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CADERNO DO DHARMA

Uma introdução aos ensinamentos budistas e dzogchen


[Através dos textos dos grandes mestres]

Buda desenvolveu muitos métodos táticos para levar as pessoas a abandonarem os apegos das
suas mentes discriminadoras (que ele via como a fonte dos problemas). Explicou por que agia
desta forma, através da parábola da casa em chamas:
Em uma cidade de um determinado país, havia um grande ancião, cuja casa era enorme, mas só
tinha uma porta estreita. Esta casa estava muito estragada e um dia, de repente, irrompeu um
grande incêndio que rapidamente começou a se alastrar. Dentro da casa estavam muitas crianças,
e o ancião começou a implorar para que saíssem. Mas todas estavam absortas nas suas
brincadeiras e, embora tudo levasse a crer que iriam morrer queimadas, elas não prestaram a
menor atenção ao que o ancião dizia e não mostravam pressa de sair.
O ancião pensou um momento. Como era muito forte, poderia colocar todas dentro de um
caixote e tirá-las rapidamente. Mas, depois, viu que, se o fizesse, algumas poderiam cair e se
queimar. Por isso, resolveu alertá-las sobre os horrores do incêndio, para que saíssem por sua
livre e espontânea vontade.
Aos gritos, pediu que fugissem imediatamente, porém as crianças deram uma olhada e não
tomaram conhecimento.
O grande ancião lembrou-se que todas as crianças queriam carroças de brinquedo e, assim,
chamou-as dizendo que viessem depressa ver as carroças de bodes, cavalos e bois que tinham
chegado.
Ao ouvirem isto, as crianças finalmente prestaram atenção e caíram umas sobre as outras,
na ânsia de saírem, fugindo, desta maneira, da casa em chamas. O ancião ficou aliviado por
terem escapado ilesas do perigo, e, quando elas começaram a perguntar pelas carroças, deu a
cada uma não aquelas simples que elas queriam, porém carroças magnificamente decoradas com
objetos preciosas, puxadas por grandes novilhos brancos. O simbolismo desta estória talvez
esteja bastante óbvio. O ancião é Buda, a casa em chamas é a natureza da existência que Buda
chamou de ‘Duka’ (isto é, incapaz de dar uma satisfação duradoura, porque, em todos os
aspectos, é inconsistente e transitória). As crianças são a humanidade e suas brincadeiras
representam as diversões mundanas com as quais estamos tão ocupados que, muito embora
estejamos vagamente conscientes da vida e da verdadeira natureza, não prestamos atenção para
isto. As carroças de bode, veado e boi são os métodos de ensino temporários, na realidade o
‘chamariz’ através do qual Buda pode nos fazer escutar e começar a praticar o Dharma, e as
carroças magníficas, puxadas por grandes novilhos brancos, representam a própria Iluminação,
para a qual Buda só nos conduzirá se tiver nossa cooperação e entrega.
O espírito da estória toda do Dharma de Buda talvez esteja resumido nesta estória. Ela foi
adaptada e difundida por meio de todos os seus grandes sucessores do Dharma. Demonstra também
a natureza provisória daquilo que Buda ensinou, associando seu ensinamento a um barco, que é
útil enquanto a pessoa está atravessando o rio, mas que poderá ser abandonado depois. É por
isso que, na tradição Zen, o Dharma foi chamado de o dedo que aponta para a lua.

No Sutra Lankavatara, Buda é mencionado como tendo dito: “Se um homem se apega ao
significado literal das palavras [...] a respeito do estado original da iluminação, o qual é
não-nascido e que não morre[...], começa a ter pontos de vista positivos ou negativos. Assim
se as diferenças dos objetos são vistas como verdadeiras, e distinguidas como reais, se
afirmações errôneas forem feitas, as distinções errôneas continuam. É por meio do ignorante
que as distinções continuam, e o sábio faz o contrário”.

E, como vemos no Vajrachedika Sutra (Sutra do Diamante):

Assim você deve pensar deste mundo fugaz;

Uma estrela ao amanhecer, uma espuma no regato;


Uma faísca de relâmpago, em uma nuvem de verão;
Uma lâmpada cintilando, um fantasma, e um sonho.

Muito embora o Dharma tenha sido formulado dentro das Quatro Nobres Verdades, do Caminho
Óctuplo, das Cinco Virtudes Espirituais e dos Cinco Obstáculos à Prática, dos Doze Elos da
Existência Condicionada e muito mais, todos estes constituem os diversos meios práticos para
compreendermos a verdadeira natureza do coração e da mente humanos. Por isso, em outro lugar,
os Sutras nos falam que, entre a Iluminação, em Magadha, e a morte ou paranirvana, em
Kusinagara, Budha não proferiu nenhuma palavra de ensinamento; que não alcançou a Iluminação
embaixo da árvore Bodhi, em Magadha, e que eternamente esteve sentado sobre o “Pico dos
Abutres”, pregando o Dharma para a assembléia (o Sangha). Em Zen Flesh, Zen Bones, tradução
para o inglês de Nyogen Senzaki e Paul Reeps, encontramos o seguinte:
Buda disse: “Considero a condição dos reis e legisladores como grãos de poeira. Observo os
tesouros de ouro e as pedras preciosas como sendo tijolos e seixos. Para mim, as mais finas
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vestes de seda são trapos esfarrapados. Vejo mundos de miríades, no universo, como pequenas
sementes de fruta, e o maior lago da Índia como uma gota de óleo no meu pé. Percebo os
ensinamentos do mundo como a ilusão dos mágicos. Distingo a mais alta concepção de libertação
como um brocado dourado de um sonho, e vejo o caminho sagrado dos iluminados como flores que
aparecem nos olhos de alguém. Encaro a meditação como o pilar de uma montanha, o samsara como
um pesadelo no dia. Considero o julgamento do que é certo e errado como a dança sinuosa de um
dragão, e o aparecer e desaparecer das crenças como nada mais do que vestígios das quatro
estações”.
Extraído de “Elementos do Zen” de David Scott e Tony Doubleday

VIDA DE SIDHARTA GAUTAMA


O BUDA

Falarei sobre a vida do Budha. O que me interessa é a vida do ser humano, como vocês e eu.
Nós sabemos que ele nasceu há 25 séculos, num pequeno reino ao norte do Nepal, onde seu pai
era um rei. E sabemos que sua mãe morreu uma semana após o seu nascimento.
De acordo com o horóscopo, ele poderia se tornar um grande rei, que conquistaria o mundo,
ou então o salvador de todos os seres. Seu pai preferiu acreditar na primeira hipótese, pois
sendo um rei, queria um sucessor. Ele pertencia à classe dos guerreiros e queria um filho
também guerreiro. Então, deu-lhe o nome de Sidarta, “o vencedor”. Um dia, veio à corte um
velho mestre que confirmou a predição: Ele iria salvar todos os seres da vida e da morte. O
rei começou a ficar muito preocupado e decidiu criar Sidarta dentro de um castelo, de forma
que ele tivesse tudo que a vida pudesse lhe oferecer e, ao mesmo tempo, que ignorasse as
coisas piores dela. Mas, com a idade de sete anos, Sidarta iria cumprir a primeira etapa de
sua vida de meditação.
Era primavera. Segundo o costume local e da época, o senhor das terras foi fazer o
primeiro corte na terra com o arado. Sidarta viu insetos e minhocas cortados pelo ferro do
arado e como aqueles que ficavam feridos eram comidos por pássaros e animais predadores. Foi o
primeiro encontro de Sidarta com a vida e a morte, misturados com a alegria e tristeza ao
mesmo tempo. Diz o texto que ele foi sentar-se sob uma árvore e, mesmo sem saber, entrou em
meditação. Isso apenas aumentou a inquietude do rei, que decidiu casar seu filho ainda
bastante jovem, pensando que uma mulher e um filho o ligariam à vida leiga e isso evitaria que
ele renunciasse ao mundo. Assim, aos 16 anos Sidarta casou-se com uma moça de um reino
vizinho. Foram instalados pelo rei num pequeno palácio com todas as comodidades necessárias
para uma vida tranqüila. Sua esposa deu à luz um filho que se chamou Raúla, que significa “a
ligação”.
É nesse momento que acontece o episódio chamado “Os quatro encontros de Buda”. Um dia,
Sidarta partiu com seus servidores para visitar a cidade e encontrou no caminho um homem
agonizante, com o corpo deformado pela dor, e perguntou o que vinha a ser aquilo. “Não é nada
de extraordinário, é um homem doente. Todas as pessoas adoecem”, respondeu-lhe o servo.
Sidarta retornou ao palácio muito pensativo. Na próxima vez que foi à cidade, encontrou no
caminho um velho fraco que tinha perdido a visão. Perguntou ao servo o que era aquilo e o
servo disse: “Nada de extraordinário. É um velho. Todas as pessoas serão velhas”. Mais uma
vez, Sidarta voltou ao palácio pensativo. Na sua terceira visita viu passar um cortejo, onde
as pessoas choravam. Eram os funerais de uma criança que iria ser cremada, e Sidarta
perguntou, “O que é isso?” E o servo disse, “Nada de extraordinário, são os funerais de uma
criança. Todas as pessoas morrem um dia”.
Finalmente, na sua última visita, ele passou por um monge errante que pedia esmolas. Sua
face refletia um espírito tranqüilo. Ele caminhava com graça, sem medo e sem orgulho. Sidarta
então percebeu que assim era quando se quebravam todos os elos e se compreendia o sofrimento.
Resolver o problema da vida e da morte seria útil a si e a todos os outros. Penso que essas
são etapas que todas as crianças e todos os jovens atravessam. O encontro com a morte. O
desejo dos pais de proteger os filhos do sofrimento. Sidarta teve todas essas lembranças e
todos esses sofrimentos atenuados. O rei, sabendo dessa consciência de seu filho, resolveu
fazer mais e mais festas para que ele pudesse se alegrar.
Uma noite, ao fim de uma festa com muitos músicos, dançarinas, cantores, Sidarta
atravessou o salão onde as mulheres dormiam pelas almofadas e nos cantos da sala. Diante
desses corpos fatigados, diante dessa evidência de vida e morte, decidiu deixar o palácio.
Decidiu buscar o caminho que levasse ao fim do sofrimento. Ele tinha 29 anos. Anunciou sua
partida ao pai e, pela última vez, foi ver sua esposa e filho que dormiam. Partiu com seu
cavalo e um servo até a fronteira do reino de seu pai. Lá chegando, desceu do cavalo, cortou
os próprios cabelos com a espada, retirou todas as suas jóias e armas, trocando também suas
roupas com as de um caçador e, sem olhar para trás, entrou na floresta.
Ele sempre tinha vivido como um príncipe, de maneira extremamente comportada, e agora
aprendera a viver fora, a dormir na chuva, a comer pouco. Uniu-se a um grupo de discípulos que
faziam meditação. Ali ele aprendeu a fechar as portas da percepção do corpo e a entrar em
estados profundos de concentração. Contudo, percebeu que ao sair da concentração o sofrimento
continuava. Durante 3 anos ele visitou diferentes mestres e começou a dominar métodos de
meditação cada vez mais profundos. Mas, sempre que terminavam os períodos de meditação, ele
descobria que o sofrimento da vida e da morte permanecia.
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Com seus outros cinco alunos, saiu em busca de umas cavernas onde passaram a viver em
extremo ascetismo. Meditavam dia e noite, comendo apenas sete grãos de arroz por dia. Tentavam
abandonar as necessidades físicas, pensando que se o corpo fosse livre o espírito se
libertaria. A imagem de Budha desta época é mostrada como um verdadeiro esqueleto, mas ele
sentia o sofrimento ainda presente. Um dia, meditando à beira de um rio, se deu conta de que
havia perdido a alegria. A alegria da meditação, do vento que refrescava, do canto dos
pássaros. Então percebeu que corpo e espírito eram um, e que torturando o corpo estava
torturando o espírito. Decidiu buscar outro caminho.
Na manhã seguinte, tomou banho no rio e caminhou para a vila. Mas estava muito fraco.
Deitou-se na estrada, sendo encontrado por uma jovem da vila que ia cuidar dos búfalos. Esta
jovem deu-lhe um pouco de leite que acabara de tirar. Um menino que passava, deu ao Budha um
punhado de ervas que colhera para os animais. Budha então tomou essas ervas e, usando-as como
almofada, sentou-se sob uma árvore. Foi o local da iluminação.
Os amigos de Budha, vendo que ele tinha abandonado a vida ascética, resolveram partir.
Sidarta, no entanto, pensava não ser necessário abandonar o mundo dos fenômenos. Não era
preciso fechar-se na meditação, enquanto ao seu redor as árvores, as folhas, a natureza,
enfim, o mundo era a própria meditação. Então, o futuro Buda, o futuro “desperto”, decidiu
continuar sua procura só, ao pé da árvore, ou morrer ali mesmo. Depois de 30 dias e 30 noites
de meditação, ele entrou num estado mais profundo do que os que experimentara até ali. Na
primeira parte da noite, ele reviu todas as suas vidas passadas. Elas somavam milhões e
milhões de vidas. Neste processo, ele sentiu todas as dores, todas as penas, todas as alegrias
de todos os homens. Na segunda parte da noite, viu universos incontáveis que surgiam, passavam
e desapareciam. Percebeu, então, que a morte e a vida são a mesma coisa: aparências. Como o
mar e as ondas. Milhares de vagas que se elevam e caem sem cessar. Mas qual a diferença entre
as ondas e o mar?
Durante a lua cheia da primavera, quando a última das estrelas pastoras apareceu, ele
atingiu o despertar completo, incomparável, compreendendo que havia experienciado a verdadeira
natureza do nascimento e da morte. Assim, estendeu seu braço esquerdo em direção à terra até
tocá-la e, invocando seu testemunho, disse: “Os muros desta prisão estão derrubados. Por
inumeráveis vidas estive preso, mas doravante estes muros não mais serão erguidos. Eu não mais
morrerei ou renascerei”. Após a iluminação, Budha continuou mais sete semanas sob aquela
árvore, sabendo que atingiria sua meta e que não fora por nada que largara tudo. Sabia também
que o caminho que encontrara seria muito difícil de ensinar, de ouvir, de compreender e de
praticar.
Hesitou em ensiná-lo e foi refletir diante de um lago onde se viam flores de lótus.
Algumas dessas flores estavam sob a água, outras na superfície e outras acima da superfície.
Pensou, então, que a compreensão dos seres humanos era semelhante a essa imagem: há os que
estão prisioneiros das ilusões, os que procuram a verdade e os que encontraram o caminho. E
então, resolveu voltar a Benares para ensinar. Mas, quando seus amigos o viram, disseram, “Lá
vem Sidarta, que traiu, que rompeu os seus votos. Não vamos cumprimentá-lo, não vamos fazer
nenhuma homenagem à sua chegada”. Ao se aproximar, porém, a figura de Sidarta era tão
radiante, sua aparência tão majestosa, que eles não puderam se impedir de levantar e oferecer-
lhe uma bebida. Budha disse-lhes: “Não mais me chamem Sidarta, sou o Budha, o desperto”. Daria
aí seu primeiro ensinamento, que se chamou a “primeira volta do Dharma”.
Qual é esse ensinamento, qual é a dificuldade nesse ensinamento, qual significado pode ter
para nós agora, depois de 25 séculos? Até aqui é como uma história. Uma história de contato.
De contato com a vida, com o sofrimento e a morte. Todas as crianças passam por isso e, em
seguida, todas as pessoas se tornam “sérias”. Não se tem mais tempo para questionamentos, para
pesquisas científicas. Passa-se a ter responsabilidades. É preciso ganhar dinheiro, avançar na
vida social, ocupar-se da família. É o que chamamos de senso de responsabilidade e seriedade.
Eu penso que Budha tinha um grande senso de responsabilidade, mais amplo que o nosso. Era um
senso não limitado ao seu reino, às suas coisas, à sua mulher e filho. Seu senso de
responsabilidade considerava todos os seres. O ponto central era a compreensão de nascimento e
morte. Ele observava exatamente aquilo que tentamos não ver: que nascemos e vamos morrer. Nada
do que fizemos ou temos, nenhuma das pessoas que amamos, poderá nos seguir depois da nossa
morte. Durante toda a vida construímos, mas sobre o vazio, pois tudo está em permanente
mudança.
As civilizações, as eras, nós mesmos, tudo é impermanente. Nosso rosto, nossos amores e
paixões mudam. Externamente, vemos alternância de saúde, doença, guerra e paz. Tentamos
construir um refúgio, mas não é possível, pois a morte já está em nós mesmos. Mas isto não
quer dizer que se vá viver irresponsavelmente: “Bom, se é assim, nada tem importância”. Pelo
contrário, reconhecer isso é reconhecer que todos os seres humanos vivem as mesmas
experiências. Repartimos as mesmas condições.
A vida é breve, as coisas mudam e desejamos ser felizes. Não importa a que raça
pertençamos, não importa em que tempo estamos. Sempre procuramos a felicidade e fugimos do
sofrimento. Este é nosso ponto básico. Mas aí as coisas se complicam porque para alcançar
minha felicidade, talvez eu seja obrigada a empurrar ou derrubar alguém de seu lugar. E, em
seguida, serei alvo de retaliação. Logo, não sendo assim tão simples, o que é essa felicidade?

O primeiro discurso do Buda se chama “As Quatro Nobres Verdades”. A primeira delas é a
verdade do sofrimento. Todos conhecem o sofrimento. O sofrimento físico, a doença, a velhice,
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o sofrimento psicológico. Mas o texto diz que um dos sofrimentos também é “estar perto de quem
não amamos e longe das pessoas que amamos”. Há um sofrimento ainda mais sutil, que é aquele
ligado à mudança, à impermanência. Se as coisas externas mudam e nós mudamos, nada é
permanente. Nada tem continuidade, nem o nosso sentimento, nem aquilo que procuramos: há
sempre uma ligeira inquietude. Ainda que estejamos completamente felizes e a situação se
apresente como a melhor possível, sempre há, no fundo, a idéia de que tudo pode mudar... como
um pequeno ponto negro numa grande superfície branca. Então, tentamos bloquear as coisas.
Tentamos alcançar segurança, mesmo sabendo que é provisória.
Há uma outra forma de sofrimento. O sofrimento da frustração. Imaginem que desejamos muito
alguma coisa, algo material, uma situação ou uma pessoa. Se não pudermos obter isso, vem a
frustração. Porém, se há possibilidade de conseguirmos, então vivemos de esperanças. Quando
não se tem o desejado, pensamos que, se o tivéssemos, tudo ficaria perfeito e seríamos
felizes. Finalmente, quando vemos nosso desejo realizado, em geral perde-se o encanto e o
objeto do nosso desejo torna-se menos belo e brilhante que quando estava distante. Aquilo
parecia ouro, agora é como uma pedra amarelada. Por outro lado, outras situações também trazem
sofrimento, como pensar que se obtivermos o que queremos tudo ficará perfeito. E assim vamos
nos repetindo. Essa é a nossa procura por felicidade. Isto não quer dizer que simplesmente
exista sofrimento no mundo, mas que nossa própria forma de buscar a felicidade cria
sofrimento.
Estar sempre correndo atrás de nossos desejos e fugindo de algo que possa nos alcançar
pelas costas é muito estressante. É uma grande perda de energia. Então, qual a origem desse
sofrimento? Buda conseguiu distinguir três causas: a avidez, a raiva e a ignorância. Vocês já
viram um bebê quando está mamando? Ele o faz com uma avidez extraordinária, e é preciso que
assim seja. Se não fosse assim, ele não poderia sobreviver. A dificuldade é que isso continua.
O “eu quero, eu quero” conduz à luta contra outras pessoas que querem a mesma coisa. Então
surge a raiva. Se não temos aquilo que queremos, se há recusa, nossa cólera vai longe, desde
palavras ásperas até a guerra.
Mas a raiz de tudo é a ignorância, a ignorância da interdependência. Imaginamos um “eu”
que quer obter alguma coisa e os “outros” que também desejam a mesma coisa, e então nos
separamos. E quando nos separamos, criamos um território para nós mesmos. Passamos a defendê-
lo e os outros tornam-se inimigos potenciais. Então, vamos enfileirando muros cada vez mais
espessos e altos para nos proteger, de tal forma que nem sol nem vento conseguem penetrar.
Vestimos uma armadura para a guerra de todos os dias. Contudo, com o peso cada vez maior desta
armadura, em breve não conseguimos mais nos mover. Já não se pode dançar com a vida, com as
coisas que chegam.
Temos medo de nós mesmos. Temos medo uns dos outros, das nossas emoções e do nosso
interior. O medo passa a ser o centro de nossa vida.
A ignorância é isto. É estar cortado, separado dos outros e de si mesmo. Perdemos a
unidade profunda com o mundo exterior e conosco mesmo.
A prática é esta: É estar aqui. É voltarmos ao primeiro instante, quando podíamos estar
completamente aqui. Antes de fugirmos para as lembranças, os projetos, etc. Estar
tranqüilamente no centro de tudo que existe, sem véus, sem separações com respeito à
felicidade e ao sofrimento. A isto nós chamamos não-ego, não-sofrimento.
Não que o sofrimento exterior não exista. É que aceitamos o que existe.
Então, o que é ser livre? É fazer ou ter tudo que queremos em nossa avidez? Ou é estar
livre destas ilusões que nos atacam sem cessar?
Compreender essa unidade, essa interdependência, é reconhecer que os outros desejam as
mesmas coisas que nós. Eles têm a percepção de felicidade. Sofrem pela mesma razão que nós.
Este é o início da compaixão.
Há uma história sobre a interdependência. É a história de uma pessoa que obteve
autorização para visitar o inferno e o paraíso. Chegando no inferno, ela viu pequenos seres
com pequenas cabeças e corpos enormes, e que tinham ligadas às mãos varinhas como as que os
chineses usam para comer. Todos se debatiam para alcançar a comida, mas não conseguiam levá-la
à boca, pois as varinhas eram muito compridas. O visitante viu então a avidez, o desejo pela
comida na face daquelas pessoas.
Em seguida, foi ao paraíso e lá encontrou as mesmas pessoas, com as mesmas cabecinhas e
grandes corpos, com as mesmas varinhas ligadas nas mãos. Porém, cada uma utilizava a sua
varinha para alimentar a pessoa à sua frente, e todas as faces estavam tranqüilas. Isto é a
interdependência entre as pessoas.
Às vezes eu me pergunto quantos minutos por dia é possível viver sem estar em relação com
os outros. Nós estamos em relação com muitas pessoas que estão mortas, através do que nos
deixaram. Também estamos em relação com muitas outras coisas, como a eletricidade, o
microfone, os automóveis, as profissões... Eu seria completamente incapaz de inventar a
eletricidade, mas posso utilizá-la quando preciso.
Neste momento, no meu templo, há uma horta e nela trabalham pessoas que necessitam obter
seu alimento. Eu poderia pensar que com algum dinheiro poderia comprar legumes, mas como não
sei plantar, se não fossem essas pessoas talvez eu não tivesse nenhum alimento pois não posso
comer dinheiro.
Não sei se realmente poderíamos viver um só minuto sem essa dependência. Em todo planeta
necessitamos do ar, do sol, do vento e da chuva.
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Na França, há um mestre zen vietnamita que diz que se você é poeta, nesta folha de papel
poderá ver todo o universo. Aqui nesta folha de papel há o sol, que fez nascer e crescer as
árvores, o vento, a chuva, o lenhador que cortou a árvore, a comida que este lenhador comeu,
todas as pessoas que prepararam esta comida, todas as pessoas que trabalharam para fazer este
papel, os que o venderam na livraria. Todo o universo está na folha de papel. É isto a
interdependência.
Nós chamamos isto, nos textos, de a rede de Budha. Como na rede de pesca, onde cada linha
está interligada uma com a outra, quando se corta uma parte, toda a rede se desfaz.
Compreender isso é encontrar a origem de nosso sofrimento. Perceber que quando machucamos
alguém é a nós mesmos que estamos machucando.
Mestre Dogen, fundador da escola Soto Zen, escreveu que apenas os loucos pensam que é
necessário colocar antes de tudo as suas próprias necessidades. O sábio vê que não há
diferença entre ele e os outros. Mas, é claro, os outros são sempre o problema. Quando se está
só tudo vai bem. Quando se está só é fácil pensar que somos as pessoas mais gentis e
maravilhosas do mundo. Os outros nos atrapalham o tempo todo. São obstáculos entre nós e o que
gostaríamos de ter. De modo geral, é assim que pensamos.
Há a história de um eremita que estava numa caverna sentado por anos e anos. Lá ele
atingiu um samadi muito profundo, e um dia, por alguma razão, teve de ir à cidade. Quando
chegou lá, havia muita gente e alguém pisou no seu pé. Ele ficou furioso. É isso, sempre são
os outros que atrapalham nossa prática, interferindo em nosso caminho espiritual. É justamente
a compreensão de nosso sofrimento que está exposta nas Quatro Nobres Verdades.
A terceira nobre verdade fala sobre a possibilidade de colocar um fim no sofrimento. Não é
impossível. Não é uma meta idealizada. Muitas vezes o Budha foi comparado a um médico,
comparado a quem conhece a doença, que descreve os sintomas e que dá o remédio para curá-la.
Como ser justo na vida cotidiana?
É importante nesse caminho a adequada utilização da palavra, porque penso que
intuitivamente sabemos quando algo é ou não é justo.
Muitas vezes isso fica muito claro, por exemplo, quando vocês estão com amigos e dizem
algo inconveniente, que talvez fosse melhor não ter dito. Naquele momento pareceu mais
interessante chamar a atenção, aparentar saber mais que os outros ou ser o primeiro a dizer
aquilo, mas, no fundo, sabíamos que não era a melhor coisa a ser dita. Não era justo.
Justo significa adaptado à situação. Uma maneira de manter a atenção sobre a nossa vida a
cada momento. Sobre como ela é e não como gostaríamos que fosse. Há, então, um tipo de
manipulação interessante. Tentamos empurrar as pessoas e as coisas para exercer o nosso
desejo. Então dizemos: “Ah, se essa pessoa pudesse fazer assim ou assado, se pudesse ser mais
gentil...” mas se ela não age como desejamos, ficamos enraivecidos. E certamente os outros
estão fazendo o mesmo conosco... O estudo das Quatro Nobres Verdades pode nos fazer
compreender comportamentos de nossa vida cotidiana. Porém, isso é teórico, uma elaboração
mental.
Muitas vezes compreendemos que deveríamos mudar em alguns aspectos. Nosso caráter, nossa
maneira de ser. É muito difícil mudar. É por isso que a prática budista está baseada na
meditação. Sidarta é o exemplo. Há muitas falsas idéias sobre a meditação. Primeiro, vou lhes
dizer o que a meditação não é. Não é um refúgio para nos apartar dos outros, do mundo. Não é
alcançar um pequeno paraíso com nuvenzinhas e pequenos anjos que pulam por todo lado. Não é
sentar para olhar o próprio umbigo, nem para fazer um estudo psicológico de si mesmo, nem para
ter tempo de cuidar de tudo que deve ser feito durante o dia. Não é relaxamento. Praticar
meditação é estar preparado para olhar aquilo que está dentro de nós, nossa cólera, medo e
frustração.
Tudo o que fechou nosso coração a nós mesmos e aos outros. Meditar é um longo trabalho,
física e moralmente doloroso. Pode ser mesmo aborrecido, mas é absolutamente necessário. às
vezes utilizamos uma comparação: Não podemos ver através de um copo com água lamacenta, devido
às impurezas em suspensão. Se colocarmos o copo tranqüilamente sobre a mesa, aos poucos as
impurezas vão decantando e a água vai ficando límpida, pura e transparente. Da mesma forma,
nossa mente está constantemente agitada com projetos, desejos, contentamentos,
descontentamentos e recordações. É impressionante nossa primeira meditação, quando vemos tudo
isso em nossa cabeça.
Nos textos clássicos, a mente é comparada a um macaco. O macaco é muito interessante de
ser observado. Ele pega um objeto, olha, larga, pega um outro, larga... Está sempre em
movimento, nunca pára. Pode ser lúdico observá-lo assim, mas se imaginarmos o macaco conosco
durante as 24 horas do dia, seria muito cansativo. Contudo, nós fazemos a mesma coisa. Nossa
mente não repousa. Aí está a importância da meditação.
É preciso prestar atenção, pois começamos, evidentemente, com a idéia de nos tornarmos uma
pessoa melhor. Vamos deixar de sofrer, vamos estar em harmonia com as demais pessoas.
Começamos logo por nossos desejos. Não são desejos materiais, são desejos espirituais. Além
disso, temos a consciência tranqüila, pois dizemos: “Ah, que pessoa maravilhosa, que ser
espiritual estou me tornando”. Mas a meditação, o zazen, não é isso. É apenas estar lá,
sentado. Mesmo sendo desagradável. Só quando estamos enraizados em nós mesmos é que podemos
formar uma relação apropriada conosco e com os outros. Uma relação direta, não afetada por
nossos sonhos e ilusões. É como uma roda. É necessário um ponto fixo para que a roda possa
girar.
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Todas as vias espirituais oferecem um caminho. É preciso fazer uma escolha e segui-lo com
determinação. Não é necessário para isso tornar-se monge. Não é necessário seguir o
ensinamento búdico a ponto de deixar a família, os bens, mas será necessário abandonar muitas
coisas no caminho, para que possamos avançar mais levemente, sem transportarmos tanto “peso”.
[...]
VIVENDO BUDA – Zuymyo Joshin Sensei

“O objetivo principal de todas as tradições espirituais é o mesmo, isto é, levar


compreensão e bem-estar à vida de todos. Mas, ainda que tenham os mesmos objetivos, cada
tradição espiritual tem uma abordagem característica. [...]”.
Há quem pense que o budismo é uma religião oriental, um produto do Oriente, ou de um
conjunto de culturas orientais. Quando se associa budismo com Tibet ou tibetanos, pensa-se que
o budismo é tibetano. O budismo não é uma crença ou tradição numa cultura, ou seja, não é nem
especificamente oriental nem especificamente tibetano. O budismo é mais do que crença
associada a uma cultura. O fundamento do budismo é a compreensão da natureza básica das coisas
e dos fenômenos. Assim, os ensinamentos budistas tratam da natureza das coisas e da premissa
de que cada indivíduo, sem exceção, tem potencial para experienciar a sanidade total inerente
a todos os seres. Assim, o budismo não é apenas uma crença levada a sério por certas pessoas
ou grupos, mas um acúmulo de conhecimentos e experiências da natureza e do potencial dos
seres.
Os ensinamentos budistas adaptam-se a todos os contextos culturais, por tratarem
simplesmente da natureza fundamental da experiência, e assim, filosoficamente, o budismo está
além de qualquer forma condicionada. Pode-se também dizer, a verdade absoluta ou suprema está
além da forma condicionada.
Toda forma condicionada está sujeita a mudanças, e o que está sujeito a mudanças não
contém verdade absoluta. Não pode haver duas verdades absolutas, ou, então, não são absolutas.
Mas a visão filosófica precisa ser realizada para que se possa experienciar a verdade
absoluta. Quando falamos de experienciar, não é especulação ou conjectura, mas sim uma postura
intelectual em que se determina que “deve ser assim”. Contudo, a experiência fala por si.
Quando procuramos integrar a perspectiva filosófica às práticas específicas do cotidiano, e
com os nossos propósitos íntimos, no contexto da nossa realidade relativa, associa-se a forma.
E, como na prática de toda forma, a tradição budista pode parecer uma religião ou uma crença.
Cada um de nós, no entanto, deseja ardentemente se libertar do sofrimento e da dor. Assim,
ao nos dedicarmos a qualquer atividade queremos avançar, libertando-nos cada vez mais do
sofrimento. E, enquanto continuamos na busca, é muito raro sermos bem sucedidos ou nos
contentarmos com o que alcançamos. As vezes nos sentimos bem, mas por trás da satisfação
pessoal há uma sutil insatisfação. Quanto mais sucesso encontramos, maior a insatisfação,
menor a moderação. Por causa de certos hábitos da nossa mente não somos capazes de estabelecer
limites, e dessas insatisfações nos vem mais sofrimento. Isto não é uma força de expressão,
mas vem da experiência e nossas vidas o comprovam”.
OS FUNDAMENTOS DO BUDISMO – Jamgon Kongtrul Rimpoche III

Perguntemos ao mestre Zen Eihei Dogên o que é estudar o budismo e ele nos dirá:

“Estudar o budismo é estudar a si mesmo;


Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo;
Esquecer-se de si mesmo é estar identificado com todas as coisas.
Estar identificado com todas as coisas é tornar-se a própria VERDADE”.

O propósito do estudo do budismo não é estudar budismo, mas estudar a si-mesmo. É


impossível estudar a si-mesmo sem algum ensinamento. Para saber o que é a água, você precisa
da ciência, e o cientista, de um laboratório. No laboratório há vários meios de estudar o que
é a água. Assim torna-se possível saber os elementos que ela contém, quais as diferentes
formas que assume e qual a sua natureza. Contudo, é impossível saber por esse meio o que é a
água em si. Acontece o mesmo conosco. Precisamos de algumas instruções, mas só pelo estudo do
que foi ensinado não é possível saber o que “eu” sou em realmente. Através do ensinamento
podemos compreender nossa natureza verdadeira. Porém, os ensinamentos não são nós mesmos: são
uma explicação sobre nós. Portanto, se você se apegar ao ensinamento ou ao mestre, cairá em um
grande erro.
Extraído do livro: MENTE ZEN, MENTE DE PRINCIPIANTE – Shunryu Suzuki

Por isso Buda aconselhava um exame crítico e experimental dos seus ensinamentos antes de
aceita-los por reverência a ele.
Assim pregava:

“Exatamente como as pessoas verificam a pureza do ouro queimando-o no fogo ou, cortando-o e o
examinando numa pedra de toque, da mesma forma, ó monges, deveis aceitar minhas palavras
depois de submetê-las a um exame crítico e não por reverencia a mim”.

Isso sugere que existem duas formas principais de abordar os ensinamentos budistas, de
acordo com a capacidade do praticante: a forma inteligente e a forma menos inteligente. A
7

forma inteligente consiste em abordar os textos sagrados e os comentários com ceticismo e com
a mente aberta, além de submeter o conteúdo desses ensinamentos a um exame, por meio da
comparação com nossa própria experiência e compreensão. Então, à medida que vai crescendo
nossa compreensão, também crescerá nossa convicção no conteúdo dos textos, assim como nossa
admiração pelos ensinamentos do Budha como um todo. Uma pessoa com essa visão não seguirá um
ensinamento ou um texto sagrado simplesmente por ser ele atribuído a um mestre famoso ou a
alguém digno de respeito; mas a validade do conteúdo do texto será julgada com base na própria
compreensão dessa pessoa, derivada de análise e investigação pessoal.
O princípio budista das Quatro Confianças aplica-se a essa abordagem inteligente. Elas se
expressam como se segue:

Confie na mensagem do mestre, não na pessoa do mestre;


Confie no significado, não apenas nas palavras;
Confie no significado definitivo; não no provisório;
Confie na sua mente de sabedoria, não na sua mente comum.

Em outras palavras, não deveríamos confiar na fama, no status nem em nenhum outro atributo
do mestre, mas, sim, no que ele diz. Não deveríamos confiar nas palavras em si, mas no seu
significado. Não deveríamos confiar no significado provisório, mas no significado definitivo;
e, finalmente, não deveríamos confiar na mera compreensão intelectual do significado, mas,
sim, na profunda experiência e conscientização. Essa é a forma inteligente de enfocar os
ensinamentos budistas.
Portanto, à medida que vocês se aproximam da próxima parte destes ensinamentos, sugiro que
procurem reter a atitude de ceticismo aberto de que acabei de falar.
TRANSFORMANDO A MENTE – Dalai Lama

OS CEGOS E O ELEFANTE

Certo dia, um príncipe indiano mandou chamar um grupo de cegos de nascença e os reuniu no
pátio do palácio. Ao mesmo tempo, mandou trazer um elefante e o colocou diante do grupo. Em
seguida, conduzindo-os pela mão, foi levando os cegos até o elefante para que o apalpassem. Um
apalpava a barriga, outro a cauda, outro a orelha, outro a tromba, outro uma das pernas.
Quando todos os cegos tinham apalpado o paquiderme, o príncipe ordenou que cada um explicasse
aos outros como era o elefante, então, o que tinha apalpado a barriga, disse que o elefante
era como uma enorme panela. O que tinha apalpado a cauda até os pelos da extremidade discordou
e disse que o elefante se parecia mais com uma vassoura. “Nada disso”, interrompeu o que tinha
apalpado a orelha. “Se alguma coisa se parece é com um grande leque aberto”. O que apalpara a
tromba deu uma risada e interferiu: “Vocês estão por fora. O elefante tem a forma, as
ondulações e a flexibilidade de uma mangueira de água...”. “Essa não”, replicou o que apalpara
a perna, “ele é redondo como uma grande mangueira, mas não tem nada de ondulações nem de
flexibilidade, é rígido como um poste...”. Os cegos se envolveram numa discussão sem fim, cada
um querendo provar que os outros estavam errados, e que o certo era o que ele dizia.
Evidentemente cada um se apoiava na sua própria experiência e não conseguia entender como os
demais podiam afirmar o que afirmavam. O príncipe deixou-os falar para ver se chegavam a um
acordo, mas quando percebeu que eram incapazes de aceitar que os outros podiam ter tido outras
experiências, ordenou que se calassem. “O elefante é tudo isso que vocês falaram”, explicou.
“Tudo isso que cada um de vocês percebeu é só uma parte do elefante. Não devem negar o que os
outros perceberam. Deveriam juntar as experiências de todos e tentar imaginar como a parte que
cada um apalpou se une com as outras para formar esse todo que é o elefante”.
Cada um de vocês está certo, mas cada um de vocês está errado também - falou ele - Um
homem sozinho não consegue saber toda a verdade, só uma pequena parte. Porém, se trabalharmos
juntos, cada um contribuindo com a sua parte para a formação do todo, aí sim poderemos obter
sabedoria.
Isso é válido para a Ciência, Filosofia, Religiões, ou qualquer outra forma de
conhecimento.

O DHARMA DO BUDA

Há uma realidade anterior até mesmo ao céu e à terra;


Realmente, ela não tem forma, muito menos um nome;
Os olhos falham em vê-la;
Não tem voz para os ouvidos detectarem;
Chamá-la de “mente” ou “Buddha” viola sua natureza
Pois ela então se torna como uma flor visionária no ar;
Não é mente, nem Buddha;
Absolutamente quieta, e ainda assim iluminando de maneira misteriosa,
Ela permite ser percebida apenas por aqueles de visão clara.
É o Dharma verdadeiramente além da forma e do som;
É o caminho que nada tem a ver com palavras.
Desejando atrair os cegos,
O Buddha divertidamente deixou palavras escaparem de sua boca dourada;
8

O céu e a terra estão desde então como emaranhados.


Ó meus bons e caros amigos reunidos aqui,
Se vocês desejam ouvir à voz do trovejante Dharma,
Extingam suas palavras, esvaziem seus pensamentos,
Pois então poderão vir a reconhecer esta essência única.
Diz Hui-Neng, o irmão, "O Dharma do Buddha
Não deve ser abandonado aos meros sentimentos humanos”.
Daiô Kokushi

REVELANDO A NOSSA NATUREZA ESSENCIAL

“A base do nosso ser é a essência búdica, a natureza búdica. Todos os seres quer grandes
quer pequenos, têm essa natureza fundamental, essa pureza essencial. Como o ouro incrustado no
minério, a verdade da nossa natureza fundamental, embora seja uma pureza que não teve
princípio nem terá fim, não é obvia para nós. Pelo fato de ser essa a nossa natureza
fundamental, podemos revelá-la por meio da prática, da mesma forma que o refinamento revela o
ouro que existe de forma inerente no minério.
Essa essência, desde tempos sem princípio, é completamente isenta de substância, vazia.
Embora possamos tentar encontrar características a partir das quais definiríamos e
entenderíamos a vacuidade, ela não pode ser concebida por conceitos ordinários. Assim, ela é
desprovida de sinais e características. Nada mais é preciso, além de mantermos o
reconhecimento da nossa natureza fundamental, para que o fruto – as qualidades plenas, a
realização completa dessa pureza inerente – seja revelado. O que revelamos não está além de
nossa natureza fundamental e, nesse sentido, está além de qualquer desejo. Não há nada que
esteja faltando, nada que esteja em outro lugar a que devamos aspirar para que aconteça. Ela é
isenta de aspiração.”
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

A NÃO-DUALIDADE

“Nada do que existe acontece fora da não-dualidade. Em outras palavras, todas as energias
existentes nascem dentro da não-dualidade, funcionam dentro da não-dualidade e, por fim,
desaparecem na natureza da não-dualidade. Nós nascemos nesta Terra, vivemos e desaparecemos
sempre dentro do espaço da não-dualidade. Trata-se de uma verdade simples e natural e não de
uma filosofia fabricada pelo Budha. Estamos falando sobre fatos concretos e sobre a natureza
fundamental da realidade, nem mais nem menos.”

