora
ber que existe, que está ali, e quem quiser que Quem leu, leu... Mesmo em tempos de facilida- desses acontecimentos, dessas parcerias, des-
des de registros fotográficos. sas criações. Que a escola pare de se submeter
aos ditames insalubres do capital e dos tene-
Em suas radicais brutalidades políticas, éti-
cas e estéticas, a pich(x)ação carrega consigo
o potencial do choque, que para Deleuze, na
esfera de Artaud, é tão necessário para criar
pensamento. Sem esse impacto, não é possí-
mais por serem projetos fascistas de imposição vel pensar, mas somente remoer, regurgitar,
de verdades pseudoecológicas. Afinal de con- contemplar. Sem ele, não é possível sequer
tas, os pich(x)adores também têm um projeto partir de uma das principais premissas educa-
paisagístico para o espaço urbano. E enquanto tivas, ou seja, a pergunta. Ah, Paulo Freire, tão
esse espaço não for um espaço democrático, difamado só por querer que os jovens questio-
igualitário, justo e ecologicamente viável, as nem... Se voltarmos à desobediência de Gan-
pich(x)ações continuarão a promover sua força dhi e Thoreau, então...
artística, política e educativa.
Questionando, crio conceitos. Criando con-
Se em perspectivas materialistas dialéticas a ceitos, posso pensar o mundo no qual me in-
pich(x)ação pode, tranquilamente, – entre ou- seriram, com o qual me relaciono, com o qual
tras possibilidades – ser sugerida como uma vivo, com o qual me faço e ajudo a fazer, cons-
antítese ao projeto hegemônico da cidade, em tantemente. Se há algo que as lições deleuzia-

76 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Pensar, Desobedecer, Aprender, Viver 77


brosos normalistas dos fascismos contemporâ- Se submetermos os espaços e afazeres es-
neos. Que ela se torne o espaço alegre de trocas colares aos regimes de imposição de verdades
das diferenças. Que a escola promova os diálo- únicas, eles dificilmente poderão construir pes-
gos entre elas, de modo que possam conviver, soas capazes de fazer política, mas somente se-
se tolerar e aprender ainda mais com o outro. res obedientes a um “regime-polícia” de manu-
tenção de normalizações e homogeneizações
Caso a escola seja impedida de uma vez por de modos de vida absurdamente cruéis e sádi-
todas de ensinar a pensar – e isso é uma luta que cos com as diferenças presentes em todos nós.
nunca cessará – é preciso lembrar que a própria
vida é educação em si. É formação constante. E,
nesse sentido, a própria pich(x)ação é proces-
so formativo, tanto para quem faz quanto para
quem vê. E quando é tão clara quanto é – ou já
foi – nos muros da escola Estadão, o potencial
transformativo é absurdamente revolucionário.
É revolução cotidiana, nos relacionamentos,
nas formas de ser, nos pequenos encontros. Mi-
crorrevoluções, micropolíticas.

Não, eu não era um pich(x)ador quando


moleque. Achava feio, errado, sujo, invasivo,
perigoso, rebelde demais. E sim, talvez as pi- R. José Virgílio da Silva
ch(x)ações sejam tudo isso, ao mesmo tempo
que não são. Se buscamos escolas e educações MUROS E PAREDES SILENCIOSAS
que nos ensinem a pensar, precisamos que GANHAM VOZ
elas estejam abertas aos diálogos com o maior
número possível de expressões e afirmativas Julio Cesar Gonçalves Orquestrada por mãos quase sempre anôni-
culturais, artísticas, éticas e sociais. Que façam Professor universitário. Formado em Jornalismo, especializado em mas, essa voz grita na cara da gente, por meio
Marketing e mestre em Educação, é autor do livro “Olhar Crônico”.
desses diálogos possíveis criações no/do pen- de traços, formas, letras e cores, coisas que pre-
samento. Isso nos fará perceber o quão impor- cisam ser ditas, porque a maioria ignora. Ou
tantes, belas, sonoras, potentes e ricas são as finge ignorar, cada qual ensimesmado em seu
pich(x)ações. mundo, passando batido por desenhos e frases

78 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Muros E Paredes Silenciosas Ganham Voz 79


que chamam a atenção para um estado que tei- Sabe-se lá o que os antigos romanos pen-
ma em se fazer real em vidas que se virtualizam. savam sobre xingamentos, poesias e propa-
ganda política grafitados em muros e paredes,
Não é de hoje que paredes e muros ser- como se encontrou no material arqueológi-
vem de suporte para imprimir sentimentos e co da erupção do Vesúvio. Mas, nos anos 70,
desabafos. quando portas, muros e metrôs de Nova Ior-
que apareceram com desenhos expressionis-
Foi na parede de uma caverna que o ser tas, assinados com a sigla Samo (iniciais de
humano deixou impressa pela primeira vez same old shit, sempre a mesma merda), um
sua passagem por estas plagas. Nas paredes dos seus autores, Jean-Michel Basquiat, tor-
de prédios públicos, os muralistas mexicanos nou-se artista de respeito. Suas obras hoje va-
expressaram sua arte, sua revolta com as in- lem uma fortuna em leilões de arte, o que faz
justiças sociais e sua crença naquela revolu- da sigla quase uma profecia: é sempre a mes-
ção. Armados com spray, estudantes france- ma merda mesmo.
ses manifestaram-se em 1968 em defesa de
uma sociedade mais alternativa e menos de-
sigual. Uns 20 anos depois, jovens brasileiros
usaram essa mesma arma para pedir Diretas
Já. Mais recentemente, a juventude voltou a
empunhar o spray para gritar Golpe Não.

Mas as mensagens passam despercebidas, Porém, Basquiat era um grafiteiro, da mes-


a vida segue seu rumo e o que ganha sentido ma forma que Banksy, o britânico cujas inter-
é discutir se essa prática é forma de arte ouvenções urbanas ganharam notoriedade na
primeira década deste século. E grafite é arte
crime, maneira de garantir o direito à liberda-
de de expressão ou desrespeito ao patrimô- urbana contemporânea, que, segundo es-
pecialistas, ganhou expressividade nos anos
nio, se seus autores são artistas ou vândalos.
70 em Nova Iorque e hoje tem, entre os seus
Nessa infindável discussão, certo é que a maiores intérpretes globais, os gêmeos Otavio
interpretação do que é uma coisa ou outra e Gustavo Pandolfo, paulistas cujos trabalhos
vai mudando ao sabor dos tempos e variando estão disseminados pelo mundo.
conforme as circunstâncias.
Av. Pres. Juscelino Kubitscheck
80 Muros e Paredes Silenciosas Ganham Voz 81
Ao contrário do grafite, pichação é crime, midiáticas, de ser grafite ou pichação, a pré-his-
como está previsto no Código Ambiental Brasi- tórica forma de externar emoções escrevendo
leiro. Não tem propriamente uma história e até e desenhando em paredes e muros vai continu-
na grafia incita desavenças, pois muitos a escre- ar existindo como forma de chamar a atenção
vem com X. Há até justificativas estéticas para para o que verdadeiramente interessa: nesse
essa discordância: grafites seriam trabalhos mundo cada vez mais exclusivo e desigual, a
mais elaborados, a partir de ideias pré-concebi- humanidade pode estar cavando seu próprio
das e pensadas para expressar as sensações de abismo. O ter está matando o ser.
um artista; já pichações são baseadas em letras
e esboços. São, portanto, formas de expressão E por isso que paredes e muros silenciosos
vistas como paralelas e não convergentes. precisam continuar a ter voz.

