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Ética, Estética e Subjetividade

Ethics, Aesthetic and Subjectivity

Nilda Alves

RESUMO

O trabalho com imagem, narrativa e memória, em pesquisa desenvolvida nos últimos


três anos, tem permitido organizar o lugar da televisão na organização de processos
pedagógicos e curriculares em três gerações de professoras. Há aspectos que distinguem,
significativamente, as três gerações. Trataremos aqui, no entanto, de aspectos que
aproximam as narrativas das três gerações: 1) o primeiro deles se refere a uma forte relação
entre imagem e som; 2) o segundo aspecto se refere à constante referência a questão étnica
e racial. Estes dois aspectos serão discutidos quanto ao espaço/tempo que abrem para a
discussão da relação ética, estética e subjetividade, no cotidiano escolar, dentro das noções
de redes de conhecimentos e de tessitura de conhecimentos em redes, com apoio na idéias
de Michel de Certeau, e na compreensão de que somos uma rede de subjetividades criada
nos múltiplos contextos cotidianos nos quais vivemos, com apoio nas posições de
Boaventura de Sousa Santos.

Palavras-Chave: Redes de Conhecimentos; Imagem e Som; Memória e Narrativa

ABSTRACT

The work with image, narrative and memory in a research developed on the last three
years, has allowed the establishment of TV’s spot in the organization of pedagogical and
curricular processes in three generations of teachers. We will discourse, however, on the
aspects that bring the three generations together: 1) the first one refers to a solid relation
between image and sound; 2) the second aspect refers to the constant reference to the ethnical
and racial question. These two aspects will be discussed as for the space/time that open for
the debate about the ethical, aesthetical and subjectivity relation in the school quotidian,
within the ideas of knowledges nets and of knowledges nets weaving , supported by the
theory of Michel de Certeau and by the perception that we are a subjectivities net brought up
on the multiple daily contexts we live in, with the support of the ideas of Boaventura de
Sousa Santos.
Key Words: Knowledges Nets; Image and Sound; Memory and Narrative

SOBRE REDES DE CONHECIMENTOS E COTIDIANOS

Para falar do que quero falar, a partir dos dados reunidos em uma pesquisa (que seguiu a
outras também preocupadas com essas questões), creio ser necessário dizer que dois são os
modos que, hoje, se defrontam/complementam quanto à maneira de perceber como o
conhecimento e a subjetividade são produzidos: o primeiro é o dominante na sociedade
chamada moderna, sendo representado pela metáfora da árvore; o segundo, sempre existindo
2

nos espaçostempos1 da vida cotidiana, passa a ser assumido pelos setores econômicos,
científicos e sociais mais dinâmicos, a partir da década de 50 do século XX, e que é
representado pela metáfora da rede. “Tecer conhecimento em rede” é a forma possível para
indicar como, sempre, o conhecimento foi criado nos vários e diferentes contextos cotidianos
do viver humano, mesmo quando para se fazerem, a ciência e o poder econômico precisaram
dizer que os conhecimentos práticos só existiriam enquanto não fossem superados pelo
conhecimento verdadeiro, aquele produzido pela ciência, pela burocracia e em outros lugares
de poder. Esses conhecimentos práticos/de uso receberam a denominação genérica de senso
comum, não se reconhecendo neles a sua diversidade, multiplicidade e complexidade, nem as
possibilidades de mudança, em alguns casos, e de sua persistência, em outros. Esta visão foi
mostrando os seus limites e, no momento atual, concordamos que essa denominação é
insuficiente para discutir todos os conhecimentos cotidianos e os inúmeros significados que
adquirem na vida dos seres humanos.
A construção2 do conhecimento moderno, especialmente nos três últimos séculos,
coerente com todo o processo como se pensava e se construía a sociedade (na ciência, no
mundo do trabalho e na organização social mais ampla), se desenvolveu dentro da grafia
(imagem/representação/símbolo/noção/metáfora) da árvore na qual o trajeto é sempre
obrigatório, definindo-se por relações binárias (bifurcações, dicotomias etc). Nela o espaço é
inteiramente ordenado, sendo muito incorporado pela organização burocrática, da qual
explicita a estrutura, na maioria dos lugares onde é dominante (Lefebvre, 1983, p35)
Nessa maneira de pensar, construir o conhecimento (na escola e fora dela) vai estar
incluído em processos sociais amplos: a seleção, a hierarquização, a disciplinarização, a
normalização e a grupalização (Varela, 1994; Popkewitz, 1994; Foucault, 1991), pelos quais
tanto se organiza a sociedade como se busca compreendê-la. Desta maneira, não só nas
ciências, mas em toda a sociedade, a organização buscada vai ser aproximada à da árvore. No
mundo do trabalho, pouco a pouco, se estrutura uma organização que vai recebendo os
nomes de seus criadores e aperfeiçoadores, fazendo com que cheguemos, no século XX ao
chamado fordismo-taylorismo-keynnesianismo. Neste campo, por excelência, vão ser
estruturadas as normas de organização burocrática, sempre linear e hierarquizada. Na
organização social mais ampla, nos chamados movimentos sociais, vai ser também buscada