Lama Yeshe: aulas sobre o texto de Maitreya Discriminating between Relative and Ultimate Reality (Dharma-dhatmata-vibhanga-karika)

“Pelo fato de não reconhecermos essa natureza fundamental – não nos darmos conta de que,
embora as aparências surjam incessantemente, nada na verdade, está presente – emprestamos
solidez e realidade à verdade aparente do “eu” e do “outro”. E das “ações” que ocorrem entre
“eu” e “outro”. Esse obscurecimento intelectual é causa do apego e aversão, seguidos de ações
e reações que criam carma, solidificam-se em hábitos e perpetuam os ciclos de sofrimento. Esse
processo todo é que precisa ser purificado.”
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

“A dualidade reafirma as polaridades e as dicotomias. Ela divide a unidade sem falha da


experiência em isto e aquilo, certo e errado, eu e você. Desenvolvemos a partir dessas
divisões conceituais preferências que se traduzem por desejo e repulsa, as respostas habituais
que constituem o essencial do que identificamos como “eu”. Queremos isto, não aquilo; cremos
nisto, não naquilo; respeitamos isto e desprezamos aquilo. Queremos o prazer, o conforto a
riqueza, a fama e tentamos evitar a dor, a pobreza, a vergonha o desconforto. Queremos essas
coisas para nós e para aqueles que amamos, sem nos preocupar com os outros. Queremos outra
coisa diferente do que temos, ou ainda nos agarramos ao que temos e queremos evitar as
mudanças inevitáveis que conduzirão a perda”.
Lama Yeshe: aulas sobre o texto de Maitreya Discriminating between Relative and Ultimate Reality (Dharma-dhatmata-vibhanga-karika)

IGNORÂNCIA

Antes de uma pessoa se realizar, sua natureza própria está obscurecida pela ignorância
fundamental que dá nascimento à mente conceitual. Preso na armadilha da visão dualista, a
mente comum corta a unidade absoluta da experiência em entidades, e considera em seguida essas
projeções mentais como objetos e seres independentes, dotados de existência própria. A
dualidade primordial [ignorância] divide a relação com o mundo em “eu” e “outro” e, pela
identificação com uma única parte da relação – “eu” – desenvolvem-se então as preferências.
Daí nascem o desejo e a aversão, que tornam-se a base das ações ao mesmo tempo físicas e
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mentais (carmas). Essas ações deixam na mente do indivíduo marcas sob a forma de tendências
condicionadas; estas últimas acentuam o apego e a rejeição, criando novas marcas cármicas, e
assim por diante. Tal é o ciclo perpetuamente auto-sustentado do carma. [...]

A totalidade da nossa experiência, incluindo os sonhos, nasce da ignorância. É uma


afirmação bem surpreendente no Ocidente, assim vemos de início o que entendemos por ignorância
(avydia/ma-rigpa). A tradição tibetana distingue duas variedades, a ignorância inata e a
ignorância cultural.
A ignorância inata é a base do samsara. Ela caracteriza por definição os seres comuns. É a
ignorância de nossa verdadeira natureza e da verdadeira natureza do mundo. Sob seu efeito, nos
enredamos nas ilusões da mente dualista.
A dualidade reafirma as polaridades e as dicotomias. Ela divide a unidade sem falha da
experiência em isto e aquilo, certo e errado, eu e você. Desenvolvemos a partir dessas
divisões conceituais preferências que se traduzem por desejo e repulsa, as respostas habituais
que constituem o essencial do que identificamos como “eu”. Queremos isto, não aquilo; cremos
nisto, não naquilo; respeitamos isto e desprezamos aquilo. Queremos o prazer, o conforto a
riqueza, a fama e tentamos evitar a dor, a pobreza, a vergonha o desconforto. Queremos essas
coisas para nós e para aqueles que amamos, sem nos preocupar com os outros. Queremos outra
coisa diferente do que temos, ou ainda nos agarramos ao que temos e queremos evitar as
mudanças inevitáveis que conduzirão à perda.
A segunda variedade da ignorância é condicionada pela cultura. Ela vem, em uma dada
cultura, dos desejos e aversões que são instituídas no sistema de valores e são codificadas.
Na Índia, por exemplo, os hindus pensam que é incorreto comer carne de vaca, mas que podem
comer carne de porco. Os muçulmanos crêem que eles podem comer carne de vaca, mas lhes é
interdito comer porco. Os tibetanos comem as duas carnes. Quem tem razão? Os indianos pensam
que são os indianos, os muçulmanos pensam que são os muçulmanos e os tibetanos pensam que são
os tibetanos. As diferentes crenças têm sua origem nos preconceitos e nas crenças próprias à
cultura, não na sabedoria fundamental.
Encontramos um outro exemplo nas disputas filosóficas. Muitas doutrinas filosóficas são
definidas uma com relação à outra, por desacordo sobre um ponto específico. Ainda que essas
doutrinas sejam concebidas para conduzir os seres à sabedoria, elas produzem a ignorância na
medida em que seus partidários aderem a uma visão dual [e parcial] da realidade. É inevitável
para todo sistema conceitual, qualquer que seja, porque a mente conceitual é em si mesma uma
manifestação da ignorância.
A ignorância cultural é promovida e mantida pelas tradições. Ela infiltra-se em todos os
costumes, opiniões, conjunto de valores, de conhecimentos. Para os indivíduos como para as
culturas essas preferências são fundamentais ao ponto de serem consideradas como de bom senso
ou lei divina. Crescemos e nos apegamos à crenças variadas, à um partido político, à um
sistema médico, à uma religião, à uma opinião sobre como deveriam ser as coisas. Recebemos um
ensinamento primário, um ensinamento secundário, até mesmo um ensinamento superior e, de certa
maneira, cada diploma permite-nos expandir uma ignorância mais refinada. A instrução fortalece
o hábito de ver o mundo através de certa lente. Podemos nos tornar até experts em visões
errôneas, adquirir um conhecimento muito preciso e comunicar-se com outros experts. Pode ser o
caso da filosofia, que estuda em detalhe os sistemas intelectuais e faz da mente um
instrumento de busca muito refinada. Mas, enquanto a ignorância inata não é compreendida,
estamos simplesmente trabalhando para aumentar uma nova tendência, não a sabedoria
fundamental.
Apegamos-nos até às menores coisas: uma marca de sabão, um estilo de corte de cabelo. Em
grande escala, inventamos religiões, sistemas políticos, filosofias, psicologias e ciências.
Mas ninguém nasce com a crença que é ruim comer carne de vaca ou de porco, ou que tal sistema
filosófico é exato enquanto o outro é errôneo, ou ainda que esta religião é certa e a outra é
falsa. Tudo isso deve ser aprendido. A adesão a certos valores resulta de nossa ignorância
cultural, enquanto que a tendência em aceitar opiniões limitadas vem da dualidade, que
manifesta nossa ignorância inata.
Não é ruim. É simplesmente assim. Nossos apegos podem conduzir-nos à guerra, mas eles
manifestam-se também sob forma de tecnologias úteis e artes variadas, que são de um grande
benefício para o mundo. Enquanto estamos não-despertos, estamos na dualidade, e está tudo
muito bem. Um ditado tibetano diz: “Quando tens o corpo de um asno, regozija-te com o sabor da
erva”. Dito de outra maneira, devemos gozar esta vida e apreciá-la, porque ela é plena de
sentido e preciosa por si mesma, e porque é a vida que vivemos.
Se não tomarmos cuidado, os ensinamentos podem servir para manter nossa ignorância.
Podemos dizer que é ruim para alguém obter um grau superior, ou errôneo observar restrições
dietéticas, mas a questão não é absolutamente esta. Ou ainda podemos dizer que a ignorância é
má, ou que a vida normal não é mais que uma estupidez samsárica. Mas a ignorância é
simplesmente um obscurecimento da consciência. Estar apegado a ela, ou repudiá-la, é ainda
sempre o velho jogo da dualidade, jogado desta vez no domínio da ignorância. Podemos ver até
que ponto ela é invasora. Mesmo os ensinamentos devem transigir com a dualidade – encorajando
o apego à virtude, por exemplo, e a aversão pelo não-virtuoso – fazemos paradoxalmente um
apelo à dualidade da ignorância para triunfar sobre ela. Que nossa compreensão torne-se mais
sutil, senão podemos perder-nos facilmente! Eis porque é necessário praticar, para ter uma
experiência direta em lugar de apenas estabelecer mais outro sistema conceitual para
10

aperfeiçoar e para defender. Vistas do alto, as coisas tem a tendência à se aplainar. Do ponto
de vista da sabedoria não-dual, “importante” e “irrisório” não existem.
Do livro “Yogas Tibétains du Revê et du Sommeil” – Tenzin Wangyal rimpoche – Tradução K. Tenpa Dhargye

UM POUCO MAIS SOBRE A IGNORÂNCIA

“O samsara surge quando o princípio funcional do erro que os ensinamentos dzogchen


designam como “mente” produz um foco de consciência limitado, fragmentado e relativamente
fechado que por sua própria natureza é incapaz de captar o todo-abarcante, panorâmico, e
contínuo da energia de nossa própria capacidade cognitiva”.
BUDISMO E DZOGCHEN – Elias Capriles

Na Base primordial, primordialmente pura, imutável, incondicionada, e ainda não


manifestada, não pode existir a questão do despertar ou da ignorância. Quando ela se manifesta
enquanto Base de emergência, jorram todas as espécies de aparências luminosas. A Prece de
Samantabhadra diz à respeito:

“No ser plenamente consciente, é a budeidade,


Senão, é o vagar dos seres comuns que giram na roda”.

Portanto, a ignorância é a causa do errar no samsara. No tantra, está claramente


estabelecido que esta ignorância reside também no corpo:
“Em todos os seres sensíveis, que reagrupam tudo o que vive, permanece de maneira
preponderante o que chamamos ‘ignorância das paixões’ [delusões]. Seu suporte está também no
corpo físico e se encontra entre o coração e os pulmões”.
Aprendemos em seguida que esta “ignorância das paixões” tem numerosos componentes. Com
efeito, a “ignorância fundamental” acompanha-se da “ignorância imaginária” que elabora falsos
conceitos sobre a natureza das aparências. Esta ignorância imaginária tem por base a mente
pensante, (sem), que está presente aqui como receptáculo de todas as propensões cármicas, ou
“marcas” de nossos atos condicionados. Associado à função intelectiva, (yi), a mente pensante
“conceitualiza” os objetos. O conjunto reunido constitui “a ignorância cármica”, que mergulha
os seres na roda sem fim do samsara. Da ignorância surgem de início os três venenos, a
ignorância, a aversão e o apego, depois as “seis emoções perturbadoras”: orgulho, inveja,
apego, preguiça, ganância, e ódio; que multiplicam-se em uma infinidade de emoções, as “vinte
quatro mil paixões”: “A mente conceitual é em si mesma uma manifestação da ignorância”.

“Embora não haja nenhum equívoco na base primordial, no momento em que ela aparece como
base da manifestação, a consciência não reconhecendo sua própria essência é uma indeterminação
que contém a origem da ignorância. Ela distingue as manifestações da base como formas
separadas e ilude-se enquanto ser sensível”.
O ESPÊLHO DO CORAÇÃO DE VAJRASATTVA – Tantra do Dzogchen – Tradução do texto: Flávio Capllonch Cardoso

Esta ignorância não existe na base, mas ela está presente nas experiências ou nas formas
percebidas. Essas formas percebidas provêm de quatro circunstâncias.
O que chamamos de “circunstância causal” é a base que se apresenta como uma permanência da
luz. Quando a analisamos segundo a ignorância, a idéia do “eu” é “a circunstância do
possuidor”. Depois nos apegamos aos objetos possuídos, e isso é “a circunstância objetivante”,
e ilustramos isso pela imagem de uma pessoa que aparece em um espelho. Como essas três
circunstâncias são simultâneas, chamamos isso “circunstância imediata”.
Assim, não reconhecendo o que é nossa base natural, (os seres) se iludem e fabricam os
três domínios do samsara. Daí resulta o aparecimento das paixões grosseiras, que são a fonte
das diferentes formas dos seres sensíveis. É de uma tal base que provêm o engano (avydia).

Assim, quando surge a consciência que analisa as aparências da base, somos iludidos pelas
imaginações impuras das quatro circunstâncias, que provêm do não-reconhecimento de nossa
natureza, da ignorância de que nossa essência é a causa única (de tudo).

Assim, a causa primeira da ilusão é a “tríplice ignorância” 1:


Pelo simples fato de não estarmos conscientes de nossa essência natural, nascem todos os
“sujeitos/objetos”, então dizemos “o não iludido de um modo último” cai na ilusão. Como então,
o que é inominável toma um nome, trata-se da ignorância de que a causa e o efeito têm uma
mesma essência.
Seu aspecto de simples inconsciência da nossa essência é a ignorância inata, e samsara-
nirvana surgem com aparências distintas.
Tais objetos são simples aparências luminosas, mas a mente2 os separa, no entanto como
aparências duais, e termina por concebê-los enquanto nome, conteúdo e entidade, chamamos a
isso de ignorância imaginária.
11

A tal causa correspondem quatro circunstâncias 3:


A circunstância causal é assim criada pela reunião das três ignorâncias. Comparamo-la à
aparição espontânea da imagem de um homem com sua forma e seus membros.
Dela resulta a circunstância objetivante, semelhante ao espelho: como o que surge enquanto
objeto exterior forma uma imagem no espelho, esta circunstância é comparada ao aparecimento no
interior do espelho.
Este objeto “concretizado” 4 é a emergência exterior da luminosidade natural, mas a
circunstância do possuidor apreende o espelho, sua imagem e o eu como entidades reais e os
conceitua enquanto imagem e espelho. Por que ela se acompanha da conceituação ao nível das
luzes, de rigpa e da realidade absoluta, a chamamos “circunstância do possuidor”.
Quando associam-se simultaneamente as três ignorâncias causais e essas três primeiras
circunstâncias, sua associação constitui a “circunstância imediata” e a ilusão se concretiza.
A propósito dessas quatro circunstâncias, se quando da (formação) da pessoa reconduzirmos
a sua causa à Sabedoria única dos budhas e dos seres sensíveis, além da rejeição e da
aceitação, a circunstância causal se libera naturalmente.
A emergência dos objetos variados se libera enquanto aparência espontânea, quando a
reconhecemos como realidade absoluta, e, por esse fato, a circunstância objetivante e a
distinção dos objetos se liberam naturalmente.
O que emerge enquanto sabedoria nascida de si-mesma se libera então, e a circunstância do
possuidor se libera naturalmente.
Nesse momento, tudo está indeterminado; antes e depois, as idas e vindas são subvertidas e
a circunstância imediata se libera naturalmente.
O que emerge enquanto Sabedoria nascida de si-mesma se libera então, e a circunstância do
possuidor se libera naturalmente.
Nesse momento, tudo está indeterminado; o antes e o depois, as idas e vindas estão
subvertidas e a circunstância imediata se libera naturalmente.
Assim, em si mesma. A ilusão dualizante é o produto das causas e circunstâncias que
amadurecem indiretamente dos corpos e tornam-se, portanto acumulações distintas. A mente
agindo como causa, a consciência distingue os objetos, e somos iludidos ao separar os objetos
da mente (que os percebe). Assim, esse corpo e essa mente são enganados desde primeiro
instante, e é assim que começa o samsara.
1. ma-rigpa gsum: a ignorância que a causa é uma mesma essência (rgyu bdag-nyid gcig-pa’i ma-rig-pa), a ignorância inata (lhan-cig skyes-pa’i ma-rig-pa), e a ignorância

imaginária (kun-brtags ma-rig-pa).

2. blo, o intelecto.

3. rkyen-bzhi, as quatro circunstâncias, a circunstância causal (rgyu’i rkyen), a circunstância objetivante (dmigs-pa’i rkyen), a circunstância do possuidor (bdag-poi

kkyen) e a circunstância imediata (mtshungs-pa de ma-thag-pa’i rkyen).

4. dmigs-yul

Segundo o Thelgyur:

Quando no começo do samsara:


De uma natureza que jamais fez distinções,
Emergem os objetos aos quais nos apegamos enquanto objetos reais;
Desse apego conceitual nascem as distinções.
Esta crença imaginária, sob a forma de doze elos,
Age como modo de começo do samsara.
Modo ilusório das três ignorâncias (três venenos).
Ela se propaga, e ainda na origem sem distinções,
não é reconhecida como nossa essência,
Isso marca o início do samsara.

Nesse momento surgem os DOZE ELOS DEPENDENTES (Tendrel tchonyi):


Por não reconhecermos o dinamismo da energia compassiva como nossa própria essência
aparecem os três venenos: é a ignorância (1).
As quatro circunstâncias são os fatores das combinações cármicas (2).
Daí resulta uma atividade consciente que analisa grosseiramente o aspecto dos objetos, a
consciência (3). Disso decorre a produção enquanto nome e corpo segundo diferentes carmas,
chamamos isso, nome e forma (4). Esta especificação se realiza em cores e em elementos
distintos, e as seis esferas psico-sensoriais (5) aparecem. Donde a fruição dos objetos pelo
contato (6). Depois, nascem as experiências agradáveis, desagradáveis ou neutras, o que
constitui a sensação (7). Em seguida agarramo-nos ao que nos agrada e somos conscientes de não
querer o sofrimento, e isso é o desejo (8). Disso resulta que apropriamo-nos dos objetos, o
que constitui a apropriação (9). Isto produz o desenvolvimento do carma e das paixões cujos
resultados realizam-se na vida seguinte, isso é o vir-a-ser (10). O resultado é o nascimento
na forma de diferentes espécies de seres viventes, quer dizer o nascimento (11). Segue-se a
juventude, a velhice depois a morte, ou seja a velhice e morte (12).
Assim, do primeiro instante até agora, a roda dos doze elos nos ilude.
Após a vida, estando a luminosidade oculta, não reconhecer nossa própria essência no
instante em que aparecem as manifestações do bardo do vir-a-ser constitui a ignorância. Quando
12

morremos a respiração externa cessa, e até este momento encontramo-nos no processo dos elos
dependentes. Depois, quando os modos de dissolução sutil e grosseiro, o modo de progressão
(...)inverte-se. As aparências ilusórias se volatilizam e as forças do samsara refluem. Então,
o modo primordial do nirvana aparece espontaneamente, as aparências da pureza primordial
surgem, e as manifestações do bardo da realidade absoluta aparecem concretamente como uma
ligação com o nirvana. Não reconhecê-las como a essência natural nos reenvia ao samsara,
enquanto que reconhecê-las como tal nos libera, chamamos a isso “liberação do samsara em
nirvana”.
Também, embora a ignorância não exista na Base nem na base da manifestação, ao surgir
bruscamente como nuvens, ela cria as circunstâncias, e pela porta do surgimento enquanto
samsara impuro, a causa é criada. Iludimo-nos então nos três domínios e nos seis reinos de
seres.

Segundo o Mutik Trengwa:


Em tal realidade absoluta,
Jamais houve ilusão;
O Corpo Absoluto semelhante ao céu
É bruscamente obscurecido pelas nuvens dos seres sensíveis...
e:
Nesta grande manifestação da base,
Não existe nenhuma consideração tal como “ignorância”;
A criação enquanto ilusão não tem lugar.

Citamos para concluir um extrato do Tsikdon Dzö:

É por não reconhecermos esta Base da manifestação que ficamos iludidos.

Segundo o Thelgyur:
Não reconhecendo a não-dualidade,
no seio da pureza primordial,
Não reconhecemos a realidade absoluta,
E em virtude desta ignorância surge a apropriação.
Esse suporte imaginário, no nível das cores,
Constitui as causas e condições de uma sutil divisão,
Pela qual o carma samsárico se concretiza.

Como surge tal modo ilusório? Quando as aparências emergem enquanto manifestações da Base,
o dinamismo da bodhichitta, uma consciência clara e viva que tem a capacidade de analisar os
objetos se eleva espontaneamente. Como esta consciência clara não reconhece a essência natural
das (aparências), elas emergem associadas às três ignorâncias: a ignorância de que a causa tem
uma mesma essência é o fato de não reconhecer a verdadeira natureza da consciência que surge.
A ignorância inata é este não-reconhecimento que surge conjuntamente à esta consciência. A
ignorância imaginária analisa as manifestações naturais como sendo “outras”.
Embora existam três aspectos distintos na consciência, sua essência é una.
Também, quando analisamos as aparências naturais, embora elas sejam de fato a essência, a
natureza e a compaixão da base, estas aparências do modo de emergência espontaneamente
presente da base em manifestação, não reconhecemos sua natureza enquanto base e base em
manifestação; e ainda mais, as apreendemos como sendo “estranhas”. É assim que nos iludimos.
Pelo causa da tríplice ignorância causal, das quatro circunstâncias e das concepções
impuras, a consciência das aparências se iludem dualizando sujeito e objeto.
Nesse momento, seis espécies de mentalidades surgem enquanto “sujeito que se agarra” sem
cessar, assim as seis paixões emergem de forma latente. Rigpa é então capturado na armadilha e
nos iludimos com as aparências dos seis objetos.
A LIBERDADE NATURAL DA MENTE – Longchenpa

Buddhjnana, em “Meios de Consumação Intitulados TUDO BOM”, afirma que a raiz da existência
(condicionada) é criada pelos processos de pensamento da ignorância; em outras palavras, a
ignorância é criada pelo pensamento.
A base é liberdade absoluta, quando se manifesta ela pode fazer-se pequena e restrita à
uma individualidade que se acredita separada e com existência inerente. Isto é a ignorância. A
liberdade tem, portanto a liberdade de aprisionar-se, enganar-se, de ignorar sua própria
essência.
Existiria a ilusão se não existisse o indivíduo?
A ignorância surge quando acreditamos na ilusão de uma individualidade separada. Para a
ignorância aparecer é preciso existir uma individualidade que se engana, O indivíduo e a mente
conceitual, não têm existência inerente, portanto a ignorância também não a possui.
Quando surgem os fenômenos, as formas da vacuidade, surge também a dualidade. Quem
conhece? Se quem conhece é a mente conceitual que é dual, então nasce ao mesmo tempo a
possibilidade do conhecimento e do desconhecimento. Na base primordial vazia e não-dual não
podemos falar de conhecimento e de desconhecimento.
BUDDHAJNANA – “Meios de Consumação Intitulados TUDO BOM”
13

UM CONTO ZEN

Um monge aproximou-se de seu mestre – que se encontrava em meditação no pátio do templo à


luz da Lua – com uma grande dúvida:
“Mestre, aprendi que confiar nas palavras é ilusório; e diante das palavras, o verdadeiro
sentido surge através do silêncio. Mas vejo que os sutras e as recitações são feitas de
palavras; que o ensinamento é transmitido pela voz. Se o Dharma está além dos termos, porque
os termos são usados para defini-lo?”.
O velho sábio respondeu: “As palavras são como um dedo apontando para a Lua; cuida de
saber olhar para a Lua, não se preocupe com o dedo que aponta”.
O monge replicou: “Mas eu não poderia olhar a Lua, sem precisar que algum dedo alheio a
indique?”
“Poderia”, confirmou o mestre, “e assim tu o farás, pois ninguém mais pode olhar a Lua por
ti. As palavras são como bolhas de sabão: frágeis e inconsistentes, desaparecem quando em
contato prolongado com o ar. A Lua está e sempre esteve à vista. O Dharma é eterno e
completamente revelado. As palavras não podem revelar o que já está revelado desde o Primeiro
Princípio”.
“Então”, o monge perguntou, “Porque os homens precisam que lhes seja revelado o que já é
de seu conhecimento?”
“Porque”, completou o sábio, “da mesma forma que ver a Lua todas as noites faz com que os
homens se esqueçam dela pelo simples costume de aceitar sua existência como fato consumado,
assim também os homens não confiam na verdade já revelada pelo simples fato dela se manifestar
em todas as coisas, sem distinção. Desta forma, as palavras são um subterfúgio, um adorno para
embelezar e atrair nossa atenção. E como qualquer adorno, pode ser valorizado mais do que é
necessário”.
O mestre ficou em silêncio durante muito tempo. Então de súbito, simplesmente apontou para
a Lua.
Após realizar a iluminação Siddharta Gautama pregou aos seus cinco amigos ascetas:

O PRIMEIRO SERMÃO DE BUDA

O primeiro sermão de Buda Shakyamuni foi dado aos cinco ascetas que estavam no Parque das
Gazelas em Sarnath, Benares. Nesse sermão, Budha expôs os ensinamentos fundamentais do
budismo: as quatro verdades nobres (sânsc. chatu-arya-satya).

Depois da Iluminação, Buda resolveu ensinar a Lei (Dharma).


Decidiu fazê-lo primeiramente a seus cinco antigos companheiros de ascetismo: Kyojinno,
Makanama, Haba, Ashabajitto e Batara. Estes se encontravam então no Parque das Gazelas, em
Benares. Para lá se dirigiu então o Perfeito, encontrando-os sempre entregues à prática do
ascetismo. Quando Budha abandonara as mortificações, eles tinham tomado sua decisão por uma
fraqueza e agora só se lembravam dele com desprezo.
Ao ver que Buda se aproximava, combinaram não se levantar para cumprimentá-lo e só falar
com ele no caso de serem interpelados.
Buda aproximou-se deles calmamente. Embora fingindo indiferença, os cinco examinaram-lhe o
semblante. Não viram nele quaisquer sinais de frustração ou arrependimento. O antigo
companheiro mostrava-se calmo e solene.
Quando Buda chegou bem perto dos cinco, estes automaticamente se levantaram e o saudaram.
Buda então perguntou-lhes:
- Porque vos levantais para me cumprimentar? Não tínheis combinado ficar indiferentes?
Os cinco começaram a se sentir pouco à vontade.
- Estais cançado, Gautama? – perguntou um deles.
- De agora em diante, não me chameis mais pelo nome. Eu agora sou Buda, o Desperto, o Pai
de todos os seres.
Kyojinnyo, muito admirado disse:
- Quando vos transformastes em Buda? Se abandosnaste o ascetismo por não consegui-lo,
como tereis alcançado a Iluminação?
- Kyojinnyo, não podeis julgar minha iluminação com espírito acanhado. O sofrimento físico
traz perturbação à mente. O conforto físico traz apego às paixões. Nem ascetismo nem prazer
permitem realizar o Caminho. É preciso abandonar esses dois extremos e seguir o Caminho do
Meio. Este é o Óctuplo Caminho, composto de: Visão Correta, Pensamento Correto, Palavra
Correta, Ação Correta, Esforço Correto, Intenção Correta e Meditação Correta. Aquele que
praticar isso alcançará a paz espiritual e se livrará dos tormentos dos nascimentos, da
velhice e da morte. Eu pratiquei o Caminho do Meio e obtive a Iluminação.
As palavras de Buda encheram os cinco de grande alegria. Vendo que eles já estavam
preparados para ouvir a Verdade, o Perfeito prosseguiu:
- Como sabeis, a vida é plena de sofrimento: sofrimento de nascer, de envelhecer, de
adoecer e sofrimento de morrer. Há ainda o sofrimento da separação dos entes queridos, o
sofrimento de ser obrigado a permanecer ligado a algo que se detesta, o sofrimento de não se
obter o que se deseja e o sofrimento de perder glórias e prazeres. Muitos outros há ainda.
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Os seres que têm forma e os que não têm forma, os de uma, duas, quatro ou mais pernas, todos
os seres vivos, enfim, estão sujeitos ao sofrimento.
Esta é a Nobre Verdade da Origem do Sofrimento.
Os cinco concordaram com as palavras de Buda, que prosseguiu:
- A fonte desse sofrimento é a idéia de existência de um “eu” substancial.
Todos os seres que se deixam prender à idéia de um “eu” tornam-se sujeitos a tais
sofrimentos. O desejo, a cólera e a ignorância são também causados pelo “eu”. Estes três
venenos são a origem de todos os sofrimentos. Todos os seres vivos que são presas desses três
venenos estão entregues ao sofrimento. Tal é a Nobre verdade da Origem do Sofrimento. O
sofrimento deve ser extraído. Se eliminares a idéia de “eu”, o desejo, a cólera e a ignorância
e os sofrimentos cessarão. Esta é a Nobre verdade da Cessação do Sofrimento. Para se obter a
cessação, é necessária a prática do Óctuplo Caminho. Esta é a Nobre Verdade do Caminho da
Cessação do Sofrimento.
Os cinco não puderam deixar de concordar com o ensinamento do Perfeito, que continuou:
- Amigos, prestem bastante atenção: primeiramente, é preciso conhecer a existência do
sofrimento. Deve-se depois destruir a sua origem. Para isso, deve-se compreender que a
cessação do sofrimento é possível. Para consegui-la, deve-se então praticar o Caminho. Eu
conheci a existência do sofrimento, destruí a sua origem, compreendi sua cessação e pratiquei
o Caminho. Assim obtive a Suprema Iluminação.
A Existência, a Origem, a Cessação e o caminho da Cessação do Sofrimento são as Quatro
Nobres verdades. Sem conhecê-las, ninguém pode conseguir a Iluminação. Quem as compreender
perfeitamente, pode-se libertar de todos os sofrimentos.
Após ouvir estas palavras, os cinco decidiram tornarem-se discípulos de Budha. Para
certificar-se de que eles realmente compreenderam as verdades que lhes haviam sido explicadas,
o Perfeito perguntou-lhes:
- Ó monges! Os fenômenos materiais, a percepção, as idéias, a vontade e a consciência são
estáveis ou impermanentes? São ou não são sofrimentos? São ou não são vazios Têm ou não têm um
“eu”?
- Os cinco responderam:
- Ó Venerável! Os fenômenos materiais, a percepção, as idéias, a vontade e a consciência
são impermanentes, são sofrimento, são vazios e não têm um “eu”.
Buda então disse:
- Já vos libertaste, já destruístes aquilo que dá origem ao sofrimento. Jamais voltareis a
sofrer. Agora, em verdade, temos reunidos os Três Tesouros: O Budha, o Dharma, ou a lei
ensinada pelo Budha, e o Sangha, ou a Comunidade dos discípulos que praticam a Lei (Dharma).
Graças a esses Três Tesouros, meu ensinamento espalhar-se-á por todo o mundo e as pessoas
lograrão obter a Libertação.
Os cinco discípulos, satisfeitos por ouvir tais palavras do Mestre, agradeceram e
saudaram-no.
TEXTOS BUDISTAS E ZEN-BUDISTAS – Ricardo M. Gonçalves

OS CINCO AGREGADOS

De acordo com o budismo, os seres humanos são compostos de Cinco Agregados (skandhas):
forma, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Os Cinco Agregados contêm em
si tudo o que existe - tanto dentro como fora de nós, na natureza e na sociedade.

O 1O. AGREGADO FORMA (RUPA) significa o nosso corpo, incluindo os cinco órgãos dos
sentidos e o sistema nervoso. Uma boa prática de atenção plena ao corpo é nos deitarmos e
praticarmos o relaxamento total. Permita que seu corpo descanse um pouco, e a seguir
concentre a atenção na testa. “Ao inspirar, tomo consciência de minha testa. Ao expirar,
sorrio para minha testa”. Use a energia da atenção plena para tocar a testa, o cérebro, os
olhos, ouvidos e nariz. A cada vez que inspirar, torne-se consciente de uma parte diferente
do corpo, e cada vez que expirar, sorria para aquela parte. Use as energias da atenção plena
e do amor para abraçar cada pedaço do corpo. Abrace seu coração, pulmões e estômago. “Ao
inspirar, tomo consciência de meu coração. Ao expirar, abraço meu coração”. Estabeleça a
prática de explorar todo o seu corpo, usando a luz da atenção plena e sempre sorrindo para
cada uma das partes com compaixão e amor. Quando terminar de fazer isso, você se sentirá
extraordinariamente bem. Só leva meia hora, e o corpo descansará profundamente durante esses
trinta minutos. Não se esqueça de cuidar bem de seu corpo, dando a ele tempo de descanso, e
abraçando-o com carinho, compaixão, atenção e amor.
Aprenda a considerar seu corpo como um rio, no qual cada célula é comparável a uma gota de
água. A todo instante as células estão nascendo e morrendo. O nascimento e a morte se apóiam
mutuamente. Para praticar a atenção plena ao corpo, siga o ritmo da respiração e focalize a
atenção em cada parte do corpo, desde o cabelo no alto da cabeça até as solas dos pés.
Respire sempre com atenção plena e abrace cada parte do corpo com a energia da atenção plena,
sorrindo com reconhecimento e amor. O Buda disse que existem trinta e duas partes no corpo
que devem ser reconhecidas e abraçadas. Identifique os elementos que fazem parte de seu
corpo: terra, água, ar e calor. Entenda a ligação que existe entre esses quatro elementos
dentro e fora de seu corpo. Veja a presença viva de seus ancestrais e também das gerações
futuras, além de todos os outros seres dos reinos animal, vegetal e mineral. Tome consciência
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das posições de seu corpo (de pé, sentado, caminhando, deitado) e dos seus movimentos
(dobrado, esticado, tomando banho, vestindo-se, comendo, trabalhando etc.). Quando você
dominar bem essa prática, conseguirá identificar as sensações e percepções no momento em que
surgem, sendo capaz de praticar com atenção, olhando profundamente.
Observe a natureza impermanente e interdependente de seu corpo, observe que ele não tem
uma entidade permanente. Assim, você não mais se identificará com o corpo nem o considerará
como sendo o “eu”. Veja seu corpo como uma formação, vazio de substância própria que possa
ser denominada “eu”. Veja o corpo como um oceano cheio de ondas ocultas e monstros marinhos.
Por vezes, o oceano pode se mostrar calmo, mas em outros momentos é surpreendido por uma
tempestade. Aprenda a acalmar as ondas e dominar os monstros marinhos, sem se deixar arrastar
nem ser apanhado por eles. Através da prática da observação profunda, o corpo deixa de ser um
agregado de apegos e desejos (upadana skandha), e você conquista a liberdade, para que nunca
mais se sinta prisioneiro do medo.

O 2O. AGREGADO SÃO AS SENSAÇÕES (VEDANA). Existe um rio de sensações dentro de nós, e cada
gota desse rio representa uma sensação. Para observar nossas sensações, sentamo-nos na margem
do rio e identificamos cada uma à medida que passa por nós. Pode ser agradável desagradável
ou neutra. Uma sensação qualquer permanece por algum tempo, e a seguir surge outra. A
meditação implica ter consciência de cada uma dessas sensações. Reconhecê-la, sorrir para
ela, contemplá-la e acolhê-la com todo o coração. Se continuarmos com a contemplação,
descobriremos a verdadeira natureza da sensação, e não teremos mais medo, nem mesmo quando for
uma sensação dolorosa. Saberemos que somos muito mais do que as nossas sensações, e que somos
capazes de acolher cada sensação e lidar com ela.
Ao contemplar profundamente cada sensação, identificamos suas raízes dentro do corpo, das
nossas percepções e da nossa consciência profunda. A compreensão de uma sensação é o início de
sua transformação. Aprendemos a acolher até mesmo as emoções mais fortes, usando a energia da
atenção plena, até que elas se acalmem. Praticamos a respiração consciente, focalizando a
atenção no abdome, que se eleva e se retrai a cada respiração. Cuidamos de nossas emoções da
mesma forma que cuidaríamos de um irmão ou irmã pequenos, se fosse preciso.
Praticamos olhando profundamente nossas sensações e emoções, para identificar os
nutrientes que as alimentaram. Sabemos que se formos capazes de ingerir nutrientes melhores,
nossas sensações e emoções mudarão. Nossas sensações são apenas formações, impermanentes e
sem substância. Aprendemos a não nos identificar com elas, a não considerá-las como nós
mesmos, a não nos refugiar nelas, e a não morrer por causa delas. Esta prática nos ajuda a
cultivar o destemor, e nos liberta do hábito de ficar agarrados às coisas, até mesmo ao
sofrimento.

O 3O. AGREGADO CONSISTE NAS PERCEPÇÕES (SAMJNA). Dentro de nós corre um rio de percepções.
Elas surgem, permanecem por algum tempo, e depois desaparecem. O agregado da percepção é
composto da ação de prestar atenção, de nomear, formular conceitos, e também daquele que
percebe e daquele que é percebido. Quando percebemos algo, normalmente distorcemos o que foi
percebido, o que costuma ocasionar diversos sentimentos dolorosos. Nossas percepções são
freqüentemente errôneas, e quem sofre com isso somos nós. É muito útil contemplar a natureza
de nossas percepções sem muitas certezas. Quando temos certezas demais, acabamos sofrendo.
Uma pergunta que se revela muito útil é: “Será que tenho certeza disto?” Se nos fizermos
sempre esta pergunta, há uma boa oportunidade de olhar novamente e verificar se nossa
percepção original estava errada. Aquele que percebe e aquilo que é percebido são
inseparáveis. Quando alguém percebe erroneamente, a coisa percebida também está incorreta.
Um homem estava remando seu barco correnteza acima quando de repente viu outro barco vindo
em sua direção. Gritou diversas vezes “Cuidado, cuidado!”, mas o outro barco continuou sem se
desviar, até colidir, quase afundando o seu barco. O homem ficou furioso e começou a gritar,
mas ao olhar melhor constatou que não havia ninguém no outro barco. O barco estava
desgovernado, descendo o rio à deriva, e o homem acabou dando boas gargalhadas. Quando nossas
percepções são corretas, elas fazem com que nos sintamos melhor, mas quando estão erradas,
geram inúmeras e desagradáveis sensações. Temos que observar as coisas com atenção, para
evitar sofrimento ou sensações difíceis. A percepçõe é um elemento fundamental do nosso bem-
estar.
Nossas percepções são condicionadas pelas aflições já presentes em nós: a ignorância, os
desejos, o ódio, a raiva, o ciúme, o medo, a força do hábito etc. Percebemos os fenômenos
sempre através de nossa falta de compreensão da impermanência e da interdependência das
coisas. Ao praticar a atenção plena, a concentração e o olhar em profundidade, descobrimos os
erros contidos em nossas percepções e nos livramos do medo e do apego. Todo sofrimento nasce
de percepções errôneas. A compreensão, que é o fruto da meditação, pode dissolver nossas
percepções enganosas e nos liberar. Temos que estar sempre alertas, para não nos refugiar nas
percepções. O Sutra do Diamante nos lembra: “Onde há uma percepção, há um engano”. Seria
ótimo se conseguíssemos substituir as percepções por prajna, a visão verdadeira, a sabedoria
real.

O 4O. AGREGADO SÃO AS FORMAÇÕES MENTAIS (SAMSKARA). Qualquer coisa que seja feita de
outro elemento é uma “formação”. Uma flor é uma formação, porque ela é feita de luz do sol,
de nuvens, sementes, terra, minerais, jardineiros etc. O medo também é uma formação, uma
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formação mental. Nosso corpo é uma formação física. Sensações e percepções são formações
mentais, mas como são muito importantes, receberam uma categoria própria. De acordo com a
Escola Vijnanavada, originária da linha de Transmissão do Norte, existem cinqüenta e uma
categorias de formações mentais.
O Quarto Agregado consiste em quarenta e nove dessas formações mentais (excluindo-se as
sensações e as percepções). Todas as cinqüenta e uma formações estão presentes dentro da
consciência armazenadora, sob a forma de sementes (bijas). Cada vez que uma semente é
afetada, ela se manifesta nas camadas superiores da nossa consciência (mente consciente) como
uma formação mental. Nossa prática consiste em estar consciente dessas manifestações, bem
como da presença das formações mentais, contemplando-as em profundidade para observar sua
verdadeira natureza. Como já sabemos que todas as formações mentais são impermanentes e sem
substância real, não nos identificaremos com elas nem buscaremos refúgio nelas. Com a prática
diária, poderemos nutrir e desenvolver formações mentais saudáveis, transformando as não-
saudáveis. O resultado dessa prática será a liberdade, a ausência de medo e a paz interior.