Ocorre, porém, que ambas parecem querer Vai que um dia a gente escuta!
dizer a mesma coisa. A rústica tevê, pintada em
uma parede, pedindo para ser menos vista, tem
igual significado que o menino segurando pipa
com a bandeira estadunidense, desenhada pe-
los Gêmeos. O negro excluído, projetado por
Basquiat, expressa, lá no fundo, a mesma ideia
que o traço perpetuado por Joy, chamando a
atenção para as amarras de um sistema no qual
poderosos e manipuladores meios de comu- R. Major João Elías
nicação nos fazem (e são) marionetes em um
mundo onde, sabe-se à exaustão, somente o DIÁLOGOS OPOSTOS
um por cento da população mais abastada de-
tém todos os poderes. Vivemos uma época em
que o Estado perde cada vez mais espaço para Fabrício de Francisco Linardi Foi-me dado, como um belíssimo desafio,
as organizações que, de fato, têm o poder eco- Arquiteto, Mestre e doutorando em Urbanismo pela Universidade o de escrever com liberdade sobre um assun-
nômico e ditam regras. Católica de Campinas. Professor do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de Sorocaba.
to que tem sido de meu interesse por um bom
tempo: a cidade. Porém, teria como ponto de
Todas as regras, até mesmo o que é arte e o partida uma peça gráfica de um fragmento
que não é. Contudo, independente de amarras, da cidade de Sorocaba, capturada pelo olhar
de fibras óticas, de conexões, de manipulações
82 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Diálogos Opostos 83
atento do fotógrafo. Ao vê-la pela primeira vez, des na expectativa de extravasar suas opiniões.
considerei-me presenteado, pois o presente e Suas motivações são induzidas, única e exclu-
a pessoa presenteada se aproximam por afini- sivamente, pela necessidade de se manifestar.
dade. De infinitas possibilidades de clicks do Já o conteúdo dessa mensagem suscita uma
fotógrafo, deram-me um olhar que mostra exa- interpretação interessante. Por que alguém
tamente aquilo que me inspira quando me po- se arriscaria a transgredir a mensagem oficial,
nho a falar de cidade: suas contradições. ‘Nossa Cidade Sempre Limpa’, para passar a
mensagem de RE-CI-PRO-CIDADE? Palavra
Assim, quase de pronto, me veio a estrutu- aparentemente inocente e que revela pouca
ra sobre o que deveria escrever e, mais do que violência na voz reprimida. Conforme foi escri-
isso, me veio a certeza sobre qual ponto de to, com sílabas separadas, soa como se o autor
vista esse texto deveria se desenvolver. Deixa- diversidade de manifestações. Dessas, o foco sentisse a necessidade de colocar algumas tan-
ram-me a tarefa mais difícil e instigadora, a de do fotógrafo ressalta duas, que se colocam tas exclamações em cada pausa: RE!!!CI!!!PRO!!!-
sujeito interpretante. Aquele que se preocupa como contradições: CIDADE!!! Como se chamasse a atenção para
com as leituras possíveis dos fatos e, sob o peso o óbvio que ninguém mais vê. O significado
da subjetividade, procura aflorar uma questão Nossa Cidade Sempre Limpa – “Linguagem literal de reciprocidade quer dizer: a relação in-
mais profunda. O que é que só ele vê? Oficial”, fruto do cuidadoso traço do profissio-
nal publicitário que atende à demanda de um
Como arquiteto e urbanista que sou, não pos- administrador público, estampada com cores
so fugir de minha formação que, por caracterís- que remetem à bandeira local, foi aplicada em
tica, examina a cidade como palco da vida dos um equipamento urbano que é símbolo de lim-
homens para, a partir disso, repensá-la. O meu peza. A composição texto-figura procura pas-
interesse está na apreensão do real e, para isso, sar a ideia de um bom trato do espaço urbano e dissociável entre duas partes, isto é, elementos
é parte fundamental do meu trabalho ler a cida- de respeito a seus cidadãos. Seu conteúdo não que respondem sensivelmente a ações aplica-
de em sua quase totalidade. E isso significa estar diz muito além da mensagem de ‘cidade limpa’ das sobre o outro.
atento aos códigos verbais e não-verbais através como ideologia, isto é, da necessidade de afir-
dos quais se revelam muitas das contradições. mação de um trabalho bem feito. Se volta não A beleza da imagem está na tensão da con-
para quem faz, mas para aquele que recebe o tradição das duas mensagens, que se apresen-
De olho na imagem, ela me causa inicial- serviço público. tam como códigos distintos e opostos. Até que
mente um choque! Um fragmento do real que ponto a limpeza da cidade será posta à prova
exprime a essência das relações humanas tra- RE-CI-PRO-CIDADE – “Linguagem Marginal”, pela contravenção de um pixo? Seria a própria
vadas no território urbano. Partindo da inter- fruto de uma transgressão. A manifestação re- linguagem oficial elemento de deslegitimação
pretação dos códigos textuais, percebe-se uma primida, explosiva, daqueles que gravam pare- de outros códigos da cidade? Enfim, o que a
84 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Diálogos Opostos 85
imagem nos mostra é que o olhar preocupado bulário português, a voz que diz RE-CI-PRO-CI-
com a apreensão do real requer o entendimen- DADE, mostra compaixão com todos aqueles
to da própria essência da cidade como múlti- que merecem ser ouvidos.
pla, plurissígnica. A única certeza que sugere é
que não pode haver cidade unívoca. Já sobre a beleza das cidades, essa é ampli-
ficada na medida em que são reconhecidos e
As múltiplas vozes abrigadas no domínio respeitados seus códigos contraditórios e recí-
da cidade se confrontam em eterna disputa, procos, buscando harmonia na sua pluralidade.
na busca pela afirmação de suas legitimidades,
de modo que a cidade se coloca como um ele-
mento vivo, dinâmico, que se desfaz e faz-se
a todo momento, procurando manter-se em
lógica. É ordem e desordem estabelecida em
si mesma, na busca pela manutenção de uma
coerência interna própria e tão abstrata quanto
a lógica que mantém uma chama acesa. Os dois
códigos evidenciados na imagem escancaram,
como fragmentos, a complexa relação ordem-
-desordem que está sempre presente nas cida-
des. A relação recíproca desses códigos é que a
ordem impõe-se pela desordem, assim como a
desordem impõe-se pela ordem. Av. Carlos Sonetti

Contudo, a beleza do ato manifesto não pas- PICHAÇÃO E RELIGIOSIDADE


sa desapercebido. Embora se coloque como ir-
regularidade, a manifestação rebelde do pixo, João J. C. Sampaio Ouve-se com frequência que o bom do capi-
nesse caso, afirma-se como o lado sábio, como Formação em Filosofia, Pedagogia e Teologia. Mestrado em talismo é ser capitalista. Gozar de suas benes-
Filosofia da Educação e Teologia. Professor Universitário.
apaziguador. Simplesmente intenta mostrar ses, acumular até não poder mais, enfim, viver
que é preciso se deixar dizer e, ao dizê-lo, por no paraíso, construindo uma ilha de fantasias
força da reciprocidade, toca sensivelmente a e delícias, mesmo que ao redor se encontre
parte que pretende calá-lo, nada mais. E, con- um oceano de pobreza. Essa imagem pode ser
venhamos, a escolha correta de uma única evocada na atualidade pela presença de con-
palavra, dentre outras tantas do extenso voca- domínios luxuosos bem fechados e vigiados
86 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Pichação E Religiosidade 87
no meio das cidades ou junto delas. A cidade para se chegar a ela, há um deserto imenso para No sagrado, se encontra uma força descomu-
em si é o espaço da violência, terra de todos ser atravessado... Pelo menos, em sonhos inter- nal e, com o uso dele, verificamos ações dire-
e de ninguém, onde perambula toda a sorte mináveis, se contempla a terra... Daí as frases cionadas para o bem ou para o mal. As frases
de gente, inclusive pobres desagradáveis que pichadas: “Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua que encontramos animam na superação da dor,
só sabem pedir ou assaltar! Inauguramos, por direita e tu não serás atingido”. É um texto do do desemprego, do desengano, da doença, até
causa da insegurança e da injustiça social, uma Salmo 91, verso 7. Outra: “Jesus é o caminho”, dos mau-olhados. No meio de toda a sorte de
nova versão dos castelos medievais. Os que rabiscado em um viaduto. São as frases das fo- miséria, se instala o sonho da superação. Quem
habitam o paraíso condominial sentem-se di- tos. Há muitas mais, como “Esta cidade é do Se- vai impedir de se sonhar assim? O meu profes-
ferenciados, até agradecem ao sagrado por se- nhor Jesus”, “Deus proverá!”, e assim por diante. sor Dr. Rubem Alves, em seu livro “O que é Reli-
rem tão abençoados, enquanto que no oceano Incrível é que outros pichadores não ousam ra- gião” (edições Loyola), bem escreveu que o ser
das penúrias os pobres e miseráveis suspiram biscar as frases que estão pelos muros. Questão humano que entra em contato com o sagrado
pela esperança de apropriação, pelo menos, de de respeito? Temor do sagrado? Incontáveis pi- se torna muito forte, com capacidade de supor-
um pedaço desse paraíso dos ricos, também e mãos atados, em todos os sentidos, das neces- chações encontramos por aí. Quem não as viu? tar os sofrimentos da vida ou de superá-los. Afir-
promovida pelo mesmo sagrado. O sagrado sidades sociais. Nem mesmo a justiça tem força O fato é que a pregação religiosa deixou de ser ma ainda que o sagrado é um círculo de poder
se tornou o espaço do utilitário para pobres e para mudar as situações de desconforto e ruína, exclusividade dos templos e das pessoas consa- e quem dele se apropria nada teme, sequer tem
ricos, para justificar as riquezas ou para delas de modo que se aguarda a futura justiça divina gradas; ela tomou as ruas, invadiu os presídios, medo de colocar pelos muros da cidade as fra-
se apropriar. Supõe-se que seja possível um que, na crença fiel, não falhará. abriu espaços na internet e, qual plantinha tei- ses sagradas que o animam na caminhada.
dia todos se tornarem ricos! Enquanto isso não mosa, enfiou raízes através das minúsculas fres-
acontece, aí estamos manifestando a nossa fé Há, porém, outro segmento que expressa tas das expectativas sociais. É a manifestação
no sagrado, que é considerado o único capaz a sua esperança, em uma mistura de protesto da esperança, e toda esperança ignora o medo,
de promover transformações sociais tão ne- e ironia, fundamentando a fé nos escritos sa- a vergonha, as instituições e suas normas. Tal
cessárias e urgentes. Esse modo de vivenciar a grados que são proclamados verbalmente, en- dinamismo religioso, um tanto anárquico, se
crença não é novo. O historiador Riolando Azzi, xertados nas redes sociais ou rabiscados pelos apropria do sagrado e proclama que as estru-
em seu “Catolicismo Popular no Brasil: aspectos muros e paredes das cidades. Onde encontra turas injustas estão com seus dias contados. É
históricos” (Petrópolis, 1978), comenta a época espaço, aí se expõe o recado do pobre que se uma forma de libertação. É o grito do oprimido
do aparecimento da devoção às imagens do torna poderoso com a força que vem do sagra- excluído que aposta encontrar eco no sagrado
Bom Jesus Sofredor e do Sucesso, que fizeram do. Ele também marca território. É um anônimo que tudo pode.
e fazem até hoje. Afinal, em um país onde líde- que escreve em nome de milhões de anônimos.
res políticos governam para si mesmos e para Ele representa uma multidão de desvalidos em Em tempos passados, deparamos com os
uma elite privilegiada, parece sobrar ao pobre busca de espaço neste planeta que pouco favo- profetas bíblicos que procuravam restabelecer
o Bom Jesus. Nele se encontram as característi- rece a maioria desprovida de bens materiais. A a justiça em nome do sagrado e hoje, de certo
cas da nossa gente também sofredora, com pés terra prometida continua a ser buscada, mas, modo, estamos diante da mesma metodologia.

