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David Lynch não perde a cabeça

1. Sobre que filme fala este texto

A estrada perdida, de David Lynch, escrito por Lynch e Barry Gifford, com Bill Pullman, Patricia
Arquette, Balthazar Getty. Financiado pela CIBY 2000, da França. © 1996, de uma certa
Asymmetrical Productions, empresa de David Lynch, sediada bem ao lado da casa do próprio
Lynch nas colinas de Hollywood e cujo logo, desenhado por ele, é um gráfico bem bacana que tem
essa cara:

(inserir LOGO, Thiago)

A Estrada perdida se passa em Los Angeles e no terreno meio desértico do interior imediatamente
vizinho. A filmagem de verdade vai de dezembro de 95 a fevereiro de 96. Lynch normalmente
mantém seu set de filmagem fechado, com esquemas de segurança redundantes e um ar de segredo
quase maçônico cercando a produção de seus filmes, mas eu sou aceito no set de A estrada Perdida
entre 8 e 10 de janeiro de 1996. E isso não só porque eu sou um fã fanático de David Lynch desde
sempre, embora eu tenha tornado público meu fanatismo pró-Lynch quando o pessoal da
Asymmetrical estava tentando decidir se deixava um escritor entrar no set. O fato é que me
deixaram entrar no set de A estrada perdida por causa do poder comercial da revista Premierei, e
porque Lynch e a Asymmetrical tem bastante coisa em jogo neste filme e eles provavelmente
acham que não podem se entregar a sua alergia a RP e à Máquina da Mídia com o mesmo empenho
do passado.

2. Como é David Lynch, de verdade

Eu não tenho a mais remota idéia. Eu raramente cheguei a menos de dois metros dele e nunca falei
com ele. Um dos motivos menores que levaram a Asymmetrical Productions a me deixar entrar no
set é que eu nem finjo que sou jornalista e não tenho nem idéia de como se entrevista alguém e não
via muito sentido em tentar entrevistar David Lynch, o que acabou perversamente se revelando
uma vantagem, porque Lynch enfaticamente desejava não ser entrevistado enquanto A estrada
perdida estava em produção, porque quando está rodando um filme ele fica incrivelmente ocupado e
preocupado e concentrado e tem muito pouco espaço encefálico para qualquer coisa que não seja o
filme. Isso pode parecer bobagem de RP, mas acaba que é verdade... p. ex.:

Na primeira vez em que eu ponho os olhos propriamente ditos no verdadeiro David Lynch no set
de filmagem ele está fazendo xixi em uma árvore. Eu não estou brincando. Isso foi no dia 8 de
janeiro, no parque Griffith, no leste de Los Angeles, onde estão sendo rodadas algumas das
externas e das cenas com carros de A estrada perdida. Lynch está parado no matinho espinhento que
cerca a estrada de terra entre os trailers do Acampamento Base e o set, fazendo xixi em um pinheiro
anão. O senhor David Lynch, prodigioso bebedor de café, aparentemente mija muito e sempre, e
nem ele nem a produção podem arcar com o tempo que levaria para ele correr até a comprida fila
de trailers do Acampamento Base, até o trailer onde ficam os banheiros, cada vez que precisasse
urinar. Assim, minha primeira visão de David Lynch é apenas pelas costas e (compreensivelmente)
de uma certa distância. O elenco e a equipe de A estrada perdida basicamente ignoram o xixi em
público de David Lynch e o ignoram de uma forma relaxada ao invés de tensa ou desconfortável,
mais ou menos como a gente ignora o xixi livre, leve e solto de uma criança ao ar livre.

3. entretenimentosii que David Lynch criou/dirigiu e são mencionados neste artigo


Eraserhead (1977), O homem elefante (1980), Duna (1984), Veludo Azul (1986), Coração Selvagem (1989),
as duas temporadas transmitidas de Twin Peaks (1990-1992), Twin Peaks: os últimos dias de Laura
Palmer (1992) e o piedosamente abortado programa televisivo On the Air (1992)

6. de que trata A Estrada perdida, aparentemente

Segundo o texto do próprio Lynch na folha de rosto do roteiro de divulgação, o filme é

Um filme noir de horror do século 21

Uma investigação gráfica das crises de identidades paralelas

Um mundo em que o tempo está perigosamente descontrolado

Um passeio aterrador pela estrada perdida

o que de repente é meio exagerado, literariamente falando, mas provavelmente foi colocado lá
como um chamariz ultra-conceitual para distribuidores em potencial ou coisa assim. A segunda
linha da arenga é o que mais se aproxima de descrever A estrada perdida, embora “crises de
identidades paralelas” pareça meio que um jeito chique de dizer que o filme é sobre alguém
literalmente virando outra pessoa. E isso, apesar das muitas coisas novas e diferentes a respeito de
A estrada perdida, torna o filme quase classicamente lynchiano: o tema das identidades
múltiplas/ambíguas é uma marca quase tão registrada de David Lynch quando ominosos ruídos de
ambiente em suas trilhas sonoras.

7. o último pedacinho de (6) usado como gancho para um rápido esboço da gênese de
Lynch como artista heróico

Por mais que seus filmes se preocupem com fluidezes de identidade, David Lynch continuou
impressionantemente a ser ele mesmo durante toda sua carreira de cineasta. Provavelmente seria
possível argumentar nos dois sentidos – que Lynch não se acomodou/vendeu, ou que não cresceu
tanto assim em vinte anos fazendo filmes – mas continua inquestionável que ele se manteve firme
em sua visão tremendamente pessoal e em sua abordagem do cinema, e que para isso fez
significativos sacrifícios. “Porque, tenha dó, David podia fazer filmes para qualquer um”, diz Tom
Sternberg, um dos produtores de A estrada perdida. “Mas David não faz parte do processo de
Hollywood. Ele é que escolhe o que quer. Ele é um artista.”