O 5O. AGREGADO É A CONSCIÊNCIA (VIJNANA). A palavra consciência nesse contexto significa


a consciência armazenadora, aquilo que está por baixo de tudo o que somos, o alicerce sobre o
qual erigimos nossas formações mentais. Quando as formações mentais não estão manifestadas,
estão armazenadas na consciência armazenadora [alayavijnana] sob a forma de sementes -
sementes de alegria, paz, compreensão, esquecimento, ciúme, medo, desespero, e assim por
diante. Da mesma forma que existem cinqüenta e uma categorias de formações mentais, existem
cinqüenta e uma categorias de sementes enterradas profundamente no solo de nossa consciência.
Cada vez que regamos uma delas, ou permitimos que outra pessoa as irrigue, essa semente vai se
manifestar e se tornar uma formação mental. Temos que ter cuidado na escolha das sementes a
serem regadas por nós e pelos outros. Se deixarmos que as sementes negativas cresçam,
eventualmente seremos arrastados por elas. O Quinto Agregado, a consciência, contém em si
todos os outros agregados e é a base de sua existência.
A consciência é, ao mesmo tempo, coletiva e individual. O coletivo é feito daquilo que é
individual, e o individual é feito do coletivo. Nossa consciência pode ser transformada
através da prática do consumo cônscio, do uso consciente dos sentidos e da contemplação
profunda. A prática deve se voltar para a transformação tanto dos aspectos individuais quando
dos aspectos coletivos da consciência. É essencial praticar em companhia da Sangha, para poder
produzir essa transformação. Quando as aflições que existem dentro de nós são transformadas,
nossa consciência se converte em sabedoria, emitindo a luz que indica o caminho da libertação,
tanto para indivíduos quando para toda a sociedade.
Os Cinco Agregados são interdependentes. Quando nos ocorre uma sensação dolorosa, devemos
olhar para o corpo, para as nossas percepções, nossas formações mentais e nossa consciência,
procurando a causa dessa sensação. Se tivermos uma dor de cabeça, a sensação dolorosa vem do
Primeiro Agregado. Sensações dolorosas também podem se originar das formações mentais ou das
percepções. Você pode, por exemplo, pensar que alguém o detesta, quando na verdade essa
pessoa o ama.
Observe com atenção os cinco rios que correm dentro de você e veja como cada um deles
contém em si os outros quatro. Olhe para o rio do corpo. No início você pode achar que o
corpo é apenas físico e não mental. Só que cada célula de seu corpo contém dentro dela todas
as informações contidas no seu corpo inteiro. Hoje em dia já é possível duplicar o corpo
inteiro a partir de uma única célula, o que chamamos de clonagem. A unidade contém o todo.
Uma única célula do seu corpo contém seu corpo inteiro. Isso significa que todas as
sensações, percepções, formações mentais e consciência estão contidas em uma única célula -
não apenas os nossos, mas também os de nossos pais e de nossos ancestrais. Cada agregado
contém todos os outros agregados. Cada sensação contém em si todas as percepções, formações
mentais e consciência. Ao observar uma sensação, podemos descobrir nela os outros elementos.
Observe à luz da interdependência, e verá o todo na unidade e a unidade no todo. Não pense
nem por um instante que o corpo existe fora das sensações ou que as sensações existem fora do
corpo.
No Sutra Girando a Roda, o Buda diz: “Quando nos apegamos aos Cinco Agregados, eles
produzem sofrimento”. Ele não disse que os agregados são, por si mesmos, o sofrimento. Há uma
imagem no Sutra Ratnakuta que nos pode ser útil. Um homem joga um bolo de terra para um
cachorro. O cachorro olha para o bolo de terra e late furiosamente, porque não entende que é
o homem, e não o bolo de terra, o responsável por sua frustração. O sutra continua: “Da mesma
maneira, uma pessoa comum, presa a conceitos dualistas, pensa que os Cinco Agregados são a
causa de seu sofrimento, enquanto na verdade a raiz do sofrimento está na falta de compreensão
da natureza impermanente, sem existência separada, e interdependente dos Cinco Agregados”. Não
são os Cinco Agregados que nos fazem sofrer, mas a forma como nos relacionamos com eles. Ao
observarmos a natureza impermanente, interdependente e sem existência própria de tudo o que
existe, não sentimos aversão pela vida, mas, ao contrário, constatamos como a vida é preciosa.
Sempre que não entendemos muito bem, apegamo-nos demais, ficando presos às coisas. No
Ratnakuta Sutra, os termos “agregado” (skandha) e “agregado do apego” (upadana skandha) são
usados. Os skandhas são os Cinco Agregados que dão origem à vida. Upadana skandhas são os
mesmos Cinco Agregados vistos como objetos de apego. A raiz de nosso sofrimento não está nos
agregados em si, mas em nosso apego. Existem pessoas que, devido à compreensão incorreta da
razão do sofrimento, em vez de lidarem com seus apegos, têm medo dos seis objetos dos sentidos
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e aversão pelos Cinco Agregados. Um Buda é alguém que vive em paz, alegria e liberdade,
alguém que não tem medo nem está apegado a nada.
Quando inspiramos e expiramos e harmonizamos os Cinco Agregados dentro de nós, realizamos
a verdadeira prática. Mas praticar não significa nos limitarmos aos Cinco Agregados internos.
Temos consciência de que os Cinco Agregados também têm raízes na sociedade, na natureza e nas
pessoas com quem vivemos. Medite no conjunto dos Cinco Agregados dentro de você, até poder
ver a unidade que existe entre você e o universo. Quando o Bodhisattva Avalokita contemplou a
realidade dos Cinco Agregados, viu o vazio do “eu”, e se libertou do sofrimento. Se
contemplarmos os Cinco Agregados com consistência, nós também nos libertaremos do sofrimento.
Se os Cinco Agregados retornarem à sua origem, o sentido de “eu” deixa de existir. Enxergar a
unidade dentro do todo significa romper com o apego a uma falsa idéia de “eu”, a convicção de
que o “eu” é uma entidade imutável com existência própria. Romper essa falsa visão significa
se libertar de todos os tipos de sofrimento.
A ESSÊNCIA DO ENSINAMENTO DE BUDA – Thich Nhat Hahn

O UM É O TODO, O TODO É O UM

Quando sentar para meditar, depois de já ter obtido controle da mente, focalize-a na
contemplação da interdependência de todas as coisas. Esta contemplação não é uma reflexão
filosófica da interdependência. É a penetração da mente em si própria, usando o poder da
concentração, para revelar a real natureza do objeto contemplado.
Aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer os ensinamentos da Escola Vijnanavada sabem
que o termo “Vijnana” [consciência] compreende ambos: sujeito e objeto do conhecimento. O
sujeito do conhecimento não pode existir independente do objeto do conhecimento. Ver é ver
alguma coisa, escutar é escutar alguma coisa, estar raivoso é estar com raiva de alguma coisa,
desejar é desejar algo, pensar é pensar alguma coisa, e assim por diante.
Quando o objeto do conhecimento não esta presente, tampouco pode existir o sujeito do
conhecimento.
Meditando sobre a mente, o praticante será capaz de enxergar a interdependência do sujeito
e do objeto do conhecimento.
Quando tomamos consciência de nossa respiração, o conhecimento da respiração é a mente;
quando tomamos consciência de nosso corpo, o conhecimento do nosso corpo é a mente; quando
tomamos consciência dos objetos exteriores a nós, o conhecimento desses objetos é também a
mente. Portanto, contemplar a natureza da interdependência de todos os objetos é também
contemplação da mente.
Todo objeto da mente é a própria mente. No budismo, os objetos da mente são chamados
“dharmas”. Os dharmas são agrupados em cinco categorias:

1. formas físicas e corpóreas


2. sensações
3. percepções
4. formações mentais
5. consciência

Essas categorias se chamam os Cinco Agregados. Contudo, a quinta categoria, a consciência,


contém as outras quatro e é a base de todas elas.
Contemplar a interdependência é um profundo exame dos “dharmas” para penetrar em sua real
natureza, e assim poder vê-los como partes do grande corpo da realidade indivisível. Ele não
pode ser cortado em partes como entidades separadas, com existência própria.
O primeiro objeto de contemplação é a nossa própria pessoa, o agrupamento dos cinco
agregados em nós mesmos. Exatamente em si próprio, o praticante pode contemplar os cinco
agregados que o compõem.

Em seu próprio corpo o praticante se torna cônscio da presença da forma física, dos
sentimentos, das percepções, das funções mentais e da consciência. Ele observa esses objetos
até ver que cada um deles tem uma íntima conexão com o mundo exterior: se o mundo não
existisse o agrupamento dos cinco agregados não poderia igualmente existir. Tome como exemplo
a mesa. A existência da mesa é possível devido à existência de coisas que poderíamos chamar de
mundo da não-mesa: A floresta onde a madeira cresceu e foi cortada, o carpinteiro, o minério
de ferro de onde vieram os pregos e parafusos, e outras inúmeras coisas relativas à mesa,
desde os antecedentes e pais do carpinteiro até o sol e a chuva que propiciaram condições para
crescimento da árvore. Se apreendermos a realidade da mesa, nós veremos que na mesa estão
presentes todas essas coisas que normalmente vemos como mundo da não-mesa. Se você tirar fora
qualquer desses elementos do mundo da não-mesa, e os repuser na sua origem – os pregos de
volta ao minério, a madeira de volta a floresta, o carpinteiro de volta a seus pais, a mesa
não mais existirá.
A pessoa que ao olhar uma mesa veja nela o Universo, esta no verdadeiro Caminho. O
praticante medita na junção dos cinco agregados existentes nele próprio, da mesma maneira. Ele
medita neles, até poder ver a presença da realidade da Unidade em si próprio, e ver que sua
própria vida e a vida do universo são uma só. Se os cinco agregados retornarem à sua origem, o
eu não mais existirá. O mundo alimenta os cinco agregados a cada minuto. O eu não é diferente
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do agrupamento dos cinco agregados. A junção dos cinco agregados desempenha igualmente um
papel importante na formação, criação e destruição de todas as coisas no universo.
Do livro: PARA VIVER EM PAZ - Thich Nhât Hanh

CONSCIÊNCIA – Vijnana

O quinto e último skandha é a consciência, vijnana em sânscrito. Consciência é aquilo


que sabe ou experimenta. Não implica uma consciência mais elevada ou desperta; que é
expressa pela palavra jnana. O prefixo vi em vijnana indica divisão e separação: vijnana é
consciência dividida, dualista. Não é mais total, mas limitada e fragmentada; é separada
de seu original, primordial de conhecimento não-dual e se tornou a consciência comum da
vida diária. Em alguns casos, vi pode indicar até mesmo negação da palavra em que
funciona como prefixo. Metaforicamente, podemos dizer de verdade que a consciência comum
é inconsciência, comparada com o genuíno despertar de jnana. Sempre que falemos de
consciência em psicologia budista, ela se refere à todas as funções da mente não
iluminada, incluindo o que a Psicologia ocidental chama de subconsciente ou inconsciente.
Dizemos que estamos inconscientes durante o sono ou em coma; mas a mente samsárica
subjacente ainda está ativa nesses estados, portanto ainda é categorizada como vijnana.

A consciência possui oito aspectos. Os seis primeiros operam através dos seis
sentidos. Todos os skandhas são interdependentes, e a consciência os permeia a todos;
nenhum deles poderia funcionar sem a presença da consciência, portanto ela já é inerente
mesmo no primeiro, o skandha da forma. Forma é a simples existência dos sentidos e seus
objetos; a consciência os traz à vida, por assim dizer. De sua parte, a consciência se
apóia em todos os outros skandhas para poder operar. Não é uma entidade fixa nem algum
estado abstrato de pura consciência, mas um processo impermanente, mutável, dinâmico. Os
seis primeiros aspectos deste skandha são a consciência da visão, a consciência da
audição, a consciência do olfato, a consciência do paladar, a consciência do tato e a
consciência da mente. Esta última é equivalente à mente racional. Ela coordena a
informação dos outros sentidos e experimenta pensamentos e sentimentos. Tudo que chega
através dos sentidos vindo de fora e todas as idéias e emoções que surgem de dentro
chegam a nós como imagens mentais e servem como objetos da consciência mental. Esses seis
primeiros tipos de consciência estão no nível da vida em vigília.

O sétimo aspecto é chamado de a consciência mental aflita ou impura, e é responsável


pelo nosso sentido de ser. Trungpa Rinpoche a chamava de “a mente nebulosa”, porque está
nublada pela ignorância, a aflição emocional fundamental. Aflição, ou klesha em
sânscrito, quer dizer literalmente “uma dor”, alguma coisa que nos dói ou atormenta. É a
dor de não conhecer nosso ser verdadeiro, indestrutível e desperto. Essa ignorância
permeia a consciência dos seis sentidos, de tal forma que todas as nossas percepções são
imediatamente influenciadas pela confusão. Essa mente nublada é o nível dos sonhos, das
memórias, das imagens subconscientes e da confusa corrente subterrânea dos pensamentos.
Age também como ligação entre as primeiras seis consciências e a oitava, que é a
consciência original, ou “o armazém dos pontos de referência” (Alayavijnana), como
Trungpa Rinpoche a chamava. A sétima consciência (Manas) olha em ambas as direções. Ela
manda mensagens dos sentidos e da faculdade mental para serem mantidos nos bancos de
memória do armazém, e as traz de volta para a superfície quando quer que sejam
necessárias na vida em vigília. Fornece acesso à vasta biblioteca de informação que cada
um de nós possui e que está em constante processamento e utilização enquanto seguimos em
nossas vidas diárias.

A oitava consciência é a base das outras sete. Ela guarda os registros deixados pelas
experiências passadas, que em retorno tornam-se as sementes das experiências futuras. Mas
é difusa e indiferenciada; nem mesmo é dependente deste corpo e desta vida em particular.
É potencialmente um sentido de ser, mas não um indivíduo plenamente formado. Carrega a
continuidade dos efeitos kármicos de uma vida para a próxima, e cria um corpo mental
durante o bardo entre a morte e o renascimento. De algumas formas, corresponde ao nosso
conceito de mente inconsciente, mas é, entretanto chamada de consciência porque está
sempre presente e potencialmente consciente, mesmo em coma ou em sono profundo. Onde quer
que haja mente, haverá consciência, os dois termos são usados de forma intercambiável.
Mente ou consciência está muito intimamente ligada com o prana, a força da vida; é
equivalente à própria vida, porque ainda estamos vivos, enquanto o prana e a mente ainda
não deixaram o corpo, mesmo quando estamos aparentemente “inconscientes”. Através da
meditação, torna-se finalmente possível penetrar nesse nível e transformar a consciência
comum (vijnana) em conhecimento puro e não-dual (jnana). Podemos também olhar para os
oito aspectos da consciência em ordem reversa para ver como eles dão origem ao sentido de
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ser. A oitava é a fonte, Contendo a semente latente do desenvolvimento do ego; é como o


útero do ego. A sétima é o nascimento do ego por causa da ignorância de sua própria
natureza verdadeira; aqui a semente se agita em direção à vida e se torna um broto.
Finalmente, o broto cresce para ser uma planta plenamente desenvolvida com a consciência
mental como seu caule, enquanto as cinco consciências dos sentidos são suas folhas e
flores, brotando do caule e se comunicando com o ambiente. A planta no seu todo é
permeada pelo sabor do “eu, mim, meu”. No nível básico da oitava consciência, o ego é
apenas um potencial, mas do sétimo em diante está presente em toda a experiência. É
difícil até mesmo imaginar a consciência sem um ego. Sentimos que sermos conscientes não
implica de modo algum, automaticamente, estarmos conscientes de algo além de nós mesmos.
Isso acontece por estarmos tão acostumados a pensar em termos de dualidade, com nossa
consciência dividida.

Mas a consciência é exatamente igual a um show de mágicas: quando olhamos com


cuidado, nada está lá e nada realmente aconteceu. Existe apenas uma peça mágica de
aparências, uma dança entre um observador imaginário e um fenômeno imaginado. Outra
analogia é uma bola de cristal, clara e transparente por si só, mas aparentando assumir
todas as várias cores que a rodeiam.

A consciência partilha as qualidades do quinto elemento, o espaço. Como o espaço, ela


é a mais sutil das cinco e permeia todas elas. É a primeira e a última, sua fonte e sua
culminação. A consciência é luminosa. Em essência, ela é o Buda Vairochana, o Iluminador.
Ele incorpora o conhecimento da totalidade, a dimensão toda abrangente da Verdade, a
esfera de todos os fenômenos como eles realmente são. A consciência se expande ao
infinito, não mais autocentrada, porque a distinção entre sujeito e objeto foi
transcendida. Isso não é algum sentimento vagamente oceânico, mas um saber vívido,
preciso e direto das coisas em sua verdadeira natureza. É a mágica genuína do ser sem
ser, experimentando as características do oitavo aspecto de uma maneira completamente
aberta e ilimitada. [...]

O Sutra do Coração, a essência dos Sutras da perfeição da sabedoria, (Sutra


Prajnaparamita) descreve como o bodhisattva Avalokiteshvara olhou com seu olho de
sabedoria para os cinco skandhas e viu o seu vazio. Ele proclamou que: “Forma é vazio, no
entanto vazio também é forma”. O mesmo é verdade sobre os outros skandhas: Sensação é
vazio e vazio é sensação; Percepção é vazio e vazio é percepção; Condicionamento é vazio
e vazio é condicionamento; Consciência é vazio e vazio é consciência”.

A natureza essencial dos skandhas é o vazio; eles não possuem realidade própria. Isso
significa que quando meditamos no vazio, podemos nos libertar das atividades e
características grosseiras dos skandhas e interromper o incansável fluir de causa e
efeito que eles criam constantemente. Paramos de nos apegar à nossa idéia habitual de nós
mesmos e relaxamos na amplidão e na claridade do espaço. Quando as escrituras falam dos
Budas e bodhisattvas entrando em estado de samadhi e transmitindo ensinamentos, como no
Sutra do Coração (Prajnaparamita), eles estão descrevendo estados de meditação que são
acessíveis aos seres humanos. É possível para nós olharmos para o interior de nossa
própria natureza verdadeira assim como Avalokiteshvara o fez.

O que ele viu foi vazio não apenas como uma condição negativa, mas como uma positiva.
O vazio natural espontaneamente se manifesta como o, Universo, com todos os seus
fenômenos maravilhosos e variados. A existência pode não ser real no sentido que temos
sempre imaginado, mas é real em um sentido muito mais maravilhoso, como o jogo do
despertar. Tudo no Universo está contido dentro dos cinco skandhas, e toda expressão de
Iluminação está contida dentro da natureza dos cinco budas. O vazio é inseparável da
luminosidade, o poder criativo da mente desperta e portanto a essência pura dos skandhas
aparece como luz radiante brilhando a partir do coração dos budas.

Os skandhas por si só são neutros: não são algo de que tenhamos que nos
envergonhar ou tentar suprimir. Em qualquer caso, é impossível se livrar deles. Enquanto
estivermos vivos, possuímos os cinco skandhas, mas porque os possuímos temos também a
natureza dos cinco Budas. É simplesmente um processo natural. Enquanto existir um corpo
para receber impressões dos sentidos, haverá sensação, depois percepção e em seguida
elaboração de pensamentos sobre o que foi percebido. Essas elaborações dão surgimento a
um ciclo interminável de pensamentos e ações subsequentes, de tal forma que nos recriamos
continuamente de momento a momento. A prática da meditação possibilita que nos tornemos
desembaraçados do processo como um todo, e paremos de os identificar e nos envolver com
ele. Podemos simplesmente observar o que quer que surja na mente sem nos sentirmos
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orgulhosos dos bons estados mentais ou deprimidos pelos maus. Na meditação, simplesmente
lidamos com a energia básica dos skandhas, que é liberada para se manifestar como padrões
de consciência em vez de confusão. Não precisamos temer a perda de nossos “eus”
transitórios e ilusórios. Mesmo um homem ou mulher plenamente desperto ainda possui um
sentido de identidade pessoal e em geral irradia uma personalidade muito poderosa.

Nossa existência física, sensações, percepções, condicionamentos e todos os conteúdos


da nossa consciência constroem o retrato de quem somos. Agarramo-nos a esse retrato,
temendo a morte e a não-existência. Ao nos identificarmos com os skandhas na verdade
criamos uma nova vida, um novo “eu” a cada momento. Estamos constantemente formando as
condições para nosso renascimento, seja ele na próxima vida ou aqui e agora. Mesmo quando
os skandhas desta vida presente se separam e se dissolvem na morte, a corrente do karma
continua. Ela nunca terminará enquanto nos auto-identificarmos com os skandhas, enquanto
continuarmos a acreditar que realmente somos este corpo e esta mente.
Extraído do livro: VAZIO LUMINOSO de Francesca Fremantle – Ed. Nova Era -

A ORIGEM DO SOFRIMENTO

Nagarjuna disse: Toda ação que nasce do desejo, da aversão e da ignorância produz
sofrimento; toda ação que nasce da ausência de desejo, de aversão e de ignorância produz
felicidade.

“Compreender que a mente dualista, perdida em falsas discriminações, é a origem do


sofrimento sem começo nem fim da própria pessoa e dos outros, é ter uma visão intuitiva
verdadeiramente valiosa que irá modificar profundamente a qualidade de nossa vida diária.
A mente dualista é contraditória por natureza. Ela estabelece um diálogo interior que vem
perturbando a nossa paz. Estamos sempre pensando: “Talvez isto, talvez aquilo, talvez qualquer
outra coisa” – e assim por diante. O pensamento dualista perpetua o conflito dentro da nossa
mente. Ele nos torna agitados e profundamente confusos. Quando chegamos a conclusão de que
essa confusão é o resultado de uma mente condicionada pela visão dualista da realidade, então
poderemos fazer alguma coisa a respeito. Não é suficiente tratar apenas dos sintomas. É claro
que devemos erradicar completamente a origem dos nossos problemas, se quisermos ficar
verdadeiramente livres deles”.
Lama Yeshe: aulas sobre o texto de Maitreya Discriminating between Relative and Ultimate Reality (Dharma-dhatmata vibhanga-karika)

AS QUATRO NOBRES VERDADES

PRIMEIRA NOBRE VERDADE


A Verdade do Sofrimento - Duhkka

Como vocês sabem, a vida é repleta de sofrimentos: o sofrimento do nascimento, o


sofrimento da velhice, o sofrimento da doença, o sofrimento da morte. Há também o sofrimento
da perda de entes queridos, o sofrimento de estar junto de algo que não se gosta, o sofrimento
de não conseguir o que se deseja, o sofrimento de perder suas conquistas...
Todos os seres estão sujeitos à tristeza, à lamentação, à dor, ao desespero, aos
problemas... Buddha não negou a existência de felicidade mundana, mas reconheceu que essas
felicidades são impermanentes.
Reconhecer o sofrimento é o primeiro passo para se encontrar uma saída; é também um
remédio para todas as nossas falsas esperanças e nossa tendência de buscar apoio em prazeres
efêmeros que resultam em decepção. O noticiário da televisão é suficiente para que nos
deparemos com o imenso sofrimento; basta refletir sobre os acontecimentos dolorosos na vida
daqueles que nos cercam, ou explorar as constantes correntes por debaixo de nossos próprios
problemas, para podermos confirmar que a tristeza e o sofrimento permeiam toda a existência.
Tal reconhecimento pode nos devastar e nos esgotar. Perguntamo-nos então como foi que isso
veio a acontecer, sem de fato esperar uma resposta. Os ensinamentos budistas, porém, são
claros quanto a esta questão. O sofrimento, em suas inúmeras manifestações, tem uma única
fonte: a delusão da mente dualista.
COMENTÁRIOS SOBRE TARA VERMELHA – Chagdud Khadro

“Existem três tipos de sofrimento. O primeiro é o sofrimento que se sobrepõe ao


sofrimento.
Uma coisa ruim acontece em cima da outra, e parece não haver justiça alguma no processo.
Quando você pensa que a situação em que está não pode ficar pior, ela fica.
Você perde dinheiro, depois um parente, depois a juventude; há inúmeras maneiras
pelas quais sofremos. O segundo tipo é o sofrimento da mudança. Nada é confiável ou
consistente. Por maior que seja a nossa esperança de ter uma base sólida sobre a qual podemos
nos apoiar, tudo aquilo com que contamos sempre se corrói, criando grande dor. O terceiro é o
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sofrimento que tudo permeia. Da mesma forma que, quando você espreme uma semente de gergelim,
constata que ela está permeada de óleo, pode parecer que a nossa vida seja feliz, mas, quando
somos espremidos, sofremos. Tão certo quanto o fato de que nascemos é o fato de que iremos
ficar doentes, envelhecer e morrer”.
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

O significado comum da palavra “pali” “dukkha” tem a conotação de sofrimento, dor, pena,
aflição. Porém como constituinte da 1a N.V., que representa o ponto de vista de Budha com
respeito a vida e ao mundo, “dukkha” tem um significado profundamente filosófico e conota
sentidos muito mais amplos. Admite-se, entretanto, que na 1a N.V. o termo “dukkha” tem
certamente o significado comum de sofrimento, porém implica, além disso, outras idéias tais
como imperfeição, impermanência, vacuidade, insubstancialidade. Disso resulta difícil
encontrar uma palavra que abarque integralmente o significado de “dukkha”. Portanto, é
preferível não traduzir esta palavra que dar uma idéia inadequada e errônea dela, traduzindo-a
convencionalmente por sofrimento ou dor. Quando diz que existe o sofrimento, Budha não nega a
felicidade existente na vida. Ao contrário, admite diversas classes de felicidade, tanto
materiais como espirituais. A felicidade da vida em família, a felicidade dos prazeres do
sentidos, a felicidade da renúncia, a felicidade da vida de recluso, a felicidade do apego, a
felicidade do desapego, a felicidade física a felicidade mental, etc... Porém tudo isto se
encontra incluído em “dukkha”. Mesmo os puríssimos estados de absorção “dhyana” alcançados
mediante a prática das meditações mais elevadas que estão isentas de toda a sombra de
sofrimento, no sentido corrente da palavra, e podem descrever-se como felicidade inefável,
estão também incluídos em “dukkha”; e ainda o estado de “dhyana” onde não há nem sensações
agradáveis, nem sensações desagradáveis, que é somente equanimidade e pura atenção, é
“dukkha”. Budha diz que mesmo a felicidade inerente a esses estados é impermanente e sujeita a
mudança. Estes estados também são “dukkha” não porque exista o sofrimento no sentido comum da
palavra, mas porque todo o impermanente é dukkha
Budha era realista e objetivo acerca da vida e do regozijo inerente aos prazeres do
sentido, disse que devemos compreender claramente três coisas: 1. Atração ou regozijo. 2. Má
conseqüência, perigo ou insatisfação. 3. Liberdade ou liberação.
Quando vemos uma pessoa agradável, encantadora e bela, esta nos agrada, nos atrai e
sentimos satisfação vendo-a novamente e com freqüência; sua presença nos produz um prazer e
satisfação. Isto é regozijo, é um fato com base na experiência. Mas este regozijo não é
permanente, nem tampouco os atrativos dessa pessoa. Ao mudar a situação, quer dizer, quando
não podemos vê-la ficamos tristes, desequilibrados e até é possível que fiquemos perturbados.
Este é o aspecto mau, insatisfatório e perigoso, que também esta baseado na experiência. Muito
bem, se não sentimos apego por essa pessoa, se estamos completamente desapegados, isto é
liberdade, liberação. No que toca a todos os prazeres da vida estas três coisas são certas. Do
que antecede resulta evidente que isto não tem nada que ver com o pessimismo ou o otimismo,
senão que, para compreender a vida total e objetivamente, é preciso ter em conta os prazeres
desta, suas dores e pesares, assim como a possibilidade de libertar-se deles. Somente assim é
possível a liberação.

O conceito de Dukkha pode ser considerado sob três aspectos:

1. Dukkha como sofrimento comum - dukkha dukkha.


2. Dukkha produzido pela mudança - viparinama dukkha.
3. Dukkha como estados condicionados - samkhara dukkha.

1.DUKKHA DUKKHA
Todas as manifestações do sofrimento inerentes à vida tais como o nascimento velhice, a
doença, a morte, a associação com pessoas e condições desagradáveis, a separação dos seres
amados e das condições agradáveis, não conseguir o que se deseja, a aflição, a angústia; em
fim, tudo o que é aceito universalmente como sofrimento e dor esta incluída em “dukkha” como
sofrimento comum.

2.VIPARINAMA DUKKHA
Tanto uma sensação agradável quanto uma desagradável são impermanentes e não duram. Cedo
ou tarde mudam; quando mudam provocam dor, sofrimento e infelicidade. Essa vicissitude esta
incluída em “dukkha” como sofrimento provocado pela mudança.

3.SAMKHARA DUKKHA
Porém o terceiro aspecto de “dukkha”, quer dizer, enquanto estados condicionados,
constitui a faceta filosófica mais importante da Primeira N.V., e requer algumas explicações
analíticas do que entendemos por “ser”, “indivíduo” ou “eu”. Segundo a filosofia budista, o
indivíduo, o eu é unicamente uma combinação de forças ou energias psicofísicas em perpétua
troca [mudança] que podem dividir-se em 5 grupos ou agregados. Diz Budha: “em suma, estes
cinco grupos ou agregados do apego são dukkha”. Entendamos bem: “dukkha” e os cinco agregados
não são diferentes, mas que em si mesmos são dukkha.
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SEGUNDA NOBRE VERDADE


A Verdade da Causa - Samudaya

É a que trata do surgimento ou origem de “dukkha”. A definição mais popular e conhecida


desta verdade, tal como a encontramos em numerosas passagens dos textos originais, é a
seguinte: Nessa sede, avidez “tanha” que conduz à existência e a reiteradas encarnações, que
esta ligada ao desejo passional e encontra contínuo prazer ora aqui, ora ali, a saber:

1. Sede dos prazeres dos sentidos - Kama-Tanha


2. Sede de existência e de vir-a-ser - Bhava-Tanha
3. Sede de não-existência, auto-aniquilação - Vibhana-Tanha

Essa sede, esse desejo, essa avidez que, manifestando-se de diversas maneiras, faz surgir
todas as formas de sofrimento, assim como a continuidade dos seres. Porém essa sede não deve
ser considerada como a primeira causa. Mesmo essa sede, considerada como a causa ou origem de
“dukkha”, depende do surgimento de outra coisa, ou seja da sensação, e esta surge por
intermédio do contato; assim; sucessiva e dependentemente, atua o ciclo conhecido com o nome
de Gênese Condicionada [Roda da Vida]. Desse modo, “tanha” a sede, não é nem a primeira nem a
única causa do surgimento de “dukkha”. Porém é a causa mais palpável e imediata, “a coisa
principal” e a “coisa que penetra tudo”. O termo sede inclui aqui não somente desejo e apego
pelos prazeres dos sentidos, riqueza e poder, mas também desejo e apego pelas idéias, ideais,
opiniões, teorias, concepções e crenças. Segundo a análise de Budha, todos os sofrimentos,
todos os conflitos do mundo, desde as menores querelas familiares até as grandes guerras entre
nações e povos, surgem dessa sede tanha egoísta. O mundo sofre de frustração, ansiedade,
violência, ansiedade, angústia porque é escravo da sede. Todos admitirão que a totalidade dos
males do mundo são engendrados pelo desejo egoísta. Não é difícil entender isto. Porém não é
tão fácil captar como esta sede pode produzir a existência e o vir-a-ser reiterados. E é aqui
que examinaremos o aspecto filosófico mais profundo da 2a N.V., em relação com a da 1a N.V..
Devemos também ter uma idéia sobre a teoria do “karma”, assim como do renascimento.
Há quatro causas ou condições, necessárias para a existência e a continuidade dos seres:

1. Os alimentos materiais.
2. O contato dos sentidos (inclusive a mente) com o mundo exterior.
3. A consciência e
4. A volição mental ou vontade.

A volição mental é a vontade de viver, de existir e voltar a existir, de continuar, de


seguir reiteradamente no vir-a-ser. Essa vontade engendra a raiz da existência e a
continuidade, como vimos, segundo definição de Budha volição é “karma”. Em conseqüência, os
termos sede, volição, volição mental e “karma”, significam o mesmo: o desejo, a vontade de
ser, de existir e voltar a voltar existir, de vir-a-ser, de acrescentar mais e mais, de
acumular incessantemente. Eis aqui um dos pontos mais importantes e essenciais do ensinamento
de Budha; a causa, o germe, do surgimento de “dukkha” está em “dukkha” mesmo, e não fora dele;
e igualmente o germe da cessação, a destruição de “dukkha” se encontra também em “dukkha” e
não no seu exterior. Este é o significado da bem conhecida fórmula que encontramos a miúdo nos
textos originais pali: “tudo que tenha por natureza o surgimento, também tem por natureza a
cessação”. Assim “dukkha” (os cinco agregados) tem em si mesmo a natureza, o germe de sua
cessação, sua destruição. A palavra “karma” significa literalmente ação, atuar. Porém no
budismo expressa unicamente a ação volitiva, e não todas as ações. Esta palavra não significa
o resultado do “karma”, pois na terminologia budista o “karma” não significa nunca seu próprio
efeito, pois este é conhecido com o nome de fruto ou resultado do “karma”. A volição pode ser
relativamente boa ou má, portanto, o “karma” pode ser relativamente bom ou mau. O bom “karma”
gera bons efeitos e o mau gera maus efeitos. A sede, a volição, o “karma”, sejam bons ou maus,
tem como efeito uma só força: a força de continuar - continuar em uma boa ou má direção. Tudo
o que haja de bom ou mau é relativo, e se encontra dentro do ciclo da continuidade “Samsara”.
A teoria do “karma” é a teoria de causa e efeito, de ação e reação, é uma lei natural que não
tem nada que ver com a idéia de justiça ou de recompensa e castigo. Isso é fácil de
compreender porém o difícil consiste em conceber como os efeitos de uma ação volitiva podem
manifestar-se em uma vida posterior à morte. Portanto devemos explicar o que é a morte segundo
o budismo. Vimos que o ser é somente uma combinação de forças ou energias físicas e mentais. O
que chamamos morte é a paralisação total do corpo. Muito bem, todas essas forças ou energias
se detém juntamente com o não funcionamento do corpo? O budismo diz: Não. A vontade, a
volição, o desejo, a sede de existir, de continuar, de vir-a-ser cada vez maior, é uma força
tremenda que move todas as vidas, todas as existências, no mundo inteiro. É a maior força, a
energia mais poderosa que existe, e não para com a paralisação do funcionamento do corpo, ou
seja, com a morte, mas que continua manifestando-se sob outra forma, produzindo uma nova
existência denominada renascimento. Surge aqui outra pergunta: Se não há uma entidade ou
substância permanente, imutável, um eu ou alma, o que renasce após a morte? Repetimos
freqüentemente que a vida consiste na combinação dos cinco agregados; uma combinação de
energias físicas e mentais que mudam sem cessar e não são as mesmas nem sequer durante dois
momentos imediatamente sucessivos. Nascem e morrem a cada momento. Assim, mesmo no transcurso
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da presente vida, nascemos e morremos a cada momento e, não obstante, continuamos existindo.
Se compreendermos que nesta vida podemos existir continuamente sem uma substância permanente,
seja alma ou eu, porque não compreender então que ditas forças possam seguir atuando depois da
paralisação do corpo, sem ter por trás delas uma alma? Quando o corpo físico não pode mais
funcionar, essas energias não morrem com ele, mas continuam manifestando-se sob outra forma ou
aspecto diferente chamada outra vida. Como não existe uma substância permanente e imutável,
nada passa de um momento para o outro. Em conseqüência nada permanente ou imutável pode passar
de uma vida para outra. A vida consiste em uma série sem solução de continuidade, que muda a
cada momento. Para dizer a verdade, esta série é só movimento, e se assemelha a uma chama que
arde durante toda a noite: não é a mesma chama, nem tampouco outra. Uma criança cresce até
chegar a ser um homem de 60 anos, certamente este não é a criança de antes, mas também não é
outra pessoa. Do mesmo modo, o ser que morre aqui e renasce além, não é o mesmo, porém, também
não é outro ser. É uma continuidade da mesma série. A diferença entre a vida e a morte se
baseia em que unicamente um momento de pensamento, o último momento de pensamento nesta vida,
condiciona o primeiro momento de pensamento da chamada vida seguinte que, na realidade, é a
continuação da mesma série. Enquanto há sede de existir e de vir-a-ser, o ciclo da
continuidade samsara prossegue. Somente poderá deter-se quando sua força diretriz, quer dizer,
esta sede seja desarraigada mediante a Sabedoria que vê a Realidade, a Verdade, o “Nirvana”.

“A origem do sofrimento é o desejo sensual, o desejo de existência, o desejo de não-


existência, o desejo de auto-aniquilação”.

A união dos cinco agregados faz surgir a ilusão de um ego. Nunca conseguimos satisfazer os
inúmeros desejos desse ego impermanente, sem essência própria, sofredor. Dessa ilusão inicial,
ou avidya, surgem os três venenos (sânsc. klesha): o desejo (apego), o ódio (aversão) e a
ignorância (desconhecimento). Do mesmo modo, surgem todos os outros venenos mentais, como o
orgulho, a inveja etc. [as seis emoções perturbadoras]
Para compreender como o sofrimento aparece, pratique observar a sua mente. Comece
simplesmente deixando-a relaxar. Sem pensar no passado nem no futuro, sem sentir esperança nem
medo em relação a isto ou aquilo, deixe que ela repouse confortavelmente, aberta e natural.
Nesse espaço da mente não há problemas, não há sofrimento. Então, alguma coisa prende a sua
atenção; uma imagem, um som, um cheiro. Sua mente se subdivide em interno e externo, “eu” e
“outro”, sujeito e objeto. Com a simples percepção do objeto, não há ainda nenhum problema.
Porém, quando você se foca nele, nota que é grande ou pequeno, branco ou preto, quadrado ou
redondo. Então, você faz um julgamento; por exemplo, se o objeto é bonito ou feio. Tendo feito
esse julgamento, você reage a ele: decide se gosta ou não do objeto.
É aí que o problema começa, pois “Eu gosto disto” conduz a “Eu quero isto”.
Igualmente, “Eu não gosto disto” conduz a “Eu não quero isto”. Se gostarmos de alguma coisa,
se a queremos e não podemos tê-la, nós sofremos. Se a queremos, a obtemos e depois a
perdemos, nós sofremos. Se não a queremos, mas não conseguimos mantê-la afastada, novamente
sofremos. “Nosso sofrimento parece ocorrer por causa do objeto do nosso desejo ou aversão, mas
realmente não é bem assim; ele ocorre porque a mente se biparte na dualidade, sujeito-objeto,
e fica dividida com querer ou não querer alguma coisa”.
BUDISMO – Psicologia do Autoconhecimento – Dr. Georges da Silva e Rita Homenko

TERCEIRA NOBRE VERDADE


A Verdade da Cessação - Nirodha

Extinguindo-se a causa, extinguindo-se o falso ego, o sofrimento também desaparece.


Aqui, aplica-se a lógica da interdependência. A existência do sofrimento depende de sua
causa; se essa causa for eliminada, suas conseqüências (sofrimento, desejo, ódio, ignorância)
também desaparecerão.
A Terceira Nobre Verdade é a que trata sobre a cessação de “dukkha”. Estabelece que
podemos liberar-nos do sofrimento, da continuidade de “dukkha”; e esta liberação é “Nirvana”.
Para conseguir isto é preciso eliminar a raiz principal de “dukkha”, ou seja, a sede “tanha”.
Por isso o “Nirvana” é também chamado a extinção da sede tanhakkhaya. O que é “Nirvana”?
Tentaremos dar uma idéia citando algumas definições e descrições de “Nirvana”, consignadas nos
textos originais pali; “É a completa extinção da sede tanha; é desistir, renunciar, emancipar-
se e desapegar-se dela”. “É a extinção do desejo, a extinção do ódio, a extinção da ilusão”.
“O abandono e a destruição do desejo e da avidez pelos cinco agregados do apego: isto é a
cessação de “dukkha”. “A cessação da continuidade e do vir-a-ser é o Nirvana”. É um erro
pensar que o Nirvana é o resultado natural da extinção da avidez, pois o Nirvana não é o
resultado de nada. Se fosse um resultado, então seria um efeito produzido por uma causa; seria
produzido e condicionado. O Nirvana não é nem causa nem efeito; esta além das causas e dos
efeitos. A Verdade não é nem um resultado nem um efeito. Não é produzida como os estados
místicos, espirituais ou mentais chamados “dhyana” e “samadhi”. A Verdade É. O Nirvana É. A
única coisa que podemos fazer a esse respeito é vê-la por percepção direta, experimenta-la. Há
um caminho que conduz a experiência do Nirvana, porém este não é o resultado do caminho.
Podemos chegar ao cume de uma montanha seguindo um caminho, porém a montanha não é nem o
resultado nem o efeito do caminho. Há uma outra pergunta corrente: “Se não existe um eu, quem
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apreende o Nirvana? Mais atrás vimos que quem pensa é o pensamento, e que atrás deste não há
um pensador. Igualmente, é a sabedoria ou apreensão quem apreende; por traz da apreensão não
há um eu. Dukkha, o Samsara, o ciclo da continuidade tem por natureza o surgimento; assim tem
que ter também por natureza o cessar. Dukkha surge por causa da sede e cessa devido a
Sabedoria (Prajna, Pañña).
E como vimos, a sede e a Sabedoria se acham incluídos nos cinco agregados. Isto quer dizer
que não existe nenhuma potência externa produtora do surgimento e da cessação de “dukkha”. O
Nirvana pode ser experimentado nesta vida; não é necessário esperar a morte para “alcançá-lo”.
Quem experimentou o Nirvana é o mais feliz dos seres. Acha-se livre de todos os complexos,
obsessões, turbações que nos atormentam. Sua saúde mental é perfeita. Não se arrepende do
passado, nem especula sobre o futuro, mas vive inteiramente no presente. Portanto aprecia
todas as coisas e goza delas no sentido mais puro, sem auto-projeções. É feliz, desfruta da
vida pura, suas faculdades estão satisfeitas, esta livre da ansiedade, é sereno e pacífico.
Esta livre de todos os desejos egoístas, do ódio, do orgulho, assim como de outras máculas
semelhantes, é puro, pacífico, está cheio de amor universal, compaixão, bondade, simpatia,
compreensão e tolerância. Não busca nenhum ganho, não acumula nada, nem sequer algo
espiritual, porque esta livre da ilusão do eu e da sede do vir-a-ser. O Nirvana encontra-se
além da lógica e do raciocínio. Por conseguinte por mais que iniciemos discussões
especulativas acerca do Nirvana nunca o compreenderemos desse modo. O Nirvana deve ser
experimentado pelos sábios no interior de si mesmos.

QUARTA NOBRE VERDADE


A Verdade do Caminho - Marga

A 4a N.V. é o caminho que conduz a cessação de “dukkha” o qual é também conhecido como o
Caminho do Meio, pois evita os extremos: um é a busca da felicidade por meio dos prazeres do
sentido, o outro a mortificação de si mesmo mediante distintas formas de ascetismo. Budha
provou estes dois extremos e tendo reconhecido a inutilidade de ambos descobriu pela própria
experiência, O Caminho do Meio que é denominado geralmente de Caminho Óctuplo.

O CAMINHO ÓCTUPLO
(sânsc. ashtanga-marga)

É assim chamado por ser dividido em oito partes. Este é o caminho do meio, o caminho do
despertar, que conduz ao estado de nirvana; a extinção total do sofrimento.
“Primeiro, é preciso conhecer a existência do sofrimento. Depois, deve-se destruir
sua causa. Para isso, deve-se compreender que a cessação do sofrimento é possível. Para
consegui-la, deve-se então praticar o caminho. Eu conheci a existência do sofrimento, destruí
sua origem, compreendi sua cessação e pratiquei o caminho. Assim, obtive a iluminação
insuperável, completa e perfeita. O sofrimento, a causa, a cessação e o caminho são as quatro
verdades nobres. Sem conhecê-las, ninguém pode conseguir a iluminação. Quem compreendê-las
perfeitamente, pode se libertar de todos os sofrimentos”.

SABEDORIA (Prajna)
1. Visão correta (samyak-drishti)
2. Motivação correta (samyak-samkalpa)
3. Fala correta (samyak-vach)

ÉTICA (Shila
4. Ação correta (samyak-karmata)
5. Meio de vida correto (samyak-ajiva)
6. Esforço correto (samyak-vyayama)

CONCENTRAÇÃO (Samadhi
7. Atenção correta (samyak-smiriti)
8. Concentração correta (samyak-samadhi)

O nobre caminho óctuplo oferece um compreensivo guia prático para o desenvolvimento das
qualidades e habilidades benéficas no coração humano, que devem ser cultivadas para levar o
praticante à meta final, a liberdade e felicidade supremas do nirvana. (...)
O progresso pelo caminho não permite uma simples trajetória linear. Ao invés disso, o
desenvolvimento de cada aspecto do nobre caminho óctuplo encoraja o refinamento e
fortalecimento dos outros aspectos, conduzindo o praticante cada vez mais à frente na espiral
ascendente da maturidade espiritual que culmina no despertar.
WHAT IS THERAVADA? – John Bullit

PRAJNA, a Sabedoria.
1. Visão correta (sânsc. samyak-drishti): O conhecimento das quatro verdades nobres, da
interdependência etc. constituem a visão correta da realidade.
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2. Intenção correta (sânsc. samyak-samkalpa): é a atitude de renunciar às atitudes


negativas e cultivar a bondade, a bodhichitta e a não-agressão.