88 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Pichação E Religiosidade 89


MONUMENTO:
ESQUECIMENTO E MEMÓRIA

Michelli Cristine Scapol Monteiro


Bacharel em História pela FFLCH-USP. Mestre e doutoranda em
História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU-
USP. Realizou pesquisa na Itália, pela Università degli Studi Roma
Tre. Desenvolve pesquisa sobre pintura histórica e escultura no
Brasil, com ênfase em história das representações e imaginário
urbano.

Na praça Frei Baraúna, conhecida pelo edifí- mória que deveria ser lembrada pela coletivi-
cio que abrigou o primeiro fórum da cidade de dade e, assim, perpetuada como história. Mais
Sorocaba, um obelisco foi marcado com picha- que adornar, o monumento tinha um ideal de
ção. Para muitos dos passantes, o monumento preservação de memória, mantida por meio de
integra-se naturalmente à paisagem urbana e um vínculo emocional com a comunidade.
é pouco perceptível, quase inobservável. Quan-
do se questiona ao transeunte o significado da- A construção de obeliscos é uma prática
quele marco, poucos sabem responder. Porém, que remonta ao Egito Antigo. Ele era feito de
a quase todos, a pichação é incômoda.  A arte uma única pedra (monolítico) de quatro lados,
urbana marginal ganha, assim, mais atenção contendo uma pirâmide no topo e estava re-
que o próprio monumento, que está esvaziado lacionado ao culto ao deus Sol. Muitos obelis-
de significado, já que o cidadão não sabe o que cos foram transportados para Roma durante a
ele representa. conquista do Egito e passaram a simbolizar a
potência do Império. Posteriormente, sobretu-
A palavra Monumento, originada do latim do durante o papado de Sisto V (1585-90), eles
monumentum, significa “lembrar”. Ao se cons- foram associados ao catolicismo e tornaram-se
truir um monumento público, pretendia-se representações do triunfo da Igreja Católica so-
evocar o passado, celebrando um evento ou bre as civilizações pagãs. Muitos deles, até hoje
homenageando pessoas. As construções des- presentes em Roma, passaram a conter símbo-
ses símbolos eram dotadas de valor rememo- los católicos como a cruz. O obelisco tornou-se
rativo intencional, ou seja, os seus promotores um símbolo muito utilizado para realização de
Praça Frei Baraúna
pretendiam inserir no espaço urbano uma me- homenagens públicas. Presente em inúmeras

Monumento: Esquecimento E Memória 91


cidades, adquiriu novos significados e passou a sar da inauguração estar planejada para 1947, sagem colocada ali não se contrapõe aos sen-
ser o lugar do herói. Alguns homens, por seus o obelisco foi entregue à cidade, representada tidos da obra, apenas utiliza-se de seu espaço
exemplos e suas qualidades, foram eternizados pelo prefeito Gualberto Moreira, em sete de vazio para inserir a inscrição. Espaço que é va-
por meio de obeliscos que os aproximam dos setembro de 1948, durante a comemoração zio em duplo sentido, seja pela área disponível
céus e os colocam acima do homem comum. da independência do Brasil. A solenidade foi para a pichação, seja pela falta de significado
marcada por um grande desfile e pela pre- da obra para a sociedade.
O obelisco da praça Frei Baraúna foi erigido sença dos aviões do Aeroclube de Sorocaba.
em homenagem aos 109 “pracinhas” de Soro- O obelisco possui 25 metros de altura e nele O obelisco, que deveria acionar uma me-
caba. O termo “pracinha” faz referência aos sol- estão inscritos os nomes de todos os soldados. mória viva, por meio de uma percepção afeti-
Dois deles, Martins Oliveira e Cesário Aguiar, va, já não cumpre essa função, pois o vínculo
estão assinalados com uma cruz, pois morre- que ele mantinha com a sociedade foi rompi-
ram durante o combate.  do. Esvaziado de sentido, tornou-se invisível
ao olhar dos que por ele passam. A pichação,
Os monumentos públicos e os sentidos de em contrapartida, é incômoda e notória e, pa-
que eles se revestem muitas vezes são objeto radoxalmente, realça o obelisco. Inquietados
dados que integraram as Forças Expedicioná- de críticas por determinados grupos sociais, por ela, as pessoas olham para o monumento
rias Brasileiras (FEB) durante a Segunda Guerra que veem ali representados significados que e perturbam-se com a intervenção ali colocada.
Mundial e foram lutar ao lado dos Aliados em não são compartilhados por eles. A fim de Visto, no entanto, como outro espaço qualquer
campos italianos.  Quando a guerra acabou, transmitirem seu descontentamento diante da cidade, o cidadão não se questiona sobre a
em 1945, os expedicionários retornaram a So- da memória ali imposta, realizam intervenções memória ali edificada.
rocaba e foram recebidos em uma grande fes- nessas obras, como aconteceu no Monumento
ta que aconteceu na praça Frei Baraúna, que às Bandeiras, em São Paulo, em 2013. Manifes-
foi adornada com arco de triunfo e altar. Ali tantes da causa indígena jogaram tinta verme-
foram realizados o hasteamento da bandeira lha na obra e escreveram “Bandeirantes assassi-
nacional e uma missa campal, além de ter sido nos”, a fim de protestar contra a mudança nas
plantada uma árvore de pau-Brasil. leis de demarcação de terra indígena. O alvo da
manifestação foi simbólico, tendo em vista a
Álvaro Nuno Pereira, que teve papel de memória representada naquela obra.
destaque na recepção dos expedicionários,
tomou a iniciativa de construir um monumen- No obelisco de Sorocaba, também há uma
to para homenagear os soldados. Teve apoio intervenção em forma de pichação. Porém,
da Sociedade Amigos de Sorocaba, da qual era ela não é revestida de um caráter de combate
presidente, e do governo do município. Ape- como o que o monumento representa. A men-
92 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Monumento: Esquecimento E Memória 93
O TEMPO E O DESIGN DAS
COISAS

Breno Pensa Barelli


Professor nos cursos de Design e Arquitetura na Universidade de
Sorocaba desde 2009. Possui graduação em Desenho Industrial
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2005) e mestrado em Design pela mesma instituição (2009). Tem
experiência na área de Design Industrial, com ênfase em Pesquisa
e desenvolvimento de produtos e sustentabilidade.

Estamos sem tempo! “Estou correndo para O que conhecemos sobre o design enquan-
fazer isso ou aquilo”, é o que dizemos rotineira- to ciência ainda é muito recente, remonta no
mente envolvidos na multitarefa, na velocida- mais tardar à primeira fase da industrialização,
de e na multipresença. A busca pela aceleração no entanto, mais intensamente, a partir do
do mundo foi alcançada na modernidade com início do século XX. Nestes cem anos que se
o avanço tecnológico em todas as áreas e, tal- passaram, o termo design se popularizou, mas
vez, a mais significativa, com a aceleração da o seu significado tornou-se raso. Gui Bonsie-
comunicação. pe mostra que temos uma relação superficial
com o design na sociedade, na indústria e,
Vale ressaltar que nos relacionamos com o inclusive, entre os próprios profissionais e as
mundo através dos bens imateriais, nossa cul- escolas da área. Toda nossa cultura do design
tura, língua, hábitos; e dos bens materiais, casa, está voltada às relações de mercado, em que
objetos, etc. Ambos influenciam-se diretamente. há um forte estímulo ao consumo de produ-
Um determinado costume pode ditar qual a rou- tos fabricados em massa. Em consequência,
pa adequada a ser concebida, feita e usada em cresce a exploração, a extração das matérias-
um velório, da mesma forma que um aplicativo -primas, a fabricação com mão de obra barata,
de um smartphone define novos padrões de agressivas estratégias de venda e descarte rá-
comportamento, por exemplo. O design encon- pido. Nunca se consumiu tanto e se descartou
tra-se neste cerne, na materialização das coisas. tanto na história da humanidade.