1
O uso desses termos juntos tem o sentido de discutir, na própria forma, a herança da dicotomização dos termos
que usamos na análise da sociedade.
2
A palavra construção vai grafada em itálico para informar que este é o auto-denominado processo moderno de
criação do conhecimento na ciência, que se opõe ao processo de criação de conhecimento no cotidiano que é a
tessitura.
3

uma estrutura que leva à construção dos mesmos dentro da metáfora da árvore. Surgem,
assim, os partidos políticos e os sindicatos, com o mesmo tipo de estrutura.
Mas desde sempre, é preciso lembrar, esses processos não se dão sem lutas. O tempo
todo, os homens e as mulheres buscaram fugir da sua lógica, através daquilo que Certeau
(1994) chama de táticas de praticantes. Mas, é somente a partir de meados do século XX que
os cientistas e os sujeitos de todos os campos culturais começam a discutir as maneira de
pensar e fazer cotidianamente nossas vidas. A própria aceleração da vida moderna (Vitrilio,
1995) exige mudanças nas maneiras de se compreender a forma como o conhecimento é
criado. Essas mudanças vão exigir o surgimento de uma nova metáfora de como se cria o
conhecimento - a rede. Nela é possível estabelecer um sem número de percursos para se ir de
um ponto a outro ponto, complexificando as lógicas de compreensão dos múltiplos
espaçostempos do viver humano, exigindo que esses sejam percebidos como não
completamente ordenados, nunca, porque fruto de múltiplas de diferentes práticas, em
permanente mudança (Lefebvre, 1983, p.35-36).
A grande diferença introduzida por esta nova forma está no critério dominante na
mesma e cujo referencial básico é a prática social. Por isto mesmo, se encontra, nos processos
de criação do conhecimento, a unidade práticateoriaprática3 que assim necessita ser escrita,
e não na fórmula dicotomizada anterior teoria - prática. O reencontro com o empírico, com
o cotidiano, com o uso - diferente do mero consumo (Certeau, 1994) - vai ser entendido como
necessário, permitindo a crítica e a busca de superação da linearidade hegemônica da
construção anterior. Para entender as possíveis múltiplas relações entre os contextos
cotidianos e as redes de conhecimentos, tenho feito apelo freqüente a Santos (2000) quando
nos lembra que somos uma rede de subjetividades formada pelas relações que estabelecemos
nos múltiplos contextos cotidianos nos quais vivemos e, especialmente, em seis deles: o
doméstico, o da produção, o de mercado, o da comunidade, o da cidadania e o da
mundialidade. É, exatamente, em cada uma dessas redes (e em todas as outras nas quais
existimos), bem como na rede de relações existente entre elas, em sua multiplicidade e
complexidade, que conhecemos. A cada um desses contextos correspondem formas próprias
de poder, uma certa unidade de prática social, bem como um modo de racionalidade, entre
componentes possíveis (Santos, 2000). Desse modo, nossa “formação/educação” cotidiana,
portanto, se faz em processos complexos (Morin,1994; 1996) e em contatos múltiplos e
diversos com saberes transversais (Guattari, 1995; Deleuze e Guattari, 1995). Mesmo quando