SHILA, a Ética.
3. Fala correta (sânsc. samyak-vach): não se deve mentir, difamar, falar rudemente ou
tagarelar, mas falar sim de maneira honesta, harmoniosa, reconfortante e significativa.
4. Ação correta (sânsc. samyak-karmata): não matar, não roubar, não ter má conduta sexual,
não tomar drogas ou tóxicos, etc.
5. Meio de vida correto (sânsc. samyak-ajiva): o meio de vida deve seguir os preceitos
citados anteriormente.

SAMADHI, a Concentração.
6. Esforço correto (sânsc. samyak-vyayama): não se deve viver de modo negativo ou repetir
os erros da passado, mas sim desenvolver cada vez mais as atitudes positivas.
7. Atenção correta (sânsc. samyak-smiriti): é a contemplação do corpo, dos sentimentos, da
mente, dos fenômenos.
8. Concentração correta (sânsc. samyak-samadhi): é a meditação praticada com o esforço
correto e com a atenção correta.

Deve ter ficado claro que as Quatro Nobres Verdades são o conceito central do Budismo. O
que Buda ensinou durante 45 anos abarca essas verdades, quer dizer Dukkha; o sofrimento ou
insatisfação, sua produção, seu cessar e o caminho para abandonar este estado inaceitável. O
que chamamos homem é, em último termo, uma combinação de mente e corpo, ou dos cinco agregados
do apego. No plano humano, Dukkha não existe nem pode existir independentemente do homem, sua
mente e seu corpo. Portanto, resulta claro que Dukkha não é senão o próprio ser humano. Como
foi dito “os cinco agregados do apego são dukkha”. Sabemos que a 2a. N.V. é Tanha o desejo ou
a sede, que é a produção de Dukkha. E onde surge esse desejo? Onde estão os cinco agregados do
apego, ai se produz este desejo. A 3a. N.V. é a aniquilação, o cessar do desejo, Nirvana - a
liberação final - Isto também não é algo exterior ao homem. A 4a. N.V. é o caminho que nos
permite escapar deste estado insatisfatório, destas existências repetidas, Samsara. Muito bem,
se fizermos uma análise atenta, perceberemos que, o que aqui se pretende é mostrar (Samsara e
sua causa), e (Nirvana e o caminho que conduz a ele). Samsara não é senão uma sucessão dos
agregados do apego, mentais e corporais; em outras palavras, as existências repetidas. Nesse
sentido, Samsara é outro nome do homem cuja substância compõe os agregados do apego. Esta é a
1a. N.V. Na 2a. N.V. captamos a causa e condição de samsara. Na 3a. N.V. apreciamos o cessar de
Samsara, que é a suprema emancipação da escravidão - Nirvana -. É bom destacar que, Samsara se
opõe diretamente a Nirvana. O homem que está preso aos prazeres dos sentidos não esta liberado
de Samsara. Ao contrário, o que se libertou, experimenta a, bem-aventurança do Nirvana, aqui e
agora. A 4a. N.V. É O Nobre Óctuplo Caminho, é o único aspecto que ocupa da prática. O Caminho
é um conjunto de meios que nos permitem sair do enredamento de Samsara e realizar Nirvana. Não
há atalhos que conduzam a Paz e Felicidade Verdadeiras. É uma disciplina gradual, uma
instrução em palavras, atos e pensamentos que proporcionam uma autêntica sabedoria, que
culmina na iluminação total, na realização do Nirvana.
BUDISMO – Dr Georges da Silva/Rita Homenko
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CONSCIÊNCIA PRIMORDIAL, CONSCIÊNCIA INDIVIDUALIZADA

O fundamento da mente é bom em si mesmo. É a natureza do Despertar, semelhante a água


pura.
O Buddha disse:
“Todos os seres são Budha,
Mas a mente deles é obscurecida por impurezas adventícias.
Dissolvidas as impurezas, eles são verdadeiramente Budha”.

A ignorância é o não reconhecimento da natureza Desperta da mente. Dela procedem todas as


emoções conflituosas (desejo, ódio, ciúme etc.), assim como o fluxo dos pensamentos em modo
dual. A natureza de Buddha da mente é ainda chamada potencial da consciência primordial.
Entretanto, por causa da ignorância e da apreensão dual, seu funcionamento perturbado torna-se
um potencial de consciência individualizada1. Quando uma água pura é misturada com lama, ela
perde sua qualidade de pureza e torna-se suja. Do mesmo modo, por causa das impurezas, a
consciência primordial torna-se consciência individualizada.

AS CONSCIÊNCIAS DIFERENCIADAS

Essa consciência individualizada é, enquanto modo de funcionamento, uma unidade designada


pelo termo “potencial de consciência individualizada”1. Dessa unidade, procedem, entretanto,
sete consciências individualizadas diferenciadas, assim como os dedos são diferenciações de
uma única mão. Elas são:

1. a consciência visual, que percebe as formas;


2. a consciência auditiva, que percebe os sons;
3. a consciência olfativa, que percebe os odores;
4. a consciência gustativa, que percebe os sabores;
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5. a consciência tátil, que percebe os contatos;


6. a consciência mental, que identifica os fenômenos pelo pensamento;
7. a consciência perturbada, que interpreta a percepção em termos de desejo, aversão,
ciúme etc.
8. a consciência Base Alayavijnana

OS ÓRGÃOS ORIUNDOS DAS CONSCIÊNCIAS

Da faculdade de manifestação da mente surge o corpo. Os dois estão, portanto,


estreitamente ligados. A existência das oito consciências na mente origina a existência no
corpo dos suportes físicos correspondentes que são os órgãos dos sentidos. Os órgãos são
semelhantes às casas, inertes em si, e as consciências aos homens que as habitam. Temos então:

1. os olhos como suporte da consciência visual;


2. os ouvidos como suporte da consciência auditiva;
3. o nariz como suporte da consciência olfativa;
4. a língua e o paladar como suportes da consciência gustativa;
5. a epiderme como suporte da consciência tátil;
6. o órgão mental como suporte da consciência mental, embora aqui o órgão e a consciência
se confundam na prática.

Quanto ao potencial de consciência individualizada e a consciência perturbada, elas não


possuem órgão correspondente que lhes seja próprio. Pode-se dizer que o primeiro tem como
suporte o corpo em geral e a segunda, o conjunto dos órgãos dos sentidos.

O tibetano, neste ponto, é mais específico que o sânscrito que se contentava em dizer
jnana e vijnana. O primeiro termo significa simplesmente consciência, sem outra precisão, o
segundo, com o acréscimo do prefixo vi, significando, como em tibetano, consciência
individualizada. Acrescentando um prefixo ao primeiro termo, os tradutores tibetanos afastaram
qualquer risco de um falso sentido, sublinharam o sentido profundo das palavras. Enfim, para
evitar qualquer ambiguidade, lembremos que o potencial de consciência individualizada não é um
inconsciente coletivo, mas o potencial próprio de cada indivíduo, contendo as marcas cármicas
acumuladas por ele e que amadurecerão somente para ele.

OS OBJETOS DOS SENTIDOS

Enfim, as consciências encontram seu reflexo, do ponto de vista exterior, nos objetos dos
sentidos:

• as formas são o objeto da consciência visual;


• os sons, o objeto da consciência auditiva;
• os odores, o objeto da consciência olfativa;
• os sabores, o objeto da consciência gustativa;
• os contatos, o objeto da consciência tátil;
• os fenômenos mentais (os pensamentos), o objeto da consciência mental.

Os fenômenos exteriores podem também ser vistos como objetos do potencial da consciência
individualizada, e os fenômenos, enquanto objetos das emoções conflituosas, como reflexos
exteriores da consciência perturbada.
Quando a mente é obscurecida pela ignorância, seu modo de funcionamento e de relação com o
mundo é regido, assim, por um processo em três níveis:

• interiormente: as consciências individualizadas;


• no nível intermediário: os órgãos dos sentidos;
• exteriormente: os objetos dos sentidos.
Do livro: ENSINAMENTOS FUNDAMENTAIS DO BUDISMO TIBETANO – Kalu Rinpoche

AS NOVE CONSCIÊNCIAS

O budismo identifica nove funções espirituais de percepção, as Nove Consciências.


As cinco primeiras são as percepções sensoriais obtidas por meio dos cinco órgãos dos
sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. Somando-se aos cinco sentidos, há mais
quatro tipos de consciência relacionadas com a mente. São as seguintes:
Sexta consciência, a mais superficial delas: tem o poder de integrar os cinco sentidos e
julgar de forma decisiva. É a consciência comum, presente em todos os seres vivos dotados de
um sistema nervoso central.
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Sétima consciência ou consciência manas (em sânscrito): ocupa-se das atividades mentais,
independentemente das informações sensoriais externas. Ela se manifesta somente nos seres
humanos, os únicos dotados de razão.
Oitava consciência ou consciência alayavijnana: é o repositório onde estão guardadas todas
as memórias de vidas passadas. No alaya estão todas as sementes, hábitos, experiências,
condicionamentos ou marcas cármicas, que determinam as características mentais e espirituais
de muitas vidas.
Nona consciência ou consciência amala: é o nível fundamental, onde é encontrada a
realidade universal verdadeira, ou a vida em sua forma universal. A nona consciência é que
possibilita a todos se tornarem felizes. É o Estado de Buda, que podemos realizar por meio do
Budismo.
Fontes de consulta: “Diálogos sobre a vida”, Daisaku Ikeda, Editora Brasil Seikyo, 1a edição, 1980; Revista “Terceira Civilização” de abril de 1999 (encarte); Revista “Terceira

Civilização”, meses de agosto e setembro de 2003, artigo “Diálogos sobre a filosofia budista – Nove Consciências”.

Ego – O budismo considera o ego como profundamente ligado à Sétima Consciência ou


consciência manas. A consciência manas é um produto da razão, privilégio dos seres humanos. A
razão age procurando ordem e leis simplificadoras no emaranhado das sensações e dos estímulos
que recebemos continuamente do ambiente em que vivemos. Representa a infindável busca do homem
pela decifração do enigma da vida, tarefa angustiante e insaciável, mas que o impele
continuamente à conquista dos segredos do universo. Nesse mister, a matéria prima com que ele
trabalha não se limita às sensações que recebe do ambiente através dos sentidos durante toda a
sua atual existência, mas inclui também, e principalmente, toda a experiência adquirida em
existências anteriores, incluído aí o carma positivo ou negativo que traz consigo.
A sétima consciência, ou manas, juntamente com a oitava consciência, ou alaya, têm grande
influência em nossa vida. A consciência manas comanda as nossas sensações, percepções e os
nossos preconceitos (a visão cármica). É uma função do pensamento, opera por nossa própria
iniciativa, independentemente das condições externas e está profundamente ligada ao nosso ego.
A consciência manas corresponde aos estados de erudição e absorção por sua propensão ao
egoísmo, à arrogância e ao auto-apego. Nessa consciência é que manifestamos, por exemplo, a
maneira como concebemos um determinado fato ou como nos comportamos ante uma determinada
situação. Ela é conhecida também como a consciência do “apego” e do “amor-próprio”. Associada
à tendência cármica, que se encontra na oitava consciência, é a consciência manas que nos leva
a reagir de determinado modo em cada situação.

ALAYAVIJNANA E MANAS

A aula de hoje será sobre a consciência de Manas e a consciência de Alaya. Com a noção de
subconsciência, os budistas descobriram conjuntamente as consciências de Manas e de Alaya. A
sétima consciência de Manas é a consciência do egocentrismo. A oitava, Alaya, é o depósito de
nossas experiências passadas.
Em primeiro lugar, a consciência de Alaya é a origem de todas as existências. Há olho e a
função do olho, e eles surgiram da consciência de Alaya. E não somente isso, mas esse corpo,
esse ambiente, a natureza, a casa, a montanha, tudo vem da consciência do Alaya. Por isso é
que se chama Alaya Vijnana, consciência de depósito. Com a palavra Alaya podemos nos lembrar
de Himalaya. Hima significa neve, então Himalaya, é onde se deposita ou guarda a neve. A
palavra Alaya quer dizer depósito. É onde todas as experiências e nascimentos estão
depositados, como uma semente que amadurece com o tempo, que cria outra semente e a deposita
quando encontra condições favoráveis, como solo, água, terra e adubos. Então, esta semente
brota. As sementes boas dão frutos bons. Nesta teoria da Alaya Vijnana, a pessoa está vendo
aquilo que ela criou como substância e objeto e está depositando o Karma: atos bons e ruins,
como semente.
O treinamento do budismo é transformar todas as sementes ruins em sementes boas. Precisa
trabalhar cem, mil, milhares de vezes, e se conseguimos transformar esta consciência de Alaya
em sementes boas, então a sua existência, espiritual e física, se torna totalmente boa. Não
somente o corpo e o espírito se tornam bons como Alaya cria todos os fenômenos do mundo e
assim todo mundo se torna bom. Nós nos tornamos Buda e vemos aquele mundo que é de Buda. Os
mundos inferiores, como o inferno, animais e demônios famintos, e os estados inferiores de
consciência desaparecem. É muito importante realmente ver as coisas deste mundo, o corpo e a
natureza, a partir da consciência de Alaya.

A Alaya cria todas as consciências (as sete consciências), cria os corpos e o meio
ambiente. Tudo é criado pela Alaya. A característica desta consciência de Alaya é que,
primeiramente, ela guarda todas as ações do Karma. Passado e todas as experiências passadas
estão guardadas como uma semente. Esta semente, ao mesmo tempo em que ela é o resultado do
Karma é também a possibilidade de se criar uma ação nova. Mas o Karma não é destino. Podemos
mudar o destino com a nossa prática porque tudo está depositado e registrado dentro da Alaya
e, deste modo, o que está depositado — o mundo da pessoa — começa a mudar e a personalidade
também. É como o perfume: o conhecimento, a cultura e a experiência têm o perfume de cada
personalidade, depende do que a pessoa está guardando em sua consciência. Essa consciência e a
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percepção do mundo externo iniciam uma nova experiência e essa nova experiência imediatamente
se deposita na subconsciência de Alaya. Esta semente depositada se transforma em uma outra
semente e esta cria uma outra experiência condicionada pelas vivências passadas. Assim, a
pessoa não pode ver o mundo além do seu limite. Por isso o treinamento consiste em aprender as
coisas, os conhecimentos e as sabedorias para poder sair deste círculo.

Por exemplo, o marido arrumou uma amante. Na sua esposa, uma senhora bonita, jovem, rica,
inteligente e educada, surge um enorme ciúme e ódio. No primeiro momento ela pensa: “Que
vergonha, dentro de mim havia esta consciência suja”. Mas logo depois aquele ódio já tomou
conta dela totalmente, ela já está diabólica. Aí, a sua fisionomia muda imediatamente. O que
eu estou querendo dizer é que a pessoa não sabe o que é que está guardando dentro do seu
inconsciente. Aparentemente, é uma pessoa rica e bonita, inteligente e culta, mas em condições
adversas aquela semente de ódio pode brotar. Aí o mundo muda.
A consciência de Alaya tem três características: a primeira é depositar as experiências do
passado. A segunda: com esse depósito o mundo da pessoa muda e a pessoa muda. Terceira e mais
importante: com isso nós nos enganamos pensando que a consciência de Alaya é um objeto do ego.
Pensamos que é a substância do ego através da sétima consciência, porque a Manas Vijnana é a
idéia do egocentrismo.
A oitava consciência é a consciência depósito, enquanto a sétima se chama consciência
contaminada. Vivemos agora aquilo que já está depositado em nossa consciência, nesse momento
não pode ser alterado; não tem mais jeito. Mas, o que eu registrar ou depositar na
subconsciência nesse momento presente é de minha responsabilidade. A limitação da percepção do
mundo depende da personalidade, cultura, educação, conhecimento, tradição ou ponto de vista de
valores e preconceitos. A nossa percepção está limitada ao que recebemos, ou com o que fomos
criados. (condicionamentos)

Dependendo do que eu depositar, o mundo externo começa a mudar. Dependendo do que


depositamos, às vezes vemos o que não existe. Isto acontece quando, por exemplo, estamos lendo
o jornal. Há um tipo de teste para saber se você está velho ou não. Se, ao abrir o jornal, em
primeiro lugar você quer ver quem morreu, uma nota de falecimento ou uma coisa preta com uma
cruz, dizendo: “Morreu com 78 anos...” “Eu tenho 77”, pensa o idoso que lê o jornal. Não
somente os velhos morrem, mas os jovens não ligam para isso, a não ser que se trate de uma
pessoa íntima, um parente ou amigo que tenha morrido. Dependendo do nosso interesse ou
experiência, começamos, portanto, a ver as coisas.

A pessoa vê coisas, mas não as vê. As coisas não existem, mas às vezes as vemos. É algo
que está acontecendo constantemente. Por esta razão, quando os casais namoram e se casam pode
dar confusão. Por quê? Muito simples. O que eles viveram separadamente, o ambiente, a
educação, os costumes de família, tudo é diferente. Para a esposa, a salada tem que ser aquela
salada do papai e da mamãe, mas para o marido a salada tem que ser um tabule, aquela feita
pelo tio árabe ou russo. “Vamos preparar uma salada hoje à noite”, combinam eles. “Claro, eu
vou preparar”, diz a esposa. O marido se entusiasma, mas quando vê a salada que sua esposa
fez, bem, a idéia dele era totalmente outra. Aí ele diz: “Ah, eu não quero isso”. “Mas eu fiz
com todo o carinho”, diz a esposa. “Isto não é salada, é porcaria”. E aí começa a briga.
Assim, vemos que a palavra “salada” tem no seu bojo uma armadilha. Cada um pensa na salada à
sua maneira. Este é um limite das palavras humanas. Pelo menos podemos saber que cada um tem o
seu limite de acordo com suas experiências. Não é somente o meu ponto-de-vista que está certo.
Nem sou eu quem está com a verdade; e nem sempre o outro é quem está errado. Se a pessoa
trocar de posição e pensar como outro está pensando, vai entender as coisas imediatamente. O
marido tem toda a razão. E ela, a esposa, também tem, é claro. São diferentes, mas dá para
chegar a um acordo, sem brigar. Este é um dos pontos que o Yushiki nos ensina. [sânsc. Vijna
Matravada; “psicologia budista].

Cada um de nós está armazenando sua experiência e karma, ou seja, cada um está vivendo no
mundo que ele próprio criou com este karma que está acumulando. Então, você pode achar que não
tem jeito de mudar — mas tem. Neste momento, aquilo que você está observando, aquilo que você
está estudando, o que está pensando, é o que vai ser guardado, e com isso o mundo todo começa
a mudar. Se realmente transformamos toda a nossa consciência em uma coisa pura, o mundo
inteiro muda totalmente.

A oitava consciência tem três nomes: Alaya, Vipaka, Adana, mas depende do estado em que a
pessoa estiver operando dentro dela. Alaya é o primeiro nome da oitava consciência. Indica
aquele estado em que se está ainda apegado ou impressionado, com a sétima consciência, a da
identidade do ego, a Manas Vijnana ou o egocentrismo. Por isso, até chegar ao estado do
Bodhisattva, a idéia de ego prossegue como lembrança porque não entrou profundamente ainda na
oitava consciência, ainda há lembranças dele na sétima consciência.

Em segundo lugar a Vipaka. Este estado significa que as coisas, ruins ou boas, são
depositadas dentro da oitava consciência. Mas enquanto estão guardadas dentro da oitava
consciência de Alaya são neutras. Esta semente não é boa nem má; ela é neutra. Havendo
condições ela brota e aí pode dar a visão boa ou má.
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A boa semente guardada é neutra, mas quando brota faz coisas boas. Isto quer dizer duas
coisas. Mesmo que a pessoa esteja fazendo coisas boas, não precisa ficar vaidosa, porque na
verdade a ação é neutra. Mesmo fazendo coisas ruins, também a ação é neutra, o que significa
que ainda há possibilidade de melhorar. Há a possibilidade de salvação. E assim, a semente má
e a semente boa podem se transformar em uma outra coisa. O processo de treinamento budista é
isso, é como um glóbulo branco combatendo as doenças e matando os micróbios. Devemos trabalhar
para a limpeza total, para a iluminação completa do ego, pois aí o mundo inteiro fica
totalmente puro e perfeito e o exterior também fica totalmente, totalmente puro e limpo. Esta
consciência se chama Adana, e já é o estado de Buda. Chegou-se ao estado de Buda e Adana é o
terceiro nome da oitava consciência. Muita gente fica preocupada em ganhar a Iluminação e isto
soa como uma brincadeira, não é? O treinamento não é isto. Não é tão fácil assim. Temos de
trabalhar bem dentro de nós.

A pessoa vive neste mundo sem saber o que faz. Jesus Cristo disse: “Pai, perdoai-os porque
eles não sabem o que fazem”. Sempre existe a preocupação com alguém que está fazendo coisas
ruins. Alguns reclamam, mas a pessoa quando não sabe o que está fazendo não sabe se está
fazendo o mal ou não. Ela não deve ser culpada. Tudo bem, ela pode não ser culpada, mas o
karma está criado e a responsabilidade é inteiramente da pessoa.
Texto de Ryotan Tokuda Igarashi - Extraído do livro “Psicologia Budista”

MENTE DESOBSTRUÍDA E OBJETO DESOBSTRUÍDO – MANAS E VIJNAPTI

Outra meditação importante; denominada “A mente e o objeto encerram um ao


outro”, tem como finalidade eliminar toda diferenciação entre a mente e seus obje-
tos. Quando contemplamos o céu azul, as nuvens brancas e o mar, temos a tendência
de considerá-Ios fenômenos separados. Mas se olharmos com mais cuidado, poderemos
perceber que os três têm a mesma natureza e não podem existir independentemente um
dos outros. Se você disser: ‘Tive medo da cobra que acabo de encontrar’, você está
tratando a cobra como elemento físico e o medo como psicológico. A meditação sobre
“A mente e o objeto encerram um ao outro” é uma forma de superar esse tipo de
separação.
Leibniz, um matemático alemão, sugeriu que não apenas as cores, a luz e a
temperatura, mas também as formas, o conteúdo e o movimento de todas as coisas no
universo podem não ser mais do que propriedades que a mente projeta na realidade.
Sob a perspectiva da teoria quântica, ninguém pode continuar a pensar hoje em dia,
como pensava Descartes, que a mente e o objeto são duas realidades distintas que
existem independente e separadamente uma da outra.
Simplificando, na frase: “Eu tive medo da cobra”, reconhecemos um “eu”, uma
cobra e o medo. O medo, um fenômeno psicológico, não apenas está inextricavelmente
ligado aos fenômenos físicos “eu” e a cobra, como também inextricavelmente tecido
na trama de todo o universo, possuindo a mesma natureza deste. O conceito “medo”
inclui o conceito “cobra” e o conceito da pessoa que tem medo de ser picada pela
cobra. Se tentarmos ser objetivos, poderemos descobrir que estamos inseguros com
relação à natureza exata da cobra ou de uma pessoa, mas o medo é uma experiência
direta que podemos reconhecer e identificar.
Na meditação sobre a interdependência, podemos ver que cada momento de
consciência inclui todo o universo. Esse momento pode ser uma memória, uma
percepção, um sentimento, uma esperança. Do ponto de vista do espaço, podemos
chamá-Io de uma ‘partícula’ de consciência. Do ponto de vista do tempo, podemos
chamá-Io de um ‘grão’ de tempo (ksana). Um instante de consciência abraça todo o
passado, o presente, o futuro e todo o universo.
Quando falamos da mente, geralmente pensamos em fenômenos psicológicos. como
sentimentos, pensamentos ou percepções. Quando mencionamos objetos da mente,
pensamos em fenômenos físicos, como montanhas, árvores ou animais. Falando dessa
maneira, vemos os aspectos fenomenais da mente e de seus objetos, mas não vemos
sua natureza. Observamos que esses dois tipos de fenômenos, a mente e os objetos
da mente, contam uns com os outros para sua existência. sendo portanto
interdependentes. Mas não percebemos que eles têm a mesma natureza. Essa natureza
é às vezes chamada “mente” e às vezes chamada “assim é” (tathata) ou Deus. Não
importa do que a chamemos, não podemos medir essa natureza usando conceitos. Ela é
ilimitada e toda-inclusiva, sem limitações ou obstáculos. Do ponto de vista da
unidade, ela se chama Dharmakaya. Do ponto de vista da dualidade, ela se chama “a
mente sem obstáculo” que encontra “o mundo sem obstáculo”. O Avatamsaka Sutra a
chama de mente desobstruída e objeto desobstruído. A mente e o mundo encerram tão
completa e perfeitamente um ao outro que chamamos isso de “perfeita unidade de
mente e objeto”.
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MANYANA E VIJNAPTI

Dois tipos de consciência nascem do alaya: manyana e vijnapti. Vijnapti faz com
que apareçam todos os sentimentos, percepções, conceitos e pensamentos. Ela se
baseia nos órgãos sensoriais, no sistema nervoso e no cérebro. O objeto de vijnapti
é a realidade em si mesma {svabhava} e só pode existir quando os sentimentos e as
percepções são puros e diretos. Quando visto através do véu da conceituação, o
mesmo objeto só pode ser uma imagem da realidade {samanya laksana}, como um sonho
ou um devaneio. Embora o objeto de uma sensação pura seja a realidade em si mesma,
quando essa realidade é vista através de conceitos e pensamentos, ela já está
distorcida. A realidade em si mesma é um fluxo de vida, sempre em movimento. As
imagens da realidade produzidas pelos conceitos são estruturas concretas compostas
pelos conceitos de espaço-tempo, nascimento-morte, produção-destruição, existên-
cia-não existência, um-muitos.
Manyana é um tipo de intuição, a sensação de que há um ‘eu separado’ que pode
existir independentemente do resto do mundo. Essa intuição é produzida pelo
hábito e pela ignorância. Sua natureza ilusória foi construída por manyana e
ela, por sua vez, torna-se uma base para manyana. O objeto dessa intuição é um
fragmento distorcido de alaya que ela considera como um ‘eu’, composto de um
corpo e uma mente. É claro que ela nunca é a realidade em si mesma, e sim apenas
uma representação da realidade. Em seu papel como um ‘eu’ bem como consciência
do ‘eu’, manyana é considerada o obstáculo fundamental à penetração da
realidade. A contemplação executada por vijnapti é capaz de remover as
percepções errôneas ocasionadas por manyana.
Existem seis consciências dentro de vijnapti: a consciência de ver, de ouvir,
de cheirar, de sentir o gosto, de tocar e de pensar. A mente-consciência
(manovijnana) possui o campo mais amplo de atividade. Ela pode ser ativa em
combinação com os outros sentidos, por exemplo a consciência de ver. Ela também
pode ser ativa por si mesma, como na conceituação, na reflexão, na imaginação e
no sonho. Seguindo as cinco consciências dos sentidos, a mente-consciência é
chamada de a sexta consciência. Manyana (ou manas) e alaya são a sétima e a
oitava consciências.

TRANSMISSÃO

Algumas sementes são inatas,


Transmitidas pelos nossos antepassados.
Algumas foram plantadas enquanto ainda estávamos no útero,
Outras, quando éramos crianças.

Algumas sementes são recebidas por nós durante a nossa vida, na “esfera da nossa
experiência”. Algumas sementes, entretanto, já estavam presentes quando nascemos – “a esfera
das sementes inatas”. Na hora do nosso nascimento, essas sementes inatas já se encontravam
dentro da nossa consciência - sementes de sofrimento e felicidade que foram transmitidas a nós
por muitas gerações de nossos ancestrais. Muitas de nossas habilidades, maneirismos e aspectos
físicos, bem como nossos valores, nos foram transmitidos por nossos ancestrais. Durante a
nossa vida, quando as condições para a sua manifestação forem favoráveis, algumas dessas
sementes se manifestarão. Algumas não se manifestarão durante o nosso tempo de vida, mas mesmo
assim nós as transmitiremos aos nossos filhos, que por sua vez as transmitirão para os filhos
deles.
Talvez algumas gerações mais tarde, durante a vida de nossos bisnetos, se as condições
forem favoráveis, algumas dessas sementes se manifestarão.

A ciência genética mostra que o “esquema” do nosso corpo e de nossa mente vêm de várias
gerações de nossos ancestrais. Cientistas que fizeram experiências com ratos descobriram que
poderá levar sete gerações para que uma característica diferente reapareça. Assim sendo,
quando praticamos a consciência plena, não estamos praticando para nós apenas, mas também para
os nossos ancestrais e para incontáveis gerações que virão a seguir. Todas essas gerações já
estão dentro de nós. As experiências de nossos ancestrais, bem como tempo infinito e espaço
infinito, já estão contidos dentro da consciência até de um minúsculo embrião. Quando
compreendemos isso, sentimos uma tremenda responsabilidade por cada embrião.

Se reservarmos um dia na semana para aprender e praticar paz, alegria e felicidade,


durante aquelas vinte e quatro horas traremos paz para nossos ancestrais e para as futuras
gerações. Se deixarmos passar uma semana sem praticar, não só nós teremos perdido uma
oportunidade para ficar alegre, mas também nossos ancestrais, nossos filhos e os filhos de
nossos filhos sentirão a perda. Quando estamos livres do sofrimento e sentimos paz e alegria,
nossos ancestrais também sentem paz e alegria, e nossas futuras gerações receberão de nós
sementes de paz e de alegria.
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As sementes que nos foram transmitidas podem ser descritas como “energias formadoras de
hábitos” (vashana, “impregnação”). Talvez você pense que não sabe cantar, mas as sementes do
canto, passadas por nossa avó que sabia cantar, já estão dentro de nós. Se as circunstâncias
forem favoráveis, você não só vai se lembrar de como cantar, mas também gostará de fazê-lo. As
sementes de saber cantar que estão dentro de você podem estar enfraquecidas por não terem sido
regadas durante muito tempo. Mas quando você começa a praticar o canto, aquelas sementes
brotarão e crescerão com força. Sementes como essas são amplamente inatas. Para florir, elas
só precisam das condições favoráveis.

Acontece a mesma coisa com a iluminação. Quando ouvimos pela primeira vez os ensinamentos
sobre o despertar, achamos que são novidade para nós. Mas já temos a semente do despertar
dentro de nós. Nosso mestre e nossos amigos de jornada nos fornecem somente a oportunidade
para tocar essa semente e ajudá-la a crescer. Quando o Buda entendeu o caminho da grande
compreensão e do amor, comentou: “Como é surpreendente todos os seres viventes terem a
natureza básica do despertar, embora não o saibam. Por isso são arrastados pelo oceano do
grande sofrimento, vida após vida”. Existem já muitas sementes salutares dentro da nossa
consciência.
Com a ajuda de um mestre e de uma Sangha, uma comunidade de praticantes, podemos voltar para
nós mesmos e tocá-las. Ter acesso a um mestre e a uma Sangha são as condições favoráveis que
permitem que a nossa semente do despertar cresça.

Em cada célula do nosso corpo, em nossa consciência armazenadora, existem sementes que nos
foram transmitidas por cada geração de nossos ancestrais. A “impregnação” da nossa consciência
ocorre ainda antes de nascermos, enquanto estamos no útero materno. Tão logo somos concebidos,
começamos a receber mais sementes. Toda percepção, toda alegria e todo o sofrimento de nossa
mãe e de nosso pai penetram em nós como semente. O maior presente que os pais podem dar aos
filhos é sua própria felicidade. Se os pais vivem felizes um com o outro, o filho receberá
sementes de felicidade. Mas se os pais ficam com raiva um do outro e fazem sofrer um ao outro,
todas aquelas sementes negativas penetrarão na consciência armazenadora do bebê.

Trazer uma nova vida ao mundo é um assunto sério. Médicos e terapeutas levam dez anos para
obter uma licença para exercer a profissão. Mas qualquer um pode tornar-se pai ou mãe sem
qualquer preparação ou treinamento. Precisamos criar um “Instituto da Família” onde os jovens,
antes de casar, possam aprender, durante um ano, como olhar profundamente para dentro de si
mesmos a fim de ver que tipos de sementes são forres dentro de si e que tipos são fracas. Se
uma semente positiva for muito fraca, os pais em perspectiva precisam aprender de que modo
regá-las para que fiquem fortes. Se as sementes negativas forem muito fortes, deverão aprender
os meios de transformá-las, para que vivam de uma maneira que essas sementes não sejam muito
regadas.

Um ano de preparação para casar e dar início a uma família não é pedir muito. As futuras
mães podem aprender como plantar sementes de felicidade, paz e alegria e evitar plantar
sementes malsãs na consciência armazenadora de seus bebês. Os futuros pais também precisam
estar conscientes de que a maneira como agem planta sementes na consciência armazenadora de
seu filho ainda não nascido. Algumas palavras ásperas, um olhar de repreensão ou um ato
indelicado – o bebê que está no útero está recebendo tudo. A consciência armazenadora do feto
recebe tudo o que está acontecendo na família. Uma palavra ou uma atitude impensadas podem
permanecer com a criança para o resto da vida.

Nesse instituto, rapazes e moças podem também entrar em contato com os seus ancestrais
para conhecê-los melhor – suas forças e suas fraquezas – e ajudá-los a aprender como lidar com
suas próprias sementes. Esse é um projeto importante. Pais jovens deveriam manter um registro
das alegrias e dificuldades que tiveram antes e depois da concepção e um outro registro do
sofrimento, da felicidade e dos eventos significativos ocorridos durante a vida da criança,
desde a idade de 1 até 10 anos. A criança pode esquecer a maior parte do que aconteceu nesse
período, mas se os pais puderem contar aos filhos essas coisas, será muito útil para eles mais
tarde, quando já tiverem crescido e for época de irem estudar no instituto.
Recebemos de nossos pais sementes de sofrimento. Mesmo que estejamos determinados a fazer o
oposto do que nossos pais fizeram, se não soubermos como praticar e transformar essas
sementes, faremos exatamente o mesmo que eles. Durante a nossa vida, continuamos a receber
sementes de nossos pais. Suas alegrias e seus sofrimentos continuam a penetrar em nós.
Se nosso pai diz algo que faz nossa mãe feliz, recebemos sementes de felicidade. Se ele diz
alguma coisa que faz nossa mãe chorar, recebemos sementes de sofrimento. A melhor maneira de
proteger nosso filho é começar direito no momento da concepção. Conheço casais que praticam a
plena consciência na vida diária a fim de não plantarem sementes negativas na consciência
armazenadora de seus bebês. Sei de mães que cercam a si mesmas de gentileza e consciência
plena de modo a poder dar o melhor para seu filho. Viver em consciência plena é muito
importante durante os nove meses em que o bebê está se desenvolvendo no útero.

E depois que o bebê nasce, os pais devem continuar a praticar a plena consciência. O bebê
pode não compreender as palavras quando vocês estão conversando, mas suas vozes transmitem
34

seus sentimentos. Se você disser alguma coisa com amor, o bebê vai sentir isso. Se você disser
algo com irritação, a criança percebe também. Não pense que seu bebê, porque está no útero ou
ainda é muito pequenino, não compreende. A atmosfera da família, seja ela qual for, penetrará
na consciência armazenadora do bebê. Se a atmosfera em casa for pesada, o bebê vai senti-la.

Muitas crianças não podem suportar a atmosfera pesada de seus lares e se escondem no
banheiro ou em outro aposento para não ouvir as palavras que criam feridas no coração delas.
Às vezes, crianças adoecem por causa da maneira como os pais se dirigem um ao outro. Elas
podem ter medo de adultos, e daqueles que têm autoridade, até o fim da vida. Já vi bebês que
brincam naturalmente e com felicidade quando não tem adultos no quarto, mas tão logo a porta
se abre e um adulto entra, eles ficam hesitantes e em silêncio. As sementes do medo dentro
delas cresceram enormemente. O sofrimento começa quando ainda somos embriões. E algumas
sementes estão presentes na nossa consciência armazenadora até mesmo antes disso, transmitidas
por nossos ancestrais.

As crianças são muito tenras e vulneráveis. É por isso que nós, como pais, devemos ter
cuidado de não fazer ou dizer qualquer coisa que cause sofrimento ao nosso pequeno filho.
Sabemos que a marca desse sofrimento o acompanhará durante toda a vida. Muitas crianças são
maltratadas física e emocionalmente pelos pais e, em conseqüência disso, sofrem a vida
inteira. Viver em plena consciência – sabendo que nossos filhos são a continuação de nós
mesmos – é extremamente útil. Vivendo dessa forma e observando em profundidade, vemos
claramente que nossos filhos são a nossa continuação. Eles nada mais são do que nós mesmos. Se
tivermos sofrido por causa de nossos pais, sabemos que as sementes negativas de nossos pais já
estão dentro de nós. Se não formos capazes de reconhecer essas sementes em nós mesmos e
praticar para transformá-las, faremos com nossos filhos exatamente o que nossos pais fizeram
conosco. Esse ciclo de sofrimento só pode ter fim mediante a prática do viver em plena
consciência.

Para entender como as sementes na nossa consciência armazenadora são transmitidas através
das gerações, o Buda propôs que examinássemos a transmissão do corpo físico. Seu corpo foi
transmitido por seu pai, sua mãe e seus ancestrais; você recebeu essa transmissão e o seu
corpo é o objeto dessa transmissão. Os três elementos nesse processo de transmissão são:
aquele que transmite, o objeto transmitido e o recipiente da transmissão.

O Buda nos convida a examinar a natureza de cada elemento e descobrir o vazio de sua
transmissão. Fazemos uma pergunta a nós mesmos: O que meu pai transmitiu para mim? A resposta
é: transmitiu ele mesmo. O objeto transmitido nada mais é do que ele mesmo e eu sou realmente
a continuação de meu pai/(mãe). Eu sou o meu pai/(mãe). Nossos ancestrais estão em nós.
Algumas vezes se manifestam pela maneira como rimos, falamos ou pensamos. Então, perguntamos:
Quem é o recipiente dessa transmissão? É uma entidade separada? Não. O recipiente da
transmissão é o objeto tanto da transmissão como do transmissor. O objeto de transmissão forma
uma coisa só com o transmissor.
Ao penetrar nessa verdade, a realidade do vazio da transmissão, você compreende que você é o
seu pai/(mãe). Você não pode mais dizer: “Estou com muita raiva. Não quero ter nada mais a ver
com meus pais”. De fato, você é a continuação dos seus pais. A única coisa que pode fazer é
reconciliar-se com eles. Eles não estão ali fora, separado de você – estão em você. A paz só é
possível com esse conhecimento e com essa reconciliação.
Do livro “Transformações na Consciência” – Thich Nhat Hanh

O ESPELHO GRANDE E PERFEITO

Em 1956, numa palestra sobre a mente e a matéria no Trinity College em


Cambridge, o físico Erwin Schrödinger perguntou se a consciência deveria ser
singular ou plural. Ele concluiu que, a partir do exterior, parece haver muitas
mentes, mas que na verdade existe apenas uma26. Schrödinger fora influenciado pela
filosofia vedanta. Ele estava muito interessado no que chamava de “o paradoxo
aritmético” da mente. Como já vimos, a separação entre um e muitos é uma avaliação
feita pela percepção. Enquanto formos prisioneiros dessa separação seremos prisio-
neiros do paradoxo aritmético. Só poderemos nos libertar quando percebermos a
interexistência e a interpenetração de tudo. A realidade não é nem um nem muitos.
Os Vijnanavadins descreveram a “perfeita unidade da mente e do objeto” como “um
espelho no qual todos os fenômenos são refletidos”. Sem fenômenos não pode haver
reflexos, e sem reflexos não pode haver nenhum espelho. A imagem usada para
descrever a mente é “um espelho grande e redondo que nada pode cobrir e nada pode
esconder”. Diz-se que todos os fenômenos estão armazenados num “depósito” [de
consciências] (alaya-vijnana).
O conteúdo e o proprietário (sujeito e conhecimento) desse depósito são um só. Nos
ensinamentos dos Vijnanavadins, o alaya contém as sementes (bija) de todos os fenômenos
físicos, fisiológicos e psicológicos. Ao mesmo tempo ele funciona como o solo do qual surgem
os sujeitos e objetos de conhecimento. O alaya não é confinado pelo espaço nem limitado pelo
35

tempo. Com efeito, até mesmo o espaço e o tempo nascem do alaya 27.
O entendimento do objeto de percepção é fundamental para o ensinamento
Vijnanavada. Esses objetos são de três tipos: objetos puros ou a realidade em si
mesma {svabhava}, representações ou objetos visíveis conceituados {samanya-
laksana}, e imagens puras ou objetos não conceituados que permanecem na memória e
podem reaparecer na mente quando as condições corretas estão presentes.