Uma simples interpretação sobre esse au-


mento do consumo pode fazê-lo parecer um
Rua Visconde. de Taunai
94 O Tempo e o Design das Coisas 95
fato saudável, uma evolução da sociedade. No impacientes no sinal vermelho, na fila de um tura material, objetiva a diminuição do tempo
entanto, vivenciamos disparidades movidas caixa, na resposta que não chega ao celular. de vida dos bens de consumo. A propagan-
pela ganância, coexiste um mundo extrema- Vivemos sem tempo e no imediatismo. da, além da sua imensa quantidade, intenta
mente pobre em paralelo com uma pequena transmitir a afetividade, o amor, o bem-estar
parcela rica, onde a predação dos bens natu- No imediatismo inexiste o amor, a amizade, por meio do consumo. Frases como “Abra a
rais e o desrespeito a todas as formas de vida o cuidado, pois estes sentimentos carecem felicidade”, “Amo muito tudo isso”, “Vem ser
se tornam comuns, aceitáveis. Os desastres de tempo para se desenvolverem. “Capricho feliz” são direcionadas para atingir nossa fra-
ambientais provocados pelos humanos, as necessita de tempo, prevenção necessita de gilidade afetiva, fruto da falta de tempo com
tantas perdas que enfraqueceram a evolução tempo, afeto necessita de tempo, ternura ne- nossos amigos, nossos amores. Além disso,
de uma cultura autóctone e sustentável es- cessita de tempo, afeição necessita de tempo, pode-se incluir a facilidade ao crédito como o
tão evidenciados e cada vez mais percebidos compaixão necessita de tempo”, como disse terceiro pilar que sustenta este hiperconsumo
como um problema que deve ser superado. o professor Wilson. “É então mandatário res- e o seu consequente descarte.
gatar os remansos, os redutos, as calmarias,
A atual consciência dos limites e da situa- os espaços públicos, os pertencimentos. O A Terra e seus habitantes precisam de cui-
ção do planeta, somada à aceleração rotineira tempo permite a reflexão, o pensamento, a dados. As diversas possibilidades para con-
trazida pelas últimas décadas, se traduz em desmaterialização, o acúmulo de energia, o sumir distraem e nos impede de dar o devi-
uma dificuldade de enxergar o futuro. Wil- olhar, o sonho, a paciência e a perseverança. do apreço a cada coisa e a cada momento. É
son Kindlein Jr., professor de design na UFR- Esses valores são fundamentais para que a so- necessário voltar a sentir que precisamos uns
GS, aborda esta perda da noção do futuro e ciedade não fique ainda mais doente. Doença dos outros, que temos uma responsabilidade
sobre a efemeridade das coisas, inclusive das que é gerada pela ansiedade, e ansiedade que
relações humanas. Não é incomum, hoje, ter gera a depressão e o abandono (descarte)”,
mil amigos em uma rede social e, mesmo conclui o professor.
assim, ter dificuldades de relacionamento.
Não é incomum trabalhar doze e até dezes- O descarte é gerado tão somente porque
seis horas por dia, além daquelas oito horas consumimos e os motivos para a aceleração
convencionais, atrelado à internet onde quer do consumo, ou o chamado hiperconsumo,
para com os outros e o mundo. Urge o tempo
que ela funcione. Conseguimos ler uma notí- por Gilles Lipovetsky, são apresentados em
da permanência, da sustentação. Urge o tem-
cia internacional, encaminhar uma demanda seu livro “A Felicidade Paradoxal”, que ainda
po da sustentabilidade. Urge um design foca-
do trabalho estando em casa e ainda reagir a sob a ótica de Kindlein, estão ancorados na
do nas reais necessidades humanas e com o
uma foto de um amigo praticamente simul- obsolescência programada, na propaganda e
olhar para o futuro.
taneamente. Nesta aceleração, ficamos sem no crédito. A obsolescência programada, já in-
tempo e, sem este, não existe espera. Ficamos corporada e comumente aceita em nossa cul-

96 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos O Tempo e o Design das Coisas 97


TEMPO A PERDER

Benedito Aparecido Cirino


Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de Sorocaba;
mestre em Ética e graduado em Filosofia pela Puccamp; atuação em
docência nos cursos de graduação da Universidade de Sorocaba.

Um terço de meu tempo diário me é surru- como nos ensina Henri Bergson (1859-1941).
piado, sem que eu saiba quem me rouba. Ou A inteligência é árbitra do tempo de ser. Ela or-
talvez saiba, quando identifico as estruturas ganiza a existência dos seres. Seu instrumento,
do sistema de vida na sociedade atual. Ao lon- a razão. O que possibilita a expressão da ideia
go do tempo de existência, ou no curto perío- de tempo, mas não expressa o tempo mesmo.
do da vida, uma fração me é tomada, o que re- Pois este é sensível, porém, não comunicável.
duz minha totalidade, o que altera o usufruto Percebido e não publicado.
de minha plenitude.
Quando pensamos ter tempo, pensamos
Mas isso seria válido se eu fosse proprietá- ter outras coisas. Na verdade, nos acredita-
rio do tempo. Não sou. O tempo me possui. mos proprietários. Mas o que é propriedade?
Não posso impedi-lo de ser ou de não ser co- É somente uma ideia. Não é uma ideia com-
migo. De me guiar ou desviar, se é que há uma posta, não há nenhum objeto material corres-
via a seguir. Aliás, não posso nem entendê-lo, pondente a tal ideia. Justamente por isso, ela
como inteligentemente gostaria. Falamos de toma a forma absoluta, se justifica como ver-
dois tempos. Tempo de ser e tempo de fazer. dade. Válida, pelo vazio de materialidade, tor-
Porém, a ação é subordinada ao tempo de ser. na-se base das ações da humanidade. Orien-
Este é plenitude, o outro é fragmento. Como o ta as relações entre seres humanos. Assim, o
fragmento é quantidade, o pleno é qualidade. tempo é tomado como produto que pode ser
possuído, emprestado, comercializado, perdi-
Assim, temos uma dialética dos tempos: do ou doado.
Estrada do Ipatinga
um é o da existência, outro é o da inteligência,

Tempo a perder 99
Sendo assim, quando um artesão, como com- O tempo comprável se traduz em “força de rem tempos. Um de seus poderes basilares é
preendeu Karl Marx (1818 – 1883), gastava oito produção”. O que for produzido nesse tempo o de desaparecer nas abstratas corporações.
horas a produzir um par de sapatos, este produ- pertence ao comprador. O operário é pago O sonho delas é o de se libertar completa-
to era a materialização do tempo quantificável com o próprio produto por ele realizado. Tudo mente da necessidade de se comprar tempo.
e do tempo vivido pelo realizador do objeto que é realizado a mais, no intervalo comprado, Como percebemos isso? Ao ir a um caixa ele-
novo no mundo humano. Isso, dentre outras pertence ao comprador: “a mais valia”. Grande trônico e realizar o próprio serviço pelo qual
possibilidades, nos permitiria a percepção da negócio para o comerciante, péssimo para o pagamos a um banco.
variabilidade qualitativa dos produtos, pois cada produtor que continua a receber, agora na for-
artesão sentia diversamente seu próprio tempo. ma salário, o mesmo que recebia quando pro- Os prestadores de serviço vivem cotidia-
Ao cabo do processo, surge a expressão de pelo duzia na forma artesanal. O operário não perde namente a dialética entre felicidade e seu
menos alguns aspectos da identidade do produ- somente ao produzir mais do que o necessário, contrário. Realizar a atividade pela qual são
tor, aqueles da conexão com o tempo mesmo. perde algo mais valioso, do ponto de vista do remunerados, quando vendem parte de seu
Características da subjetividade inseridas na ob- projeto de humanidade, pois desaparece a co- tempo, é desconfortável, pois no fundo ven-
jetividade material do produto. Os sapatos como nexão entre tempo de produção e tempo de dem partes de si mesmos. Tendem a pensar
cristalização do “vir a ser” do sapateiro. existência subjetiva; a temporalidade plena.

A inteligência nos estimula a pensar que a


humanidade esteja pronta. Porém, ela se faz
no tempo. No particular, fragmentário, e no
Ao se fragmentar o processo de produção, universal, total. Ou, simplesmente, no tempo
na manufatura e, depois, na produção indus- mesmo. E, no seu constante fazer-se, ela se en-
trial, radicalmente separam-se os tempos. O contra no “tempo dos serviços”, mas não muda
comprador de tempo, o dono dos instrumentos sua relação com o tempo real, cuja parte inte-
de produção, interessa-se somente pelo tempo ressante é somente aquela geradora de lucro
quantificável, pois por este meio possui-se mais ou prejuízo, tempo inteligente, matemático e
ou menos produtos. Como o proprietário dos econômico; tempo financeiro. Pois tempo pro-
instrumentos, compra o tempo de vários pro- dutivo exige muito investimento e baixa “mais
dutores simultaneamente, ele consegue maxi- valia”, pouco lucro.
mizar a quantidade de produto realizável em
certo tempo dos, agora, operários, não mais Nessa forma atual, há os que só têm tem-
produtores. O tempo para produção de um par po; os compradores de tempos a serem tor-
de sapatos pode ser o mesmo para a realização nados serviços e os compradores de serviços.
de dez pares. Os mediadores da relação são os que adqui-
100 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Tempo a perder 101
como aqueles que os compram, no caso, as
corporações, que vendem os serviços esperan-
do não terem que entregá-los. Vejam os planos
de previdência, de saúde, seguros e outros.