3
Da mesma forma que precisei escrever espaçotempo, achei necessário usar essa fórmula, como um termo único,
que permite compreender a unidade desse processo humana, com a prática tendo precedência e vindo após a
teoria.
4

em tempo de aceleração da desagregação e da exclusão – familiar, do mundo do trabalho, das


ações cidadãs e da violenta segregação espacial, neste mundo globalizado – é por estar/não
estar plenamente nesses espaçostempos que somos pensados como “integrados” ou
“marginalizados” e é neles e por eles que, também, aprendemos/nos ensinam a pensarmo-nos.
Desta maneira, é preciso que compreendamos que os cotidianos, com o escolar entre eles, só
podem ser entendidos se aceitamos trabalhar com a sua complexidade e com os tantos limites
– e também estímulos – que esta nos coloca.
Michel de Certeau (1994) dá pistas para que entendamos essa complexidade, quando
explica as artes de fazer, em seus trabalhos sobre as maneiras de viver e criar no cotidiano.
Ele afirma que para além do consumo, daquilo que é produzido/vendido pelos que organizam
o mundo e ao qual tentam reduzir homens e mulheres de todas as idades, é preciso
compreender o uso que os mesmos fazem de todos os produtos colocados no mercado para
serem consumidos, de idéias e conhecimentos a eletrodomésticos. Certeau indica, assim, que
no lugar das estratégias construídas pelos donos do lugar – espaço organizado pelo poder -
que podem ver do alto, os que vivem o cotidiano só podem criar táticas, vitais na ocupação do
próprio alheio - espaçotempo apropriado. Essas táticas, como são menos luminosas que as tão
iluminadas produções das estratégias e como não fazem tanto barulho quanto elas, são pouco
vistas e quase nada ouvidas, pelas lentes e pelos aparelhos de ouvir com que as próprias
estratégias nos habituaram.
Desta maneira, o reconhecimento e a aceitação desses fatos como parte do cotidiano
escolar exige que se afirme a necessidade de se entender, discutir e negociar com os múltiplos
conhecimentos tecidos nas e entre as várias redes já referidas e que estão muito além do
espaçotempo escolar, mantendo com ele inúmeras e variadas relações que precisamos
aprender a descobrir. Caso se queira mudar e fazer avançar os processos a que damos o nome
genérico de pedagogia, é preciso dar atenção a esse uso, buscando compreendê-lo e às lógicas
que o sustentam. Dentro desses contextos se faz indispensável, assim, perceber os múltiplos
processos educativos contraditórios. Cada aluno/aluna e cada professor/professora que entra
no espaçotempo escolar carrega consigo a rede de subjetividade que é. Ou melhor dizendo,
traz consigo as múltiplas redes nas quais vive, com seus diferentes processos de conhecer e
com os vários conhecimentos nelas criados, quer tenhamos ou não olhos para ver, ouvidos
para escutar, boca para saborear, nariz para cheirar, pele para tocar, ainda, essa complexa
situação.
A proclamação/defesa/criação de valores, esses conhecimentos tão especiais, por
exemplo, vai exigir processos educativos diferenciados em cada um dos contextos
mencionados e é preciso lembrar que os valores com sinal negativo são chamados
5