VER A REALIDADE COM OS OLHOS DO ENTENDIMENTO

Como já foi mencionado, é somente no caso da sensação pura que o objeto da


consciência é a realidade em si mesma. Os sentidos possuem apenas um valor
relativo na penetração da realidade. É por isso que, embora o conteúdo de qualquer
sensação seja a realidade em si mesma, o que é sentido nunca é totalmente
realidade. A ciência demonstrou, por exemplo, que os olhos humanos são capazes de
perceber apenas uma diminuta porção do espectro eletromagnético. Os raios cósmicos
e de rádio estão entre as inúmeras ondas que possuem uma freqüência excessivamente
elevada para que possamos vê-Ias. Não podemos ver as ondas de rádio. Quando vemos
a luz e ouvimos sons, percebemos apenas ondas dentro de certas freqüências. Os
raios infravermelhos são invisíveis para nós, pois possuem um comprimento de onda
mais longo do que aquele que conseguimos enxergar. Como os raios X possuem um
comprimento de onda mais curto do que o da luz visível, tampouco conseguimos
exergá-Ios. Tudo no universo pareceria bem diferente se pudéssemos ver os raios X.
Também não conseguimos ouvir os sons agudos aos quais o ouvido do cachorro e de
outros animais é sensível. Dentre os animais que habitam a terra, muitos conseguem
perceber uma faixa muito mais ampla da realidade do que os seres humanos.
Por conseguinte, a realidade perfeita e suprema do universo só pode ser
observada com os olhos de um grande entendimento, mas esses olhos só podem se
abrir quando os conceitos que compõem o manyana e o apego às perspectivas erradas
são erradicados. Somente então pode o alaya-vijnana revelar-se como um espelho
grande e perfeito que reflete todo o universo.
Se perguntássemos: “Cada pessoa tem seu próprio alaya, ou compartilhamos um
alaya comum?”, estaríamos demonstrando que ainda não compreendemos a verdadeira
natureza da interexistência e da interpenetração. Ainda estamos aturdidos com o
que Schrödinger chamou de “paradoxo aritmético”. Podemos então perguntar: “Se não
temos alayas separados, por que temos memórias separadas e individuais?”

ALAYA É UM OU MUITOS?

Podemos dizer que uma criança aprende sua lição e uma outra a sabe de cór? As
ondas se quebram na superfície da água, e embora não possam existir separadas da
água, elas têm sua forma e seu lugar próprio. Muitos riachos correm para um rio,
mas todos são um com o rio. Na superfície do mar dos fenômenos, vemos muitas
ondas cintilando, mas para que cada onda se forme, para que cada uma seja
destruída, ela precisa depender de cada uma das outras ondas. As lembranças de
cada um de nós não são apenas nossos tesouros pessoais. Elas são realidades vivas
relacionadas com todas as outras realidades vivas. Elas passam por uma incessante
transformação, como o nosso corpo. Cada coisa é a realidade, mas a realidade não
está sujeita às idéias de “um” ou de “muitos”.

QUE O SOL DA CONSCIÊNCIA BRILHE SOBRE O DHARMAKAYA

Estes ensinamentos da escola Vijnanavada nos são transmitidos para serem


úteis em nossa prática de meditação, não como descrições da realidade. Não
devemos nos esquecer de que os fenômenos que chamamos de sexta e sétima
consciências, são representações da realidade, NÃO são a realidade em si mesma,
não existem independentemente uns dos outros ou do espaço-tempo. A representação
de um objeto que aparece num sonho também é uma realidade vivente na qual todo o
universo está presente. Freqüentemente pensamos que a imagem de uma fada num
sonho não possui realidade por não possuir uma base material, mas o que dizer das
imagens em nossa tela de televisão? Elas são reais? Podemos agarrar sua
substância ou encontrar sua base material? Ainda assim elas são reais. Todo o
universo está presente nelas. A presença de uma ilusão inclui tudo no universo. A
ilusão só pode existir porque tudo o mais existe. A existência dela possui a
mesma natureza maravilhosa de uma partícula. Na ciência moderna, a partícula não
mais é considerada sólida nem é concretamente definida.
Quando a sexta vijnana, a mente-consciência, permanece profundamente
concentrada, ela não cria objetos ilusórios. Nesses momentos, uma experiência
viva e direta da realidade torna-se possível. Estar consciente sempre significa
36

estar consciente de alguma coisa. Por conseguinte, não deveríamos pensar que
somos capazes de levar nossa consciência a um estado “puro” no qual não existam
objetos. Uma consciência sem um objeto é uma consciência não manifestada. Ela
está latente no alaya, assim como uma onda está latente na água tranqüila. Existe
um estado de concentração que pode ser atingido durante a meditação, chamado
“concentração sem percepção”, no qual a consciência deixa de estar ativa. No sono
sem sonhos, a consciência também permanece nesse estado latente; no alaya.
Durante a meditação, concentramos toda nossa atenção num único objeto, e a
concentração pode surgir. Essa meditação não é nem passiva nem monótona; na
verdade, precisamos ficar muito alerta. Mantemos a concentração no objeto, que é
a própria mente, assim como o sol continua a brilhar sobre a vegetação ou sobre a
neve que acaba de cair. Também podemos sincronizar nossa respiração com nossa
atenção ao objeto, o que pode melhorar nossa concentração. Se usarmos uma folha
como objeto de nossa concentração, poderemos ver, através da folha, a perfeita
unidade da mente e do universo. Se meditarmos sobre a presença do sol através do
nosso corpo, podemos vivenciar o fato do Dharmakaya não ter nem início nem fim.
Meditar sobre a interexistência e a interpenetração da realidade é uma forma de
destruir conceitos e, ao usar estes meios, podemos alcançar uma experiência direta
da realidade suprema simultaneamente na mente e no corpo. Na escola Vijnanavada
isto se chama vijnaptimatrata.

DA INTERDEPENDÊNCIA (PARATANTRA) À PERFEITA REALIDADE (NISPAÑNA)

A prática da meditação sobre a natureza tríplice das coisas (tri-svabhava) é


semelhante à meditação sobre o princípio da multi-interorigem. Em ambos os casos,
começamos a meditar sobre o relacionamento interdependente de todas as coisas
(paratantra) a fim de compreender que a imagem da realidade que temos em nossa mente
é errônea, porque está construída dentro da estrutura do nascimento/morte, um/mui-
tos, espaço/tempo e outros conceitos, ou seja, ela se baseia na ilusão. Ao
contemplar profundamente a realidade sob o aspecto da interdependência, gradualmente
nos libertamos da rede do “agarrar-me a mim mesmo” como um eu separado e todos os
dharmas como “seres próprios” separados. Mesmo que muitas raízes profundas de ilusão
(anusaya) ainda existam no alaya. elas podem ser extirpadas e destruídas e a
perfeita libertação pode ser alcançada em cada momento plenamente vivido à luz da
interdependência. Assim como a jangada deixa de ser necessária quando alcançamos a
outra margem, quando vivemos no momento presente em harmonia com todos os seres não
precisamos do conceito da interdependência. Podemos viver tranqüilamente na
verdadeira natureza da consciência. Isso se chama realidade suprema. É o mundo do
‘assim é’ (tathata), o mundo da perfeita unidade da mente e do objeto.

A REALIDADE CONDICIONADA E A REALIDADE SUPREMA NÃO PODEM SER SEPARADAS

Não precisamos alcançar o mundo do ‘assim é’, porque o ‘assim é’ está disponível
em todos os momentos. O Avatamsaka Sutra o chama de a “esfera dhármica da verdade”,
o mundo da verdadeira natureza. O mundo das montanhas e dos rios, das plantas e dos
animais, onde cada coisa parece ter seu lugar próprio, chama-se a “esfera dhármica
dos fenômenos”. Mas esses dois mundos não são separados. Eles são um só, exatamente
como a água e as ondas. É por isso que também são denominados a “esfera dhármica da
interpenetração desobstruída da verdade e dos fenômenos”. A interpenetração nesse
mundo dos fenômenos, onde um fenômeno é todos os fenômenos e onde todos são um, é
chamado de a “esfera dhármica de interpenetração desobstruída de todo fenômeno”.
Estas são chamadas de as quatro esferas dhármicas, constantemente mencionadas no
Avatamsaka Sutra. O mestre zen Fa Cang da dinastia Tang da China, um dos grandes
conhecedores deste campo, descreve os métodos de meditação que podem nos ajudar a
destruir as visões erradas e voltar à fonte, antes de sua origem, o que significa
ter uma visão clara e perfeita do mundo do assim é.28
David Bohm expôs uma teoria sobre o que ele chama de “ordem implícita e ordem
explícita”, que se aproxima bastante da noção da esfera dhármica da interpenetração
desobstruída de todos os fenômenos. Bohm afirmou que todas as realidades
consideradas como existindo independentemente umas das outras pertencem à ordem
explícita, ordem esta na qual uma coisa parece existir fora de outra. Não
obstante, se observarmos profundamente, perceberemos que tudo está ligado a tudo
o mais em todo o universo, e a partir de uma única partícula podemos ver todo o
universo, que está incluído nela e a partir da qual ele é criado. Isso nos conduz
ao mundo da “ordem implícita” no qual “tempo e espaço não mais decidem se as coi-
sas são dependentes ou independentes umas das outrás”. De acordo com Bohm, a
ciência dos nossos dias precisa começar na totalidade da ordem implícita para ser
capaz de enxergar a verdadeira natureza de cada fenômeno. Numa conferência em
Córdoba, ele declarou: “O elétron é sempre o todo29”. Esta visão está muito
37

próxima da “um no todo” do Avatamsaka Sutra. Se Bohm estiver disposto a avançar


ainda mais em sua pesquisa e praticar a meditação que envolve tanto a mente
quanto o corpo, ele poderá chegar a um resultado inesperado e causar uma
importante revolução na física.
Extraído do livro O SOL MEU CORAÇÃO – Thich Nhat Hanh

KARMA E RENASCIMENTO

“A palavra sânscrita karma significa ação e se refere à causalidade, a interdependência


entre todos os atos e suas conseqüências naturais.
De modo geral, para que as coisas aconteçam, é necessária uma ação. Por exemplo, se
você quer tomar um chá, precisa praticar vários atos que possibilitem isso: comprar a erva,
arrumar uma xícara, preparar a água etc., até que, enfim, esteja em condições de bebê-lo.
Essas ações, como toda e qualquer ação, têm seus resultados; esta é a lei do karma. Existem
ações que frutificam de imediato; outras, porém, frutificam em alguns meses ou anos, ou depois
de várias vidas, ou mesmo depois de várias eras, mas, apesar do tempo que possa mediar, sempre
haverá uma correspondência entre a ação e o seu fruto”.
Dalai Lama – Citado na Revista Bodisatva

Certamente, a maneira mais utilizada para se explicar o karma é a analogia de que estamos
colhendo os frutos das ações que cultivamos anteriormente; do mesmo modo, nosso futuro terá as
conseqüências do que estamos fazendo agora.
Tudo o que é colocado em movimento produz um movimento correspondente. Se você joga uma
pedra numa lagoa, formam-se ondulações ou anéis que correm para fora, batem na margem e
voltam. O mesmo se passa com o movimento dos pensamentos: ondulações correm para fora,
ondulações retornam. Quando os resultados desses pensamentos chegam de volta, sentimo-nos
vítimas indefesas: estávamos inocentemente vivendo nossa vida; por que todas essas coisas
estão acontecendo conosco? O que acontece é que os anéis estão voltando para o centro. (...)
(Isto é o karma e, devido a ele), nossa experiência da realidade continua a girar em
ciclos, com todas as suas variações, vida após vida. Assim é o interminável samsara, a
existência cíclica. Não compreendemos que estamos vivendo resultados que nós mesmos criamos, e
que nossas reações produzem ainda mais causas, mais resultados; incessantemente. (...)
O karma pode ser comparado a uma semente que, em condições adequadas, dará lugar a uma
planta. Se você colocar na terra uma semente de cevada, pode ter certeza de que obterá um
broto de cevada. A semente não vai produzir arroz.
A mente é como um campo fértil; coisas de todos os tipos podem crescer nele. Quando
plantamos uma semente; um ato, uma palavra ou um pensamento, num dado momento, será produzido
um fruto que irá amadurecer e cair por terra, perpetuando e incrementando sementes de
causalidade potentes em nosso corpo, fala e mente. Quando se juntarem às condições adequadas
para o amadurecimento do nosso karma, teremos que lidar com as conseqüências das coisas que
plantamos.
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

A doutrina budista, ao delinear o que deve ser abandonado e o que deve ser aceito,
classifica o karma em dez não-virtudes e dez virtudes. As dez não-virtudes incluem três do
corpo; matar, roubar e conduta sexual indevida; quatro da fala; mentir, difamar, fala rude e
conversa fiada; e três da mente; cobiça, maldade e visão errônea. (...) As dez ações virtuosas
são o oposto das dez não-virtuosas: não matar, e sim proteger a vida; não roubar, e sim
praticar a generosidade; não se entregar a uma conduta sexual indevida, e sim praticar a
moralidade em assuntos sexuais (realçada pela manutenção do celibato em certos dias sagrados e
durante certas ocasiões como retiros espirituais); não mentir, e sim falar a verdade; não
difamar, e sim falar harmoniosamente; não usar a fala rude, e sim usar palavras
reconfortantes; não tagalerar, e sim falar com discrição e significado; não cobiçar, e sim
regozijar-se com a riqueza e as qualidades dos outros; não ter maldade, e sim benevolência;
não defender visões errôneas, e sim cultivar as corretas.
PRÁTICAS PRELIMINARES DO BUDISMO VAJRAYANA – Chagdud Khadro

A palavra reencarnação, apesar de ser bastante utilizada, não é muito correta para o
contexto budista; a palavra mais precisa seria renascimento.
Algumas pessoas acreditam que uma alma imortal, ou atman migra de vida para vida, ou que a
consciência individual é reabsorvida na consciência universal ou mente divina para depois,
mais uma vez, renascer. A visão budista não é nenhuma dessas. (...)
“(Segundo Buddha), o que sobrevive à morte é o fluxo contínuo, sempre em mutação, da
energia de nosso corpo e mente muito sutis. Todos nós recebemos um nome quando nascemos e,
por toda a nossa vida, respondemos a ele, embora nosso corpo e mente aos dez, vinte, trinta,
quarenta, cinqüenta ou setenta anos sejam bastante diferentes. Somos a mesma pessoa, mas não
somos a mesma pessoa. A natureza essencial de nossa mente é vazia de uma existência por si
mesma independente. Nossa natureza mais essencial é como um cristal puro – Vajra – e nela são
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gravadas muitas marcas. Assim, momento após momento, vida após vida, estamos sempre nos
manifestando de formas diferentes.
NGELSO – AUTOCURA III – Lama Ganchen Rinpoche

“As existências sucessivas numa série de renascimentos não são como as pérolas de um
colar, presas por um cordão, a ‘alma’, que passa através de todas as pérolas; são mais como
dados empilhados uns sobre os outros. Cada um dos dados é separado, mas suporta o que está
sobre ele e está funcionalmente conectado com ele. Entre os dados não há identidade, mas
condicionalidade.
THE HISTORICAL BUDDHA – H. W. Schumann

“Há nas escrituras budistas um relato muito claro desse processo de condicionalidade. O
sábio budista Nagasena fez uma explanação disso ao rei Milinda num famoso conjunto de
respostas a perguntas que o rei lhe fez.
O rei perguntou a Nagasena: “Quando alguém renasce, ele é o mesmo que aquele que acabou
de morrer ou é diferente?”
Nagasena respondeu: “Ele não é o mesmo, nem é diferente... Diga-me uma coisa, se um homem
acendesse uma lamparina, ela poderia fornecer luz durante toda a noite?”;
“Sim”;
“É a chama que brilha na primeira vigília da noite a mesma da segunda... ou da última?”;
“Não”;
“Isso quer dizer que há uma lamparina na primeira vigília, outra lamparina na segunda, e
outra na terceira?";
“Não”;
“É de uma única lamparina a luz que brilha a noite toda?”;
“Sim”.
“No renascimento é a mesma coisa: um fenômeno surge e outro cessa, simultaneamente. Assim,
o primeiro ato de consciência na nova existência não é o mesmo do último ato de consciência da
existência prévia, nem tampouco é diferente”.
“O rei pediu outro exemplo que explicasse a natureza precisa dessa dependência, e
Nagasena fez a comparação do leite: a coalhada, a manteiga ou o ghee [manteiga semilíquida],
feitos de leite, nunca são o mesmo que o leite, mas dependem totalmente dele para serem
produzidos”.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

“No budismo tibetano, é muito comum a identificação de tulkus (tib. sprul sku), lamas
renascidos como crianças e identificados através de visões, profecias e testes. O mais famoso
tulku tibetano é Tenzin Gyatso, o Dalai Lama. Segundo ele, a tarefa de identificar os tulkus é
mais lógica do que pode parecer à primeira vista. Dada a crença budista no renascimento, e
considerando que todo o propósito da reencarnação é possibilitar ao ser continuar seus
esforços em benefício de todos os seres vivos, é uma conclusão clara que deveria ser possível
identificar casos individuais. Isso habilita-os a serem educados e colocados no mundo de tal
forma que continuem seu trabalho o mais rápido possível. Certamente, podem ocorrer erros
nesses processo de identificação, mas as vidas da grande maioria dos tulkus (atualmente
existem algumas centenas deles reconhecidos, sendo que antes da invasão chinesa eram
provavelmente milhares os tulkus reconhecidos) são um bom exemplo do testemunho de sua
eficácia”.
Dalai Lama – citado na Revista Bodisatva

A palavra tulku também é geralmente traduzida com o sentido de reencarnação, mas o


significado correto é corpo de emanação (sânsc. nirmanakaya). Do mesmo modo que o sol emana
muitos raios; que não são totalmente iguais, nem totalmente diferentes; um lama teria a
capacidade de emanar uma sucessão de renascimentos para trazer benefício aos outros seres.
O que continua num tulku? É ele exatamente a mesma pessoa que reencarnou? Ele é e não é,
ao mesmo tempo. Sua motivação e dedicação para ajudar todos os seres é a mesma, mas ele não é
na verdade a mesma pessoa. O que continua de uma vida para outra é uma bênção, é isso que o
cristão chama de graça. Essa transmissão de uma bênção e da graça é sintonizada e adequada a
cada época sucessiva, e a encarnação aparece da maneira que potencialmente melhor se adequa ao
karma das pessoas desse tempo, para poder ajudá-las de modo mais completo.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

KARMA, INTERDEPENDÊNCIA E VACUIDADE

Dentro do conceito de karma, não há noção de destino ou fatalismo; apenas colhemos o que
plantamos. Experienciamos os resultados de nossas próprias ações. A noção do karma está
extremamente conectada com a do surgimento dependente, ou tendrel em tibetano. A corrente do
karma também é a interação do tendrel, fatores interdependentes cujas causas e resultados
mutuamente originam uns aos outros.
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A palavra tibetana tendrel significa interação, interconexão, inter-relação,


interdependência, ou fatores interdependentes. Todas as coisas, todas as nossas experiências,
são o tendrel, o que quer dizer são eventos que existem por causa do relacionamento entre
fatores inter-relacionados. Esta idéia é essencial para a compreensão do Dharma em geral e, em
particular, para a compreensão de como a mente transmigra na existência cíclica.
Para compreender o que o é o tendrel, ou surgimento dependente, vamos pegar um exemplo.
Quando você ouve o som de um sino, pergunte a você mesmo: o que faz o som? É o corpo do sino,
o badalo, a mão que move o sino para cá e para lá, ou os ouvidos que escutam o som? Nenhum
destes fatores produz sozinho o som; ele resulta da interação de todos estes fatores. Todos os
elementos são necessários para o som do sino ser percebido, e eles não são uma sucessão, são
simultâneos. O som é um evento cuja existência depende da interação daqueles elementos; isso é
o tendrel.
Similarmente, todas as vidas condicionadas, todos os fenômenos do samsara, resultam de uma
multiplicidade de interações que pertencem aos doze elos do surgimento dependente. Estes doze
fatores dão origem uns aos outros, mutuamente. Não é que cada fator faz o próximo ocorrer,
sucessivamente; como no exemplo do sino, eles são simultâneos, co-existentes. Para produzir
uma existência condicionada, é necessário que os doze fatores estejam presentes ao mesmo
tempo. O cativeiro de causas e resultados destes fatores interdependentes, que geram a
ilusão, é a ação do samsara. Tudo dentro do samsara é o inter-relacionamento karmicamente
condicionado; todas as nossas experiências são tendrel. A verdade das aparências criadas pelo
cativeiro dos surgimentos dependentes é a verdade convencional ou dualista. É assim que
ordinariamente vivemos: governados pelo karma. A natureza vazia do que existe no nível
relativo é o que chamamos de verdade última.
Compreender verdadeiramente o surgimento dependente nos permite ir além do condicionamento
do nível relativo, ou convencional, e atingir a paz e a liberdade da incondicionalidade.
Quando você compreende completamente o surgimento dependente, você também compreende a
vacuidade. E isso é a liberdade.
Portanto, a sabedoria, ou conhecimento, não está fundamentalmente separada da ilusão. Isso
porque muitas vezes é dito que o samsara e o nirvana não são diferentes, e que uma forma de
sabedoria é latente na ignorância. A lógica e a razão conduzem definitivamente a estas
afirmações, que parecem ser contraditórias e ilógicas. A lógica e a razão podem ir até o
infinito. Elas são parte do processo do samsara e conduzem definitivamente a contradições.
Mesmo assim, já que são ferramentas que podem trazer a realização da verdade, elas são úteis e
não devem ser rejeitadas, apesar delas serem eventualmente liberadas no momento da realização
da vacuidade.
Mas tenha cuidado. A compreensão correta da vacuidade não é, de qualquer modo, niilista.
Se decidirmos que tudo é vazio e sem realidade, que o estado de buddha não tem existência
real, que a causalidade kármica é vazia e que portanto não há razão para preocupação, isto
seria uma visão niilista, pior até do que a visão que considera as coisas relativas como sendo
verdadeiramente existentes. As concepções niilistas são um erro mais sério do que a concepção
realista que considera os fenômenos como se existissem como aparecem.
A compreensão correta da vacuidade está entre os dois extremos do eternalismo (acreditar
que as coisas sejam inerentemente ou verdadeiramente existentes) e o niilismo (acreditar que
elas não existem). A visão do caminho do meio elimina as idéias errôneas e nos permite ir,
definitivamente, para além das noções conceitualizadas sobre a realidade. Mas tome cuidado:
imaginar a vacuidade fecha a porta para a iluminação.
O grande detentor da linhagem, Saraha, disse: “Considerar o mundo como sendo real é uma
atitude brutal. Considera-lo como irreal é ainda mais selvagem”.
E Nagarjuna disse: “Aqueles que apenas imaginam a vacuidade são incuráveis”.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

K A R M A: O CORAÇÃO É O NOSSO JARDIM

O Sutra Avatamsaka é o texto budista que descreve as leis que governam os milhares de
possíveis domínios do universo - domínios de prazer e de dor, domínios criados pelo fogo, pela
água, pelos metais, pelas nuvens ou até mesmo pelas flores. Cada universo, diz-nos o sutra,
segue a mesma lei básica: em cada um desses domínios, se você plantar uma semente de manga,
terá uma mangueira, e se plantar uma semente de maçã, terá uma macieira. Assim é em todos os
domínios que existem no mundo dos fenômenos da criação.
A lei do karma descreve o modo como causa e efeito regem os padrões que se repetem através
de toda a vida. Karma significa que nada surge por si mesmo. Cada experiência é condicionada
por aquilo que a precede. Desse modo, nossa vida é uma série de padrões inter-relacionados. Os
budistas dizem que a compreensão dessa lei é suficiente para se viver sabiamente no mundo.
O karma existe em muitos níveis diferentes. Seus padrões governam as imensas formas do
universo, tais como as forças gravitacionais das galáxias, e os mais sutis e diminutos modos
pelos quais, a cada momento, nossas escolhas humanas afetam o nosso estado mental. No nível
da vida física, por exemplo, se uma pessoa olha para um carvalho, ela pode ver o “carvalho”
manifestando-se em algum dos diferentes estágios de seus padrões vitais. Num determinado
estágio do carvalho padrão, o carvalho existe sob a forma de bolota; num estágio subseqüente,
ele vai existir sob a forma de árvore nova; noutro estágio, sob a forma de árvore adulta; e,
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ainda noutro, sob a forma de bolota verde crescendo nessa árvore adulta. Em rigor, não existe
o “carvalho” definitivo. Existe apenas o carvalho padrão através do qual certos elementos
seguem as leis cíclicas do karma: um arranjo específico de água, minerais e a energia solar
que o transforma, infinitas vezes, de bolota em árvore nova e depois em árvore adulta.
De modo semelhante, as tendências e hábitos da nossa mente são padrões kármicos que
repetimos infinitas vezes, como a bolota e o carvalho. Ao abordar esse tema, Buda perguntou:
“O que vocês acham que é maior: a mais alta montanha da Terra ou a pilha de ossos que
representa as vidas que vocês viveram infinitas vezes em cada domínio governado pelos padrões
dos seus karmas? Maior, meus amigos, é a pilha de ossos; maior do que a mais alta montanha da
Terra”.
Vivemos num oceano de padrões condicionadores que repetimos infinitas vezes e, ainda
assim, raramente notamos esse processo. Podemos compreender com mais clareza o
funcionamento do karma na nossa vida se olharmos esse processo de causa e efeito nas nossas
atividades comuns e observarmos como os padrões repetitivos da nossa mente afetam o nosso
comportamento. Por exemplo, nascidos numa certa cultura em determinada época, assimilamos
determinados padrões de hábitos. Se nascermos numa taciturna cultura pesqueira, aprendemos a
ser calados. Se crescermos numa cultura mediterrânea mais expressiva, talvez expressemos
nossos sentimentos com gestos amplos e tenhamos uma maneira de falar espalhafatosa. Nosso
karma social – parental, escolar e condicionamento lingüístico - cria padrões completos de
consciência que determinam o modo como vivenciamos a realidade e o modo como nos
expressamos.
Esses padrões e tendências são, muitas vezes, bem mais fortes do que as nossas intenções
conscientes. Quaisquer que sejam as circunstâncias, são os velhos hábitos que irão criar o
modo como vivemos. Lembro de ter ido visitar minha avó num prédio de apartamentos exclusivo
para idosos. A vida ali era tranqüila e sedentária para a maioria dos moradores. O único
lugar onde algo acontecia era no saguão, e os moradores interessados iam até lá para observar
quem entrava e saía. No saguão, havia dois grupos de pessoas. Um grupo sentava-se ali
regularmente e se divertia, jogando cartas e cumprimentando todos os que passavam. Tinham um
relacionamento agradável e amistoso entre si e com as circunstâncias à sua volta. Do outro
lado do saguão, ficavam as pessoas que gostavam de reclamar. Para elas, havia algo errado com
todo mundo que passava pela porta. Entre uma pessoa que passava e outra, reclamavam, “Você
viu que comida horrível nos serviram hoje?”, “Viu o que fizeram com o quadro de avisos?”,
“Você sabe para quanto vai subir o nosso condomínio?”, “Sabe o que disse o meu filho a última
vez que esteve aqui?” Esse era um grupo de pessoas cuja principal relação com a vida era
reclamar dela. Cada grupo levou para o edifício um padrão com o qual tinha vivido durante
muitos anos.
Circunstâncias e atitudes mentais que se repetem por muito tempo tornam-se a condição
daquilo que chamamos de “personalidade”. Quando perguntaram ao Lama Trungpa Rinpoche o que
iria renascer nas nossas próximas vidas, ele respondeu brincando: “Seus maus hábitos”. Nossa
personalidade é condicionada pelas causas passadas. Às vezes isso é evidente, mas com muita
freqüência os hábitos que se originam do passado distante e esquecido passam despercebidos.
Na psicologia budista, o condicionamento kármico da nossa personalidade é classificado de
acordo com três forças inconscientes básicas e tendências automáticas da nossa mente. Existem
os tipos marcados pelo desejo, cujos estados mentais mais freqüentes estão associados à
avidez, à carência, ao sentimento de não ter o suficiente. Existem os tipos marcados pela
aversão, cujo estado mental mais comum é rechaçar o mundo através do julgamento, do desagrado,
da aversão e do ódio. E existem os tipos marcados pela confusão, cujos estados mais
fundamentais são a letargia, a ilusão e a desconexão, não sabendo o que fazer a respeito das
coisas.
Você pode testar qual o tipo que predomina em você observando sua maneira peculiar de
entrar num ambiente. Se seu condicionamento for mais fortemente aquele do desejo e da
carência, você tenderá a olhar em volta e ver aquilo de que gosta, aquilo que você pode obter;
você verá as coisas que o atraem; observará o que é belo; apreciará um bonito arranjo de
flores; gostará do modo como algumas pessoas estão vestidas; encontrará alguém sexualmente
atraente ou vai imaginar que há pessoas simpáticas que valerá a pena conhecer. Se você é do
tipo aversão, ao entrar na sala, em vez de ver primeiro aquilo que você deseja, você tenderá a
ver o que está errado. “Ambiente muito barulhento. Não gosto do papel da parede. As pessoas
não estão vestidas adequadamente. Não gosto do jeito como tudo foi organizado”. E se você é
uma personalidade confusa, talvez entre na sala, olhe em volta e não saiba como se relacionar,
perguntando a si mesmo: “O que está acontecendo aqui? Onde eu me encaixo neste ambiente? O
que devo fazer?”.
Esse condicionamento primário é, na verdade, um processo de grande influência. Ele cresce
e se transforma naquelas forças que levam sociedades inteiras para a guerra, criam o racismo e
dirigem a vida de muitas pessoas à nossa volta. Quando, pela primeira vez, encontramos em nós
mesmos as forças do desejo e da aversão, da avidez e do ódio, podemos pensar que elas são
inofensivas, contendo um pouquinho só de carência, de desagrado, um pouquinho de confusão. No
entanto, à medida que observamos o nosso condicionamento, vemos que o medo, a cobiça e a fuga
são, na verdade, tão compulsivos que governam muitos aspectos da nossa personalidade. Pela
observação dessas forças, podemos ver como operam os padrões do karma.
Quando, na meditação, começamos a olhar atentamente nossa personalidade, em geral nosso
primeiro impulso é procurar livrar-nos dos nossos velhos hábitos e defesas. De início, a
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maioria das pessoas acha a sua própria personalidade difícil, desagradável e até mesmo
insípida. A mesma coisa pode acontecer quando olhamos para o corpo humano. Ele é belo quando
visto a distância certa, na idade certa e à luz certa, mas, quanto mais de perto o olhamos,
mais cheio de defeitos ele se torna. Quando notamos essa imperfeição, procuramos fazer
regime, jogging, tratamento de pele, exercícios e tirar férias para melhorar o físico. Mas,
embora tudo isso possa ser benéfico, continuamos a estar basicamente presos ao corpo com que
nascemos. A personalidade é ainda mais difícil de ser modificada do que o corpo; contudo, o
propósito da vida espiritual não é fazer com que nos livremos da nossa personalidade. Parte
dela já existia quando nascemos, parte tem sido condicionada pela nossa vida e cultura e,
diga-se o que se quiser, não podemos viver sem ela. Todos nós, na face desta Terra, temos um
corpo e uma personalidade.
Nossa tarefa é aprender muitas coisas sobre esse corpo e sobre essa mente, e despertar
dentro deles. Compreender o jogo do karma é um aspecto do despertar. Se não estivermos
conscientes, nossa vida simplesmente irá seguir, infinitas vezes, o padrão dos nossos hábitos
passados. Mas, se formos capazes de despertar, estaremos aptos a fazer escolhas conscientes
quanto ao modo de responder às circunstâncias da nossa vida. Nossa resposta consciente irá
então criar o nosso karma futuro. Podemos ser ou deixar de ser capazes de mudar as
circunstâncias externas, mas, com percepção consciente, podemos sempre mudar nossa atitude
interior, e isso é suficiente para transformar a nossa vida. Mesmo nas piores circunstâncias
externas, podemos escolher se vamos ao encontro da vida com medo e ódio ou com compaixão e
compreensão.
A transformação dos padrões da nossa vida sempre se processa no nosso coração. Para
compreender como trabalhar com os padrões kármicos precisamos observar que o karma tem dois
aspectos distintos: o karma que é o resultado do nosso passado e o karma que as nossas
respostas atuais estão criando para o nosso futuro. Recebemos os resultados da ação passada;
e isso é algo que não podemos mudar. Mas, ao responder no presente, também criamos um novo
karma. Semeamos as sementes karmicas para colher novos resultados. Em sânscrito, a palavra
“karma” geralmente vem junto com outra palavra, “vipaka” – karma-vipaka. Karma significa
“ação” e vipaka, “resultado”.
Ao lidar com cada momento da nossa experiência, usamos meios hábeis (conscientes) ou meios
inábeis (inconscientes). Todas as respostas inábeis, como avidez, aversão e confusão,
inevitavelmente criam mais sofrimento e karma doloroso. As respostas hábeis, baseadas na
percepção consciente, no amor e na receptividade, levam inevitavelmente ao bem-estar e à
felicidade. Através de meios hábeis, podemos criar novos padrões que transformam a nossa
vida. Até mesmo os padrões poderosos baseados na avidez, na aversão e na ilusão contêm dentro
de si as sementes de respostas hábeis. O desejo por prazer pode ser transformado numa ação
natural e compassiva que traz beleza à sociedade e ao mundo que nos cerca. O temperamento que
julga, do tipo aversão, através da percepção consciente pode transformar-se naquilo que é
chamado sabedoria discriminativa: uma clareza associada à compaixão, uma sabedoria que vê
claramente através de todas as ilusões do mundo e usa a clareza da verdade para ajudar e
curar. Até mesmo a confusão e a tendência a desligar-se da vida podem ser transformadas numa
equanimidade sábia e ampla, num equilíbrio sábio e compassivo que envolve todas as coisas com
paz e compreensão.
Tradicionalmente, o karma é discutido nos ensinamentos budistas em termos de morte e
renascimento. Buda falou de uma visão na noite de sua iluminação, na qual viu milhares de
suas vidas passadas, bem como as de muitos outros seres, todos morrendo e renascendo de acordo
com os resultados da lei kármica de suas ações passadas. Mas não é necessário ter a visão de
Buda para compreender o karma. As mesmas leis kármicas que ele descreveu agem na nossa vida
momento após momento. Podemos ver como a morte e o renascimento ocorrem a cada dia. A cada
dia, nascemos em meio a novas circunstâncias e experiências, como se fosse uma nova vida. Com
efeito, isso acontece a cada momento. Morremos a todo momento e renascemos no momento
seguinte.
Ensina-se que existem quatro tipos de karma no instante da morte ou em qualquer momento de
transição: karma denso, karma imediato, karma habitual e karma fortuito. Nessa ordem, cada um
representa uma tendência kármica mais forte do que a seguinte. A imagem tradicional para
explicar esse ensinamento é a do gado num curral, com a porteira aberta. O karma denso é como
um touro. É a força das mais poderosas ações boas ou más que praticamos. Se um touro está no
curral, quando a porteira é aberta, ele é sempre o primeiro a sair. O karma imediato é a vaca
que está mais próxima à porteira. Ele se refere ao estado mental que está presente no momento
da transição. Se a porteira é aberta e não há nenhum touro no curral, quem sai é a vaca mais
próxima à porteira. Se nenhuma vaca estiver perto da porteira, surge o karma habitual. É a
força do nosso hábito costumeiro. Se não estiver presente nenhum forte estado mental, a vaca
que costuma sair primeiro é a que irá sair primeiro. E, finalmente, se nenhum forte hábito
estiver operando, surge o karma fortuito. Isto é, se não surgir nenhuma força mais impetuosa,
nosso karma será o resultado fortuito de um número qualquer de condições passadas.
À medida que cada ação (ou nascimento) surge, existem forças que a sustêm e forças que
finalmente a levam a termo. Essas forças kármicas são descritas fazendo-se uso da imagem de um
jardim. A semente que é plantada é o karma causal. Fertilizar e regar a semente, cuidar das
plantas, é chamado de karma sustentador. Quando surgem dificuldades, trata-se do karma
opositor, representado pela seca; mesmo se plantarmos uma semente viável e a fertilizarmos, se
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não houver água, ela irá secar. E então, finalmente, o karma destrutivo é como o fogo ou os
roedores no jardim, que o queimam ou o devoram por completo.
Essa é a natureza da vida em todos os domínios, em todas as circunstâncias criadoras. Uma
condição segue-se à outra e, no entanto, tudo isso está sujeito a mudança. O karma das nossas
circunstâncias exteriores pode mudar com o agitar da cauda de um cavalo. A qualquer dia, uma
imensa fortuna ou a morte podem chegar para qualquer um de nós.
O resultado kármico dos padrões das nossas ações não decorre unicamente da nossa ação. À
medida que temos uma intenção e agimos, criamos karma; assim, uma outra chave para compreender
a criação do karma é a de tornarmo-nos conscientes da intenção. O coração é o nosso jardim e,
junto com cada ação, existe urna intenção plantada como uma semente. O resultado dos padrões
do nosso karma é o fruto dessas sementes.
Por exemplo, podemos usar uma faca afiada para cortar alguém; se a nossa intenção é ferir,
seremos um assassino. Isso leva a certos resultados kármicos. Podemos executar uma ação quase
idêntica, usando uma faca afiada para cortar alguém, mas, se somos um cirurgião, nossa
intenção é curar e salvar uma vida. A ação é a mesma, mas, no entanto, dependendo de seu
propósito ou intenção, tanto poderá ser um ato terrível quanto um gesto de compaixão.
Na nossa vida cotidiana podemos estudar o poder da intenção para criar o karma. Podemos
começar prestando atenção às nossas muitas ações que surgem ao longo do dia em resposta aos
problemas. De um modo automático, talvez ignoremos circunstâncias difíceis ou respondamos de
maneira crítica ou áspera. Talvez procuremos proteger ou defender o nosso próprio interesse.
Em todos esses casos, a intenção no nosso coração estará associada à avidez, à aversão ou à
ilusão, criando no futuro um karma de sofrimento que irá nos trazer uma resposta equivalente.
Se, em vez disso, quando essas circunstâncias difíceis surgem na nossa vida levarmos a
elas o desejo de compreender, de aprender, de libertar ou de trazer harmonia e criar paz,
iremos falar e agir com uma intenção inerente. Nossas ações talvez sejam bastante
semelhantes, nossas palavras talvez sejam semelhantes, mas, se a nossa intenção é criar paz e
trazer harmonia, essa intenção irá criar um tipo muito diferente de resultado kármico. Isso é
fácil de verificar nos relacionamentos íntimos, pessoais ou profissionais. Podemos dizer uma
mesma frase ao nosso parceiro ou amigo e, se o espírito tácito ao proferi-la for: “Eu amo você
e espero que nós dois entendamos o que está acontecendo”, iremos obter um tipo de resposta. Se
pronunciarmos a mesma frase com uma atitude subjacente de censura, defesa e crítica, em um tom
sutil de: “O que há de errado com você?”, ela dará outro rumo ao nosso diálogo e poderá,
facilmente, converter-se em uma briga. [...]

A intenção ou atitude que levamos a cada situação da vida determina o tipo de karma que
criamos. Dia a dia, momento a momento, podemos começar a ver a criação dos padrões de karma
baseados nas intenções do nosso coração. Quando prestamos atenção, torna-se possível
conscientizar-nos mais das nossas intenções e do estado do nosso coração à medida que elas
emergem junto com as ações e palavras que são as nossas respostas. Em geral, não temos
consciência das nossas intenções.
Por exemplo, uma pessoa decide parar de fumar. Lá pelo meio do dia surge o desejo de
fumar. Ela coloca a mão no bolso, pega o maço, tira um cigarro do maço, leva-o à boca,
acende-o e começa a dar uma bela tragada. Nesse instante, ela acorda e lembra: “Ah, eu ia
parar de fumar!”. Enquanto estava no piloto automático e sem percepção consciente, essa pessoa
realizou todos os movimentos habituais de pegar um cigarro e acendê-lo. Não é possível mudar
os padrões do nosso comportamento ou criar novas condições kármicas até que tenhamos nos
tornado presentes e despertos no início da ação. Caso contrário, a ação já aconteceu. Como diz
o velho ditado: “É como fechar a porteira depois que o cavalo fugiu do estábulo”.
O desenvolvimento da percepção consciente na meditação permite que nos tornemos atentos ou
conscientes o suficiente para reconhecer nosso coração e nossas intenções à medida que
atravessamos o dia. Podemos estar conscientes dos diferentes estados de medo, carência,
confusão, ciúme e raiva. Podemos saber quando o perdão, o amor ou a generosidade estão ligados
às nossas ações. Quando sabemos qual é o estado do nosso coração, podemos começar a escolher
os padrões ou condições que iremos seguir, o tipo de karma que criamos.
Tente trabalhar com esse tipo de percepção consciente na sua vida. Pratique-a com suas
palavras. Preste a mais cuidadosa atenção e observe o estado do seu coração; observe a
intenção, quando você falar, mesmo sobre o assunto mais insignificante. Sua intenção é ser
protegido, obter coisas, defender-se? Sua intenção é abrir-se com interesse, compaixão e
amor?. Uma vez observada a intenção, conscientize-se da resposta que vem à tona. Mesmo que
seja uma resposta difícil, continue com a intenção hábil por algum tempo e observe os tipos de
respostas que ela traz.
Se a sua intenção era inábil ou maldosa, tente mudá-la e ver o que acontece depois de
algum tempo. De início, é possível que você experimente apenas os resultados de sua atitude
defensiva anterior. Mas persista na sua boa intenção e observe os tipos de respostas que ela
finalmente irá evocar. Para compreender como o karma age, basta olhar para os seus
relacionamentos mais pessoais ou as suas interações mais simples. Escolha um relacionamento ou
locais específicos e experimente. Tente responder somente quando seu coração estiver
receptivo e generoso. Quando não se sentir assim, espere e deixe passar os sentimentos
negativos. Como instruiu Buda, deixe que suas palavras e ações aflorem suavemente, com um
intento generoso, no tempo devido, e para benefício delas próprias. À medida que você cultiva
uma intenção generosa e hábil, você poderá praticá-la no posto de gasolina ou no supermercado,
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no lugar onde trabalha ou no trânsito. A intenção que trazemos conosco cria o padrão que dela
resulta.
Ao tornar-nos mais conscientes da nossa intenção e ação, o karma mostra-se a nós com mais
clareza. O fruto kármico parece amadurecer mais rápido, talvez apenas porque nós o percebemos.
Ao prestar atenção, o fruto de tudo aquilo que fazemos, hábil ou inabilmente, parece
manifestar-se mais depressa. À medida que estudarmos essa lei de causa e efeito, iremos ver
que toda vez que nós, ou o outro, agimos de um modo baseado na avidez, no ódio, no
preconceito, no julgamento ou na ilusão, os resultados irão inevitavelmente causar algum
sofrimento. Começamos a ver como aqueles que nos ferem também criam um inevitável sofrimento
para si mesmos. A lei de causa e efeito nos faz querer prestar mais atenção e, ao observá-la,
podemos ver diretamente os estilos hábeis e inábeis no nosso próprio coração.
A atenção dada ao karma mostra-nos como as vidas são moldadas pela intenção do coração.
Quando lhe pediram para explicar a lei do karma de um modo bem simples, Ruth Denison,
conhecida instrutora de vipassana, assim se expressou: “Karma quer dizer que você nunca escapa
impune”. A cada dia, estamos semeando as sementes do karma. Existe apenas um único local no
qual podemos exercer alguma influência sobre o karma: na intenção das nossas ações. Na
verdade, existe apenas um karma pessoal que podemos mudar no mundo todo - o nosso próprio.
Porém, aquilo que fazemos com o nosso coração afeta o mundo todo. Se pudermos desfazer os nós
kármicos do nosso coração, o fato de sermos todos interligados irá, inevitavelmente, trazer a
cura para o karma de outra pessoa. Corno disse um ex-prisioneiro de guerra ao visitar um
colega sobrevivente: “Você já perdoou aqueles que o prenderam?”. O sobrevivente respondeu:
“Não, não os perdoei. Nunca os perdoarei”. E o primeiro veterano disse: “Então, de algum modo,
eles ainda conservam você prisioneiro”.
Quando minha mulher e eu viajávamos pela Índia há alguns anos, ela teve a visão muito
dolorosa de um de seus irmãos morrendo. De início, pensei que aquilo fosse parte de um
processo de morte/renascimento na sua meditação. No dia seguinte, ela teve uma segunda visão
do irmão, agora como guia espiritual, acompanhado de dois índios americanos e oferecendo a ela
apoio e orientação. Cerca de uma semana mais tarde, chegou um telegrama para o ashram onde
estávamos, em Monte Abu, no Rejisthan. Pesarosamente, minha mulher era informada de que seu
irmão morrera, exatamente do modo como ela o vira morrer. O telegrama fora enviado no dia em
que ela teve a visão. Estando do outro lado do mundo, como teria ela sido capaz de ver a morte
do irmão? Isso foi possível porque todos nós estamos interligados. E, porque é assim, mudar um
coração afeta todos os corações e o karma de todo o planeta.