6a. mais especificamente – a se julgar pelo roteiro e pela primeira montagem – de que trata
A estrada perdida, aparentemente

Em sua encarnação de-primeira-montagem, o filme começa em movimento, ao volante com aquele


tipo de perspectiva frenética do ponto de vista do motorista que nós conhecemos de Veludo Azul e
Coração Selvagem. É uma rodovia à noite, duas pistas, pequena, e nós seguimos pelo meio da estrada,
com a segmentada linha central piscando estroboscopicamente logo abaixo do nosso foco. A
seqüência tem uma fotografia linda e foi rodada em “meia velocidade”, seis quadros por segundo,
de modo que temos a sensação de estar andando realmente muito rápido. Nada está à vista na luz
dos faróis; o carro parece estar correndo no vazio; a seqüência, portanto, é hipercinética e estática
ao mesmo tempo. A música tem sempre uma importância vital para os filmes de Lynch e A estrada
perdida pode abrir novos caminhos para ele porque o tema de sua abertura é na verdade pós-anos-
50; trata-se de uma onírica peça de David Bowie chamada “I’m Deranged”iii. Um tema musical
muito mais adequado ao filme, no entanto, na minha opinião, seria a recente “Be My Head”iv dos
Flaming Lips, porque saca só:
Bill Pullman é um saxofonista de jazz cuja relação com a mulher, uma Patricia Arquette morena, é
medonha, obscura e cheia de tensões tácitas. Eles começam a receber pelo correio fitas de vídeo
incrivelmente misteriosas deles dormindo ou do rosto de Bill Pullman olhando para a câmera com
uma expressão grotescamente apavorada etc.; e eles estão surtando, compreensivelmente, porque
consideram bem óbvio que alguém anda invadindo a casa deles à noite e filmando os dois; e eles
chamam a polícia, que aparece na casa deles sob a forma de dois sujeitos que acabam se revelando,
no melhor estilo David Lynch, nada mais que ineptas válvulas de escape de clichês da era Dragnetv.

Enfim, enquanto a coisa dos vídeos medonhos se desenrola aparecem também umas cenas de
Pullmann todo chique à la East Villagevi, todo de preto e improvisando em seu sax tenor diante de
uma pista de dança lotada (só em um filme de David Lynch alguém dançaria extaticamente ao ritmo
de um jazz abstrato), e diante de uma Patricia Arquette que parece inquieta e infeliz de uma forma
meio sedada, desligada e de modo geral sendo medonha e misteriosa e deixando bem claro que tem
meio que uma vida dupla, que envolve uns sujeitos decadentes, do tipo que parasita bares e festas,
uns sujeitos que sem sombra de dúvida Bill Pullmann não aprovaria nem um pouquinho. Uma das
cenas mais sinistras do primeiro ato do filme acontece em uma festa hollywoodiana decadente,
oferecida por um dos misteriosos amigos parasíticos de Patricia Arquette. Na festa, Bill Pullmann é
abordado por alguém que o roteiro identifica apenas como “O Homem Misterioso”, que sustenta
não apenas ter estado na casa de Bill Pulman e Patricia Arquette, mas estar lá na casa deles neste
exato momento, e aparentemente está mesmo, porque ele puxa um celular (o filme está cheio de
toques losangelinos geniais, tipo todo mundo ter um celularvii) e convida Bill Pullman a ligar para
sua casa, e Bill Pullman tem uma conversa extremamente sinistra, a três, com o Homem Misterioso
na festa e a voz do mesmo Homem Misterioso em sua casa. (Quem faz o papel do Homem
Misterioso é Robert Blake, que por falar nisso se prepare para Robert Blake neste filme... cf. infra)

Mas então aí, no carro, voltando da festa, Bill Pullman critica os amigos decadentes de Patricia
Arquette mas não menciona especificamente a conversa sinistra e metafisicamente impossível que
ele acabou de ter com um sujeito em dois lugares, o que me parece que deve reforçar a nossa
impressão de que Bill Pullman e Patricia Arquette não estão exatamente confiando um no outro
neste ponto de sua relação. Essa impressão é reforçada ainda mais em algumas cenas sexuais bem
sinistras em que Bill Pullman faz sexo frenético e miado com uma Patricia Arquette que fica só
deitada lá, vazia e inerte, e que só falta olhar para o relógio.1

Mas aí então o ápice do primeiro ato de A estrada perdida é que aparece no correio um último vídeo
climático e misterioso, que mostra Bill Pullman de pé sobre o corpo mutilado de Patrícia Arquette –
o que nós só vemos no vídeo. E então Bill Pullman é preso e condenado e posto na corredor da
pena de morte.

Aí vem algumas cenas de Bill Pullman no corredor da morte em uma instituição penal, com uma
expressão tão torturada e perdida quanto a de qualquer protagonista de filme noir em qualquer
momento da história do cinema, e parte desse tormento é que ele está tendo terríveis dores de
cabeça e seu crânio está começando a inchar em diferentes lugares e de forma geral a ficar
realmente dolorido e esquisito.

Aí vem uma cena em que a cabeça de Bill Pullman vira a cabeça de Balthazar Getty. Tipo o
personagem de Bill Pullman em A estrada perdida vira outra pessoa, bem outra, alguém representado
por Balthazar Getty de O senhor das moscas, que mal saiu da puberdade e nem sequer lembra Bill

1Cenas de sexo que são sinistras em parte porque são exatamente o que o próprio espectador imagina que
seria fazer sexo com Patrícia Arquette.
Pullman. A cena é indescritível e eu nem vou tentar descrevê-la a não ser para dizer que ela é tão
pavorosa e fascinante e totalmente indescritível quanto qualquer coisa que eu já tenha visto em um
filme americano.