A infelicidade começa nas segundas e


cessa nas sextas-feiras. Nesse intervalo, são
poucos os momentos menos infelizes. Estes
instantes ocorrem e podem ser percebidos
na alegria do atendente de caixa dos super-
mercados quando cai o sistema digital de co-
brança, ou quando um professor vai dar aula
e seus alunos não apareceram. Espíritos se
alegram nesses momentos ou nas férias, nem
sentem o tempo passar.

R. Henrique Dias

Um Deus do lado de quem?

André Luiz Sueiro A violência é um fenômeno cotidiano, e ocu-


Possui graduação em Filosofia e Teologia, e é estudante do curso pa tanto o noticiário quanto as conversas de
de Psicologia. Tem mestrado em Filosofia, atuando principalmente vizinhança, sendo facilmente apontada como
nas áreas de Estética e História da Filosofia Contemporânea. Nas
horas vagas, é violonista e compositor. Nas ocupadas, é professor um dos maiores problemas sociais em nosso
de Filosofia na Uniso, onde coordena o curso de Filosofia. país. Em geral, em realidades de pobreza, isso
é ainda mais ressaltado: a compreensão de que

102 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Um Deus do lado de quem? 103


a “periferia” é um lugar violento, e que há um deveriam estar na situação descrita na frase (é Quem terá, portanto, colocado o versícu- Tudo isso faz pensar na polissemia dos sím-
anseio por paz e tranquilidade nas muitas co- difundida a expressão “bandido bom é bandido lo no muro? Será que se acha em meio a uma bolos e elementos religiosos, que embora pos-
munidades, sobretudo nos grandes centros. morto”). A imagem e a frase desafiam, portan- guerra? De que tipo? A imagem suscitada é sam ter sentidos ditos “oficiais” pelas autorida-
No entendimento comum, isso explicaria a pre- to, a compreensão, trazendo a pergunta: quem uma imagem forte, já que supõe um perigo des e instituições religiosas, são interpretados
sença maciça das religiões nesses contextos so- poderia ser o sujeito dessa frase? iminente: estará afligido pelo medo, no meio em infinitas direções por seus receptores: esse
ciais, como forma de oferecer bem-estar, con-
solação, disciplina, etc. Nesse quadro, a frase No campo da exegese bíblica, comumente
poderia ser expressão da resistência das pesso- se estuda um texto a partir da compreensão de
as de bem, que em meio à violência apelam ao seu contexto vital (sitz im Leben), o que con-
divino, e que nas lutas de suas vidas sentem-se figura uma metodologia histórico-crítica de
motivadas: é muito comum ver, nas residências interpretação. Isso traria informações interes- do conflito? Desejoso de vingança? A pergunta processo de troca simbólica, para usar a expres-
de pessoas religiosas, um exemplar da Bíblia santes, já que esse salmo expressa as caracte- se desloca: conflito contra quem? Contra crimi- são de Bourdieu, revela o permanente conflito
aberto nesse Salmo, como forma de motivação rísticas de um período de estabelecimento da nosos? Contra a polícia? Contra facções rivais? entre perspectivas ideológicas e os diferentes
diante das dificuldades da vida; se vê também monarquia em Israel, numa leitura do processo Contra a sociedade organizada, com suas es- agentes na sociedade, já que o mesmo Deus
a quantidade de mensagens elaboradas com social em que há a passagem de um modo de truturas injustas? Contra as elites? Afinal, o que invocado por pessoas que se consideram pa-
essa frase e disponíveis na internet, para serem produção pastoril, e consequente organização significa uma frase tão forte e tão contraditória? cíficas pode ser invocado por aqueles que são
difundidas nas redes sociais. tribal, para um modo de produção agrícola, o considerados “meliantes de alta periculosida-
que torna a existência fixada nas cidades, com A necessidade de amparo, em sentido psi- de”. Se um trecho da Escritura só tem sentido
Mas há uma questão interessante a ser le- um poder organizado em torno da corte e o rei cológico, pode ser uma via de explicação: in- dentro de seu contexto, podendo ser aplicado
vantada: em geral, não há um incentivo por como modelo ideal da vivência religiosa (Davi dependentemente da compreensão legal das em contextos diferentes, há que se considerar
parte das igrejas para que frases bíblicas sejam como alguém justo e capaz de tornar Israel um ações dos indivíduos, no que tange à ilicitude as disputas e as apropriações dos diferentes
pichadas em muros, já que na visão dos líde- povo forte e conquistador). Dentre as muitas e ao crime, e da interpretação moral da socie- grupos sociais em disputa, sem julgamentos de
res religiosos e dos participantes desses cul- imagens de Deus presentes nas Escrituras, cada dade em termos de certo e errado (inclusive a caráter pejorativo: talvez esse seja o rosto divi-
tos, pichação é algo pecaminoso, não deven- qual moldada pelos elementos sociais e cultu- classificação religiosa entre justos e pecado- no que é extremamente democrático e plural,
do fazer parte do comportamento de alguém rais de cada época da história do povo hebreu, res), a maioria dos indivíduos considerados de- podendo ser invocado por todos, sem distinção
que se diga temente a Deus. Um paradoxo se essa frase revelaria a face de um Deus que pre- linquentes tem uma compreensão religiosa da ou acepção de pessoas.
apresenta então: ainda que muitos moradores para para a guerra, tornando o rei alguém que vida e pedem a proteção divina para o êxito de
religiosos do lugar se reconheçam na frase do cumprirá sua missão de vencer e dominar os suas tarefas. Isso é visível, por exemplo, em ta-
muro, inclusive como expressão de luta contra outros povos: daí a noção de que mil cairão ao tuagens, discursos, pagamentos de promessas,
a violência, nada impede que os que colocaram teu lado, e dez mil à tua direita. Mesmo com as no temor com relação a autoridades religiosas,
a frase no muro sejam justamente aqueles que perdas da guerra, Israel sairá vencedor, já que o que mostra uma visão encantada da realida-
esses moradores consideram violentos, e que guiado e protegido pelas forças divinas. de, marcada por traços de uma religiosidade
ingênua, quase infantil.
104 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Um Deus do lado de quem? 105
O FEMININO E A
PAISAGEM URBANA

Marcélia Picanço Valente


Professora e pesquisadora, Mestre em Educação pela Universidade
de Sorocaba- Sorocaba-SP, Especialista em Animação Sócio Cultural
pela Fundação e Escola de Sociologia e Política -SP, graduada em
Ciências Sociais- Universidade da Amazônia-PA.

A paisagem urbana mostra-se alterada com nhecer-se como um corpo político. Esse escla-
as mensagens que estampam em seus muros. recimento, sobre o que querem as mulheres e
São recados que nos levam a refletir a respeito no que elas acreditam, começa a fazer sentido
do cotidiano existente: injustiça, esperança, ati- quando o campo explorado tem uma nova di-
vismo, inconformismo, consumo exacerbado, mensão, um novo horizonte, que só é possí-
lutas invisíveis, miséria material, moral e espi- vel a partir da conquista de novos direitos e
ritual, condição social injusta e muitos outros da ocupação de novos papéis; um processo de
temas. As frases e imagens provocam uma con- modernização da sociedade brasileira, após a
versa com quem está passando e transformam- abertura política, por exemplo, permite a exis-
-se em processos de ressignificação dos acon- tência de uma imprensa feminista, discutindo
tecimentos, que não podem ser ignorados. questões das mulheres.

A imagem aqui apresentada é instigante, A condição das mulheres é um debate pre-


chama a atenção para uma questão mais am- mente, uma discussão necessária. No desenho
pla, que é o valor. No entanto, oferece um ro-– uma mulher que olha à espreita de seu passa-
teiro de palavras e frases espalhadas pelo dese-
do, seu presente e futuro –, nos leva a pensar:
nho, que ajuda a fazer as conexões e caminhos:até quando mulheres terão suas histórias si-
“quando”, “quanto”, “em que você acredita?”. lenciadas? Quanto tempo ainda conviveremos
com essa realidade construída socialmente e
Os traços geométricos inacabados e apa- que exige que haja autoridade e subordinação,
rentes sugerem a construção de um lugar superioridade e inferioridade, poder e submis-
Rua José Antônio
Ferreira Prestes
social para as mulheres, que necessitam reco- são? Até quando o tipo ideal de mulher será