Num retiro que dirigi há alguns anos, uma mulher lutava contra as conseqüências dolorosas
de abuso sofrido no início da sua vida. Ela sentira raiva, depressão e dor durante muitos
anos. Fizera terapia e meditação, atravessando um longo processo para curar essas feridas.
Finalmente, nesse retiro, ela chegou a um estado de perdão para com o homem que havia abusado
dela. Chorou com profundo perdão - não pelo ato em si, que jamais pode ser justificado, mas
porque ela não queria mais carregar a amargura e o ódio no seu coração.
Acabado o retiro, ela voltou para casa e encontrou uma carta à sua espera na caixa de
correspondência. A carta havia sido escrita pelo homem que abusara dela e com o qual não
tivera contato por quinze anos. Embora, na maioria dos casos, as pessoas que cometem abuso
neguem veementemente suas ações apesar do perdão, algo tinha mudado a mente daquele homem. Ele
escreveu: “Por muitas razões, sinto-me compelido a lhe escrever. Pensei muito em você esta
semana. Sei que lhe causei grande dano e sofrimento, e que também trouxe grande sofrimento
para mim. Mas quero apenas pedir o seu perdão. Não sei o que mais posso dizer”. E então ela
olhou a data no alto da carta. Fora escrita no mesmo dia em que ela completou seu trabalho
interior de perdão.

Existe uma famosa história hindu sobre dois reinos que eram, ambos, governados em nome de
Krishna. Olhando lá do alto, dos céus, Krishna decidiu visitá-los e ver o que estava sendo
feito em seu nome. Desceu dos céus e surgiu diante da corte de um dos reis. Esse rei era
conhecido por ser depravado, cruel, avarento e invejoso. Krishna surgiu em sua corte envolto
no esplendor da luz celestial. O rei prostrou-se diante dele e disse: “Deus Krishna, vieste me
visitar”. Krishna respondeu: “Sim. Quero confiar-te uma tarefa. Eu gostaria que viajasses por
todas as províncias do teu reino e tentasses encontrar para mim uma pessoa realmente boa”. O
rei viajou por todas as províncias de seu reino, falando com as castas superiores e com as
inferiores, com religiosos e agricultores, com artesãos e curadores. Finalmente, retornou à
sala do trono e esperou pelo reaparecimento do deus Krishna. Quando Krishna surgiu, o rei
prostrou-se e disse: “Meu Senhor, cumpri tuas ordens. Viajei de alto a baixo por todo o meu
reino, mas não encontrei uma só pessoa boa. Embora algumas delas tenham realizado algumas boas
ações, quando as conhecia melhor eu via que mesmo suas melhores ações acabavam sendo egoístas,
interesseiras, coniventes ou desonestas. Não consegui encontrar uma única pessoa boa”.
E então Krishna foi à outra corte, governada por uma famosa rainha chamada Dhammaraja.
Essa rainha era conhecida por ser gentil, graciosa, dedicada e generosa. E, do mesmo modo,
Krishna deu-lhe uma tarefa. “Eu gostaria que viajasses por todo o teu reino e encontrasses
para mim uma pessoa realmente má”. E assim a rainha Dhammaraja percorreu todas as províncias
do seu reino, falando com as castas superiores e com as inferiores, com agricultores,
carpinteiros, enfermeiras e religiosos. Depois de longa busca, a rainha retornou à sua corte
e Krishna reapareceu. Ela prostrou-se e disse: “Meu Senhor, fiz o que me pediste, mas falhei
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na minha tarefa. Percorri todas as terras e vi muitas pessoas que se comportam


desastradamente, que são mal-orientadas e agem de uma maneira que gera sofrimento. No entanto,
quando as ouvi de fato, não consegui encontrar nenhuma pessoa verdadeiramente má, apenas
pessoas mal-orientadas. Suas ações sempre vêm do medo, da ilusão e do equívoco”.
Em ambos os reinos, as circunstâncias da vida eram governadas pelo espírito dos
governantes, e o que eles encontraram era um reflexo do seu próprio coração. À medida que
prestarmos atenção e compreendermos o nosso coração e desenvolvermos as respostas hábeis da
sabedoria e da compaixão, estaremos realizando nossa parte para pacificar toda a Terra.
Através do nosso trabalho e criatividade, podemos fazer surgir na nossa vida circunstâncias
exteriores benéficas. No entanto, a maioria das coisas que nos acontecem, o local onde
nascemos, quando morremos, as grandes mudanças que arrastam nossa vida e o mundo à nossa volta
são o resultado de padrões kármicos antigos e influentes. Esses, não podemos mudar. Eles vêm
à nós como o vento e o mau tempo. A única previsão meteorológica que podemos garantir é que
essas condições continuarão a mudar.
No processo de compreender o karma, precisamos responder a uma pergunta simples: Como nos
relacionamos com essas condições mutáveis? O tipo de universo que criamos, o que decidimos
plantar, o que fazemos nascer no jardim do nosso coração - isso irá criar o nosso futuro.
Buda começa os seus ensinamentos na grande Dhammapada dizendo:

“Somos aquilo que pensamos.


Tudo o que somos nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso pensamento, construímos o mundo.
Fale ou aja com uma mente impura,
e os problemas o seguirão como uma carroça segue a parelha de bois.
Somos aquilo que pensamos.
Tudo o que somos nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso pensamento construímos o mundo.
Fale ou aja com uma mente pura
E a felicidade o seguirá
Como uma sombra, inabalável”.

A longo prazo, nada possuímos nesta Terra, nem mesmo o nosso corpo. Mas, através das
nossas intenções, podemos moldar ou direcionar os padrões do nosso coração e mente. Podemos
plantar no nosso coração sementes que irão criar o tipo de reino que será o mundo, seja ele
depravado e mau ou bom e compassivo. Através da simples percepção consciente da nossa
intenção a cada momento, podemos plantar um esplêndido jardim, criar padrões de bem-estar e
felicidade que perdurarão muito mais do que a nossa personalidade e a nossa vida limitada.
Sylvia Boorstein, instrutora de vipassana, exemplifica esse poder com uma história sobre
um bom amigo seu, médico famoso que durante muitos anos foi presidente da Associação
Psiquiátrica Americana. Ele era conhecido como um cavalheiro, um homem íntegro e gentil, que
levava uma grande alegria a tudo na sua vida. Ele sempre dedicava um respeito profundo aos
pacientes e colegas. Depois que se aposentou e envelheceu, começou a ficar senil. Perdeu a
memória e a capacidade de reconhecer as pessoas. Ainda vivia em casa e a esposa ajudava a
cuidar dele. Sendo amigos de longa data, Sylvia e Saymour, seu marido e também psiquiatra,
certa vez foram convidados a jantar em sua casa. Já fazia algum tempo que não o viam e
imaginavam se a sua senilidade não teria aumentado. Chegaram à porta com uma garrafa de vinho
e tocaram a campainha. Ele abriu a poria e olhou-os com uma expressão vazia que não mostrava
nenhum reconhecimento de quem eles seriam, embora tivessem sido amigos por muitos anos. E
então sorriu e disse: “Não sei quem são vocês, mas pouco importa, façam o favor de entrar e
fiquem à vontade na minha casa”, oferecendo-lhes a mesma amabilidade com que tinha vivido
durante toda a sua vida.
Os padrões kármicos que criamos com o nosso coração transcendem as limitações do tempo e
do espaço. Despertar um coração compassivo e sábio em resposta a todas as circunstâncias é
tornar-se Buda. Quando despertamos o Buda dentro de nós, despertamos para a força universal do
espírito que pode trazer compaixão e compreensão ao mundo como um todo. Gandhi chamava esse
poder de “força da alma”. Ela traz força quando uma ação firme é necessária. Traz imenso
amor e perdão, embora também defenda e fale a verdade. É esse poder do nosso coração que traz
sabedoria e liberdade em qualquer circunstância, e que faz viver o reino do espírito aqui na
Terra.
Para Gandhi, esse espírito estava sempre ligado ao seu coração, sempre aberto para ouvir e
pronto para responder ao mundo, compartilhando as bênçãos da compaixão com todos os seres:

“Além da minha não-cooperação, existe sempre o mais entusiástico desejo de cooperar, ao


menor pretexto, mesmo com o pior dos meus opositores. Para mim, um mortal muito imperfeito
está sempre necessitado da graça de Deus, sempre necessitado do Dharma. Ninguém está além da
redenção”.

UM CAMINHO COM O CORAÇÃO – Jack Kornfeld


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A INTERDEPENDÊNCIA

“O ensinamento do surgimento dependente (sânsc. pratitya-samutpada) diz que todo fenômeno


(sânsc. dharma) aparece, se realiza e desaparece; estes três acontecimentos só podem ocorrer
devido a certas causas e condições. Por isso, o samsara (o mundo dos fenômenos) é
condicionado, interdependente, ao contrário da paz infinita do nirvana, incondicionado.

“Se você é poeta, vê claramente uma nuvem em um papel em branco. Se não existir a
nuvem, a chuva não cai. Se não cair a chuva, a árvore não cresce. Se não cresce a árvore, não
se faz papel. Então, podemos dizer que o papel e a nuvem se encontram em interexistência. Se
observarmos mais profundamente o papel, veremos nele a luz do sol.
Sem a luz do sol, o mato não cresce. Ou melhor, sem ela, nada no mundo cresce. Por
isso, reconhecemos que a luz do sol também existe no papel em branco. O papel e a luz do sol
encontram-se em interdependência. Se continuarmos observando profundamente, veremos o lenhador
que cortou a árvore posteriormente levada à marcenaria.
Veremos também o trigo no papel. Sabemos que o lenhador não pode existir sem o pão de
cada dia. Por isso, o trigo, a matéria-prima do pão, também existe no papel. Pensando desta
maneira, reconhecemos que um papel branco não pode existir quando faltar qualquer um destes
elementos. Não posso citar nada que não esteja aqui, agora. O tempo, o espaço, a chuva, os
minerais contidos no solo, a luz do sol, as nuvens, os rios, o calor... Tudo está aqui, agora.
Não podemos existir sozinhos.
Este papel branco é totalmente constituído de “elementos que não são papel”. Se
devolvermos todos os “elementos que não sejam papel” à sua origem, o papel deixará de existir.
O papel não existirá se forem tirados os “elementos que não sejam papel”. O papel, em sua
espessura fina, contém tudo do universo. Nele, não há nada que não exista em interdependência.
A inexistência de elementos independentes significa que tudo é satisfeito por tudo.
Temos que existir em interexistência com os demais, assim como um papel que existe
porque todo os demais elementos existem.
Citado em CAMINHO ZEN – Thich Nhat Hanh

“Se tudo é impermanente, então tudo é o que chamamos “vazio” [sânsc. shunya], o que
significa ausência de qualquer existência durável, estável e inerente; de todas as coisas,
quando vistas e compreendidas em sua verdadeira relação, não são independentes, mas
interdependentes entre si. O Buda comparou o universo a uma vasta rede composta por uma
infinita variedade de jóias brilhantes, cada uma delas com um número incontável de facetas.
Cada jóia reflete em si mesma todas as outras jóias do conjunto, é de fato una com toda as
demais.
Pense numa onda no mar. Vista de um modo, parece ter uma identidade distinta, um fim
um começo, um nascimento e uma morte. Vista de outro modo, a onda não existe, mas é apenas o
comportamento da água, “vazia” de toda identidade separada, mas “cheia” de água. Assim, quando
você pensa a respeito da onda, vem a perceber que se trata de algo que se tornou
temporariamente possível pelo fato do vento, e pela água, e que é dependente de um conjunto de
circunstâncias permanentemente mutáveis. Você também percebe que cada onda está relacionada
com todas as outras ondas.
Quando observamos atentamente, nada tem qualquer existência inerente e própria, e
essa ausência de existência independente é o que chamamos “vacuidade (sânsc: shunyata)”.
Citado CAMINHO ZEN – Thich Nhat Hanh

“Na ciência interna budista, temos a imagem de uma rede feita de jóias cobrindo o telhado
do palácio de Indra, na qual cada jóia reflete a rede e o palácio inteiros. Lama Tsong Khapa,
um famoso budista tibetano, cientista interno e filósofo do século XIV, fundador da escola
Guelupa, afirmou:

“A Rainha das Razões, a Interdependência dos Fenômenos, mostra que “todas as coisas
carecem de existência por si mesmas, pois são fenômenos dependentemente relacionados”.

E em seu texto Os Três Principais Aspectos do Caminho, ele diz:

“Quem enxergar a relação causa-efeito completamente não ilusória de todos os fenômenos do


samsara e do Nirvana e destruir todas as percepções dualistas enganosas entrará no caminho que
satisfaz os conquistadores”.

Pantchen Tchoekyi Gyaltsen, um famoso budista tibetano do século XVI, cientista interno e
detentor da linhagem de Lama Tsong Khapa, afirmou em seu texto Lama Tchoepa:

“Não há contradição, mas sim harmonia, entre a ausência de um único átomo existente por si
mesmo no samsara e no Nirvana e a relação dependente não ilusória entre causa e efeito”.

Niels Bohr, o físico dinamarquês do século XIX ganhador do Prêmio Nobel, afirmou:
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“As partículas materiais isoladas são abstrações, sendo suas propriedades definíveis e
observáveis apenas por meio da interação com outros sistemas”.

Thomas Stapp, um famoso físico americano do século XX, afirmou em um relatório patrocinado
pela Comissão Norte-Americana de Energia Atômica:

“O mundo físico não é uma estrutura construída a partir de entidades não analisáveis
existentes independentes umas das outras, mas sim uma rede ele relações entre elementos cujos
significados surgem totalmente a partir de suas relações com o todo”.
e
“Uma partícula elementar não é uma entidade não-analisável que existe independente de
outras, mas sim um conjunto de relações que se estendem a outras coisas”.
Geshe Kelsang Gyatso NGELSO – AUTOCURA III – Lama Ganchen

A RODA DA VIDA

O SIMBOLISMO DO DIAGRAMA DA RODA DA VIDA

O diagrama da Roda da Vida representa todos os ambientes do samsara, bem como seus
habitantes. Revela a natureza do samsara e os caminhos que a ele nos levam e ali nos
mantêm confinados.
No centro do diagrama há três animais: um porco, um pombo e uma serpente. Os sutras
Vinaya dizem que a ave central é um pombo, mas nos dias de hoje, muitos diagramas
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mostram outros pássaros em seu lugar. Os animais podem ser desenhados de duas maneiras.
Uma delas consiste em representá-los em círculo – da boca do porco sai o pombo e da boca
deste sai a serpente, que, por sua vez, liga-se ao rabo do porco. A maneira mais
autêntica de desenhá-los é mostrar o pombo e a serpente saindo da boca do porco.
Os três animais simbolizam os três venenos mentais: o porco representa a ignorância,
o pombo, o apego desejoso e a serpente, o ódio. O simbolismo é apropriado, pois os
porcos padecem de grande ignorância, os pombos têm forte apego desejoso e as· serpentes,
intenso ódio. O fato de o pombo e a serpente saírem da boca do porco indica que o apego
desejoso e o ódio se desenvolvem a partir da ignorância. Desenhá-los segundo o primeiro
sistema também faz sentido, porque sua representação em círculo indica que são
mutuamente dependentes.
Ao redor do centro do diagrama, há um círculo, metade branco e metade preto, que
indica dois caminhos a serem seguidos depois da morte: o caminho alvo e virtuoso que
conduz aos renascimentos superiores de humanos e deuses e o caminho escuro e não-
virtuoso, que conduz aos reinos inferiores. Na metade branca, três seres do bardo estão
retratados no aspecto de seus próximos renascimentos: um humano, um semideus e um deus.
Eles estão em pé, ascendendo ao topo da Roda. Na metade escura, vemos três seres do
bardo a cair, virados de ponta-cabeça: um animal, um fantasma faminto e um ser-inferno.
Ao redor do círculo branco e preto, há outro círculo, dividido em seis
compartimentos, que representam os seis reinos – seres dos inferno, fantasmas famintos,
animais, humanos, semideuses e deuses. Em alguns diagramas os deuses e semideuses são
retratados juntos. Existe uma infinidade de universos habitados por seres vivos, mas
todos podem ser incluídos nos seis reinos.
Ao redor do círculo compartimentado, há uma borda com doze divisões, cada qual
contendo um desenho simbólico dos elos:

1. Ignorância – avydia: uma mulher velha e cega;


2. Ações de formações – samskaras: um oleiro a fazer potes, alguns bons e outros
ruins;
3. Consciência – vijnana: um macaco a saltar inquietamente, para cima e para baixo em
uma árvore; isso indica o movimento agitado de nossa consciência, subindo e descendo na
árvore do samsara;
4. Nome e forma – nama-rupa: um homem a remar um barco; assim como precisamos de um
barco para viajar através do oceano, também precisamos do barco dos agregados para
renascer nesse oceano que é o samsara;
5. Seis fontes – sadayatana: uma casa vazia com cinco janelas; como uma casa vazia
antes da mudança de seus proprietários, as seis fontes são os quartos de uma casa vazia
à espera de seus ocupantes, as seis consciências (as cinco janelas que aparecem no
diagrama representam as cinco faculdades sensoriais, mas a faculdade mental está
implícita);
6. Contato – sparsa: um homem e uma mulher abraçados; o encontro com os objetos.
7. Sensação – vedana: um homem flechado no olho; daí surge o apego/aversão ao objeto.
8. Desejo – tanha: um homem bebendo cerveja; se surgir o apego queremos agarrar.
9. Agarramento – upadana: um macaco apanhando frutas; do agarrar surge a noção de
propriedade.
10. Existência – bhava: uma mulher grávida prestes a dar à luz; e isso é
considerado existência.
11. Nascimento – jati: um bebê nascendo; novamente uma nova roda é criada.
12. Envelhecimento e morte – jaramarana: um homem carregando um cadáver nas
costas. Termino de uma roda.

A Roda da Vida foi desenhada entre as garras de Yama, o Senhor da Morte, para nos
lembrar da impermanência e mostrar que, dentro dela, não existe sequer um ser que
escape ao controle da morte. Com sua mordida, Yama segura a Roda da Vida, envolvendo -a
em suas garras. Isso mostra que todos os seres vivos passam repetidam ente pelas
mandíbulas da morte. O Senhor da Morte é o maior obstáculo à nossa libertação. Ele
segura um espelho, denominado “espelho da ação”, no qual todas as ações dos seres
vivos, as virtuosas e as não-virtuosas, estão nitidamente refletidas.
A Roda da Vida representa os verdadeiros sofrimentos e as verdadeiras origens, além
de revelar como os verdadeiros sofrimentos surgem na dependência de verdadeiras
origens. Do lado de fora da Roda da Vida, Buda está apontando para a lua. O fato de
Buda estar do lado de fora da Roda indica que os Budas estão fora do samsara, pois se
libertaram abandonando os caminhos samsáricos e conquistando verdadeiros caminhos. A
lua representa as verdadeiras cessações (a verdadeira natureza).

Buda aponta para a lua e diz:


“Viajei ao longo de caminhos da libertação e atingi a cidade da libertação”.

Sob o diagrama, Buda escreve a seguinte estrofe:

“Esforça-te para destruí-la 1. Ingressa no budadharma.


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Elimina o Senhor da Morte, como um elefante destrói uma choupana de palha” .


Nota:1. Ignorância

O primeiro verso incentiva-nos a investir esforço para abandonar o samsara; o


segundo explica-nos como fazê-lo.
Do livro: O CAMINHO ALEGRE DA BOA FORTUNA- Geshe Kelsang Gyatso

OS SEIS REINOS

Tradicionalmente, essa interpretação dos seis reinos tem sido enfatizada como um incentivo
à prática do Dharma. Em uma cultura onde a crença na reencarnação é aceita, a contemplação
sobre o ciclo infindável de vida após vida é muito poderosa e eficaz. Mas para aqueles que não
cresceram com essas idéias, como parte de seu passado cultural, seria artificial simplesmente
aceitá-las como uma questão de fé. Precisamos chegar a uma compreensão mais profunda de seu
significado interior, antes que possamos integrá-las à nossa visão de vida. Muitos budistas
ocidentais têm dificuldades com o conceito de renascimento nos seis reinos, ou mesmo com o
renascimento por si só. Ninguém pode nos provar o que existe além da morte. Entretanto,
podemos investigar nossas mentes aqui e agora e descobrir todos os mundos contidos nelas.
Podemos descobrir o que a vida como um ser humano realmente significa neste exato momento, e
isso pode nos levar a uma crença razoável, baseada na experiência presente, sobre o que
acontece após a morte.

Quando observamos a mente em meditação, podemos ver com clareza como cada pensamento surge
e cessa, como causa e efeito operam, como estados mentais sucedem uns aos outros exatamente
como uma vida depois da outra, e como nossa permanência imaginada é na verdade um processo de
mudança contínua. Se aprendermos a observar todas essas coisas acontecendo nesta vida, não é
tão difícil aceitar a idéia de todas elas continuarem após a morte. Nossa própria mente é a
única coisa que podemos realmente conhecer. Podemos aprender a ver, além de qualquer dúvida,
como criamos continuamente nosso próprio mundo através do poder da mente, e como os seis
reinos têm uma significação muito real na psicologia da existência diária. Como Milton
escreveu:
A mente é seu próprio lugar, e dentro dela
Pode-se de um Paraíso fazer o Inferno, e do Inferno o Paraíso.

Trungpa Rinpoche sempre falou sobre os seis reinos como estados mentais e enfatizou a
importância de compreendê-Ios dessa forma, enquanto temos a oportunidade nesta vida. Ele se
referia a eles como estilos de aprisionamento, estilos de confusão, estilos de insanidade e
mundos de fantasia. São todos estratégias para manter o que ele chamava de jogos do ego em
face à possibilidade do despertar. Surgem a partir dos venenos, e quando permitimos que uma
dessas emoções poderosas desenvolva-se e tome conta de nossas vidas, encontramo-nos no reino
em particular associado a ela. O veneno corroendo o centro do ser que habita cada reino se
origina do medo básico de perder o ego, expresso nessas seis formas características. Todos os
reinos são baseados em apego e avidez, não nos permitindo que nos liberemos em direção ao
espaço.

Quando estamos completamente imersos em um estado emocional insuperável, todo o nosso


mundo se torna colorido por ele; tendemos a ver o ambiente e as outras pessoas sob a mesma
luz, de tal forma que se torna impossível distinguir a realidade interior da exterior. Quando
estamos felizes, descobrimos que nossa felicidade afeta todos ao nosso redor, as pessoas
reagem a nós e se sentem mais felizes também; somos capazes de desfrutar do tempo, mesmo se
estiver feio ou desagradável, e vemos beleza até na mais feia paisagem. Da mesma forma, quando
estamos consumidos por raiva ou por ódio, tudo se torna odioso; não sentimos prazer no
ambiente que nos cerca e achamos que todos estão direcionando sua agressividade para nós.
Atraímos o pior das outras pessoas, e mesmo objetos inanimados parecem refletir nosso mau
humor, quebrando-se, ficando no caminho e causando acidentes. Esses são exemplos diários de
morada nos reinos do céu e do inferno. As descrições dos seis reinos que se seguem podem
parecer extremas; mostram cada reino em sua forma mais intensa, não diluída por quaisquer
outras características. Para nós que somos humanos, as experiências dos outros reinos sempre
acontecem dentro da natureza humana básica; é como se víssemos apenas suas sombras ou seus
reflexos. [...]

Trungpa Rinpoche também relacionava os seis reinos aos seis bardos. Seres humanos em todos
os reinos passam por todos os bardos, mas existe também uma correspondência individual
especial. Aqui os bardos são vistos como destaques da natureza de cada reino. A experiência
intermediária possui uma qualidade extrema: é como se estivéssemos na borda de um rochedo
escarpado, prontos para pular no espaço, mas não temos certeza se esse pulo irá nos matar ou
nos libertar. Isso acontece sempre que a qualidade intensificada, ampliada, de uma emoção
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atinge o seu pico; subitamente ela apresenta uma brecha, que é o portal do despertar. Podemos
ou seguir através dele e despertar do sonho do reino no qual estamos, ou permanecer
aprisionados em nossos padrões habituais de pensamento.
Do extraído livro: VAZIO LUMINOSO de Francesca Fremantle

Qualitativamente, cada uma das seis aflições mentais engendra um certo tipo de nascimento:
o ódio conduz a um reino infernal, a ganância a um reino de fantasmas famintos, a estupidez a
um reino animal, o apego desejoso a uma condição humana, a inveja ao reino dos deuses
invejosos, e o orgulho aos estados divinos.
Quantitativamente, estes diferentes estados resultam da acumulação de karma.
Então, muito karma negativo gera um reino infernal; um karma um pouco menos negativo, o
reino dos fantasmas famintos; um pouco menos que isso, um reino animal.

Geralmente, quando o karma positivo está misturado com alguns aspectos negativos, nascemos
em um dos três reinos superiores da existência, de acordo com as respectivas forças destes
karmas.

O Reino do Inferno
A mente dominada pela raiva e pelo ódio produz o karma para a vida em um inferno. O que
sofre nesse estado infernal é a mente, nossa mente. As aparências infernais, os seres que nos
atacam ou nos matam, o ambiente e todo o sofrimento que nos aflige nesse reino, são produções
de nossa própria mente condicionada pelo nosso karma.
Nestes estados infernais, somos atormentados inflexivelmente por um sofrimento
inconcebível: somos mortos e, em alguns reinos infernais, experienciamos ser mortos de novo e
de novo; somos torturados pelo calor e frio extremos. E não há liberdade, nem qualquer
possibilidade de nos dedicarmos à prática espiritual.

O Reino dos Fantasmas Famintos


Se nossas mentes caírem como pressas da ganância ou cobiça, o karma que resulta é o
nascimento como um fantasma faminto. Neste estado, nunca podemos obter o que queremos, nem
podemos desfrutar da comida ou bebida que desejamos desesperadamente como fantasmas famintos.
Sempre estamos precisando e procurando algo, mas somos completamente incapazes de satisfazer
nossos desejos e sofremos de fome, de sede e de constantes frustrações intensas. É também um
estado produzido pela nossa própria mente e, apesar de ser um pouco menos desfavorável que o
reino infernal, ainda é um estado miserável.

O Reino Animal
A mente também pode cair sob a influência da cegueira, da estagnação mental e da
estupidez, o que causa o nascimento como um animal. Há muitas espécies animais: animais
selvagens, animais domésticos e assim por diante. Todos eles experienciam diferentes formas de
sofrimento, tais como ser comido vivo, brigar uns com os outros, ou ser subserviente e
abusado. Todo sofrimento encontrado no reino animal também é a produção da mente e a
manifestação de karma resultante de ações negativas anteriores.
Estes três tipos de existência compõem os estados dos reinos inferiores. Entre eles, o
mais favorável é o reino animal. Mas mesmo nesse estado, é muito difícil despertar o amor e a
compaixão, e é impossível praticar o Dharma.
Em todos estes reinos inferiores, não há a possibilidade de praticar o Dharma e de atingir
a realização; a mente está constantemente perturbada pela raiva, ódio, desejo e assim por
diante. Além disso, os seres dos reinos inferiores tendem a realizar mais ações negativas que
criam ainda mais karma doloroso. Deste modo, eles perpetuam o condicionamento das vidas nos
reinos inferiores que, além disso, duram por um tempo extremamente longo.

O Reino Humano
A condição humana é a primeira das existências nos reinos superiores. Os humanos são
praticamente os únicos seres dotados com as condições necessárias para o progresso espiritual,
assim com as faculdades que permitem a prática e a compreensão do Dharma. Porém, ser humano
não garante o progresso espiritual. O valor da vida humana é variável e apenas aqueles que
obtiveram a chamada “preciosa existência humana” podem praticar o Dharma; eles são tão raros
quanto estrelas durante o dia! Apesar desta ser uma condição menos dolorosa que as existências
nos reinos inferiores, a condição humana ainda tem muitos tipos de sofrimento, sendo que os
quatro tipos principais são o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Além destas quatro
grandes fontes de sofrimento, os humanos sofrem quando são separados daqueles que amam muito,
durante suas vidas ou na morte, ou quanto têm de lidar com pessoas com as quais não querem
lidar ou que são hostis diante deles. Os humanos sofrem ao perder suas posses, ao não serem
capazes de manter o que planejaram adquirir e ao não serem capazes de obter o que querem.

O Reino dos Deuses Invejosos


O karma que é acima de tudo positivo, porém misturado com a inveja, causa o nascimento no
reino dos deuses invejosos. Este é um estado feliz, dotado com muitos poderes e prazeres mas,
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por causa da força da inveja, há constantes brigas e conflitos. Os deuses invejosos opõem-se
aos deuses que são seus superiores e brigam entre si mesmos.

O Reino Divino
O karma positivo combinado com pouquíssimo karma negativo resulta em um renascimento nos
estados divinos. Há diferentes níveis de existência divina.
Os primeiros são os estados divinos do reino do desejo, assim chamados porque a mente
nesses reinos ainda está sujeita aos desejos e ao apego.
Estes deuses têm uma vida extremamente longa: em um dos primeiros reinos dos deuses, um
dia dura o equivalente a cem anos humanos, e eles vivem quinhentos dos anos deles. No nível
seguinte dos reinos divinos, cem de nossos anos equivalem a um dos dias deles, e eles vivem
mil anos! Nestes reinos geralmente felizes, ainda há algum sofrimento, causado por ocasionais
brigas com os seres do reino dos deuses invejosos.

As existências no reino do desejo vão desde os reinos mais miseráveis – os reinos


infernais - até os primeiros reinos dos deuses; todos estes estados estão sob o controle do
desejo.

Além do reino do desejo, há o reino da forma sutil, que inclui uma hierarquia de dezessete
níveis divinos sucessivos. Os seres nestes estados têm uma forma sutil e corpos extremamente
grandes, luminosos; suas mentes conhecem poucas paixões, poucos pensamentos; e eles desfrutam
de uma felicidade incrível. A paixão predominante é o orgulho sutil - os seres destes reinos
acham que atingiram algo superior e vivem um tipo de auto-satisfação.
Estes estados do reino da forma correspondem aos quatro níveis de concentração meditativa,
caracterizados pela transcendência progressiva da investigação, da análise, da alegria e do
êxtase.
Finalmente, além até mesmo destes quatro níveis de concentração do reino da forma, pode
haver o nascimento no reino sem forma. Os seres do reino sem forma não experienciam qualquer
sofrimento severo e virtualmente não têm quaisquer paixões; eles permanecem apenas em uma
forma extremamente sutil. A impureza que permanece em suas mentes é um tipo de estagnação
mental que impede a realização da natureza última da mente. No reino sem forma, a mente tem
acesso a quatro estados sucessivos de consciência; absorção do espaço infinito, absorção da
consciência infinita, absorção do nada, e absorção nem da diferenciação nem da não-
diferenciação.

Os deuses do reino sem forma têm o sentimento de possuir um corpo, mas este corpo é
imperceptível. Eles têm apenas o quinto agregado da individualidade - a consciência - ainda
presente como uma ignorância sutil que lhes dá um sentimento de existir neste corpo sem forma.
Esta consciência finalmente age como uma mãe que novamente dá a luz aos outros agregados.
Deste modo, os deuses do reino sem forma retornam aos reinos inferiores.
Para ser livre do samsara, a consciência em si deve ser definitivamente transformada na
sabedoria primordial, a sabedoria da iluminação.
Estes oito estados dos reinos da forma e sem forma pertencem a uma mente positiva, não-
distraída; seus estágios sucessivos são progressivamente livres do apego. Todos estes estados
dos seis reinos do samsara são transitórios e condicionados: todos eles são parte da roda do
samsara.
Apesar de os deuses dos reinos da forma e sem forma terem poucas formas severas de
sofrimento, eles ainda estão sujeitos à morte e à transmigração.
Eles não têm o poder de permanecer em sua condição divina e sofrem, tendo de renascer em
um reino inferior.
Se acharmos difícil aceitar a noção destes diferentes reinos, vamos simplesmente lembrar
que a experiência de cada um é a sua realidade. Quando estamos sonhando, nossos sonhos tornam-
se a nossa realidade, e acontece o mesmo com os seis reinos. Por exemplo, água pode ser
experienciada de maneiras muito diferentes: para os seres do inferno, ela causa tortura; para
os fantasmas famintos, é o que desejam desesperadamente; para alguns animais, é o meio
necessário para a vida; para as pessoas, é uma bebida; para os deuses invejosos, é uma arma; e
para os deuses, é um néctar sublime.
As profundezas do oceano são o habitat natural dos peixes, mas os humanos não podem viver
lá. Os pássaros voam no céu, mas isto é impossível para o corpo humano. As pessoas que são
cegas não podem ir aonde querem, enquanto aqueles que têm a visão normal podem se mover
livremente por aí. Cada um vive em seu próprio mundo ou reino, sem perceber o dos outros.
Então, o samsara é composto por três reinos: o reino do desejo, o reino da forma e o reino
sem forma. Todas as possibilidades da existência condicionada estão incluídas neles.
Tornando-nos conscientes de que todos os seres sofrem neste ciclo de existência, nos
inspiraremos a nos liberarmos da ignorância e da delusão onde estamos imersos, a nos
libertarmos do samsara, que é um oceano de sofrimento, e a nos esforçarmos para atingir a
felicidade suprema do estado búddhico perfeito.
No passado, tivemos incontáveis nascimentos na existência cíclica. Hoje, somos seres
humanos; se usarmos este oportunidade sabiamente, poderá ser o ponto de partida para a nossa
liberação.
LUMINOUS MIND - Kalu Rinpoche
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OS DOZE ELOS DA ORIGINAÇÃO INTERDEPENDENTE

OS ELOS SÃO INTERCONECTADOS, UM MOVE O OUTRO E O FAZ GIRAR, MOVENDO TAMBÉM O PRÓXIMO.

A Roda da Vida é o samsara com seus Doze Elos Interdependentes. O primeiro elo é a
ignorância (avydia) descrita acima. (Os demais elos serão conseqüência de nossa ação
ignorante)
No centro da Roda vemos três animais que representam os três venenos da mente: A
IGNORÂNCIA (porco) O APEGO (galo ou pombo) e A AVERSÃO (cobra). A partir desses três venenos
surgem as seis emoções perturbadoras (ódio, avareza, preguiça, apego, inveja, orgulho) que vão
originar os seis reinos da existência cíclica ou samsara.

OS DOZE ELOS DA ORIGINAÇÃO INTERDEPENDENTE

O Muni, o Budha, declarou no sutra Pratityasamutpada:


Monges! Quando isto está presente, aquilo acontece. Porque isto surgiu, aquilo surge. É
assim: através da influência da ignorância (avidya)*, os processos de composição (samskara)
passam a existir; [etc... através da influência do nascimento, passam a existir envelhecimento
e morte, mágoa, gritos de angústia, sofrimento mental e toda ansiedade. Assim, esta massa
enorme de sofrimento passa a existir.
O Buda fez outra declaração no mesmo sentido:

Quando a ignorância cessar, os processos de composição cessarão quando o nascimento


cessar, envelhecimento e morte, mágoa, gritos de angústia, sofrimento mental e toda ansiedade
terão fim.
Com referência aos elos da originação dependente, da ignorância* (avídya), (a visão de que
os agregados têm uma “natureza intrínseca” ou a ela pertencem), surgem três tipos possíveis de
carma (aqui denominados marcas cármicas, samskaras): mérito (punya), não-mérito (apunya) e
invariável (aninjya). Deste carma surge a consciência (vijnana), o receptáculo das tendências
cármicas e o agente que renasce.
Da consciência surgem nome e forma (nama, rupa), cuja natureza, durante os primeiros
estágios do desenvolvimento fetal, é a dos cinco agregados. “Nome” corresponde aos quatro
agregados da sensação, percepção, formações mentais e consciência, ao passo que “forma”
corresponde aos quatro elementos físicos que os acompanham bem como aos seus produtos. A
partir do desenvolvimento de nome e forma, surgem as seis faculdades internas (sadayatana) da
visão, audição, olfato etc.
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Destas seis faculdades surge o contato (sparsa), que resulta da convergência entre o
objeto, as faculdades sensoriais e a consciência. Do contato surgem as sensações (vedana) de
prazer e dor; com base na sensação, aparece o desejo (tanha) – o anseio intenso de adquirir
prazer e livrar-se da dor.
Do desejo surge o apego (upadana), uma intensificação do desejo que leva a pessoa a
iniciar atos voltados a adquirir prazer e livrar-se da dor. Do apego, surge a existência
(bhava). É este o estágio em que são ativadas as propensões cármicas que causam o futuro
renascimento. Da existência origina-se o nascimento futuro (jati).
Com o nascimento surgem a doença (um desequilíbrio na constituição fisiológica), o
envelhecimento (jara, a perda da vitalidade da juventude) e a morte (marana, o término da
força vital). Surge igualmente a mágoa – atormentando o corpo e a mente; uma falta total de
coisas materiais, roupas etc., bem como gritos de angústia e sofrimento mental. Estas coisas
constituem a massa enorme de sofrimento que nem compõem uma natureza intrínseca nem a ela
pertencem.
Da mesma forma, em ordem inversa, essa massa enorme de sofrimento terá ela toda seu fim,
começando pela cessação dos processos de composição por meio da cessação da ignorância, e indo
até a cessação do envelhecimento por meio da cessação do nascimento.
Se alguém quiser saber em que espaço de tempo estes doze elos atingem sua conclusão, o
processo inteiro implica três vidas separadas, embora elas possam aparecer entremeadas com um
número muito grande de outras vidas. Os elos de ignorância, processos de composição e
consciência atingiram sua conclusão na vida passada, pois são as forças que projetarão o
nascimento atual.
Os elos que vão desde nome e forma até sensação se completam na vida atual, pois são, por
natureza, uma maturação. Visto que os três elos de desejo, apego e existência ocorrem por
influência dessas maturações, também alcançam sua conclusão na vida atual.
O nascimento, junto com o envelhecimento e a morte, alcançam sua conclusão em uma vida
futura, porque o estágio final desta vida ocorre com o elo da existência – e o nascimento
ocorre por sua influência. O envelhecimento e a morte, por sua vez, ocorrem por intermédio do
nascimento.
Os dois primeiros nascimentos da descrição precedente não precisam ocorrer em sucessão
imediata, visto ser possível que o nome e a forma da vida atual sejam projetados pela
ignorância de cem kalpas atrás. Entretanto, quando se tratar de maturação de “carma a ser
experimentado no próximo nascimento” (upapadya vedaníya), essas duas vidas irão, de fato,
ocorrer em sucessão imediata.
Os dois últimos nascimentos sempre ocorrem em seqüência porque o nascimento, o
envelhecimento e a morte de uma pessoa em sua vida futura, sempre se originam por influência
do estágio da existência da vida atual.
Assim, o nascimento da vida futura, junto com o envelhecimento e a morte, são o resultado
do ciclo da originação dependente que começa com o nome e a forma etc. da vida presente, dado
que se originam por influência do desejo e apego da vida presente. O que, então, se passa?
Portanto, para todas as pessoas comuns os doze elos da originação dependente estão
presentes na vida atual; todavia, eles integram uma combinação de elos que pertence a três
ciclos diferentes de originação dependente. Ou seja, o nascimento atual, bem como o
envelhecimento e a morte, estão ligados à originação dependente de uma vida passada. A
ignorância, processos de composição e consciência desta vida estão ligados a uma originação
dependente passada, visto que constituem a força que se projeta para vidas futuras.
Finalmente, os sete elos atuais, indo desde nome e forma até existência, pertencem à
originação dependente desta vida.
Da mesma forma, os doze elos de originação dependente presentes na vida atual de uma
pessoa lhe possibilitam compreender a natureza de suas vidas passadas e futuras.
Especificamente, os elos que vão desde nome e forma até sensação são resultados projetados a
partir de vidas pregressas; ao passo que o nascimento, junto com o envelhecimento e a morte,
são resultados a serem colhidos na próxima vida. A partir disto, podemos inferir a existência
de vidas passadas.
Os três elos de ignorância, processos de composição e consciência, são as causas que
projetam a vida atual, ao passo que os sete elos de nome e forma até existência, são as causas
que a produzem o próximo nascimento. Portanto, podemos inferir a existência de vidas futuras.
Os doze elos da originação dependente que ocorrem em vidas passadas e futuras devem ser
vistos como tendo o mesmo tipo de relações de causa e efeito que os doze elos desta vida.
Assim, chegamos ao entendimento de como os doze elos da existência giram continuamente, sem
começo nem fim, como uma brasa em rodopio.