A administração da instituição penal fica compreensivelmente desorientada quando vê Balthazar


Getty na cela de Bill Pullman, ao invés de Bill Pullman. Balthazar Getty não é capaz de ajudar a
explicar como chegou até ali, porque está com um hematoma imenso na testa e seus olhos rolam de
um lado para o outro e ele está basicamente no estado meio tonto em que você pode imaginar
alguém quando a cabeça de uma outra pessoa acabou de virar sua cabeça. As autoridades penais
identificam Balthazar Getty como um mecânico de automóveis de Los Angeles, de 24 anos de
idade, que mora com os pais, que aparentemente são um motociclista aposentado e uma
motoqueira-chique. O que quer dizer que ele é um outro ser humano válido e identificável,
completamente, com uma identidade e uma história, ao invés de ser apenas Bill Pullman com uma
cabeça nova.

Ninguém jamais escapou do corredor da morte dessa prisão, aparentemente, e as autoridades penais
e os policiais, incapazes de imaginar como Bill Pullman escapou, e recebendo pouco mais que
piscadelas entontecidas de Balthazar Getty, decidem (em um passo cujo realismo judicial pode ser
um pouco fajuto) deixar Balthazar Getty simplesmente ir para casa. O que ele faz.

Balthazar volta para seu quarto cheio de peças de moto e pôsteres adesivos de catálogos de
ferramentas e lentamente recupera o juízo, embora ainda tenha o que agora parece ser um
furúnculo horrendo na testa e não tenha idéia do que aconteceu ou de como ele tenha acabado na
cela de Bill Pullman, e ele anda à toa pela casa cafona de seus pais com uma expressão facial que é a
manifestação visual da sensação de um pesadelo. Há algumas cenas dele fazendo coisas como
observar uma senhora pendurar roupa enquanto soa um ominoso ruído de baixa freqüência, e os
olhos dele têm a aparência de que há algum fato atemporalmente monstruoso que lhe escapou da
memória e ele simultaneamente quer e não quer lembrar. Seus pais – que fumam drogas e assistem
um monte de televisão e se entregam a uma espécie de sussurro conspiratório e a uns olhares
sinistros, como se soubessem de coisas importantes que Balthazar e nós não sabemos – não
perguntam a Balthazar Getty o que aconteceu... e mais uma vez ficamos com a impressão de que os
relacionamentos neste filme não são o que você poderia chamar de abertos e francos etc.

Mas acaba se revelando que Balthazar Getty é um mecânico profissional incrivelmente talentoso
cuja falta foi agudamente sentida na oficina em que trabalha – sua mãe aparentemente disse ao
empregador de Balthazar Getty, papel de Richard Pryor, que a ausência de Balthazar Getty se devia
a uma “febre”. A esta altura ainda não sabemos ao certo se Bill Pullman foi real e verdadeiramente
metaforseado em Balthazar Getty ou se toda essa coisa de virar Balthazar Getty está acontecendo
somente na cabeça de Bill Pullman, como que uma prolongada alucinação-de-extrema-tensão-pré-
execução à la Brazil: o filme, de Terry Gilliam, ou “Occurrence at Owl Creek Bridge”, de Bierceviii. Mas os
indícios de uma metamorfose literal crescem no segundo ato do filme, porque Balthazar Getty tem
uma vida e uma história plenamente válidas, incluindo uma namorada que fica olhando de forma
suspeita para o demoníaco furúnculo testal de Balthazar Getty e dizendo que ele “não parece ele
mesmo”, o que com a repetição deixa de ser um arqui-trocadilho e se torna legitimamente
assustador. Balthazar Getty também tem uma clientela fiel na oficina de Richard Pryor, sendo que
um deles, o personagem de Robert Loggia, é uma figura de chefão mafioso extremamente sinistra e
ameaçadora, com uns sujeitos acapangados e um Mercedes 6.9 com problemas esotéricos cujos
diagnóstico e conserto ele confia apenas a Balthazar Getty. Robert Loggia claramente tem uma
história com Balthazar Getty e trata Balthazar Getty com uma sinistra mistura de afeição avuncular
e ferocidade condescendente. E então em um certo dia, quando Robert Loggia estaciona na oficina
de Richard Pryor com seu problemático Mercedes 6.9, sentada no carro com os capangas de Robert
Loggia está uma menina incrivelmente linda, do tipo Bonnie (and Clyde), um papel representado
por Patrícia Arquette e nitidamente reconhecível como a mesma pessoa, ou seja, a mulher de Bill
Pullman, a não ser que agora ela é loura platinada. (Se você está pensando em Um corpo que cai aqui
você não está muito longe. Lynch tem todo um histórico de fazer alusões e homenagens a
Hitchcock – p.ex.: o primeiro take de Kyle MacLachlan em V.A., espiando Isabella Roselini pelas
frestas da gelosia da porta do armário dela é idêntico em cada detalhezinho técnico ao primeiro take
de Anthony Perkins espiando as abluções de Janet Leigh em Psicose – que são mais como que pedras
de toque intertextuais que alusões propriamente ditas, e são sempre conduzidas de formas esquisitas
e sinistras e unicamente lynchianas. Enfim, a alusão a Um corpo que cai parece aqui menos importante
que a forma com que a duplicidade Duessiana de Patrícia Arquette funciona como contraponto à
outra “crise de identidade” do filme: eis duas mulheres diferentes (por enquanto) representadas pelo
que é nitidamente a mesma atriz, enquanto que dois atores diferentes representam o que é ao
mesmo tempo a mesma “pessoa” (por enquanto) e duas “identidades” diferentes.)