106 O Feminino E A Paisagem Urbana 107


determinado pela sociedade patriarcal e, con- antes de Cristo. Fala-se também nas guerreiras mecem uma conversa, que despertem e pro- Essas telas que saem dos muros proporcio-
temporaneamente, pelos meios de comunica- militares dos séculos XIV e XV, que em tempos voquem interesse pelo conhecimento, pes- nam interpretações diversas e uma leitura pe-
ção de massa? O valor de uma mulher está para de guerra frequente, iam para o front de batalha. quisa, origens, feitos, mitos, ritos e costumes. culiar, permitindo, inclusive, ver mulheres, que
além de só suprir o afeto, procriar, criar as crias Que o passeio por esse universo tenha como antes eram modelos de recato, com outra iden-
e promover a harmonia no ambiente familiar. Nos tempos atuais, a jovem Shamsia, tornou- proposição livrar-se dos rótulos impostos cul- tidade. É o caso da Mona do Funk, uma perso-
-se a primeira grafiteira afegã a levar seus grafi- turalmente e que nos encaminhe para uma nagem criada pelo professor de artes Tiago Ân-
O trânsito para o espaço público já se fez há tes para as paisagens de guerra, no intuito de co- nova percepção social do gênero feminino. gelo Ramos da Silva, que imprimiu a Monalisa,
tempos. Foram elas que estiveram presentes municar-se com as mulheres. Vale destacar que de Da Vinci, de vestido curto, sensualizando até
nas mais importantes transformações sociais, in- estamos falando de um país em que apenas 14% É mais elucidativo e representativo quando o chão nos muros de sua cidade, Poá (SP). Essa
clusive como protagonistas. No século XVIII, na das mulheres têm acesso à leitura e escrita. Um o foco está no valor da mulher. Dessa forma, as imagem viralizou nas redes sociais gerando
França, marcharam de Versalhes à Paris para de- ato encorajador, marcante e especial que abre referências de protagonismos se diversificam e um reconhecimento da pintura original e uma
por uma Monarquia e exigir direitos sociais, fo- caminhos e desperta para novas possibilidades, se ampliam. É possível reconhecimento, iden- aproximação da Monalisa com a conjuntura
ram o estopim da Revolução Francesa. Sem falar destacando a importância da inserção ou inter- tificação e facilita também explicar em que se atual.
das guerreiras Amazonas, citadas nos registros ferência das mulheres na sociedade. acredita. Por isso, a questão da visibilidade e do
oficiais e mitológicos dos gregos, oito séculos protagonismo feminino é fundamental para a O desenho sugere uma mudança ainda não
criação de novos paradigmas, para que as mu- cristalizada, mas que acena para a conquista de
lheres possam identificar-se, mas de maneira direitos e ampliação da presença feminina nos
plural, de forma livre. Vejamos a história da sistemas das cidades, provocando as questões
musicista brasileira Chiquinha Gonzaga, e de para conversa: quanto tempo levaremos para
São poucas as mulheres que penetram o uni- sua importância social. Em um tempo em que apagar as heranças históricas do sistema social
verso do grafite. Considerável parte delas retra- as mulheres sequer ousavam sair de casa, Chi- patriarcal? quando teremos representativida-
tam temas referentes ao feminino e se autointi- quinha compôs marchinhas de Carnaval, regeu de no projeto político do país, já que somos
tulam livres, como é o caso da artista brasileira orquestras, lutou pelo divórcio e frequentou os 51,6%? Até quando os crimes de feminicídio
Mag Magrela, que tem seus desenhos espalha- espaços boêmios da cidade. não serão julgados com rigor? O ruído transfor-
dos pelo mundo. Seu trabalho concentra-se em mou-se em um barulhão, com direito a placas
retratos de mulheres comuns, mas prima por Se todos esses fatos tivessem sido ampla- de “estamos em obra”, construindo nossas re-
uma identificação do feminino, tanto em causa, mente divulgados na época em que viveu ferências femininas de poder, políticas públicas
impressões, aflições e amadurecimento. (1847-1935), e Chiquinha tivesse sido retratada que considerem a desigualdade de gênero no
nos muros da cidade, de certo teríamos outros mundo e pintando os muros para que a história
Mais muros, por favor! Para contar um pou- nomes e também o encorajamento para que reconheça o valor das mulheres nas estruturas
co da história das mulheres ou dos seus “si- outras mulheres ocupassem aquele espaço pú- sociais e políticas.
lêncios”, como diz a pesquisadora francesa blico. É aquela velha história de não se sentir
Michelle Perrot. Mais escritos urbanos que co- sozinha no mundo e encontrar seus pares.
108 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos O Feminino E A Paisagem Urbana 109
HISTÓRIA DE UMA VIDA:
DESIGUALDADE SOCIAL

Ana Maria Souza Mendes


Professora da rede pública estadual, formada em Pedagogia,
sócia efetiva da Academia Sorocabana de Letras, sendo sua atual
presidente; coordena o Núcleo de Cultura Afro-brasileira (Nucab) da
Universidade de Sorocaba, além de outras atividades comunitárias.

Jovem, mal saído da adolescência, então, Os sonhos do nosso jovem são comuns a to-
com tamanhos desproporcionais nos sonhos, dos os recém-saídos da meninice: ter uma vida
na rebeldia e até no próprio corpo. Como um tranquila, viver a velhice sem a angústia todo o
sem número de outros jovens, criado com seus tempo estampada na face do avô, já sem força
irmãos no núcleo familiar mais fácil de se encon- suficiente para produzir de forma a atender às
trar atualmente: o casal de avós e a mãe. Ela com necessidades da mulher, da filha e dos netos.
menos de quarenta e ele, apesar do desgaste do Que dizer então das angústias que povoam o
corpo, mal chegado aos sessenta. Para prover a cotidiano da mãe, que por vezes enfrenta jorna-
família, ao todo seis, o avô e a mãe trabalhavam. das de doze horas em enfermarias, somadas a
outra jornada de horário integral, a de mãe?
Embora o bairro onde moram seja residen-
cial, é bem distante do centro da cidade, o que Sonha com uma vitória, muito maior que a do
obriga a todos ao deslocamento por meio do time do coração ao vencer o campeonato, que
transporte público para irem à escola, ao tra- ainda não sabe nominar, mas sabe que, para
balho, e, eventualmente, para tratar da saúde e conquistá-la, terá que driblar muitos obstáculos.
para compras, isso quando conseguem escapar
do providencial ‘fiado’ do armazém ali da es- Frequenta uma escola da rede pública, onde
quina, em se tratando de comida e mais alguns o conteúdo de informações, na maior parte das
produtos essenciais. Nada a acrescentar à con- vezes, não lhe diz nada, não faz parte do seu
tinuidade do mês sobre o salário: este sempre cenário de vida, distando anos-luz da sua rea-
acaba primeiro. lidade. Onde ficam os castelos, os teatros ou a
Rua João de Almeida Melces
biblioteca, não aquela salinha acanhada com

110 História De Uma Vida: Desigualdade Social 111


duas estantes velhas e mal arrumadas lá no fim mundo exterior faltando tantas peças, um que- facial triste, tímida, que parece não combinar
do corredor da escola, onde é proibida a entra- bra-cabeça no qual falta desde a figura paterna com a ousadia do momento.
da sem ordem da direção, na companhia do até a igualdade no trato, não é de admirar que
professor durante o horário da aula, que termi- resolva gritar ao mundo que ele está ali e quer Desenha e pinta a bandeira, certa nas cores,
na invariavelmente quando algum livro, quer ser visto, ouvido, respeitado na sua jovem vida quase certa na forma geométrica. No fundo
pelo colorido da capa ou pela novidade no títu- jovem. azul, algumas estrelas, porque tem pressa, ou,
lo, lhe chama a atenção? porque resolve que, no mundo da desigualda-
Algumas latas de tinta em spray, um muro de em que vive, elas não brilham com tanta fre-
alheio, lógico, distante de sua casa, do bairro, quência.
de pessoas que o conheçam e, numa noite es-
cura, faz sua catarse. Se a sua vida não está fluindo como sonhou
e sempre sonha, lá vai seu recado ao mundo.
Não foi fácil, mas descobriu, nas entrelinhas Para começar e, até pela ansiedade do mo- Traduz o lema positivista criado para figurar na
dos livros didáticos, o significado do termo de- mento, pinta monograma, uma assinatura da bandeira nacional pelo que sente e vivencia:
sigualdade. Por força dessa tal desigualdade, o espécie “adivinhe quem”. Embora oculto, está DESIGUALDADE SOCIAL.
bolo do salário de sua casa não é suficiente nem ali para mostrar a que veio. Em seguida, o nome
para o que chamam de básico. Também nunca de uma cidade, não necessariamente onde
assistiu a um espetáculo com um profissional mora, mas muito importante em sua vida. Dian-
de teatro, desses que aparecem na televisão, te de tantos fatos recentemente vistos ou ou-
ou viu uma orquestra sinfônica. Observando os vidos nos meios de comunicação, quando tan-
colegas em sala de aula, percebeu que alguns tos milhões de reais desapareceram, digamos
são mais desiguais que outros. No discurso es- que em bolsos alheios à população, resolve se
colar, igualdade, fraternidade e liberdade são expressar por meio de um enunciado conciso,
temas recorrentes. Mas realidade não rima com mas que demonstra tudo do que sente falta:
tudo isso não, não sempre. MENOS CORRUPÇÃO MAIS CULTURA!