Os versos seguintes ilustram que, através da contemplação da originação dependente, com os


atributos que foram explicados, enxergaremos a verdadeira natureza dos darmas.

Esta Originação Dependente é o tesouro


Mais prezado e profundo da Fala do Tathagata.
Aquele que é capaz de ver isto vê o Buda -
O Conhecedor Supremo da Realidade.
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Portanto, a originação dependente é a mais prezada de toda a Fala do Buda porque constitui
o significado essencial de toda a Palavra Sagrada. É profunda no sentido de que é difícil de
ser compreendida por todos, e é livre dos quatro extremos.
Todo aquele que chega a uma correta compreensão da originação dependente vê o Buda – o
Conhecedor Supremo da Realidade; pois o Buda consiste no Dharmakaya, cuja natureza não difere
da originação dependente. Como afirma o sutra Salistamba:

Aquele que conhece a Originação Dependente conhece o Dharma;


Aquele que conhece o Dharma conhece o Tathagata.

- O Nascimento futuro, bem como Envelhecimento e morte estão ligados à Originação


Dependente de uma vida FUTURA.
- A Ignorância, Processos de Composição e Consciência desta vida estão ligados à uma
Originação Dependente PASSADA, visto que constituem a força que se projeta para vidas futuras.
- Os sete elos atuais, indo de Nome e Forma até Existência, pertencem à Originação
dependente da vida ATUAL.

1 – Da Ignorância surgem os Processos de composição


2 – Do Carma surge a Consciência VIDA PASSADA
3 – Da Consciência “ “ o Nome e Forma

4 – Do Nome e Forma surgem as Seis Faculdades


5 – Das Seis Faculdades surge o Contato
6 – Do Contato “ “ a Sensação VIDA ATUAL
7 – Da Sensação “ “ o Desejo
8 – Do Desejo “ “ o Apego
9 – Do Apego “ “ a Existência

10 – Da Existência “ “ o Nascimento
11 – Do Nascimento “ “ a aflição, doença, velhice e morte VIDA FUTURA
12 – Cessando o Nascimento Tudo cessa

Os elos Ignorância, Processos de Composiçãoe Consciência,


atingem sua conclusão numa vida passada, VIDA PASSADA
são as forças que projetarão o renascimento.

Os elos que vão desde Nome e Forma até Existência se completam na vida atual,
pois são, por natureza, uma maturação.
Visto que os três elos de Desejo, Apego, e Existência da
vida atual ocorrem por influência dessas maturações VIDA ATUAL
e também alcançam sua conclusão na vida atual.

O Nascimento, junto com o Envelhecimento


E a Morte, alcançam sua conclusão numa vida futura. VIDA FUTURA

“CARTA A UM AMIGO” – Nagarjuna – Comentário do Lama Rendawa – Ed. Palas Athena

Nota * : "Avidya" em sânscrito quer dizer: a=não, vidya=conhecimento, em tibetano: "ma-rigpa". Normalmente Avidya é traduzida por ignorância, mas as qualidades

negativas na realidade são a ausência das qualidades da mente iluminada, ou qualidades positivas, como: Sabedoria ou Conhecimento, Compaixão, Generosidade, Paciência,

Ética, Coragem. Assim, Avidya é mais propriamente um des-conhecimento, um não-conhecimento, ou uma falta de sabedoria.

OS DOZE ELOS

Quando da Base surgem as manifestações, do dinamismo de rig-pa aparece uma consciência


mental, e, como ela se acompanha simultaneamente do não-reconhecimento da essência natural, se
trata assim da ignorância [aydia].
Daí surge a ilusão [avydia] (1) e, desse fato, resultam as formações cármicas [samskaras]
(2).
Depois analisando a forma dos objetos, a consciência [vijnana] (3) aparece. Após surgem as
designações do tipo “isso é um objeto”, “isso é uma aparência”, quer dizer, a distinção dos
nomes.
Quando apreendemos a natureza desses objetos “nomeados, rotulados” como formas, trata-se
então da primeira ilusão da existência, o nome-e-forma [nama-rupa] (4). Resulta disso o
nascimento de uma consciência para cada uma das seis espécies de objetos, cujo desenvolvimento
produz as seis esferas psico-sensoriais [sadayatana] (5).
Daí percebemos os objetos pelo contato [sparsa] (6), e, conforme eles nos provocam apego,
repulsão ou a neutralidade surge a sensação [vedana] (7).
54

Depois apegamo-nos aos objetos pelo desejo [tanha] (8). Isso resulta no aparecimento do
possuidor e da apropriação dos objetos, a apropriação [upadana] (9).
Disso resulta a manifestação de numerosas ilusões e o aparecimento de todas as espécies de
experiências, e como a indeterminação se desenvolve, é o vir-a-ser [bhava] (10).
Disto resulta o nascimento no domínio do desejo, da forma pura e do sem-forma, é o
nascimento [jati] (11). Depois vem a velhice a doença e a morte [jaramarana] (12).

É assim que nos prendemos à roda cada vez mais, esta é a causa do samsara, a primeira
manifestação, a partir das aparências da Base, os doze acessos enquanto modo de elos de
dependência.
Saibam que do momento em que os doze elos da dependência surgem, ficamos mergulhados na
ilusão (1) das diferentes existências.
Quando se estendem as aparências da realidade absoluta, da ignorância derivam as formações
cármicas (2) da vida seguinte.
E a consciência (3) à procura de um corpo entra em uma matriz, onde nos desenvolvemos
pouco a pouco até que nome-e-forma (4) são criados. Pela reunião das esferas psico-sensoriais
(5) e das circunstâncias produz-se o contato (6).
Depois vem as sensações (7) agradáveis, dolorosas e neutras, a sede (8) de experiências, a
apropriação (9) dos objetos e de carma, assim como da existência (10). E nascemos (11) de uma
matriz, depois somos jovens, e, continuando a transformação, tornamo-nos idosos e finalmente
vem a morte (12).
É assim que se produzem os elos da dependência.
EXtraído do livro “La liberté naturelle de l’esprit” de Longchenpa.

Apresentado e traduzido do tibetano por Philippe Cornu. Versão do texto: Flávio Capllonch Cardoso

A PERCEPÇÃO DA NATUREZA DA REALIDADE

Toda prática de meditação do dharma tem sido ensinada com um único motivo: conduzir os
seres à visão correta da realidade — a de que todas as coisas são desprovidas de auto-
existência independente. Se adquirirmos uma compreensão irrepreensível da verdadeira forma em
que tudo existe, poderemos conquistar a liberdade pessoal da roda samsárica do sofrimento. A
ignorância é o elo fundamental na cadeia do infortúnio, que nos arrasta involuntariamente para
a repetição de nascimento, morte e renascimento em samsara. Com sabedoria, eliminamos a
ignorância e, assim, libertamo-nos por completo das cadeias de nosso carma. Além do mais, caso
obtenhamos essa sabedoria enquanto em posse do motivo iluminado de bodhicitta, alcançaremos
não só a libertação pessoal mas também a onisciência do pleno despertar. Então, seremos
inteiramente capazes de guiar maternalmente todos os seres à desejada cessação do sofrimento
também.
Para compreendermos o vazio (shunyata), devemos familiarizar-nos com ensinamentos
inequívocos sobre esse assunto. Tais preceitos foram ensinados pelo Buddha Shakyamuni e
transmitidos até os nossos dias por uma ilustre linhagem incólume de meditadores e mestres,
incluindo figuras proeminentes como Nagarjuna, Chandrakirti e Je Tsong-khapa. Se seguirmos
ensinamentos divergentes que não explicam a natureza fundamental das coisas, jamais seremos
capazes de perceber a verdadeira natureza da realidade, por mais que meditemos. Assim, é muito
importante buscar explicações corretas e, então, estudar, refletir e meditar sobre elas
também. O que segue esboça os ensinamentos desses grandes gurus indianos e tibetanos.

Je Tsong-khapa disse:

“Aquele que pode ver a causa e o resultado


De toda existência dentro do samsara e a libertação
Como não traiçoeira, e cuja visão falsa é dissolvida,
Entrou no caminho que agrada aos Budas”.

A sabedoria do vazio (shunyata) deve constituir remédio imediato para a nossa ignorância
da verdadeira natureza da realidade. Se essa sabedoria não for completamente oposta à nossa
visão comum das coisas, então não refletirá em absoluto a verdadeira sabedoria. Por nossa
ignorância concebemos objetos de maneira distorcida, nossa sabedoria deve ser-lhe
diametralmente oposta para revelar-se efetiva. Assim, devemos em primeiro lugar adquirir a
compreensão de como nossa percepção normalmente funciona a fim de saber o que combater.
Nossa mente tanto se acostumou a enxergar tudo com distorção que se torna difícil obter
uma imagem clara da realidade. Devido à limitação de nossa sabedoria, é árduo bastante
reconhecer nossas crenças equivocadas, quanto mais o estado real das coisas. Por exemplo, se
nos perguntarmos. “O que exatamente é esse ‘eu’ a que sempre me refiro?”, teremos grande
dificuldade em formular uma resposta. Assim é, apesar de pensarmos em termos de “eu” a toda
hora, mesmo em sonhos. Nossas ilusões são tão densas que sequer conseguimos explicar o que
estamos habituados a ver.
Desde as vidas samsáricas mais remotas até agora, pensamos em nosso “eu” como
inerentemente único, auto-gerado e de existência totalmente independente. Não parece depender
de nosso corpo, mente ou qualquer outra coisa. Pelo contrário, parece completamente auto-
55

suficiente. Não precisamos aprender essa crença errônea; nascemos, morremos e renascemos
instintivamente com ela. De fato, a única razão para nascermos num corpo é a preocupação de
nossa mente com a suposta auto-existência desse “eu” — isso nos levou a ansiar por segurança
em seu favor.
Essa maneira de olhar para nós mesmos é completamente errada. Por exemplo, quando ficamos
assustados ou zangados, a forte sensação de “Eu não gosto nem um pouco disso!” nasce dentro de
nós e tudo o mais perde a importância. A única coisa em que pensamos é como defender esse “eu”
aparentemente auto-existente alojado em nosso coração. Mas, de fato, tal “eu” supostamente
independente não possui nenhuma existência real. Trata-se do produto de uma concepção
inteiramente ignorante.
Há um “eu” convencional que realmente possuímos, mas o fato de existir de um jeito,
enquanto cremos existir de outro, totalmente oposto, constitui a principal fonte de todo o
nosso sofrimento. Constantemente enfrentamos problemas de criação própria porque nossas
expectativas baseiam-se numa idéia falsa de quem somos. Nossos julgamentos são equivocados, e
somos incapazes de lidar hábil ou efetivamente com as situações que encontramos. Não admira
estejamos sempre decepcionados com o desenrolar das coisas e, por conseqüência, sofremos
grande incomodo e insatisfação.
Por que é errado julgar o “eu” uma espécie de entidade independente que existe por si só?
Se abordarmos essa questão com atenção, a resposta irá eventualmente tomar-se clara. É
impossível pensar no “eu” sem também de algum modo considerar a mente ou o corpo. Assim, se o
“eu” fosse verdadeiramente independente e auto-suficiente, teria de equivaler exatamente ao
corpo e à mente, existindo em perfeita harmonia com eles, ou então ser algo totalmente
separado e distinto deles. Se meditarmos bem sobre o caso, concluiremos que são essas as duas
únicas possibilidades.
Entretanto, é óbvio que o “eu” não existe em separado do corpo e da mente, pois não existe
nenhum “eu” que possamos indicar sem também apontar algum aspecto de nossa constituição mental
ou física. Por exemplo, quando o corpo dorme, dizemos: “Eu estou dormindo.” Quando se ocupa em
comer, dizemos: “Eu estou comendo.” Quando descansa numa cadeira, dizemos: “Eu estou sentado.”
Se o “eu” existisse de fato como instintivamente o concebemos — como algo independente de
nosso corpo ou mente — então, não haveria sentido em referirmo-nos às nossas atividades dessa
maneira. Se o “eu” fosse algo que existisse em separado do corpo, por que pensaríamos “Eu
estou sentado” quando o nosso corpo está numa cadeira?
O mesmo se aplica à mente. Num espaço muito curto de tempo, a mente ocupa-se de muitas
atividades diferentes, e muitas vezes opostas. No entanto, esteja a mente pensando, dormindo,
meditando, zangando-se ou apenas sonhando, dizemos: “Eu estou pensando”, “Eu estou meditando”,
“Eu estou zangado” e assim por diante. Se houvesse um “eu” que de algum modo existisse
separadamente a esses vários estados de espírito, não faria sentido aludirmo-nos a tais
atividades mentais em função de um “eu” considerado único e independente.
A única alternativa restante com relação a um “eu” supostamente independente é também
equivocada. Trata-se de imaginar que se equipara ao corpo, à mente ou a um de seus aspectos.
Tal visão também não resiste a uma análise. Apesar de o rótulo “eu” referir-se de alguma forma
ao corpo e à mente, não existe nenhuma parte de nossa constituição física ou mental que
possamos apontar e dizer: “Este sou ‘eu’.” Nem a mão, nem o coração, nem qualquer outra parte
do corpo é nosso “eu”. Tampouco podemos afirmar que o que pensamos ou sentimos neste ou
naquele momento é nosso ”eu”. Identificarmo-nos com nosso corpo ou mente e ainda continuar a
pensar: “Este é meu corpo” ou “Esta é minha mente” representa um contra-senso. Tais
pensamentos implicariam: “Este é o corpo do corpo” e “Esta é a mente da mente”, ambas as
declarações completamente sem sentido. Além do mais, há tantos átomos no corpo e tantos
pensamentos que passam pela mente que, se chamássemos cada um deles de eu concluiríamos que
somos um bilhão de pessoas diferentes. Também não é racional identificar o “eu” com qualquer
átomo ou pensamento em particular, pois o que seria o resto? A quem pertenceria?
Se refletirmos sistematicamente sobre esses pontos, usando-os para investigar a maneira
como nos enxergamos, veremos que não pode existir algo como um “eu” de existência
independente. A inexistência ou ausência desse falso eu é o que se quer dizer com anatma.
Considerando que a ignorância crê que de certa forma existimos como um “eu” realmente
independente e o critério do vazio (shunyata) percebe com clareza que tal “eu” jamais teve
sequer a menor existência, diz-se que essas duas visões são completamente opostas. Apesar de
nossa crença instintiva a respeito do falso “eu”, o “eu” convencionalmente real nem é separado
de nosso corpo e mente nem equivale a qualquer de suas partes. Ao contrário, existe na
dependência de ambos.
Existem os níveis (relativo ou convencional) e o (fundamental ou absoluto) da verdade, O
“eu” convencional parece à mente ignorante como o anteriormente mencionado “eu” falso, ou
seja, independente e auto-existente, assim constituindo uma verdade relativa. A verdade
fundamental desse “eu” convencional é a forma real em que existe, o que não pode ser captado
por uma mente ignorante. Apenas urna mente que compreenda o vazio (shunyata) e perceba
claramente que todas as coisas carecem de auto-existência independente pode distinguir essa
verdadeira essência absoluta. Tal mente elevada não está poluída por concepções errôneas
quanto a verdades relativas e, portanto, consegue ver tudo como realmente existe em ambos os
níveis.
Ao adquirirmos a compreensão do vazio (shunyata), enxergaremos as coisas de uma forma
muito diferente da atual. Será como se tudo fosse um fantasma ou uma miragem. Mas isso não
56

significa que nada existe. É importante perceber que, embora o “eu” não seja nem separado de
nem exatamente o mesmo que o corpo e a mente, isso não implica que inexista por completo.
Seria uma conclusão errada e muito perigosa. Uma pessoa que sofre da ilusão comum da
consciência do eu pode começar a investigar como é o seu “eu” problemático. Após procurar e
não encontrar o tipo independente de “eu”, ela pode concluir que esse “eu” é inteiramente
inexistente. Uma vez assim minada a sua crença na realidade, não lhe seria difícil negar tudo.
Ela não só pensaria que de certa forma ela própria não existe mas também nutriria o mesmo
sentimento em relação a outras pessoas e objetos.
Essa visão extrema de negação, chamada niilismo, pode levar a estados muito sérios de
doença mental e, por conseguinte, a um sofrimento muito intenso. Portanto, qualquer
investigação do “eu” deve processar-se com muito cuidado. Devemos ser capazes de distinguir
entre duas concepções inteiramente diferentes de “eu”. A comum e equivocada, considera-o como
algo de existência independente. Quando essa falsa visão de “eu” é refutada, resta-nos o “eu”
real, de existência convencional. Trata-se do “eu” que existe na dependência de nosso corpo e
mente. Executa ações, cria carma e sofre seus resultados de acordo com a lei de causa e
efeito, conforme descrito pelos doze elos. Tal “eu”, por não ser realmente independente, faz
parte de um continuum de ações e reações. Ao compreendermos isso, constataremos que há uma
razão para experimentarmos o que experimentamos. Também perceberemos como é possível moldar
nossas experiências futuras através do que pensamos, dizemos e fazemos agora. Assim, à medida
que nossa sabedoria aumenta, o mesmo acontecerá com nosso controle sobre o destino.
Se estabelecermos uma distinção clara entre o “eu” falso, independente, e aquele que
realmente existe, não correremos o risco de cair no extremo do niilismo. Caso contrário, a
meditação que realizamos sobre o vazio servirá apenas para dobrar nossa ignorância.
Ao meditarmos sobre o vazio passamos por vários estágios de compreensão. Primeiro, obtemos
uma visão clara de como concebemos nosso falso “eu”, aquele que parece existir
independentemente. Então, ao tentarmos distinguir esse falso “eu”, verificando se está em
“equilíbrio com” ou separado de nosso corpo e mente, nossa “visão falsa é dissolvida”, como
disse Je Tsong-khapa. Esse “eu” começa a esmorecer e eventualmente desaparece, dissolvendo-se
em sua verdadeira essência absoluta.
Quando não mais encontrarmos esse “eu”, sentiremos uma profunda sensação de vazio
interior. É como se perdêssemos um bem precioso. Nesse ponto, pode surgir o medo por não
termos mais esse “eu” a que nos ater. Quando e se isso acontecer, devemos alertar-nos para não
cair no extremo de negar tudo ao estilo niilista. Trata-se de um erro perigoso, como já
mencionamos. Ao contrário, devemos persistir em nossa meditação, e eventualmente uma percepção
muito sutil do vazio aparecerá. Seremos capazes de discernir a verdadeira essência absoluta do
“eu” — sua ausência de existência independente — e também aceitar plenamente sua existência
fantasmagórica no nível relativo da verdade. Como afirmado no Guru Puja:

Nem mesmo um átomo de samsara ou nirvana


possui algo como uma existência própria,
contudo, não há engano em dizer que todos esses átomos
são manifestações dependentes de causa e efeito.
Por favor, abençoe-me para que eu adquira a grande visão de Nagarjuna
Da função não-contraditória, mutuamente benéfica dos dois níveis da verdade.

Ao obtermos essa percepção abrangente, estaremos efetivamente no “caminho que agrada


aos Budas”.
A nossa visão equivocada do “eu” como algo independente e auto-existente estende-se à
maneira como captamos todos os outros fenômenos. Por exemplo, quando olhamos para um objeto,
como uma mesa, não atentamos para o fato de que existe em função do nome que lhe demos e esse
nome, ou rótulo, é conferido a um conjunto dependente de partes, causas e circunstâncias. Em
vez de considerar a mesa em função da interdependência de todos esses vários fatores, tomamo-
la de um modo muito simplista e equivocado. Com uma crença instintiva e errada, profundamente
inculcada em nossa mente, sentimos que esse objeto é muito real e auto-suficiente, que nos vem
de fora. Não o consideramos como algo que nomeamos e, nesse sentido, de fato criamos.
Por exemplo, suponhamos que um casal teve um filho e decidiu chamá-lo Gerald. Apesar do
fato de que eles criaram esse nome para o bebê, logo passarão a considerá-lo como um “Gerald”
real. Tomam Gerald como algo que existe apenas da parte do bebê, independente e auto-
existente, parecendo-lhes como que externo. Em vez de julgá-lo alguém dependente de um corpo,
mente, nome e coisas assim, vêem-no como um Gerald real, independente, que não depende de mais
nada para a sua existência.
Há muitos livros que tratam de como meditar mais profundamente sobre a ausência de auto-
existência independente do “eu” e todos os outros fenômenos. Através da leitura de tais textos
sobre o vazio podemos acumular uma grande quantidade de conhecimento intelectual. Contudo, o
mais importante é realmente purificarmo-nos de todas as visões, ilusões e concepções errôneas.
Enquanto continuarmos a ignorar o que é próprio e impróprio, a deixar de perceber quão
distorcida é nossa imagem da realidade, todo o nosso conhecimento carecerá de sentido e valor
real. Por conseguinte, há muito que purificar em nossas mentes. Devemos tentar diminuir tanto
as ilusões flagrantes como o ódio e a fixação, que dificultam a concentração e captação do
sentido do vazio, quando a mais sutil e básica vem da da ignorância, da qual emanam essas
57

ilusões mais gritantes. Além disso, jamais devemos deixar de observar o nosso canna, pois o
controle rígido sobre nossas ações constitui a prática primordial do Dharma.
Eventualmente, veremos como essa crença obstinada numa real existência independente
contamina a mente de todos os seres comuns. Acontecimentos no mercado ou em qualquer outro
lugar parecerão um drama absurdo em que todos partilham de uma ilusão comum. Embora trágico,
faz-nos rir. O processo de purificação da mente dessa ilusão pode levar muito tempo para
completar-se, mas é essencial, se pretendemos escapar do sofrimento e mostrar aos outros o
caminho para a liberdade. Portanto, devemos tentar ao máximo, sempre mantendo nossa motivação
a mais pura possível.

Conclusão

Não houve tempo suficiente para uma discussão exaustiva dos três principais aspectos do
caminho para a iluminação. Mas, agora que temos alguma idéia da importância de adquirirmos uma
mente plenamente abnegada, um motivo iluminado de bodhicitta e uma visão correta do vazio,
devemos esforçar-nos para seguir esses ensinamentos ao máximo de nossa capacidade. Devemos
procurar um mestre espiritual capaz de guiar-nos para um caminho correto de conhecimento. Além
disso, devemos ler e estudar explicações válidas dos pontos essenciais do dharma. Entretanto,
o mais importante, devemos procurar controlar nossa mente através da meditação conscienciosa
de tudo que aprendemos. Vamos efetivamente integrar esses ensinamentos à vida diária. Dessa
maneira, nossa prática resultará prazerosa para todos os seres iluminados e, eventualmente,
capacitar-nos-á para ser de grande ajuda aos outros.
Quando começamos uma sessão de meditação sobre qualquer desses preceitos — de fato, sempre
que estivermos prestes a dedicar-nos a qualquer atividade virtuosa — devemos lembrar-nos de
purificar nossa motivação. Isso assegurará que o maior benefício possível resulte do que quer
que façamos. Portanto, por favor, cultivem pensamentos como os que se seguem:
Eu, e todos os seres vivos também, temos sofrido no samsara desde épocas remotas até
agora. E continuo a sofrer, aceitando cegamente como verdadeira minha concepção ignorante de
quem sou. Creio erroneamente num “eu” auto-existente e, por consequência, considero as
impurezas do samsara puras e desejáveis.
Mas não preciso mais padecer sob essas ilusões. Houve um tempo antes de sua iluminação em
que o próprio Buddha Shakyamuni era tão ignorante e iludido quanto eu, contudo, eventualmente,
ele conseguiu alcançar o despertar pleno do estado de Buddha. Não há razão para eu não poder
fazer o mesmo.
Entretanto, não basta penetrar na realidade e conquistar a liberdade para mim apenas. Não
sou o único ser que almeja felicidade e libertação da dor. Não é certo prezar a mim mesmo mais
do que a outrem. De fato, minha atitude de auto-estima foi a verdadeira causa do meu
sofrimento por todas essas muitas vidas e, portanto, deve ser abandonada agora. Todos os seres
vivos, essas minhas preciosas mães, proporcionaram-me toda a alegria e felicidade que já tive.
Embora nenhum desses benfeitores desejem ser infelizes, ignorantemente destroem suas chances
de felicidade. Como posso abandoná-los quando se encontram em tão terrível necessidade de
orientação?
Meus próximos não são os únicos seres que infligem punição a si mesmos. Os animais e todas
as criaturas visíveis e invisíveis do universo agem de foma igualmente iludida. Sofrem desde
os tempos mais remotos e continuarão a sofrer enquanto permanecerem envoltos na ignorância.
Não posso esquecer que todas essas criaturas desafortunadas também conferiram-me grande
bondade.
Assim, como reconheço minha responsabilidade em assegurar o bem-estar de todos os seres
vivos, meditarei agora sobre o profundo caminho para a iluminação. Que todo mérito gerado de
tal atividade resulte no controle de minha mente. Que eu progrida através de todos os estágios
do desenvolvimento espiritual o mais rápido possível e obtenha a plena iluminação, para o
benefício de todas as minhas muitas mães. Que os ensinamentos dos seres iluminados sobre a
verdade continuem a florescer e propiciar conforto a todos. Muito obrigado
[Extrato da palestra proferida pelo Lama Zopa em Fair Lawn, New Jersey, em 10 e 11.08.74 como parte de um curso de meditação de dois dias, para aqueles que já haviam estudado no Nepal e

Índia.]

A PENETRAÇÃO NA REALIDADE

Ao ser perguntado, “Qual a melhor forma de se penetrar a Realidade”, o Dr. Suzuki


respondeu: Primeiro devemos saber o que é o intelecto e quais são suas limita ções.
Enquanto nos limitarmos à análise intelectual, não podemos deixar de sentir uma certa
inquietação mental. Pois somos tão dependentes dos sentidos e, ainda que para conhecer
a Realidade tenhamos que encontrá-la através dos sentidos, estes, por eles mesmos, não
nos proporcionam a Realidade. Os dados sensoriais são sintetizados pelo intelecto e o
intelecto e os sentidos trabalham juntos, porém mais cedo ou mais tarde devemos
desenvolver um conjunto interno de sentidos para o mundo interior. O mundo ex terior não
pode existir sem o outro, o mundo interior e não devem ser divididos em dois. Se forem
divididos, não podemos transcender as limitações do intelecto. Tendemos a colocar
58

ênfase demais no aspecto exterior; devemos nos concentrar mais no interior.


Agora, o intelecto funciona desta maneira. Os dados sensoriais são fornecidos pelos
sentidos e o intelecto pensa, mas serão os dados fornecidos ao intelecto o que o
intelecto realmente analisa como vindos do exterior? O intelecto trabalha baseado no
princípio de sujeito e objeto. Os dados que vêm dos sentidos pertencem ao mundo
exterior, mas em oposição a este mundo exterior o intelecto tem um mundo interior. O
intelecto trabalha baseado no princípio desta dicotomia e, o interior e o exterior são
tão correlacionados que, sem um o outro não pode existir. Por isso, assim que começamos
a dividir a Realidade em duas, não podemos transcender as limitações do intelecto. Todo
o problema surge desta bifurcação, que deve ser transcendida; não ignorada, mas
transcendida.
Os dois devem se fundir um no outro enquanto permanecem dois. Colocamos muita
ênfase no exterior; agora devemos ver o que está dentro. Mas descobrir o que te mos
interiormente é muito difícil, porque dirigimos a nossa atenção para aquilo que
chamamos de “eu”. Assim que nos voltamos para o eu, o eu divide a si próprio naquele
que quer ver e naquele que é visto. Quando queremos ver o que é a realidade interior,
no mesmo momento em que pensamos nela, nós a dividimos em duas e esta dualidade nunca
poderá acabar enquanto tentarmos ver algo fora de nós mesmos. O intelecto fez-se
prisioneiro desta dualidade, e a subjetividade pura resulta sempre nesta divisão.
A questão é: pode uma pessoa pensar sem se dividir? Do ponto de vista intelectual
isto é impossível. Quando dependemos do intelecto, não podemos escapar desta divisão.
Como então, podemos fazer sem o intelecto? Possuímos alguma faculdade que nos permita
ver uma coisa sem dividi-la, isto é, vê-la em si mesma, através de si mesma e não a
objetivando? Pode a Realidade ver a si mesma refletindo-se em si mesma? É isto que eu
chamo de subjetividade pura e de transcendência do intelecto. Isto é possível por meio
daquilo que é chamado de Prajna, e este Prajna está na base do intelecto. O que faz
possível o intelecto é o fato de que Prajna está em sua base; sem Prajna, o intelecto
nunca pode trabalhar. Portanto, devemos ver o que é Prajna. Prajna é intuição, mas a
intuição é entendida, geralmente, como uma forma de intelecto. A verdadeira intuição-
Prajna não é só isso. Quando olho para um quadro, os sentidos percebem sem a mediação
de um conceito. A percepção sem mediação é chamada de intuição. A percepção sensorial
comum contém dois elementos: aquele que vê e aquele que é visto. Esta visão, da
percepção sensorial, não requer nenhum agente mediador. Em seguida, o intelecto inter-
põe-se entre sujeito e objeto. Porém, a intuição-Prajna não é apenas ver uma coisa
individual, mas a totalidade da Realidade concentrada naquele objeto particular. É um
objeto individual, não dividido, não como um objeto particular, mas o infinito da
própria Realidade presente nele. Então, quando vejo uma flor, a flor é um objeto
particularizado, mas ao mesmo tempo é a própria totalidade. Portanto, quando se
menciona 1, pensamos em 1, mas 1 nunca pode ser 1 a não ser que existam 2, 3, etc.
Quando dizemos “eu vejo”, naquele mesmo momento atua o infinito, mas, geralmente, o
intelecto vê apenas 1 como objeto único em vez de 1 como infinito. A flor deve ser
vista como uma flor-infinito, mas também como uma flor única.
A onipresença de “Deus” consiste em ser um anjo num anjo, uma pedra numa pedra, etc.
É isto que é chamado de “Tal-qual-ismo”, ver as coisas como elas são. Por isso o Ser de
“Deus” é o nosso Ser e somos todos um neste Ser. E quando dizemos 1, não é como um
objeto dividido, mas 1 como o infinito mesmo. Esta é a intuição-Prajna, que está na
base do intelecto. Quando estamos insatisfeitos, quando nos tornamos conscientes das
limitações do intelecto, isto se deve aos trabalhos internos da intuição-Prajna. O
Prajna é negligenciado quando enfatizamos o intelecto. Portanto, é o Prajna quem produz
a insatisfação. Conhecer esta insatisfação é nos tornarmos conscientes de nossas
imperfeições. Então, quando o intelecto torna-se consciente de suas limitações, este é
o exato momento em que conhecemos o que é Prajna.
O momento da consciência das limitações do intelecto é, em si mesmo, Prajna.
Portanto, quando perguntamos o que é a Realidade, neste mesmo instante a Realidade já
está aqui. Perceber isto é Prajna. Então, no começo de nossa busca, estamos tateando
vagamente no escuro, mas quando Prajna assume o comando, sabemos o que é a Realidade, o
que significa esta insatisfação e sabemos onde estamos. Esta foi a maneira pela qual o
Buda atingiu a Iluminação. Quando o Buda começou a sua busca, ele dividiu a si mesmo.
Havia a Realidade que ele queria ver e havia uma pessoa que queria vê-la. Mais tarde,
em vez de sair, o Buda voltou-se para dentro e a Realidade estava lá... O Buda é a
Realidade e a Realidade é o Buda, e a pergunta se torna a própria pessoa que a faz. A
saída é a volta. Quando acontece esta identidade da pergunta e da pessoa que faz a
pergunta, isto é Prajna e toda a insegurança e ansiedade acabam.
Por trás dos sentidos devemos ter algo, que é a intuição-Prajna. A intuição não se
dá através dos sentidos e, no entanto, se dá através dos sentidos; isto é difícil. En-
quanto formos dotados dos sentidos, não podemos escapar ao mundo sensorial. Não podemos
negá-los, porque negá-los é afirmá-los. Isto é intuição-Prajna. Para medir nossos
valores, dependemos dos nossos sentidos, mas por trás dos sentidos devemos ter algo que
possa julgar o valor real dos sentidos e, para encontrá-lo devemos ir através dos
sentidos. A menos que todas as diferenças dos sentidos estejam sintetizadas por esta
intuição-Prajna, não podemos ter uma Realidade sistematizada.
59

Ao ser perguntado sobre a Compaixão (Karuna) e sua relação com o amor humano, o Dr.
Suzuki respondeu:
Eu entendo que os teólogos dividem o amor em dois, o Eros, pertencente ao amor
humano e Ágape, pertencente ao divino. O amor humano tem um objeto, mas o amor divino é
um amor sem objeto. Karuna (Compaixão) corresponde a Ágape. Quando o aspecto Prajna é
enfatizado, vemos o aspecto metafísico da Realidade, o “Tal-qualismo”, as coisas como
elas são. Quando não vemos as coisas como elas são, o elemento Karuna não aparece, e a
permanência no Prajna é uma fraqueza humana. Quando esta fraqueza é superada, o Prajna
é Karuna. Karuna sem Prajna, assim como Prajna sem Karuna é unilateral; a totalidade da
Realidade é perdida; esta é a deficiência humana. Quando o Buda realizou a Iluminação,
seu primeiro pensamento foi de que esta Realidade não poderia ser comunicada aos outros
seres. Eu não posso, disse ele a si mesmo, comunicar minha experiência aos outros. Mas,
depois disso, ele tentou comunicar sua experiência porque os outros seres também
poderiam entendê-la. Por isso, a motivação de comunicar surge da própria experiência do
Prajna. Todo mundo pode ter a experiência do Buda e, até onde diz respeito à
Iluminação, o Buda é cada um de nós e todos somos Buda. Quando o Buda teve um pen-
samento de comunicação, este pensamento surgiu da própria experiência. É isto que faz
dela uma experiência verdadeiramente humana, e sua motivação de comunicá-la é a própria
essência de sua Iluminação. Sem este sentido de transmissão, a Iluminação do Buda não
seria real. A Iluminação é o desejo de comunicar, isto é a própria compaixão. A própria
motivação de transmitir, faz do Prajna, Karuna. Eles devem complementar um ao outro.
[...]
Do livro: O CAMPO DO ZEN de Daisetz Teitaro Suzuki

AS TRÊS VOLTAS DA RODA DO DHARMA

O Buda apresentou a “Visão do caminho do Meio” muitas vezes, de maneiras diferentes, as


quais se acham sumarizadas nos “Três Giros da Roda do Dharma”. Ele ensinou primeiramente em
Sarnath, pouco após sua iluminação, a um grupo de seres que não tinham nem grande energia, nem
mentes expansivas. Ministrou-lhes as “Quatro Nobres Verdades”: ensinou que toda existência
comum é sofrimento, que tal sofrimento resulta de nosso próprio carma e que este carma é
gerado através do condicionamento degradado de nossas próprias mentes.
A mente degradada, afirmou, provém de nosso apego à noção de uma individualidade, ou ego.
Assim, o Buda demonstrou a natureza sofredora da existência no mundo e suas causas. Em
seguida, mostrou a possibilidade da liberação do sofrimento ao alcançarmos o Nirvana.
Para se alcançar o Nirvana, não é suficiente ter inclinação moral, ou o sentimento de
poder alcançá-lo: deve-se estar compelido a praticar o caminho a fim de atingir a completa
cessação das degradações e do conseqüente sofrimento; cessação esta que é o Nirvana. Neste
contexto, “o caminho” significa contra-agir ao apego à noção de ego e auto-existência.
Assim procedendo, podemos nos livrar das degradações de nossas mentes, da necessidade de
gerar carma e, desta forma, sermos dispensados da necessidade de gerar carma e, desta forma,
sermos dispensados da necessidade de continuadas passagens pelo mundo.
No “Primeiro Giro da Roda do Dharma”, o Shakyamuni não ensinou especificamente a
Vacuidade, embora tenha sugerido indiretamente.
A ausência de ego que ele proclamou naquela oportunidade não era a ausência de
individualidade num sentido último, mas no sentido mais simples de que não existe nenhum ego,
ou auto-natureza, permanente e solidamente individual.
Posteriormente, em Rajgir, ele transmitiu o “Segundo Giro da Roda do Dharma”, os
ensinamentos a respeito da ausência de características fundamentais. Ensinou-nos as dezesseis
modalidades de Vacuidade: as aparências externas são vazias, o mundo interior dos pensamentos
é vazio; tanto as coisas externas quanto internas, em conjunto, são vazias; e, assim por
diante, em dezesseis estágios. Desta maneira, ele demonstrou que não existe nenhum ego, não
apenas no sentido comum, mas, ainda, que nenhuma realidade inerente pode ser encontrada em
coisa alguma, seja lá onde investiguemos.
Mais tarde, em Sravasti, Buda ensinou o “Terceiro Giro da Roda”, no qual revela que a
Vacuidade não é meramente vazia, mas dá origem a todos os fenômenos e é continuamente
expressiva. Este terceiro giro inclui lições sobre a “Fonte dos Tathágatas2” (Tathágata
Garba), o ensinamento básico sobre o qual a filosofia da Escola “Mente Única” ou escola
“Somente Consciência” (Vijnanavada) foi fundada.
A distinção entre o segundo e o terceiro giros é que, nos ensinamentos de Rajgir, o
Budha pregou a Vacuidade como sendo uma função da aparência, isto é, a mais alta qualidade
da aparência (a sua falta de verdadeira existência), enquanto que, em Sravasti, ensinou-nos
a Vacuidade como uma espécie de fundação a partir da qual tudo é expresso.
Os três Giros, então, compõe o ensinamento da “Visão Correta”.
Buda ensinou também, muitos métodos para o reconhecimento da Natureza Fundamental e para a
prática do caminho segundo os ensinamentos do Mahamudra (Supremo Gesto) e as lições sobre Maha
Sandhi, ou Dzogchen (A Grande Perfeição), métodos para a prática e alcance da realização, os
quais não diferem do enfoque da Visão do Caminho do Meio (Madhyamaka).
O “Primeiro Giro da roda do Dharma”, o primeiro ensinamento sobre as Quatro Nobres
Verdades, etc, geralmente diz respeito ao Hinayana.
60

Os ensinamentos do “Segundo Giro”, sobre os dezesseis aspectos da Vacuidade, etc, foram


desdobrados por Nagarjuna no seu Prajna Nama Mula Madhyamaka Karika e, mais tarde, por
Chandrakirti no Madhyamaka Vatara, por Shantirakshita no Madhyamaka Lankara e por Aryadeva nas
Quatrocentas Estrofes Sobre a Madhyamaka. Estes quatro comentários (shastras) clarearam a
visão da Vacuidade, bem como da Verdadeira Natureza da fenomenalidade.
Maitreinatha deu a Asanga cinco comentários em versos sobre o “Terceiro Giro da Roda do
Dharma”, referentes à “Fonte dos Tathágatas” e Asanga fez comentários sobre tais versos. A
partir dessas explicações, se deriva a linhagem de visão do “Terceiro Giro”.
A explicação da Vacuidade de acordo com o “Segundo Giro”, os ensinamentos de Nagarjuna,
Aryadeva, etc, são chamados em tibetano de Rangtong, o que, basicamente, significa que toda
aparência é vazia.
A explicação da Vacuidade de acordo com o “Terceiro Giro”, o ensinamento de Asanga, é
conhecido como Shentong, que significa que a Vacuidade em si mesma não é meramente vazia, mas
expressa as qualidades búdicas.
Os verdadeiros meios para se chegar ao reconhecimento da Natureza Fundamental não são
diferentes nos dois sistemas. A única distinção diz respeito apenas à maneira pela qual a
Vacuidade é explicada.
A PORTA ABERTA PARA A VACUIDADE – Kenchen Thrangu Rinpoche

UMA DÁDIVA PARA O MUNDO

“Ninguém vai escancarar a porta para você e dizer:


“Esse é o Budadharma; entre, por favor”,
Não é assim que acontece.
É você, você mesmo, que toma a decisão”.