E mas então quando a nova encarnação operária Balthazargettyana de Bill Pullman e a aparente
encarnação loura e Patriciarquettiana da mulher de Bill Pullman trocam um olhar, geram-se faíscas
que emprestam ao desgastado componente “parece-que-eu-te-conheço-de-algum-lugar” da atração
erótica camadas totalmente novas de sinistra literalidade. Aí vem umas cenas que completam a
história baixo-nível da nova encarnação loura de Patricia Arquette, e umas cenas que deixam
abundantemente claro que Robert Loggia é um absoluto psicopata com quem definitivissimamente
não se deve mexer e com cuja namorada não se deve brincar por trás de cujas costas, dele. E aí nós
vemos umas cenas que mostram que Balthazar Getty e a Patricia Arquette loura ficaram – apesar,
aparentemente, do furúnculo testal de Getty – instantânea e ferozmente atraídos um pelo outro e aí
mais umas cenas onde eles consumam essa atração com todo o pesado vigor vazio e sem afeto pelo
qual são famosas as cenas de sexo de David Lynch.2

E aí vem mais umas cenas que revelam que o personagem de Robert Loggia também tem mais de
uma identidade no fime e que ao menos uma dessas identidades conhece tanto o misterioso amigo
decadente e parasítico da falecida mulher de Bill Pullman quanto o mefistofélico Homem Misterioso,
com quem Loggia começa a fazer sinistras e ambíguas ligações ameaçadoras para a casa de
Balthazar Getty, ligações que Balthazar Getty tem de ouvir e tentar interpretar enquanto seus pais
(representados por Gary Busey e uma atriz chamada Lucy Dayton) fumam maconha e trocam
misteriosos olhares significativos diante da TV.

Provavelmente é melhor não entregar muito do ato final de A estrada perdida, embora você talvez
deva estar ciente de: que as intenções da Patricia Arquette loura para com Balthazar Getty se
revelam menos que honrosas; que o furúnculo de Balthazar Getty se cura quase totalmente; que Bill
Pullman realmente reaparece no filme; que a Patricia Arquette morena também reaparece, mas não
em (por assim dizer) carne e osso; que tanto a Patricia Arquette loura quanto a Patricia Arquette
morena revelam-se envolvidas (via amigos parasitóides) com o mundo da pornografia, tipo hardcore,
um envolvimento cujos frutos em vídeo são exibidos (ao menos na primeira edição) em tantos
detalhes que eu não vejo como o filme de Lynch posa escapar de uma censura NC-17ix; e que o fim
de A estrada perdida está muito longe de ser “feliz” ou “reconfortante”. E também que Robert Blake,

2 Uma característica vazia e como que sedada que deixa as cenas de sexo simultaneamente “quentes”
sexualmente e “frias” esteticamente, uma espécie de efeito meta-erótico que você pode ver Gus van Sant
tentando emular quando filmou as cenas de sexo de Garotos de programa como uma série de fotogramas
estáticos de posturas complexas, o que, ao invés de lhes dar a sinistra característica sedada de Lynch fez com
que parecessem mais ilustrações do Kama Sutra.
conquanto algo mais contido e quase delicado que Dennis Hopper em Veludo Azul é no mínimo tão
fascinante e medonho e inesquecível quando era o Frank Booth de Hopper, e que seu Homem
Misterioso é bem claramente o demônio, ou pelo menos a idéia muito perturbadora que alguém
tem do demônio, uma espécie de puro espírito flutuante de malevolência à la
Leland/“Bob”/Coruja assustadora de Twin Peaks.

6b. quantidade aproximada de formas em que parece possível interpretar A estrada perdida

Mais ou menos 37. A grande encruzilhada interpretativa, já mencionada, parece ser se devemos
ingerir a repentina mudança inexplicada na personalidade de Bill Pullman pura (ou seja, como
literalmente real dentro do filme), ou como uma metáfora kafkiana de culpa e negação e evasão
psicológica, ou se devemos ver a coisa toda – dos vídeos invasivos, passando pela condenação à
morte, até chegar a mecânico etc – como um alonga alucinação de parte de um elegante saxofonista
de jazz que podia muito bem tirar proveito de uns remedinhos receitados por um profissional; a
possibilidade menos interessante parece ser a última, e eu ficaria muito surpreso se alguém da
Asymmetrical desejar que A estrada perdida seja interpretado como um longo sonho psicótico.

Ou a trama do filme podia, por ainda outro lado, ser simplesmente incoerente e não fazer qualquer
sentido racional e não ser nem remotamente interpretável convencionalmente. Isso não faria dele
necessariamente um mau filme de David Lynch: a lógica onírica de Eraserhead faz com que ele seja
uma “narrativa” apenas de uma forma muito frouxa e não-linear, e grandes trechos de Twin Peaks,
série e filme, não fazem sentido de fato e mesmo assim são instigantes e plenos de sentidos e
basicamente legais pacas. Parece que Lynch só se encrenca quando seus filmes dão ao espectador a
impressão de que querem fazer sentido – ou seja, quando preparam o espectador para esperar
alguma espécie de conexão coerente entre elementos da trama – e aí fracassam em apresentá-la. Os
exemplos aqui incluem Coração selvagem – onde as conexões entre Santo e Mr Reindeer (o fulano
com jeito de Coronel Sandersx que encomenda assassinatos enfiando dólares de prata pelas fendas
das caixas de correio de assassinos de aluguel) e o personagem de Harry Dean Stanton e a morte do
pai de Lula são intricadamente preparadas e aí não dão em nada, seja visualmente ou narrativamente
– e a primeira meia-hora de Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, que mostra o FBI
investigando o assassinato pré-palmeriano de uma outra menina e nos deixa preparados para pensar
que ele vai ter importantes conexões com o caso Palmer, e ao invés disso se mostra cheia de dicas
perdidas e pistas que levam a nada, e é a parte do filme que mesmo críticos pró-Lynch escolheram
para tratar com especial selvageria.

Já que isso pode ter relação com a qualidade final do filme, fique sabendo que A estrada perdida é o
filme mais caro que Lynch já fez por conta própriaxi. Seu orçamento é de algo como dezesseis
milhões de dólares, o que é três vezes o de Veludo Azul e pelo menos 50% maior tanto que o de
Coração selvagem quanto que o de Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer.