Também no livro didático deparou-se com Para expressar toda sua indignação, há mui-
outro termo e, após explicação em sala de aula to formada, desenha um menino empunhando
e a insistência dos noticiários, tem certo domí- a bandeira nacional, alusão a um sem número
nio sobre a palavra corrupção e a abomina. de valores: masculinidade e força no torso nu;
postura ereta a significar o orgulho ao se auto-
Juntando todas as informações, seus so- escolher para empunhar o símbolo da pátria. O
nhos, seu mundo interior em ebulição, seu menino/jovem, ou vice-versa, tem a expressão
112 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos História De Uma Vida: Desigualdade Social 113
A cena está pronta. Se alguém vai julgar o sombra de dúvida, faz falta para equipamentos
seu trabalho, não lhe interessa. Seu recado está e realizações que beneficiem a população, que
ali. Por algum tempo, indelével. proporcionem impulsos para a mais possível
realização do ser humano.
Amanhece. Nosso jovem se recolhe, anôni-
mo como sempre foi para o mundo. A vida se- Desigualdade Social: não tem sido este o
gue. Um tanto preocupante para ele, que quis lema mais praticado no país, desde seus primei-
apenas expor o que lhe vai na alma. ros dias? No começo, contra o índio, em segui-
da, contra o mestiço, enorme, e ponha enorme
A Lei vai exibir a lista de sansões impostas a nisso, contra o negro, contra o pobre, contra a
quem conspurca um símbolo nacional. Não fal- mulher trabalhadora, contra o doente, e a lista
tarão protestos dos órgãos públicos, da mídia, que não termina.
do avô demonstrando ira pelo dinheiro da tin-
ta e, ao mesmo tempo, culpa porque falhou na Pode e deve terminar. Pode, pelo menos, ser
função de educar; da mãe, porque ela consegue reduzida. Para tanto, basta que cada um de nós
ouvir sirenes e viaturas em busca do seu meni- trate o outro como gostaria de ser tratado.
no, e tantos mais que não dá nem para contar,
e, se ele não tinha autorização para a ‘arte’, até
do dono do muro... Pensa: _ Foi mal!

Um resumo de uma história de vida. Na rea-


lidade, não são detalhes as inscrições contidas
na arte do Graffiti. São mensagens, e das mais
contundentes. A arte das ruas não quer apenas
marcar presença, como a dizer que senso artís-
tico ocorre em toda comunidade. Quer mais.
Quer, para além do traço, expor a opinião so-
bre o que está acontecendo e que interfere no
cotidiano. É, mesmo, pedido de socorro. Quem
R. Padre José Manoel de
não está desconfortável com o noticiário sobre Oliveira Libório
superfaturamentos, desvios de verbas, contas
no exterior, muito provavelmente, com dinhei-
ro de orçamentos públicos? Esse dinheiro, sem
114 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos
A CAPA É DE SOROCABA!

Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs


Por Thífani Postali e Isabella Pichiguelli

O visitante que anda atento pelas ruas de So- cais da cidade, sejam públicos ou privados, de
rocaba percebe uma comunicação com traços mensagens que buscam provocar a reflexão da
bastante específicos e registrados em diversos população. Isso porque o movimento hip hop
locais da cidade, comuns aos olhos dos soroca- tem como finalidade chamar a atenção das pes-
banos. São as artes de Will Ferreira e Michel Japs,
soas para os mais variados problemas que uma
que expressam de maneira bastante significativa sociedade carrega, especialmente, para as diver-
a representação do ser humano, especialmente gências e negligências existentes nos grandes
aquele que ocupa os grandes centros urbanos. centros urbanos. Para tanto, utiliza a música, a
Dessa parceria, surgiu o Fite, projeto que tem dança, o grafite, o DJ, entre outros elementos
como objetivo fomentar a produção artística culturais, para disseminar mensagens de resis-
do grafite em consonância com a necessidade tência, ou seja, em muitos casos, informações
também mercadológica, ou seja, que atende a que objetivam dialogar com a sociedade sobre
diversas instituições que buscam agregar a lin- olhares diferentes dos oferecidos pelos grandes
guagem do grafite em seus espaços. Por isso, as veículos de comunicação. Por esse motivo, o co-
artes de Will e Japs estão estampadas não só nos nhecimento tornou-se um especial elemento do
muros da cidade, mas em diversos ambientes in- hip hop, pois o seu fundador, Afrika Bambaataa,
ternos de empresas, comércios, centros educa- alega que a pessoa que se dispõe a participar do
cionais e culturais, produtos variados, projetos movimento deve estar munida de conhecimen-
governamentais etc. to para sempre transmitir mensagens de amor,
paz, união e resistência, já que o hip hop passou
Cabe ressaltar que o Fite produz traba- a ser tratado de modo distorcido pela mídia e
lhos que não fogem à filosofia do grafite, que é pela sociedade, como uma cultura que faz a apo-
um elemento fundamental do movimento hip logia à criminalidade, o que está bem distante
hop, ou seja, Will e Japs preenchem diversos lo- de seu propósito original.
116 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 117
Posto assim, podemos observar que So- fazendo o mural chama mais atenção
rocaba é uma cidade privilegiada por ter artis- que o próprio mural. Depois o mural
tas como Will e Japs, que, de modo dialógico, permaneceu por um bom tempo,
conseguem ocupar diversos setores sociais, mas o que marcou em mim, ficou
valorizando a arte de resistência e garantindo na memória, foi isso: ver o cara lá,
pintando.
mais espaços para a estética e a voz das ruas.
Por esse motivo, não poderíamos deixar de co-
Will Ferreira: Não me lembro, sinceramente, do
roar esta obra com as capas ocupadas pelo Fite.
primeiro grafite. Meu caminho foi
A seguir, apresentaremos uma entrevista rica inverso. Os primeiros contatos com
em conhecimento e explicações sobre os per- arte, por exemplo, foram as histórias
sonagens e trabalhos dos artistas que pintam em quadrinhos. A pichação, por ou-
Sorocaba. tro lado, é algo que você cresce ven- o spray foi em um projeto da pre- teiras e há também o muro das
do. Na rua, na escola, até no muro de feitura. Foi em chapa de madeirite. lamentações, em Israel. Quais são
Qual o primeiro grafite ou pichação que se lem- casa. Não tem um que eu me lembre, Foi todo simbólico: fiz um perso- os muros do grafite e da pichação? 
bra de ter observado? em especial. Por estar em todo lugar, nagem sendo engolido pela es-
é isso que fica gravado na memória. curidão. Ele tentava alcançar uma Michel Japs: O muro do grafite e da pichação são
Michel Japs: No meu bairro, via mais pichações do lâmpada, ou seja, alcançar a luz. Já muros de um mesmo terreno. Pra
que grafites. Não tem como não ver E o seu primeiro? De que tratava? Onde foi? na rua, o primeiro grafite também quem é do grafite e da pichação,
a pichação, então, esse foi o primeiro foi em um evento da prefeitura, na não há separação entre um e outro,
contato visual. Já o primeiro grafite, Michel Japs: Fiz meu primeiro grafite usando látex Avenida Dom Aguirre. Foi em um apesar da diferença de percepção,
observei quando na esquina de casa, e rolinho, não era nem spray. Foi muro enorme. Era um desenho até pra quem vê. A diferença é que
a uns 50 metros de onde eu morava, depois de uma oficina sobre Grafite simples, inspirado em histórias em a pichação vem pra incomodar,
tinha um cara fazendo grafite na e Hip Hop. A gente assistiu um filme, quadrinhos, com poucos traços e colocar o dedo na ferida, não está ali
esquina. Era um grafite bem elabora- Beat Street. Lá tinha toda a cultura cores. Mas também já tinha toda para ser bonito, ninguém gosta. Já o
do, já tinha fundo, eram umas letras, Hip Hop, o rap e um personagem uma simbologia: era um personagem grafite é arte, vem pra falar alguma
algo muito bem feito pra época. Fui que era grafiteiro. A oficina foi volta- segurando a bandeira do Brasil e no coisa, mostrar uma ideia, as pessoas
privilegiado de ver isso perto de casa. da totalmente ao Hip Hop, inclusive a meio, no círculo azul da bandeira, apreciam. Tenho mais propriedade
Aquilo me marcou, lembro muito forma de fazer grafite, com foco nas tinha um feto. Marca por isso: mostra para falar do grafite, porque é o que
bem: a imagem do cara pintando, letras. Então, meu primeiro grafite que desde sempre minha arte busca faço. Mas em geral, são os muros das
com várias latas no chão. Tinha uma teve essa influência: inventei um ter um porquê, ter um sentido. mensagens.
galera em volta também, olhando. nome artístico para mim, MIKI, na Will Ferreira: O muro do grafite e da pichação é o
Aquele jeito de trabalhar do grafi- época. Eu tinha 12 anos. Muros têm uma porção de significados. Existe mesmo muro. A diferença é o cara
teiro, eu voltei a ver só muito tempo a expressão “em cima do muro”, que está atrás da lata. Pode ser um
depois. Acho até que o ato de estar Will Ferreira: O primeiro contato que tive com há muros que demarcam fron- cara que está ali só pra agredir. Ou