preconceitos. Como discuti-los e trabalhá-los na escola, talvez, seja o grande desafio, hoje,
aos que querem fazer dela espaçotempo crescente de solidariedade e ações democráticas.
O conjunto dos conhecimentos cotidianos, criados e trançados uns nos outros nos
múltiplos contextos cotidianos nos quais todos nós vivemos, forma o que pode ser chamado
de conhecimento praticado. No pensamento de Certeau (1994), o conhecimento praticado,
tecido nos múltiplos, inesperados e nada lineares contatos cotidianos, só pode ser criado pela
astúcia, já que não tem um espaço próprio. Mais ainda: Certeau lembra que a vida cotidiana
tem uma história muda até agora para nossos ouvidos surdos aos seus modos de dizer. Para
ouvi-la ou lê-la, como ele também indica, será como decifrar um palimpsesto4 pois o
cotidiano também tem uma história que vai se modificando e inscrevendo sobre outras. Isto
significa que existe uma memória que pode, com especial dificuldade é verdade, ser
recuperada. Neste sentido, Certeau (1994) recomenda que para ler e escrever a cultura
[comum]5, é mister reaprender operações comuns e fazer da análise uma variante do seu
objeto (p.35).
Discutindo com Foucault a análise que realizou, dando-lhe o crédito de uma obra
insubstituível, Certeau (1994) vai mostrar alguns pontos que adiantam a possibilidade do
estudo do cotidiano. O primeiro deles é que ao estudar a arqueologia do sistema panóptico
dominante, através do isolamento e de ultrapassagem de outras propostas, Foucault nos indica
a existência, de modo permanente, dessas propostas que precisam ser “vencidas” e
“ultrapassadas”. Certeau a este respeito diz que essas outras propostas poderiam ser
consideradas como imensa reserva constituindo os esboços ou os traços de ‘desenvolvimentos
diferentes’, que sempre existiriam. Dessa maneira, a coerência da proposta vencedora, a
panótica, é o efeito de um sucesso particular, e não a característica de todas as práticas
tecnológicas. Sob o monoteísmo aparente a que se poderia comparar o privilégio que
garantiriam para si mesmos os dispositivos panópticos, sobreviveria um ‘politeísmo’ de
‘práticas disseminadas’, dominadas mas não apagadas pela carreira triunfal de uma entre
elas (Certeau, 1994, p.115).
Um outro aspecto discutido por Certeau sobre a análise foucaultiana, perguntando se é
possível ir mais longe, indica que os dispositivos e procedimentos hegemônicos passam a sê-
lo na medida em que são capazes de realizar uma análise total da sociedade, de suas

4
O palimpsesto era o pergaminho que servia para escrever, durante a chamada Idade Média. Como era material
raro e caro o que nele era escrito era apagado e se reescrevia sobre ele, muitas vezes. Naturalmente, como não
havia técnicas de apagar bem, as mensagens anteriores continuavam marcando o pergaminho. Com isto é
possível ler as inúmeras mensagens que foram sendo escritas umas sobre as outras.
5
A palavra usada pelo tradutor é ordinária, de ordinaire como está no original. Esta palavra, no entanto, em
português tem uma conotação forte e diferente que não corresponde ao que o autor quer dizer. Eu, como muitos,
tenho preferido a palavra comum, que diz mais o que Certeau pretende dizer.
6

instituições e dos movimentos que nela se dão, a partir de sua própria lógica, ou seja, aquela
que os transformou em hegemônicos e que, portanto, será também hegemônica. Isto significa
que junto, nos mesmos processos, perde a capacidade de analisar e até mesmo admitir todas as
outras lógicas possíveis e existentes no mesmo espaçotempo, porque se apropriou dele e o
entende seu e, portanto, organizado dentro da sua lógica e possível de ler com o seu
‘alfabeto’. Em uma linguagem específica criada com a modernidade, é possível dizer que se
perde a condição de ver os outros procedimentos que não contam com um lugar próprio,
como o que a maquinaria panóptica detém. Deixa, até mesmo, de admitir a existência de
outros procedimentos, que se tornam inimagináveis. Certeau (1994) explica, então, que essas
técnicas [não hegemônicas], também operatórias, mas inicialmente privadas daquilo que fez
a força [da hegemônica], são as ‘táticas’(...) que [fornecem] um sinal formal às práticas
[comuns] do consumo [‘usando’ os produtos colocados à disposição] (p.117).
Por fim, chamando em sua ajuda Kant, lembrando que esse entende que há uma arte de
fazer na qual é preciso reconhecer uma arte de pensar (Certeau, p.152), Certeau vai enfatizar
que as noções de “procedimentos” em Foucault, “estratégias” em Bourdieu e táticas, nele
próprio, formam um campo de operações dentro do qual se desenvolve também a produção
da teoria, que esta não fica, portanto, do lado de fora nem pode ser vista como dicotomizada,
formando, isto sim, a unidade práticateoriaprática.