Mas então, a esta altura, é provavelmente impossível dizer se A estrada perdida vai ser uma roubada
da escala de Duna ou uma obra-prima do calibre de Veludo azul ou alguma coisa no meio do
caminho ou sei lá o que mais. A única coisa que eu sinto que posso dizer com total confiança é que
o filme vai ser: Lynchiano.

8. o que quer dizer Lynchiano e porque isso é importante

Uma definição acadêmica de Lynchiano poderia dizer que o termo “se refere a um tipo singular de
ironia em que o puramente macabro e o puramente prosaico se combinam de forma a revelar a
perpétua existência daquele neste”. Mas, como pós-moderno ou pornográfico, lynchiano é uma daquelas
palavras do tipo Potter-Stewart, que só são definiíveis por ostentação – ou seja, nós sabemos
quando vemosxii. Ted Bundy não era particularmente lynchiano, mas o bom e velho Jeffrey
Dahmer, com as diversas anatomias de suas vítimas cuidadosamente separadas e armazenadas em
sua geladeira junto com seu leite achocolatado e sua margarina, era lynchiano a dar com o pau. Um
recente homicídio em Boston, em que o diácono de uma igreja de South Shore perseguiu um
veículo que lhe tinha dado uma fechada, forçou o carro a sair da estrada e matou o motorista com
uma balestra de alta potência, era limítrofe.

Um homicídio de tipo doméstico, por outro lado, poderia estar em vários pontos ao longo do
contínuo do lynchianismo. Um sujeito matar a esposa, sozinho e por si só, não tem muito sabor
lynchiano, embora caso venha à tona que ele matou a esposa por causa de algo como uma
persistente incapacidade de encher a forma de gelo depois de tirar o último cubo ou uma obstinada
recusa a comprar uma determinada marca de manteiga de amendoim de que o sujeito era devoto,
possa-se dizer que o homicídio tinha elementos lynchianos. E se o sujeito, sentado sobre o corpo
mutilado da esposa (cujo enorme penteado retrô anos 50, no entanto, está curiosamente em
ordem), com os primeiros policiais já na cena do crime enquanto todos esperam pelos rapazes da
Homicídios e do escritório do legista, começa a defender seus atos pronunciando uma detida
análise comparativa dos méritos de Jif e Skippyxiii, e se os policiais da ronda, conquanto sentindo
repulsa pela carne e o sangue no chão, têm de admitir que o sujeito tem certa razão, que se você
desenvolveu um sofisticado paladar para manteiga de amendoim e seu palato prefere Jif
simplesmente não há possibilidade de que Skippy esteja sequer próximo de ser uma cópia aceitável,
e que se uma esposa que se mostra repetidamente incapaz de compreender a importância de Jif faz
certas declarações, muito significativas e incômodas, sobre sua empatia para com e sua dedicação ao
sacramento do matrimônio como um elo entre dois corpos, mentes, espíritos e palatos... dá para
imaginar.

Para mim, a desconstrução desta estranha “ironia da banalidade” pelos filmes de Lynch afetou a
forma como vejo e organizo o mundo. Eu percebi desde 1986 que cerca de 65% das pessoas nos
terminais de ônibus metropolitanos entre meia-noite e 6:00 da manhã tendem a ser qualificadas
como figuras lynchianas – exuberantemente não-atraentes, fragilizadas, grotescas, sob o peso de
uma dor absolutamente desproporcionada em relação às circunstâncias evidentes. Ou todos nós já
vimos pessoas adotarem expressões faciais repentinas e grotescas – p.ex. como quando recebemos
notícias assustadoras, ou mordemos alguma coisa que se revela nojenta, ou estamos perto de
criancinhas, sem qualquer razão além de sermos esquisitos – mas eu determinei que uma repentina
expressão facial grotesca não pode ser qualificada como realmente lynchiana a não ser que seja
sustentada por muitos momentos a mais do que as circunstâncias jamais poderiam justificar, ela
mantém-se lá, fixa e grotesca, até que começa a significar mais ou menos dezessete coisas ao
mesmo tempo.3

10. a propósito da questão de serem ou não “pervertidos” os filmes de David Lynch

Pauline Kael tem um famoso epigrama em sua resenha de Veludo azul, para a New Yorker, em
1986: ela cita alguém atrás de quem (aquele alguém) ela saiu do cinema dizendo a um amigo “Talvez

3 (Como um aparte, mas um aparte verdadeiro, acrescento que tenho, desde 1986, uma regra pessoal no que

se refere a encontros, que é que qualquer encontro em que eu vou até a residência de uma mulher para
apanhá-la e tenho qualquer tipo de conversa com pais ou companheiros de quarto que seja sequer
remotamente lynchiana é automaticamente o último encontro que jamais hei de ter com aquela mulher, não
importando seus atrativos em outros campos. E esta regra, desenvolvida depois de assistir a Veludo azul, tem-
me sido incrivelmente útil e me mantido longe de todo tipo de confusões e embrulhos apavorantes e que
certos amigos para os quais promulguei a regra mas que voluntariamente escolheram ignorá-la e continuaram
namorando mulheres com elementos claramente lynchianos em seu caráter puderam lamentar sua escolha.)
eu seja pervertido, mas eu quero ver esse filme de novo”. E os filmes de Lynch são de fato – de
tudo quanto é jeito, alguns mais interessantes que outros – “pervertidos”. Alguns deles são
brilhantes e inesquecíveis; outros são inanes e incoerentes e ruins. Não é de se admirar que a
reputação crítica de Lynch ao longo da última década tenha a aparência de um ECG: às vezes é
difícil saber se o diretor é um gênio ou um idiota. Isso faz parte de seu encanto.