118 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 119
um outro que está ali para expor estampada na parede, por exemplo, Michel Japs: Tem um caso que retrata bem a
sua arte, seu talento, expressar uma encanta muito fácil, pelo tamanho. relação com a cidade. Foi um mural Michel Japs: O grafite na rua, na parede, é exclu-
mensagem. Mas quem sou eu pra Embora sempre vá ter quem não que fizemos na Rua Hermelino Ma- sivo de quem está naquela região,
falar da pichação? Falo do grafite, goste. tarazzo, num posto, do lado de um quando ninguém tira foto e não é di-
porque sou grafiteiro. O grafite é, Will Ferreira: Pra falar a verdade, não sou muito de semáforo, e parava muito ônibus ali. fundida, o que nem sempre aconte-
literalmente, sua mente aberta para observar, mas ouço muitos comentá- A gente ficou três dias pintando, e o ce. Muita gente pode ver, ou poucas,
todos verem. Quem tem um pouco rios, até mesmo de família e amigos. grafite durou só uma semana. Houve dependendo do lugar. Acho que a
de entendimento, vai falar: “olha, O que percebo é a repulsa e o ódio à uma falha de comunicação entre pai diferença do grafite é porque une a
esse cara está com problemas em tal pichação, enquanto a maioria gosta e filho, que administravam o posto. O capacidade de se expressar artistica-
área”. Você consegue ler a estrutura do grafite, porque muda o ambiente, filho autorizou. Mas o pai não gos- mente e a espontaneidade, a liber-
da pessoa, sua cultura, sua forma a energia do local, principalmente se tou. Era um senhor que não enten- dade. Não tem amarras, nem regras
de vida. Através dessa arte, a minha for grande e colorido. Faz bem aos deu o propósito da arte, e apagou sobre o que vai falar. E é presencial.
mente está aberta pra qualquer olhos. Dependendo da mensagem, depois de uma semana. Nós somos Você está ali. Quem vê precisa estar
pessoa olhar. E o grafite é isso: é rua. podem gostar ainda mais, se iden- desapegados, não ficamos chatea- ali pra captar a arte. Pode até ser
Tem que estar na rua. Não pode nem tificar com os personagens, com as dos. Mas muita gente ficou revoltada. apagado depois, mas o que vale é a
ter grade na frente dele. As pessoas situações que são representadas ali. Foram reações distintas à arte e que expressão realizada.
têm que conseguir pôr a mão e até representam o como a percepção Will Ferreira: Como o Michel disse, o grafite é algo
mesmo apagar, se quiserem. Mas Alguns de seus grafites já trataram de situações pode ser diferente dependendo de sem amarras. Não tem correntes. O
sempre vai mostrar o cara por trás do específicas de Sorocaba? Se sim, quem olha. cara faz o que quer. Nessa comunica-
desenho. Por mais abstrato que seja: quais eram essas situações? Rece- Will Ferreira: Uma vez teve uma greve de lixeiros, ção, ele está livre. É uma mídia aber-
você vai poder observar através das beu algum retorno do público com aqui em Sorocaba. Nessa época, fiz ta. Poderia ser comparado aos vlogs
cores, da intensidade, agressividade, impressões e comentários sobre a um de meus personagens com a e pessoal que se expressa nos vídeos.
tudo isso. obra? Como foi? máscara de palhaço, dentro de um Mas o grafite tem um impacto visual
latão de lixo. Aquele era o sorocaba- também. E o local onde é feito conta
Quando anda por Sorocaba, observa os olhares no, pagando seus impostos, mas sem muito para isso. Imagine um grafite
das pessoas para grafites e picha- a coleta de seu lixo. Foi algo simples, em frente a um museu, por exemplo.
ções? O que eles dizem? mas que, todos que viram, logo O museu é lugar que praticamente
ligaram ao fato social que estava nega o grafite como arte, o exclui.
Michel Japs: Sobre a pichação, não é pra ser bonita, acontecendo. É uma comunicação única, naquele
não vai ser elogiada por ninguém, só tempo e naquele espaço. Só o grafite
quem curte mesmo, que são poucos. Para você, qual a diferença das mensagens pode conseguir algo assim.
Já o grafite é uma coisa mais bonita, transmitidas através do grafite e as
então as pessoas costumam gostar outras correntes na grande mídia, Michel, em muitos de seus grafites, existe o
mais. O grafite impressiona muito por exemplo? Há uma comunica- mesmo personagem em diferentes
pela proporção. Uma mão gigante ção que só o grafite pode gerar? situações. Poderia nos falar sobre

120 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos A capa é de Sorocaba! Entrevista com Will Ferreira e Michel Japs 121
ele? Quem é? Como se sente? Seria principalmente. O ser humano está o
ele um sorocabano? tempo todo mentindo pra ele mes-
mo. Achando que ele é rico, que ele é
Michel Japs: O personagem que faço no momen- bom, que tem que ser isso ou aquilo.
to, antes de tudo, foi um desafio de Acaba sendo o tempo todo algo
criação, porque é um personagem que ele não é de verdade. Acredito
invisível. Apenas as roupas apare- que esses narizes realmente fazem
cem, são elas que dão contorno ao lembrar o Pinóquio, o que leva o ser
personagem. A ideia é questionar a humano a mentir e as consequências
necessidade que temos de manter de tudo. Acho que a dificuldade do
uma boa aparência, mas sem ter ser humano é ser verdadeiro consigo
conteúdo. O personagem é “vazio”, mesmo. É uma crítica que faço pri-
também, porque pode ser qualquer meiramente a mim. Falo como parte
um de nós ali, qualquer um pode da humanidade. Só tem sentido se
cair nessa e acabar se sentindo, no olho primeiro pra mim: falta muito
fim, um manequim do consumismo. pra que eu vire gente. Parar de men-
Nesse sentido, o personagem pode tir pra mim mesmo, assumir meus
muito bem ser um sorocabano, já erros, assumir aquilo que eu faço que
que nossa cidade vive essa realidade. estraga esse planeta, que estraga
As mensagens do consumo e da apa- nossa realidade, que detona nossa
rência são expostas para nós a todo cultura. As coisas que eu mesmo faço
momento na vida urbana. e não contribuem para uma humani-
dade melhor. É começar a desenhar
Will, em várias de suas obras, há narizes pecu- eu mesmo e me sentir dessa forma:
liares: são grandes e parecem de mentiroso mesmo. Pelo menos, assim
madeira, lembram o personagem já estou reconhecendo, e esse “nariz”
Pinóquio. O que falta para virar- já não vai crescer mais em mim. Esse
mos gente de verdade? personagem é cheio de símbolos,
mas o que mais as pessoas guardam
Will Ferreira: Falta tudo, eu acho. Falta o ser são o nariz e a máscara. Vai ver é o
humano fazer o que ele ama, o que que está doendo nelas. Acredito que
ele gosta. Parar de ser mentiroso é assim: a gente expressa na própria
consigo mesmo, olhar pra si próprio arte e reconhece na arte do outro
e conseguir se encarar, conseguir sempre o que mais dói na gente. Pelo
olhar para os próprios medos e erros, menos é assim comigo.

122 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos 123


SOBRE OS ORGANIZADORES SOBRE OS ORGANIZADORES

José Ferreira da Silva Neto Thífani Postali


Formado em comunicação social - É mestre em comunicação e cultura pela
publicidade e propaganda e mestre em Uniso e doutoranda em multimeios pela
comunicação e cultura pela Universidade Unicamp. No mestrado, desenvolveu
de Sorocaba. É fotógrafo atuante no pesquisas sobre a comunicação
mercado publicitário editorial, com popular, com ênfase nas manifestações
diversos trabalhos desenvolvidos musicais desenvolvidas nos espaços
para revistas, jornais e agências de urbanos. O trabalho resultou na obra
publicidade. Participou do projeto Terra “Blues e Hip Hop: uma perspectiva
Rasgada nas edições de 1995, 1996 e folkcomunicacional”, lançada em 2011.
1997. Coordenou várias oficinas de No doutorado, desenvolve pesquisas
fotografia, entre os anos de 1995 e 2012, sobre a representação do outro e dos
na Oficina Cultural Grande Otelo. Em espaços urbanos marginalizados no
2015, foi vencedor do prêmio Flávio documentário nacional. É professora
Gagliardi de fotografia, com o trabalho universitária e atua nas áreas de
“Refitar”. Possui obras que fazem parte comunicação e jogos digitais. Também
do acervo do MACS – Museu de Arte escreve artigos para jornais de Sorocaba
Contemporânea de Sorocaba. É também e Votorantim – textos que já resultaram
professor universitário nos cursos de em duas coletâneas em parceria com o
design, arquitetura e urbanismo, e Prof. Dr. Paulo Celso da Silva: “Cidade e
fotografia, de onde vem o interesse em Comunicação: a miopia sobre o mundo
investigar a cidade, a linguagem urbana e e outros textos” (2014) e “Cidade e
o que está por trás dela. Comunicação: a miopia sobre o mundo,
outros textos e olhares v.2” (2016).

124 Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Sobre os Organizadores 125


Entrelinhas da Pichação: Diálogos Sorocabanos Isabella Pichiguelli, revisora desse projeto.
Copyright © 2019 Jornalista e mestre em comunicação e
cultura pela Uniso. No jornalismo, iniciou
Realização na produtora de comunicação alternativa
Apoio Institucional Prefeitura de Sorocaba - Provocare (Sorocaba-SP), em programas
Secretaria de Cultura e Turismo Lei nº 11.066/2015. de rádio sobre cultura e educação, até
2010. Recebeu o Prêmio ASI/SCHAEFFLER
Organização de Direitos Humanos (Sorocaba-SP) na
Thífani Postali categoria Radiojornalismo: primeiro
José Neto lugar em 2009, e segundo lugar em 2010.
É revisora de textos, repórter e assessora
Fotografia de imprensa e acadêmica.
José Neto

Edição
Thífani Postali Carla Salles é formada em Comunicação
Social - Publicidade e Propaganda e
Revisão de texto mestre em comunicação e cultura pela
Isabella Pichiguelli Universidade de Sorocaba. Trabalha
com comunicação visual, nas áreas de
Projeto gráfico, diagramação e capa: identidade visual e design editorial.
Carla Bonfim de Moraes Salles Professora universitária no curso de
Design na Universidade de Sorocaba.
Uma das Idealizadoras do Projeto
Costurando Memórias.

Versão Digital

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