OS CONTATOS DE TRÊS GERAÇÕES DE PROFESSORAS COM A TELEVISÃO

No projeto, sob o título Memórias de professoras6 sobre televisão: a reprodução,


transmissão e criação de valores na relação escola-televisão, tivemos como objetivo
compreender as “relações entre cotidiano escolar e televisão na reprodução, transmissão e
criação de valores”, através das memórias de professoras, articulando processos de pesquisa
que incorporaram: a historicidade destas relações e dos contextos cotidianos nos quais estão
mergulhadas; a complexidade das redes de poderes e saberes na qual se dão socialmente essas
relações; a diversidade cultural expressa nesta complexidade. Nele, trabalhamos com três
gerações de professoras: desde as que estavam na escola, como alunas, quando a televisão foi
implantada no Brasil (1950) até as que, se formando hoje no curso de pedagogia, já atuam
como professoras em alguma escola. Nesse período de 50 anos, o contato com a televisão (e
múltiplas outras tecnologias) passou de esporádico para diário, nos múltiplos contextos
cotidianos, trazendo transformações e permitindo permanências que exigem estudos e

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O uso do termo no feminino tem uma intenção política: indicar que esse é um grupo feminino por excelência e
que isto tem importância nos modos como as práticas são exercidas nesse cotidiano.
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pesquisas intensos, buscando compreender, através da memória dos praticantes do cotidiano,


em suas narrativas sobre os contatos mantidos, os modos como as tecnologias foram usadas,
no sentido que a este termo dá Certeau (1994). A pesquisa, antes de mais nada permitiu
compreender que, mesmo quando um artefato cultural, como a televisão, não está
fisicamente, na escola, como vivemos em redes cotidianas, sua influência vai ser sentida nos
processos pedagógicos que são desenvolvidos. Essa influência pode ser percebida em táticas
que levam tanto à repetição de modelos vistos, como ainda à crítica desse modelo, chegando a
táticas que buscam superar modelos impostos.
Quanto à primeira geração, pudemos perceber que a relação com a televisão se dá de
modo muito lento, mas marcante. Nela, o contexto familiar joga um papel gregário e de
decisão quanto ao momento em que se pode ver e quanto ao conteúdo ‘conveniente’ a ser
visto. Assim, ver televisão se dá em geral com parentes e aos mais jovens é permitido vê-la,
somente, em alguns dias bem determinados e quanto a programas escolhidos pelos mais
velhos. Com a televisão se organizando, no Brasil, várias referências foram feitas a uma
relação direta de participação em programas e mesmo responsabilidade em partes de
programas ou de um programa inteiro – o contato com o ‘pessoal’ de televisão é
extremamente facilitado, o que permite essas práticas, mostrando que não existiam muitas
barreiras entre o mundo aqui de fora e o mundo virtual que estava sendo organizado. Na
escola, eram feitos processos pedagógicos que tentavam copiar programas de sucesso na
televisão e, algumas vezes, pessoas que atuavam na televisão eram chamadas para irem a
escola (e iam), ao mesmo tempo em que atividades organizadas na escola eram mostradas
em programas especiais.
Quanto à segunda geração, as narrativas falam de maneira muito mais clara da fruição
de se ver televisão, sendo que a família é pouco lembrada nos encontros com a mesma, o
que deixa entrever que esse artefato passa a ter o acesso permitido para crianças e jovens
sem mediações freqüentes. Discute-se, de modo extremamente prazeiroso, as lembranças
sobre programas assistidos por todos daquela geração, mostrando uma lembrança comum de
programas especiais para as faixas de idade. Já há referências críticas ao uso que ‘certos
professores’ faziam de ‘certos’ programas de televisão, introduzindo-se na conversa um
vigoroso tom de crítica ao meio, ao lado do entusiasmo de ver televisão (para cada um). Ou
seja, o artefato continua a ser percebido como necessário no contexto familiar, sem ser
aceito no cotidiano escolar e aí precisando ser criticado ou, em outras palavras, é muito bem
visto como fruição individual, em casa, mais considerado medíocre para entrar na escola. Os
professores dessa geração, na discussão desenvolvida, perceberam que o apreço que
demonstravam no seu uso, sempre crítico mesmo na fruição que dele faziam, indicava que o
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artefato neles se encarnava e que, portanto, com eles entravam no espaçotempo escolar,
mesmo sem que percebessem.
Quanto à terceira geração, estando em formação, em um curso de excelência e sendo
aquela que foi beneficiada com uma metodologia que propunha o uso de tecnologia que
envolvia a criação de um vídeo, os grupos pesquisados apresentaram, antes de mais nada,
uma posição crítica, que demonstrava algum tipo de leitura e discussão, em múltiplos
contextos cotidianos, sobre a questão do uso desse artefato cultural, ao lado de, a todo
momento, expressão de ‘lugares comuns’ que em suas posições existiam, sobre a televisão.
Propiciaram, de outro lado, uma denúncia permanente da quase inexistência do uso de
tecnologias criativas no curso que estavam fazendo, embora muito se falasse da necessidade
de seu uso e se criticasse a falta dele pelos professores de outros níveis de ensino. Nessa
situação contraditória, houve uma grande dificuldade, por parte de algumas
alunas/professoras em admitir que a tecnologia pode ter um papel nos processos
pedagógicos, ao lado de um grande entusiasmo, por parte de outras, com a possibilidade de
usar e criar um vídeo, para muito além do consumo a que se julgavam fadadas, por
experiências anteriores mal sucedidas.
Dentro desse quadro de diferenças importantes entre as três gerações, dois aspectos se
destacaram pois se mostraram igualmente presentes nas narrativas feitas. O primeiro deles
se refere a uma forte relação entre imagem e som: na primeira geração há um esforço
grande em lembrar as músicas que identificavam cada programa visto e referências
múltiplas aos festivais de música de que participaram como espectadoras e organizadora, em
um caso; na segunda geração, assim que alguém lembrava de um programa visto, todos
começavam a cantar as músicas tocadas no início e que eram identificadoras do(s)
personagem(ens) principal(ais), além de lembrarem de inúmeros especiais de música; na
terceira geração, na criação de cada vídeo, há uma exigência pelo som, tanto quanto ao que
as vozes dizem quanto às músicas a serem introduzidas, em certos momentos, chegando a
ser composta uma música especial, no caso do primeiro vídeo, por uma aluna/professora que
participou do mesmo. Esse aspecto nos fez procurar compreender que na memória sobre os
cotidianos, nesse mundo que sempre nos pareceu imagético, por excelência, talvez o som
ocupe um lugar que precisa ser investigado mais a fundo, pela importância que a ele dão os
praticantes do cotidiano.
O segundo aspecto se refere à constante referência a questão étnica e racial: na
primeira geração, ao ser lembrado um casal formado por dois artistas conhecidos que se
pintavam de preto para cantar e dançar músicas populares, seguiu-se uma grande discussão
sobre como essa questão ainda não estava superada na televisão, sendo lembrados inúmeros
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acontecimentos relacionados à questão, assistidos por algumas das participantes da