Se a palavra pervertido parece demais para você, simplesmente troque por sinistro. Os filmes de Lynch
são indiscutivelmente sinistros e grande parte de sua sinistrosidade é o fato de parecerem tão
pessoais. Uma forma bondosa de dizê-lo é afirmar que Lynch parece ser uma daquelas pessoas que
têm um acesso incomum a seus inconscientes. Uma forma menos bondosa seria dizer que os filmes
de Lynch parecem ser expressões de certas partes obsessivas, fetichísticas, edipianamente limitadas,
algo limítrofes do psiquismo do diretor, expressões apresentadas com muito pouca inibição ou
cobertura semiótica, ou seja, apresentadas com algo similar à ingênua (e sociopática) falta de auto-
consciência de uma criança. É esta intimidade psíquica da obra que faz com que seja difícil de
separar o que você pensa de um filme de David Lynch do que você pensa de David Lynch. A
impressão ad hominem que tendemos a carregar de Veludo azul ou Twin Peaks: os últimos dias de Laura
Palmer, é de que são filmes poderosos mas que David Lynch é o tipo de pessoa que você realmente
não quer se ver preso a em um vôo longo ou em uma fila no departamento de trânsito ou coisa
assim. Em outras palavras, um sujeito sinistro.

Dependendo da pessoa com quem você fale, o elemento sinistro de Lynch é destacado ou diluído
pela estranha distância que parece separar seus filmes do público. Os filmes de Lynch tendem a ser
simultaneamente extremamente pessoais e extremamente isolados. A ausência de linearidade e
lógica narrativa, a pesada multivalência do simbolismo, a opacidade fixa do rosto dos personagens,
o esquisito tom sisudo dos diálogos, a constante utilização de figuras grotescas como figurantes, a
forma precisa, pictorial, com que são encenadas e fotografadas as cenas, e a forma extra-exuberante
e possivelmente voyeurística com que a violência, os desvios e o bizarro em geral são representados
– tudo isso dá aos filmes de Lynch uma atmosfera cool, distanciada, uma atmosfera que os experts
consideram mais como algo fria e cínica.

E aqui vai uma coisa incômoda mas verdadeira: os melhores filmes de Lynch são também os mais
sinistros/pervertidos. Isso provavelmente porque seus melhores filmes, por mais surreais que
sejam, tendem a se ancorar em personagens principais muito bem desenvolvidos – o Jeffrey
Beaumont de Veludo azul, a Laura de Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, Merrick e Treeves de
O homem elefante. Quando seus personagens são desenvolvidos e humanos o bastante para evocar
nossa empatia, isso tende a diminuir a distância e a frieza que podem manter os filmes de Lynch a
um metro de você, e ao mesmo tempo isso deixa os filmes mais sinistros –ficamos perturbados
com muito mais facilidade quando um filme perturbador tem personagens em que podemos ver
partes de nós mesmos. Por exemplo, tem muito mais coisas nojentas em geral em Coração selvagem
do que em Veludo azul, e mesmo assim Veludo azul é um filme muito mais
sinistro/pervertido/desagradável, simplesmente porque Jeffrey Beaumont é um personagem
suficientemente 3-D para que possamos sentir (pena) de/por/com ele. Já que o que há de
realmente perturador em Veludo azul não se refere a Frank Booth ou a qualquer coisa que Jeffrey
descubra sobre Lumberton, mas sim ao fato de que uma parte do próprio Jeffrey curte o
voyeurismo e a violência atávica e a degeneração, e como Lynch cuidadosamente monta seu filme
para sintamos que (pena) d/p/c Jeffrey e para que nós (eu, pelo menos) consideremos atraentes e
algo eróticas algumas partes do sadismo e da degeneração que ele testemunha, não é de se admirar
que eu considere “pervertido” o filme de Lynch – nada me revolta mais que ver na tela algumas das
partes de mim que eu fui ao cinema tentar esquecer.
Os personagens de Coração selvagem, por outro lado, não são “redondos” ou tridimensionais. (Isso
foi aparentemente intencional.) Sailor e Lula são paródias exageradas de paixão faulkneriana; Santo
e Marieta e Bobby Peru são bandidos de gibi, catálogos de sorrisos perversos e histeria de kabuki. O
filme em si mesmo é incrivelmente violento (surras horrendas, sangrentos acidentes de carro,
cachorros roubando membros amputados, a cabeça de Willem DaFoe detonada por uma
espingarda e voando pelo set como uma bexiga furada), mas a violência resulta menos pervertida
que vazia, um suceder de gestos estilizados. E vazia não porque tal violência seja gratuita ou
excessiva mas porque ela jamais envolve um personagem vivo através do qual nossa capacidade de
sentir horror e espanto pudesse ser acessada. Coração selvagem, apesar de premiado em Cannes, não
recebeu resenhas muito boas nos EUA, e não foi por acaso que os ataques mais selvagens vieram
de críticas femininas, e que lhes tenha desagradado particularmente a frieza e a pobreza emocional
do filme. Veja só como um exemplo Kathleen Murphy, da Film Comment, que viu pouco mais em
Coração selvagem que “uma enfiada de aspas. Como voyeurs, somos encorajados a nos contorcer e cair
no riso diante de uma realidade entre parênteses: detrito mais que conhecido da memória da cultura
pop, uma espécie de pose cinematográfica que tenta se passar pela ação das emoções humanas”.
(Essa não era a única desancada presente naquelas linhas e, para falar a verdade, a maior parte delas
fazia sentido.)

O negócio é que a irregular obra de David Lynch apresenta uma cacetada de paradoxos. Seus
melhores filmes tendem a ser os mais pervertidos, e tendem a derivar muito de seu impacto
emocional de sua capacidade de nos fazer sentir cúmplices em sua perversão. E essa capacidade,
por sua vez, depende de Lynch desafiar uma convenção histórica que muitas vezes serviu para
distinguir filmes de vanguarda, “não-lineares”, artísticos de filmes narrativos comerciais. Filmes
não-lineares, ou seja, aqueles que não têm uma trama convencional, normalmente rejeitam também
a idéia de uma caracterização individual vigorosa. Só um dos filmes de Lynch, O homem elefante, teve
uma narrativa linear convencional4. Mas a maior parte deles (os melhores) devotaram energia pacas
aos personagens. Ou seja, eles tinham seres humanos. Pode ser que Jeffrey, Merrick, Laura et al.
funcionem para Lynch como funcionam para o público, como centros nodais de identificação e
motores de dor emocional. A (grande) parcela de Lynch que parece se identificar com os
personagens principais de seus filmes é mais uma coisa que torna seus filmes tão
perturbadoramente “pessoais”. O fato de que ele não parece se identificar tanto assim com seu
público é o que deixa os filmes “frios”, embora o distanciamento tenha também suas vantagens.

11. o finalzinho de (10) usado como gancho para a questão de saber-se o que exatamente
David Lynch parece querer de você

Filmes são uma mídia autoritária. Eles te vulnerabilizam e depois te dominam. Parte da magia de ir
ao cinema é se entregar ao filme, deixar que ele te domine. A imobilidade no escuro, o olhar
dirigido para o alto, a distância extática em relação à tela, a capacidade de ver as pessoas na tela sem
ser visto pelas pessoas na tela, o fato de as pessoas na tela serem tão maiores que você, tão mais
bonitas que você, mais instigantes que você etc. O incrível poder do cinema não é novidade. Mas
tipos diferentes de filmes usam esse poder de maneiras diferentes. O filme de arte é essencialmente
teleológico: ele quer de diversas maneiras “acordar o público” ou deixar-nos mais “conscientes”.
(Esse tipo de programatismo pode facilmente degenerar e virar pretensão, farisaísmo e asneira
condescendente, mas o programa, em si, é generoso e ok.) O filme comercial não parece dar muita
bola para a instrução ou o esclarecimento do público. O objetivo do filme comercial é “entreter”, o
que normalmente quer dizer possibilitar diversas fantasias que permitem que o espectador finja que


4 (Isso sem contar Duna, que estava na horrenda posição de parecer querer tê-la mas não ter de fato.)
é outras pessoas e que aquela vida é de alguma maneira maior e mais coerente e mais instigante e
atraente e em geral pura e simplesmente mais divertida que a vida do espectador realmente é. Pode-
se dizer que um filme comercial não tenta acordar as pessoas, mas sim fazer com que seu sono seja
tão confortável e seus sonhos tão agradáveis que elas dêem seu dinheiro para passar pela
experiência – essa sedução, uma transação de fantasia-por-dinheiro, é o ponto central de um filme
comercial. O ponto central de um filme de arte é normalmente mais intelectual ou estético, e você
normalmente precisa se empenhar um pouco na interpretação para compreendê-lo, e portanto
quando você paga para ver um filme de arte você está na verdade pagando para trabalhar (enquanto
que o único trabalho que você precisa realizar no que se refere à maioria dos filmes comerciais é o
trabalho –qualquer que tenha sido ele– para poder pagar o preço do ingresso).

Segundo uma descrição freqüente, os filmes de David Lynch ocupariam uma espécie de meio de
caminho entre filmes comerciais e de arte. Mas o que eles ocupam na verdade é toda uma terceira
espécie, diferente, de território. A maioria dos melhores filmes de Lynch não tem exatamente um
objetivo, e em muitos sentidos eles parecem resistir ao processo de interpretação cinemática que
desvela os pontos centrais dos filmes (certamente dos filmes de vanguarda). Isso é algo que o crítico
britânico Paul Taylor parece sacar quando diz que os filmes de Lynch devem “ser vivenciados mais
que explicados”. Os filmes de Lynch são de fato suscetíveis a toda uma gama de interpretações
sofisticadas, mas seria um grave equívoco concluir a partir disso que o ponto central de seus filmes
é que “a interpretação dos filmes é necessariamente multivalente” ou coisa assim – eles
simplesmente não são esse tipo de filme.

Mas eles também não são sedutores, pelo menos nos sentidos comerciais, de serem confortáveis ou
lineares ou superproduções ou “animadores”. Quase nunca, em um filme de Lynch você fica com a
impressão de que o objetivo é “divertir” você, e nunca de que o objetivo é fazer você empenhar o
dinheiro para ver o filme. Essa é uma das coisas incômodas no que se refere a um filme de Lynch:
você não sente estar entrando em um dos contratos padrões tácitos/inconscientes em que você
entra com outros tipos de filmes. Isso é incômodo porque na ausência de um tal contrato
inconsciente nós perdemos um pouco das proteções psíquicas que normalmente (e
necessariamente) empregamos contra uma mídia tão poderosa quanto o cinema. Ou seja, se
sabemos de alguma maneira o que um filme quer de nós, podemos erigir certas defesas internas que
nos permitem escolher quanto de nós entregaremos a ele. A ausência de um objetivo ou de um
programa reconhecível nos filmes de Lynch, no entanto, desnuda essas defesas subliminares e
permite que Lynch penetre na tua cabeça como os filmes normalmente não conseguem fazer. É por
isso que o efeito de seus melhores filmes é tantas vezes tão emotivo e pesadêlico (em nossos
sonhos nós também estamos indefesos)5.

Pode ser que esse, de fato, seja o único e verdadeiro programa de Lynch: simplsmente entrar na tua
cabeça6. Pelo menos é certo que ele parece se importar mais com o fato de entrar na tua cabeça que
com o que ele há de fazer depois que entrou. Será que isso é “boa” arte? Difícil de dizer. Parece –
mais uma vez – ou engenhoso ou psicopático.