“conversa”; na segunda geração, a referência aparece quando se fala de alguns personagens
do Programa “Sítio do Pica-pau Amarelo”, em sua primeira versão, assistida por todos
(chega-se mesmo a sugerir que alguém desenvolva uma comparação entre a versão que
assistiram e a que ia começar a passar na rede Globo, naquele momento, quanto a essa
questão); a terceira geração também lembrou de alguns incidentes na televisão, com
comentários muito próximos aos que foram feitos pela primeira geração. Esse aspecto nos
fez levantar a possibilidade de que os processos de discussão que temos hoje sobre a questão
racial e étnica, nos tantos cotidianos vividos, vêm influenciando de maneira decisiva a
memória dos usuários da televisão, fazendo com que notem aspectos que, provavelmente,
no momento em que assistiram aos programas lembrados, não se deram conta. Essa idéia
corrobora aquela dos que trabalham com memória e indicam que esta está sempre em
tessitura, em processo, em atualização, mudando sempre, indicando que nossas práticas a
influenciam. O que poderá isto significar para a necessária superação dos preconceitos
desenvolvidos na sociedade brasileira, desde os tempos coloniais?
Os dois últimos aspectos nos indicam, também, a importância dos artefatos culturais
para a formação e os processos freqüentes de mudança do que chamamos subjetividade,
pois se encarnam nos praticantes do cotidiano. Por outro lado, mostram os modos como,
em nossas práticas cotidianas no uso desses artefatos, estão enredadas questões éticas e
estéticas complexas. Por fim, entendo ser necessário afirmar que os estudos dos cotidianos
em que vivemos, bem como de suas relações, exigem modos diferentes daqueles que
herdamos da modernidade na busca de compreensão das lógicas presentes (Alves e Oliveira,
2001), talvez, como nos indicava Certeau (1994), antes, reaprendendo operações comuns e
fazendo da análise uma variante do seu objeto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tadeu (org). Sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994: 173 - 210.
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