11a. por que o que David Lynch quer de você pode ser uma coisa boa


5 Eu sei que não estou expondo isso direito; parece complicado demais para poder ser bem exposto. Tem
algo a ver com o fato de que alguns filmes são assustadores ou intensos demais para os espectadores mais
jovens: uma criança pequena, cujas defesas psíquicas ainda não estão desenvolvidas, pode ficar horrivelmente
assustada com um filme de terror que você ou eu julgaríamos barato ou bobo.
6 O modo como A Estrada perdida torna literal a idéia de ingresso-encefálico não é um acidente.
Se você puder manter em mente os tipos descarados de manipulação moral que nós sofremos nas
mãos da maioria dos diretores contemporâneos7, vai ser mais fácil te convencer de que algo na
cinematografia clinicamente asséptica de Lynch é não apenas um alívio, mas também uma redenção.
Não é que Lynch esteja de alguma maneira “acima” de ser um manipulador; é mais como se ele
simplesmente não ligasse para isso. Os filmes de Lynch são sobre imagens e estórias em sua (dele)
cabeça que ele pretende ver exteriorizados e complexamente reais. (Sua declaração mais
iluminadora a respeito da realização de Eraserhead envolve “o êxtase que sentiu ao se ver no cenário
do apartamento do senhor e da senhora X e perceber que o que tinha elaborado em sua mente
tinha sido exatamente recriado).

Já se disse que Lynch traz a sua arte a sensibilidade de uma criança muito inteligente imersa no
detalhístico mundo de suas fantasias. Este tipo de enfoque tem também suas desvantagens: seus
filmes não são especialmente sofisticados ou inteligentes; há pouco juízo criticou ou checagens do
tipo controle-de-qualidade sobre as idéias que não funcionam; as coisas tendem a ser 8 ou 80. Além
disso os filmes são, como um menino dado a fantasias, autocentradas em um grau que é
basicamente solipsista8. Daí sua frieza.

Mas parte de seu autocentramento e de sua frieza vem do fato de que David Lynch parece
efetivamente possuir a capacidade de distanciamento da resposta a sua produção que a maioria dos
artistas só tem da boca para fora: ele faz basicamente o que quer e parece não estar nem se fodendo
se você gostou ou sequer sacou o filme. Suas lealdades são ferozes e passionais e quase integralmente
devidas apenas a si próprio.

Eu não quero fazer isso soar como se esse tipo de coisa fosse integralmente boa ou se Lynch fosse
alguma espécie de epígono da integridade. Seu recolhimento passional é refrescantemente pueril,
mas eu penso que muito poucos de nós escolhem seus amigos entre as criancinhas. E quanto ao
sereno desligamento de Lynch da resposta das outras pessoas, eu percebi que, por mais que eu só
possa respeitar e meio que invejar a fibra moral das pessoas que realmente não dão bola para o que
os outros pensam delas, essas pessoas também me deixam nervoso, e eu tendo a me entregar a
minha admiração de uma distância segura. Por (de novo) outro lado, no entanto, precisamos
reconhecer que nessa era de filmes hollywoodianos “com uma mensagem” e de projeções-teste para
grupos de controle e de um pernicioso Nielsenismoxiv –Cinema por Referendo, onde votamos com
nossos dólares-entretenimento seja por efeitos espetaculares que nos façam sentir alguma coisa ou
pela lalação de clichês morais que nos deixem ficar confortavelmente inertes – a falta de interesse
quase sociopata que David Lynch demonstra por nossa aprovação parece refrescante/redentora
(por mais que também pareça sinistra).


7 (Exemplos absolutamente aleatórios:) Pense em como Mississipi em chamas de Parker mexia com nossas
consciências como um calouro no fecho do sutiã de uma colega, ou em Dançando com lobos e sua crua e
ardilosa inversão da equação “Branco=Bom & Índio=Mau” dos antigos westerns. Ou pense em filmes como
Atração fatal e Obsessão fatal e Duro de Matar I-III e Copycat: a vida imita a morte etc, em que somos tão
incansavelmente predispostos a aprovar o sangrento castigo do vilão no ápice do filme que podíamos até
estar usando togas. (A inexorabilidade formulaica da derrota desses vilões efetivamente dá àquele clímax uma
qualidade ritualística, estranhamente tranqüilizadora, e de certa forma transforma em mártires os vilões,
sacrifícios a nosso desejo de uma moralidade preta-e-branca e de um juízo confortável... Acho que foi durante
o primeiro Duro de matar a primeira vez em que eu conscientemente torci pelo bandido.)
8 (Já que o solipsismo não é exatamente a doce lareira crepitante das orientações filosóficas)

i Que encomendou o texto original de DFW. NT
ii O texto original foi escrito durante a elaboração final de Infinite Jest, obra mais conhecida de DFW, em que
filmes são invariavelmente chamados de entretenimentos. NT
iii Literalmente, “Eu sou demente”.. ou algo que o valha, literalmente. NT
iv “Seja minha cabeça”... NT
v Famoso programa policial dos anos 50. NT
vi Região culturalmente refinada e alternativa da cidade de Nova York (Tomo a liberdade de anotar algo

excessivamente por se tratar de um ensaio, afinal [Vamos deixar estabelecido daqui para a frente que todas as
nota de fim são notas do tradutor, o nos livra de vários NT. NT]. NT). NT
vii Anos 90, leitor...
viii Ambrose Bierce (1842-?) Escritor e jornalista americano, desaparecido no México, merecidissimamente

conhecido como o autor de The Devil’s Dictionary.


ix Proibido para menores de 17, equivalente atual do anterior X-rated.
x Harland Sanders, criador e símbolo da KFC (Kentucky Fried Chicken) cadeia de restaurantes que vende os

famosos baldes de frango frito dos filmes americanos.


xi O homem elefante e Duna são os únicos filmes em que Lynch atuou como diretor contratado.
xii Potter Stewart foi o juiz que, nos anos sessenta, se confessou incapaz de elaborar um teste seguro em uma

acusação de obscenidade, dizendo que não podia definir o termo, mas que “sabia o que era quando via”.
xiii Duas das mais conhecidas marcas de manteiga de amendoim.
xivO equivalente no Brasil seria “ibopismo”...?

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