O conjunto dos ensinamentos budistas desenvolvido no Tibete permanece intacto até hoje.
Seu alicerce não foi abalado, nem seu pináculo foi destruído. Pensamos em nossa tradição de
Budismo como uma dádiva para o mundo. E tudo o que nós, professores da tradição budista
tibetana, pedimos é que vocês aceitem nossa oferta, desfrutem-na, façam uso e se beneficiem
dela.
Vocês poderiam pensar: “Que dádiva é essa, o que é esse Dharma de que você fala?” Não é
nada mais, nada menos que nossa própria mente. Não existe Dharma além da nossa mente. Essa
mente que todos nós experienciamos quando dizemos “minha mente” ou pensamos “tenho uma
mente”, essa coisa que chamamos “mente”, que jamais teve um ponto de origem através de tempos
sem princípio. Jamais houve um momento no tempo em que ela tenha se iniciado. Em vez disso,
há um fio de consciência, um continuum, de um momento para o outro, até o instante presente e
daqui em diante, para o futuro. Mesmo durante o curto período dessa vida, desde o momento em
que emergimos do ventre de nossa mãe, nossa mente esteve continuamente ocupada, pensando sem
descansar.
O modo como experienciamos a mente no presente é um fluxo contínuo de pensamentos, idéias
e emoções. Alguns são manchados por desejo e apego, outros por orgulho, uns por agressão e
ira, e outros por ciúme, inveja ou ódio. Mas existe o turbilhão contínuo de pensamentos,
conceitos e emoções revolvendo-se em nossa mente, de um momento a outro, dia e noite.
De certo modo, a maneira como experienciamos nossa mente no estado desperto é muito
semelhante a como experienciamos os sonhos. Da mesma forma que alguns sonhos são proveitosos
e têm um significado, ao passo que outros não, algumas coisas que pensamos com nossa
consciência desperta são úteis e geram frutos, enquanto outras são apenas perda de tempo.
Qualquer que seja o caso, essa atividade implacável prossegue sem parar na mente. Chega um
ponto em que simplesmente cansamos de tudo. Nossa mente fica exausta. Muitos de nós sentimos
essa exaustão com o incessante revolver e turbulência da mente. As pessoas podem até ficar
loucas por causa disso. Ficam tão cansadas de tamanho turbilhão na mente que por fim algo se
danifica, e perdem a sanidade.
Em todo caso, talvez a maior causa fundamental de nosso sofrimento, a dor contínua,
sofrimento e frustração que sentimos dia após dia seja a atividade Incansável de nossa mente.
Assim, devemos começar fazendo a pergunta fundamental sobre dor e sofrimento: por que
sofremos? Isso nos remete direto à prática do Dharma. Pois é precisamente para isso que o
Dharma serve: dissipar o sofrimento que vivenciamos como resultado da atividade descontrolada
e incansável de nossa mente. Existe uma conexão fundamental entre o Dharma e nossa mente;
pois, enquanto houver uma mente sobre a qual se possa falar, existe o Dharma.
Olhem o conflito, o caos e a desarmonia no mundo ao nosso redor. Em nível nacional e
internacional vemos guerra, invasões e a exploração de um país pelo outro, tudo graças a
orgulho ou agressão nacionalista. No nível doméstico existem desavenças e desarmonia em
nossas famílias, onde maridos e esposas, pais e filhos discordam uns dos outros continuamente
e fracassam no convívio. Independente do nível em que olhemos, toda contenda e desarmonia no
mundo remete ao fato de que nossas mentes estarem em turbilhão. Por causa dessa discórdia
interna, surgem todas as manifestações externas - interpessoais, domésticas, nacionais e
internacionais.
Todos buscamos um estado em que nossa mente fique em paz; entretanto, o que encontramos
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na verdade é um estado de violência e turbilhão. Nossa mente, longe de ser pacífica, muitas
vezes é irada e está constantemente obcecada. Do ponto de vista dos ensinamentos do Budismo,
existe uma discussão na cosmologia budista sobre os seis estados ou categorias de seres na
existência samsárica. Para dar um exemplo, os reinos infernais são descritos como reinos de
intenso tormento e sofrimento. Os seres no estado infernal vivenciam agonia extrema por conta
do calor ou frio intenso. Os ensinamentos budistas ressaltam que a causa direta para um
renascimento desses é a raiva em nossa mente.
De certo modo, existe uma conexão que podemos ver. Sempre que você fica furioso com
alguém, sente um calor generalizado. Sua temperatura sobe. Fica com o rosto vermelho, e pode
até ter dor de cabeça. A curto prazo, existem efeitos muitos perturbadores ligados à raiva.
Quando isso se torna um padrão tão habitual que produz o renascimento no inferno, o ser
vivencia, como resultado de tal padrão, um ambiente em fogo, um ambiente totalmente
destrutivo e hostil. Não devemos considerar isso como um ambiente externo para o qual as
pessoas são mandadas como uma punição. É a aparência distorcida ou projeção na mente dos
seres nesses estados, causada por seus padrões kármicos.
Assim, do ponto de vista de nosso condicionamento mental, e de como iremos vivenciar as
coisas no futuro, temos um bom motivo para aprender a acalmar a mente e cultivar um estado de
tranqüilidade no qual ela simplesmente possa repousar e permanecer em um estado de paz. É
onde o Budismo pode ser de grande auxílio, proporcionando os meios pelos quais podemos nos
disciplinar para treinar e transformar nossa mente. O fato é que ninguém mais pode fazer isso
por nós.
Não importa quantos amigos tentem nos ajudar, ou o quanto tentemos contar com coisas que
estão fora de nós. Infelizmente, até hoje não há remédio para a mente. É verdade que existem
remédios para controlar o humor e diminuir a percepção ou a consciência, mas não existem
remédios para a mente como os que existem para o corpo. Não podemos curar a mente de modo tão
fácil, em especial contando com alguma situação, pessoa ou substância externa. A fim de curar
e restabelecer o equilíbrio de nossa mente, precisamos seguir um caminho espiritual, e é isso
que o Budismo inicialmente proporciona.
Do contrário, nos sentimos muito desamparados quando experienciamos sofrimento pessoal,
coisa que acontece com todos nós. Quando uma tragédia se abate sobre nós – digamos que um de
nossos pais, nosso companheiro ou nosso amor morre –, não temos nada a que recorrer, nenhum
equilíbrio mental, nenhum estado de calma de que possamos depender para lidar com a tragédia
pessoal. Em vez disso, lançamos mão de estratégias autodestrutivas, como beber para esquecer.
Se vocês forem perguntar a pessoas que abusam de alguma substância sobre por que bebem ou
usam drogas desse jeito, é pouco provável que respondam que isso é uma coisa realmente boa de
se fazer, ou que encontram algo de inerentemente valioso em beber até cair. A questão não é
essa. As pessoas fazem isso consigo mesmas para tentar parar de pensar. Quer estejam
conscientes disso ou não, o que estão tentando fazer é barrar os pensamentos nos quais não
querem pensar, e não dispõem de outros meios de fazê-lo. É isso que pode levar as pessoas a
tirar a própria vida, como último recurso para tentar escapar da dor. Elas encontram-se em
estado de desespero total, porque não têm nenhum outro lugar para onde se voltar. Ninguém, a
não ser elas mesmas, nada que possam ingerir, nenhuma situação externa na qual possam se
colocar, vai ser de qualquer auxílio definitivo, e por isso, no mais completo desespero,
apelam para o suicídio.
O propósito geral dos ensinamentos budistas é proporcionar uma alternativa a esse cenário
desolador, dar a alguém que não tem nada com que contar uma coisa verdadeiramente confiável –
ou seja, o cultivo pessoal, pelo próprio esforço, de um estado de mente que permaneça calmo.
O que todos nós precisamos é que nossa mente mantenha-se em um estado de paz. A última coisa
de que necessitamos é mais turbilhão mental.
Permitam-me apresentar agora uma brevíssima visão geral dos ensinamentos budistas,
conforme o meu entender. Ouvimos muitas referências ao que parecem ser três abordagens
diferentes: Madhyamaka, Mahamudra e Mahasandhi ou Dzogchen. Antes de mais nada, devemos
entender que todas têm uma raiz comum, que chamamos yana-raiz ou Veículo Fundamental. Isso
envolve o reconhecimento de parte do praticante de que todo o sofrimento que vivenciamos como
indivíduo, todo o sofrimento que integra o ciclo da existência, tem raiz na mente, na mente
do indivíduo que vivencia o sofrimento. Talvez o maior empecilho à verdadeira felicidade seja
nossa percepção equivocada, nossa insistência em perceber em termos de eu ou ego, onde
tomamos a mente, ou corpo, ou o complexo mente-corpo, como uma entidade única e eterna em e
por si mesma.
Quando começamos a examinar essa fixação, tanto intelectualmente quanto através da
prática da meditação, podemos determinar que o corpo, que percebemos de modo equivocado como
possuindo uma natureza individual por si mesmo, na verdade é composto de elementos menores.
Podemos fazer o rastreamento até o nível subatômico. Podemos começar a ver como nosso
agregado mente-corpo é apenas isso, um agregado, um conjunto de diferentes elementos, em vez
de alguma entidade definida em si. Então, em vez de confiar em alguma suposição ingênua de
individualidade, começamos a entender o corpo físico como algo composto, impermanente e
carente de qualquer natureza individual por si mesma.
Quando começamos a examinar nossa mente como o outro elemento em nossa constituição,
podemos de novo determinar, tanto intelectualmente quanto por meio da experiência direta, que
a mente per se não é uma coisa em si e por si. Não estamos tratando de alguma entidade única
quando tratamos da mente. O que estamos tratando não tem origem, nem cessação, e não pode ser
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localizado ou descrito em termos conceituais ordinários. Esse exame, esse tipo de análise, é
conhecido como o cultivo de prajna ou sabedoria, e almeja chegar a um discernimento e
sabedoria mais profundos sobre a natureza da realidade. Ligado a isso, embora não exatamente
a mesma coisa, há o cultivo de samadhi, um estado profundo de absorção meditativa onde,
conforme já foi mencionado antes, a mente pode acomodar-se em um estado de calma. Como
elemento de apoio em nossa prática, há o treinamento em sila – ética, moralidade e
disciplina. Tome-se como exemplo um jardineiro plantando um arbusto. Se o jardineiro quiser
que a planta cresça saudável e forte, terá que pôr uma cerca ou barreira em volta do arbusto
para protegê-lo de danos. Do mesmo modo, os vários níveis de ordenação, todos os códigos
morais, disciplinas e sistemas éticos do Budismo proporcionam o ambiente de proteção e apoio
para que nossa sabedoria e meditação desenvolvam-se. Esses três treinamentos superiores de
sabedoria, meditação e ética constituem o Veículo Fundamental do Budismo e embasam todas as
diferentes abordagens e yanas do Budismo.
Quando examinamos todos os diferentes elementos de nossa experiência, todos os fenômenos
do mundo à nossa volta, podemos determinar, tanto por análise intelectual quanto por
meditação, que não apenas a personalidade individual carece de qualquer natureza própria, mas
da mesma forma toda e qualquer entidade ou fenômeno com que deparamos carece de natureza
própria. E assim chegamos à conclusão de que todos os fenômenos são vazios. A vacuidade
permeia não apenas nosso ego ou senso de eu individual, mas a realidade como um todo. É a
isso que nos referimos como abordagem Madhyamaka ou filosofia do Caminho do Meio.
Acima e além disso, existe o entendimento de que não apenas todos os fenômenos no samsara
e no nirvana sáo essencialmente vazios ou desprovidos de natureza individual, mas também que
a raiz de todos esses fenômenos, a fonte de onde todos eles brotam, é a mente. Isso combina
melhor com a abordagem Mahamudra, e é levemente mais profundo. Madhyamaka e Mahamudra estão
examinando a mesma coisa de diferentes pontos de vista, e a abordagem Mahamudra tende a ir um
passo adiante.
O próximo passo, e o passo final depois desse, é determinar de onde vem a mente – a base
do ser de onde emerge a mente samsárica ordinária, a mãe que dá à luz o filho da mente
ordinária. A descoberta de um estado auto-surgido de percepção primordial, que vai além do
pensamento ordinário, conceitual, é o que interessa à abordagem do Mahasandhi ou Dzogchen. É
com base nisso, o vislumbre ou realização disso, que ocorre a verdadeira prática do Dzogchen.
É por isso que muitas vezes o Dzogchen é denominado resultado consumado, a fruição última da
prática.
Resumindo, a fonte do sofrimento em nossa experiência é agarrar-se à mente e ao corpo em
termos de algum tipo de eu ou ego, ou apreendê-los de modo equivocado. Por meio da prática,
chegamos à realização do não-eu, à ausência de natureza individual da mente e do corpo. Na
abordagem Madhyamaka, realizamos a vacuidade de todos os fenômenos, não apenas da mente e
corpo do indivíduo. Isso desenraiza e dissolve por completo todas as emoções conflitantes que
habitam na mente ordinária da pessoa como padrões profundamente arraigados. Com essa
realização, toda paixão e agressão, apego e orgulho, ciúme, inveja e cobiça, sustentados pelo
apego ao eu, são dissolvidos junto com a noção de eu. O passo seguinte é descobrir a mente
como fonte de todos esses fenômenos e realizar a natureza da mente. O passo final, do ponto
de vista Dzogchen, é descobrir a base do ser de onde a mente surge. Essa base do ser muitas
vezes é personificada como o Buda Primordial Samantabhadra ou Kuntuzangpo, o que significa
“todo bom” ou “positivo em todos os sentidos”. Se definirmos o propósito do Dharma como a
obtenção do estado de paz, do ponto de vista do Dzogchen, esse é o estado final ou supremo de
paz que qualquer um pode descobrir.
Em termos de quem pode fazer essa descoberta, a questão é bem ampla. Não importa se você
é homem ou mulher, qual a sua raça ou o país de onde você vem. Nada disso faz qualquer
diferença. A única pessoa que pode impedi-lo de realizar essa meta é você mesmo. Cada um de
nós tem o potencial para realizar a fruição. O único que fecha a porta para a prática é você.
Não é como se alguém fosse chegar e dizer: “Oh, não! Você não pode praticar isso... você não
se encaixa aqui”. Ninguém vai escancarar a porta para você e dizer: “Esse é o Budhadharma;
entre, por favor”, Não é assim que acontece. É você, você mesmo, que toma a decisão. É você
que abre a porta, você que adentra, por sua própria vontade. Então é você que segue o
caminho, direto até o fim.
Creio que agora não preciso ir mais além, visto que já disse o bastante para apresentar a
vocês uma introdução e uma visão geral dos ensinamentos budistas a partir do meu ponto de
vista. Entretanto, gostaria de passar um pequeno conselho que dou para todo mundo. Relaxem.
Apenas relaxem. Sejam bons uns com os outros. Enquanto levam sua vida adiante, simplesmente
sejam gentis com as pessoas. Tentem ajudá-las em vez de feri-las. Tentem conviver em vez de
se desentender com elas. Deixo-os com esses conselhos e com os meus melhores votos.

Extraído dos Ensinamentos dados por – Nyoshul Khenpo Jamyang Dorje. Em 8/10/89, em San Jose.
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AS DUAS VERDADES

A crença errônea que dolorosamente condiciona a todos os seres na existência cíclica surge
da ignorância. Essa ignorância é uma ausência de consciência sobre a verdadeira vacuidade da
mente e das suas produções. De fato, a crença errônea é a ignorância sobre o verdadeiro modo
de existência de todas as coisas.
Todas as coisas, todos os fenômenos, todos os objetos de conhecimento - isso é, o universo
externo e todos os seus seres, tudo que experienciamos em termos de formas, sons, sabores,
odores, objetos tangíveis e objetos da consciência mental – tudo o que somos e que podemos
conhecer, manifesta-se pelo poder das tendências da mente, que são essencialmente vazias.
A mente não é existente ou não-existente. Do mesmo modo, os fenômenos que ela produz não
são completamente ilusórios nem completamente reais. Como nós os experienciamos
ordinariamente, eles são relativamente reais, mas de uma perspectiva absoluta, essa realidade
relativa é ilusória.
Todas as coisas podem ser vistas de acordo com dois níveis de realidade: o nível relativo,
ou convencional, e o nível absoluto, ou último. Estas duas verdades correspondem aos dois
pontos de vista, às duas visões da realidade: a verdade ou visão relativa é convencional ou
relativamente verdadeira, mas absolutamente ilusória; e a verdade ou visão absoluta é
definitivamente verdadeira, a experiência autêntica além de toda ilusão.
Todas as percepções samsáricas são experiências da verdade relativa. O nirvana, que está
além das ilusões e do sofrimento do samsara, é o nível da verdade absoluta. Portanto, por
exemplo, as experiências de um ser do reino infernal são bastante reais do ponto de vista
relativo, enquanto essas percepções são ilusórias de uma perspectiva absoluta. Isto significa
que um ser que se encontra em um reino infernal realmente experiencia sofrimento lá: desta
perspectiva, suas experiências e sofrimento são reais e totalmente infernais. Mas do ponto de
vista absoluto, o inferno não existe; ele é realmente apenas uma projeção, uma produção da
mente condicionada, cuja natureza é a vacuidade.
O sofrimento vem do não reconhecimento da vacuidade das coisas, o que resulta em
atribuirmos a elas uma realidade que verdadeiramente não têm. Este apego às coisas como sendo
reais sujeita-nos a experiências dolorosas.
Podemos ter uma melhor compreensão disto ao usar o exemplo de um sonho. Quando alguém tem
um pesadelo, essa pessoa sofre. Para o sonhador, o pesadelo é real; de fato, é a única
realidade que o sonhador conhece. Mas ainda assim, o sonho não tem realidade tangível e não é
verdadeiramente “real”; ele não tem realidade fora da mente condicionada do sonhador, fora do
próprio karma do sonhador. Do ponto de vista último, é de fato uma ilusão. A ilusão do
sonhador está em falhar no reconhecimento da natureza de suas experiências. Ignorante do que
elas verdadeiramente são, o sonhador considera sua própria produção - as criações de sua
própria mente - como sendo uma realidade autônoma; assim deludido, ele é amedrontado pelas
suas próprias projeções e, portanto cria sofrimento para si mesmo. A delusão é perceber como
real o que verdadeiramente não é. O Buda Shakyamuni ensinou que todos os reinos da existência
cíclica ou condicionada, todas as coisas, todas as experiências são, em geral, aparências
ilusórias que não podem ser consideradas nem verdadeiramente reais, nem completamente
ilusórias. Ele demonstrou essa natureza dual usando o exemplo da aparência da lua sobre a
superfície de um copo d’água:
“A natureza de todas as coisas e todas as aparências é como o reflexo da lua sobre a
água”.
A lua refletida sobre a superfície da água é real enquanto for visível lá, mas sua
realidade é apenas uma aparência relativa, ilusória, porque a lua sobre a água é apenas um
reflexo. Não é verdadeiramente real nem completamente ilusória. Desta perspectiva, podemos nos
referir à verdade relativa como a verdade das aparências. O Buddha Shakyamuni usou outros
exemplos, dizendo que todas as coisas são como uma projeção, uma alucinação, um arco-íris, uma
sombra, uma miragem, um reflexo no espelho, e um eco; fora da simples aparência resultante da
“funcionalidade” dos fatores inter-relacionados, coisa alguma tem existência em, de ou por si
mesma.
Compreender isto pode realmente nos ajudar porque, apesar de não terem existência
verdadeira, nos apegamos a todas estas coisas como se fossem reais. O objetivo do ensinamento
de Buddha é dissolver esta fixação, que é a fonte de todas as ilusões e é tão tenaz quanto o
nosso condicionamento kármico.
BUDISMO TIBETANO – Kalu Rinpoche

DESENVOLVER UMA VISÃO INEQUÍVOCA DA REALIDADE

REFUTAR A EXISTÊNCIA INTRÍNSECA DE FORMA CORRETA

Toda a discussão filosófica anterior sugere o seguinte ponto básico: o modo como tendemos
a perceber as coisas não está de acordo com o que elas são. Porém, isso não nega de forma
niilista o fato de nossa experiência. A existência das coisas e dos eventos não é questionada;
é de que maneira elas existem que deve ser esclarecida. Esse é o objetivo de se passar por
essa análise complexa.
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É essencial para qualquer aspirante espiritual cultivar uma perspectiva que se oponha de
forma direta à crença errônea que se agarra à existência concreta das coisas e eventos.
Somente pelo cultivo de uma visão assim podemos começar a diminuir o poder das aflições que
nos dominam. Quaisquer práticas diárias em que nos empenhemos – recitação de mantra,
visualizações e outras – por si só serão incapazes de se opor à ignorância fundamental.
Simplesmente idealizar a aspiração “Possa esse apego enganoso à existência empírica
desaparecer”, não é suficiente; devemos esclarecer inteiramente nosso entendimento da natureza
da vacuidade. Esse é o único jeito de se ficar livre do sofrimento. Além disso, sem esse
entendimento claro, é de se imaginar que, em vez de nos ajudar contra nosso apego à realidade
concreta, a visualização de deidades e a recitação de mantras possa até reforçar nosso apego
enganoso à realidade objetiva do mundo e do eu.
Muitas práticas budistas funcionam na aplicação de um antídoto. Por exemplo, cultivamos a
aspiração de beneficiar os outros como um antídoto para o interesse pessoal, e cultivamos
nosso entendimento da natureza impermanente da realidade como antídoto para ver as coisas e
eventos como fixos. Da mesma maneira, cultivando o insight correto sobre a natureza da
realidade – a vacuidade das coisas e eventos – somos capazes de nos liberar gradativamente do
apego à existência intrínseca e por fim eliminá-lo.

ENTENDER AS DUAS VERDADES

No Sutra do Coração lê-se:

Deve-se perceber perfeitamente que até os cinco agregados são vazios de existência
intrínseca. Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é outra coisa senão forma;
forma também não é outra coisa senão vacuidade.

Essa passagem apresenta o resumo da resposta de Avalokiteshvara para a pergunta de


Shariputra sobre como praticar a perfeição da sabedoria. A expressão “vazios de existência
intrínseca” é a referência de Avalokiteshvara ao entendimento mais sutil da vacuidade, da
ausência de existência intrínseca. Avalokiteshvara detalha sua resposta que começa com as
seguintes frases: “Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é outra coisa senão
forma; forma também não é outra coisa senão vacuidade”.

Para nós é importante evitar a apreensão errônea de que a vacuidade é uma realidade
absoluta ou uma verdade independente. A vacuidade deve ser entendida como verdadeira natureza
das coisas e eventos. Por isso lê-se: “Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é
outra coisa senão forma; forma também não é outra coisa senão vacuidade”. Não se refere a
alguma espécie de Grande Vacuidade em algum lugar lá fora, mas sim à vacuidade de um fenômeno
específico, no caso, da forma ou matéria.
A afirmação de que, “à parte da forma não existe vacuidade” sugere que a vacuidade da
forma não é outra coisa senão a natureza última da forma. A forma carece de existência
intrínseca ou independente; por isso sua natureza é vacuidade. Essa natureza – a vacuidade –
não é independente da forma, mas sim uma característica da forma; a vacuidade é o modo de ser
da forma. Deve-se entender a forma e sua vacuidade em unidade; não são duas realidades
independentes.
Vamos olhar as duas declarações de Avalokiteshvara mais detidamente: que forma é vacuidade
e vacuidade é forma. A primeira afirmação, “forma é vacuidade”, indica que o que reconhecemos
como forma vem a existir como resultado da agregação de muitas causas e condições, e não por
meios próprios independentes. Forma é um fenômeno composto constituído por muitas partes.
Porque vem a existir, e continua a existir baseado em outras causas e condições, é um fenômeno
dependente. Essa dependência significa que a forma é conseqüentemente vazia de qualquer
realidade intrínseca e auto-existente e, portanto, diz-se que forma é vacuidade.
Vamos nos deter agora na declaração seguinte, de que vacuidade é forma. Entendido que a
forma carece de existência independente, jamais pode ser isolada de outros fenômenos.
Conseqüentemente, a dependência sugere um tipo de abertura e maleabilidade em relação a outras
coisas. Devido a essa abertura fundamental, a forma não é fixa, mas sim sujeita a mudança e
causalidade. Em outras palavras, uma vez que as formas surgem a partir da interação de causas
e condições e não possuem realidade independente e fixa, prestam-se à possibilidade de
interação com outras formas e, portanto, com outras causas e condições. Tudo isso faz parte
de uma realidade complexa e interconectada. Como as formas não possuem identidade fixa e
isolada, podemos dizer que a vacuidade é a base para a existência da forma. De fato, em certo
sentido, é possível dizer até que a vacuidade cria a forma. Pode-se entender a afirmação de
que “vacuidade é forma” no sentido de a forma ser uma manifestação ou expressão da vacuidade,
algo que advém da vacuidade.
Esse relacionamento aparentemente abstrato de forma e vacuidade é de algum modo análogo ao
relacionamento de objetos materiais e espaço. Sem espaço vazio, os objetos materiais não podem
existir; o espaço é o meio para o mundo físico. Contudo, essa analogia sucumbe na medida em
que se pode dizer que os objetos materiais, em certo sentido, são separados do espaço que
ocupam, ao passo que não é possível dizer isso da forma e da vacuidade.
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No Lankavatara Sutra, encontramos descrições de sete diferentes maneiras em que uma coisa
pode ser considerada vazia. Aqui, seguindo nossos propósitos, vamos examinar duas maneiras de
ser vazio. A primeira é conhecida como “vacuidade do outro” – no sentido de que um templo pode
estar vazio de monges. Nesse exemplo, a vacuidade (do templo) é separada do que está sendo
negado (a presença de monges).
Em contraste, quando dizemos que “forma é vacuidade”, estamos negando uma essência
intrínseca da forma. Essa maneira de ser é chamada de vacuidade da existência intrínseca (em
tibetano, significa literalmente “vacuidade do eu”). Contudo, não devemos entender a vacuidade
do eu ou vacuidade da natureza do eu como significando que a forma é vazia de si mesma; isso
seria equivalente a negar a realidade da forma, o que, conforme tenho repetido enfaticamente,
esses ensinamentos não fazem. Forma é forma: a realidade da forma sendo forma não é rejeitada,
apenas a realidade independente e, portanto, a essência intrínseca dessa realidade. Portanto,
o fato de forma ser forma não contradiz de modo algum o fato de forma ser vacuidade.
Esse é um ponto crucial, e vale a pena reiterá-lo. Vacuidade não implica não-existência;
vacuidade implica vacuidade de existência intrínseca, o que implica necessariamente originação
dependente. Dependência e interdependência estão na natureza de todas as coisas; coisas e
eventos vêm a existir apenas como resultado de causas e condições. A vacuidade possibilita a
lei de causa e efeito.
Podemos expressar o que foi dito ainda de outra maneira, conforme o seguinte raciocínio.
Todas as coisas se originam de modo dependente, dessa maneira, dessa maneira pode-se observar
a causa e o efeito. Causa e efeito só são possíveis em um mundo desprovido de existência
intrínseca, ou seja, em um mundo que é vazio. Assim, podemos dizer que vacuidade é forma,
outra maneira de dizer que a forma surge a partir da vacuidade, e que a vacuidade é a base que
permite a originação dependente da forma. Portanto, o mundo da forma é uma manifestação da
vacuidade. (formas da vacuidade)
É importante esclarecer que não estamos falando da vacuidade como sendo algum tipo de
estrato absoluto da realidade, aparentado, por assim dizer, com o antigo conceito indiano de
Brahman, concebido como uma realidade absoluta subjacente, a partir da qual emerge o mundo
ilusório da multiplicidade. A vacuidade não é uma realidade essencial, que reside de algum
modo no coração do universo, da qual surge a diversidade de fenômenos. A vacuidade só pode ser
concebida em relação a coisas e eventos individuais. Por exemplo, quando falamos de vacuidade
de uma forma, estamos falando sobre a realidade absoluta daquela forma,o fato dela ser
desprovida de existência intrínseca. Aquela vacuidade é a natureza absoluta daquela forma. A
vacuidade existe como uma qualidade de um fenômeno específico; e não separada e
independentemente de um fenômeno específico.
Alem disso, uma vez que a vacuidade só pode ser entendida como realidade absoluta em
relação a um fenômeno individual, coisas e eventos individuais, quando um fenômeno individual
termina, a vacuidade daquele fenômeno também cessa. Assim, embora a vacuidade não seja ela
própria o produto de causas e condições, quando uma base para a identificação da vacuidade não
mais existe, a vacuidade não mais existe, a vacuidade daquela coisa também cessa*.
A linha “Vacuidade não é outra coisa senão forma; forma também não é outra coisa senão
vacuidade” indica a necessidade de se entender o ensinamento do Budha sobre as duas verdades.
A primeira é a verdade da convenção diária, ao passo que a segunda, a verdade absoluta, é a
verdade a que se chega por meio da análise sobre o modo de ser absoluto das coisas.
Nagarjuna faz referência a isso nos Fundamentos do Caminho do Meio:

Os ensinamentos revelados pelos budas


Assim o são em termos de duas verdades –
a verdade convencional do mundo
e a verdade última.

Percebemos a verdade convencional, ou seja, o mundo relativo em toda a sua diversidade,


por meio do uso cotidiano da mente e de nossas faculdades sensoriais. Contudo, somente por
meio da análise penetrante somos capazes de perceber a verdade absoluta, a verdadeira natureza
das coisas e eventos. Perceber isso é perceber a talidade dos fenômenos, seu modo absoluto de
ser, que é a verdade absoluta sobre a natureza da realidade.
Embora muitas tradições indianas de pensamento – tanto budistas quanto não-budistas –
entendam a natureza da realidade em termos de duas verdades, o entendimento mais sutil
acarreta a realização das duas verdades não como duas realidades separadas e independentes,
mas sim como dois aspectos de uma única realidade. É essencial que captemos essa distinção com
clareza. [...]

* Na prática de meditação Vajrayana, é enfatizado que, quando se medita sobre a vacuidade


no contexto do yoga da deidade, é importante escolher uma base para a meditação. Essa base
pode ser o aspecto da mente que manterá sua continuidade ao longo das vidas de um individuo
até que alcance a iluminação. O fato de que a mente prosseguirá no estágio da iluminação é um
dos principais motivos para a mente ser freqüentemente enfatizada como foco da meditação sobre
a vacuidade. Também é assim em outras práticas, tais como Mahamudra e Dzogchen, onde o foco
principal da meditação sobre a vacuidade é a mente do indivíduo.
Do livro: A Essência Do Sutra Do Coração – Dalai Lama – 10º. Capítulo – págs. 103-108
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A SABEDORIA DA AUSÊNCIA DE EGO

(...) “Imagine uma pessoa que subitamente acorda num hospital depois de sofrer um acidente
de carro na estrada, e percebe que está com amnésia total. Por fora, tudo está intacto: ela
tem o mesmo rosto, a mesma forma, os sentidos e a mente estão lá, mas não tem a menor idéia ou
o menor vestígio de memória de quem é. Exatamente do mesmo modo, não conseguimos nos lembrar
da nossa verdadeira identidade, nossa natureza original. Freneticamente e na realidade
apavorados, procuramos e improvisamos outra identidade, uma em que possamos nos agarrar com
todo o desespero de alguém que vai cair num abismo. Essa identidade falsa e assumida em
ignorância é o ego”.
Desse modo, o ego é a ausência do conhecimento verdadeiro de quem somos, juntamente com o
seu resultado: um malfadado apego, mantido a não importa que preço, a uma imagem remendada e
improvisada de nós mesmos, um eu inevitavelmente charlatanesco e camaleônico que está sempre
mudando e que precisa mudar para manter viva a ficção da sua existência. Em tibetano, o ego é
chamado dak dzín, que quer dizer “agarrado a um eu”. O ego é assim definido como um movimento
incessante de agarrar-se em uma noção ilusória de ‘eu’ e ‘meu’, desse mesmo e do outro, e em
todos os conceitos, idéias, desejos e atividades que sustentam essa falsa construção.
Esse agarrar-se é fútil desde o início e condenado à frustração. Uma vez que não tem
nenhuma base ou verdade, e aquilo a que nos agarramos é, por sua própria natureza, impossível
de reter. O fato de que precisamos nos agarrar a continuar agarrados a alguma coisa mostra que
nas profundezas de nosso ser sabemos que o eu não existe inerentemente. Desse conhecimento
secreto e assustador nascem todas as nossas inseguranças fundamentais e o nosso medo. [...]
E ainda que possamos ver além das mentiras do ego, estamos assustados demais para
abandoná-lo; porque sem um verdadeiro conhecimento da natureza da nossa mente, ou real
identidade, simplesmente não temos outra alternativa”.
LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

DESCUBRA QUE VOCÊ NÃO EXISTE EM E POR SI MESMO

Assim como um carro de guerra existe


Na dependência do conjunto das partes,
Assim também, convencionalmente, um ser sensível
É constituído na dependência dos agregados físicos e mentais.

No budismo o termo eu tem dois significados que devem ser diferenciados para se evitar
confusão. Um significado de eu é “pessoa” ou “ser vivo”: Este é o ser que ama e odeia, que
pratica ações e acumula carma bom e mau, que experimenta os frutos dessas ações, que renasce
na existência cíclica, que cultiva caminhos espirituais e assim por diante.
O outro significado do eu ocorre na expressão inexistência do eu, em que se refere a um
estatuto de existência falsamente imaginado, super-concretizado de existência chamado
“existência inerente”. A ignorância que se prende a tal exagero é na verdade a fonte da
destruição, a mãe de todas as atitudes erradas – talvez pudéssemos dizer diabólicas. Ao
observar o “eu” que depende de atributos mentais e físicos, essa mente o exagera, tomando-o
por um ser inerentemente existente, embora os elementos que estão sendo observados não
contenham de maneira alguma esse ser exagerado.
Qual é o estatuto real de um ser sensível? Assim como um carro existe na dependência de
suas partes, como rodas, eixos, e assim por diante, um ser sensível também é
convencionalmente constituído na dependência da mente e do corpo. Não há pessoa alguma a ser
encontrada quer separada da mente e do corpo, quer dentro da mente e do corpo.
Esta é a razão por que o "eu" e todos os outros fenômenos são descritos no budismo como
“apenas nome”. O significado disso não é que o “eu” e todos os outros fenômenos sejam apenas
palavras, já que as palavras para esses fenômenos referem-se de fato a objetos reais.
Significa, isto sim, que tais fenômenos não existem em e por si mesmos; a expressão apenas
nome elimina a possibilidade de que eles sejam estabelecidos a partir dos próprios objetos.
Precisamos deste lembrete porque o “eu” e outros fenômenos não parecem ser meramente
constituídos por nome e pensamento. Ao contrário.
Por exemplo, dizemos que o Dalai Lama é um monge, um ser humano e um tibetano. Não parece
que você está dizendo isso, não com relação a seu corpo ou a sua mente, mas sobre algo
separado? Sem parar de pensar sobre isso, parece haver um Dalai Lama separado de seu corpo, e
independente até de sua mente. Ou considere a si mesmo. Se seu nome for Jane, por exemplo,
dizemos, “O corpo de Jane, a mente de Jane”, de modo que você tem a impressão de que há uma
Jane que possui sua mente e seu corpo, e uma mente e um corpo que Jane possui.
Como você pode compreender que essa perspectiva é equivocada? Concentre-se no fato de que
não há nada dentro da mente ou do corpo que possa ser “eu”. Mente e corpo são vazios de um
“eu” tangível. Mais exatamente, assim como um carro é constituído na dependência de suas
partes e não é nem mesmo a soma de suas partes, assim o “eu” depende da mente e do corpo. Um
“eu” que não dependa da mente e do corpo não existe, ao passo que um “eu” compreendido como
dependente da mente e do corpo existe em conformidade com as convenções do mundo. Compreender
esse tipo de “eu” que não pode ser encontrado de maneira alguma na mente ou no corpo, e não é
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sequer a soma de mente e corpo, mas só existe através do poder de seu nome e de nossos
pensamentos, é útil quando nos esforçamos por nos ver como realmente somos.
Há quatro grandes passos para a descoberta de que você não existe da maneira como pensa
existir. Vou discutí-los primeiro brevemente, depois em detalhe.
O primeiro passo é identificar as crenças ignorantes que devem ser refutadas. Você precisa
fazer isso porque, quando empreende uma análise, procurando a si mesmo dentro da mente e do
corpo ou separado da mente e do corpo, e não consegue encontrar, poderia concluir
erroneamente que você não existe.
Como o “eu” parece à nossa mente estar estabelecido em e por si mesmo, quando usamos
análise para tentar encontrá-Io e não conseguimos, parece que o “eu” não existe em absoluto,
ao passo que é apenas o “eu” independente, o “eu” inerentemente existente, que não existe.
Como há um perigo aqui de queda na negação e no niilismo, é crucial, como um primeiro passo,
compreender o que está sendo negado na inexistência inerente do eu.
De que modo o “eu” aparece para a sua mente?
Ele não parece existir graças à força do pensamento; parece existir de forma mais
concreta. Você precisa perceber e identificar esse modo de apreensão. Ele é seu alvo.
O segundo passo é determinar que, se o “eu” existe da maneira como parece existir, não
deve nem ser a mesma coisa que a mente e o corpo, nem separado deles. Após verificar que não
há outras possibilidades, nos dois passos finais você analisa para ver se o “eu” e o
complexo mente-corpo podem ser ou uma entidade inerentemente estabelecida, ou diferentes
entidades inerentemente estabelecidas.
Como discutiremos nas próximas seções, através da meditação você virá gradualmente a
compreender que há falácias em conceber o “eu” como qualquer dessas duas coisas. Neste ponto
você poderá compreender facilmente que um “eu” inerentemente existente é improcedente. Essa é
a compreensão da inexistência inerente do eu. Depois, quando você tiver compreendido que o
“eu” não existe inerentemente, será fácil compreender que o que é “meu” não existe
inerentemente.
Em geral, qualquer coisa que apareça à nossa mente parece existir por si mesma,
independentemente do pensamento. Quando prestamos atenção a um objeto – quer sejamos nós
mesmos ou outra pessoa, corpo, mente ou uma coisa material – aceitamos o modo como aparece
como se essa fosse sua condição final, íntima, real. Isso pode ser visto claramente em
momentos de tensão, como quando alguém o critica por alguma coisa que você não fez: “Você
estragou tal e tal coisa”: Você pensa subitamente, de maneira muito intensa, “Eu não fiz
isso!”, e poderia até gritar estas palavras ao acusador.
Como o “eu” aparece à sua mente nesse momento? Como esse “eu” que você tanto preza e
acarinha parece existir? Como você o está apreendendo? Refletindo sobre estas perguntas você
pode chegar a compreender de que modo a mente apreende de maneira natural e inata o “eu” como
existindo por si mesmo, inerentemente.
Tomemos outro exemplo. Quando deveria ter feito uma coisa importante e descobre que se
esqueceu, você pode ficar irritado com sua própria mente. “Oh, essa minha memória horrível!”.
Quando você se irrita com sua própria mente, o “eu” que está irritado e a mente com a qual
você se irrita parecem ser separados um do outro.
O mesmo acontece quando você fica contrariado com seu próprio corpo, ou com parte de
seu corpo, como sua mão. O “eu” que se zanga parece ter existência própria, em e por si
mesmo, distinto do corpo com o qual você está zangado. Nessas ocasiões você pode observar
como o “eu” parece ser independente, como se fosse auto-instituído, como se fosse
estabelecido através de seu próprio caráter. Para esse tipo de consciência, o “eu” não
parece ser constituído na dependência da mente" e do corpo.
Você consegue se lembrar de uma ocasião em que fez uma coisa horrível e sua mente
pensou: “Eu realmente fiz uma grande trapalhada?” Nesse momento você se identificou com
uma noção de eu que tem sua própria entidade concreta, que não é nem mente nem corpo, mas
algo que se manifesta de maneira muito mais forte.
Ou lembre-se de uma ocasião em que você fez algo maravilhoso, ou em que algo
realmente bom lhe aconteceu, e você sentiu grande orgulho por isso? Esse “eu” que é tão
valorizado, tão acarinhado, tão amado e é o objeto de tal vaidade estava tão concreta e
vividamente claro. Nesses momentos, percebemos o “eu” de maneira particularmente óbvia.
Depois que apreende uma manifestação tão espalhafatosa, você pode fazer com que essa
forte noção de “eu” apareça à sua mente e, sem deixar que essa impressão diminua em
intensidade, pode examinar, de um canto, se ele existe da maneira sólida em que aparece.
No século XVII, o Quinto Dalai Lama falou sobre isso com grande clareza:
Por vezes o “eu” parecerá existir no contexto do corpo. Por vezes parecerá existir no
contexto da mente. Por vezes parecerá existir no contexto dos sentimentos, das discriminações
ou de outros fatores. Após perceber uma variedade de modos de manifestação, você chegará a
identificar um “eu” que existe por si mesmo, que existe inerentemente, que desde o começo é
auto-estabelecido, existindo de maneira indiferenciada com a mente e o corpo, que também estão
misturados como leite e água. Esse é o primeiro passo, a verificação do objeto a ser negado à
vista da inexistência do eu. Você deveria trabalhar nisso até que uma experiência profunda
apareça.
Os três outros passos, discutidos nos três capítulos seguintes, destinam-se a fazer
compreender que esse tipo de “eu”, em que acreditamos tanto e que move tanto de nosso
comportamento, é na realidade uma fantasia de nossa imaginação. Esse “eu” sólido não
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existe em absoluto. Para que os passos subseqüentes funcionem, é crucial identificar essa
forte noção de um “eu” auto-instituído e conservá-la.

1. Imagine que alguém o critique por algo que você realmente não fez, apontando-lhe o
dedo e dizendo: “Você estragou tal e tal coisa”:
2. Examine sua reação. Como o “eu” aparece para a sua mente?
3. De que maneira você o apreende?
4. Observe como esse “eu” parece independente, auto-instituído, estabelecido em
virtude de seu próprio caráter.

Também:
1. Lembre-se de uma ocasião em que você se irritou com sua mente, quando não conseguiu
se lembrar de alguma coisa.
Analise seus sentimentos. Como o “eu” apareceu para a sua mente nessa ocasião?
2. De que maneira você o apreendeu?
3. Observe como esse “eu” parece independente, auto-instituído, estabelecido em
virtude de seu próprio caráter.

Também:
1. Lembre-se de uma ocasião em que você se irritou com seu corpo, ou com alguma
característica de seu corpo, como seu cabelo.
2. Examine seus sentimentos. Como o “eu” apareceu para a sua mente nesse momento?
3. De que maneira você o apreendeu?
4. Observe como esse “eu” parece independente, auto-instituído, estabelecido em
virtude de seu próprio caráter.

Também:
1. Lembre-se de uma ocasião em que você fez algo horrível e pensou: “Eu realmente fiz
uma grande trapalhada”:
2. Considere seus sentimentos. Como o “eu” apareceu para a sua mente nesse momento?
3. De que maneira você o apreendeu?
4. Observe como esse “eu” parece independente, auto-instituído, estabelecido em
virtude de seu próprio caráter.

Também:
1. Lembre-se de uma ocasião em que você fez algo maravilhoso, de que sentiu grande
orgulho.
2. Examine seus sentimentos. Como o “eu” apareceu para a sua mente nesse momento?
3. De que maneira você o apreendeu?
4. Observe como esse “eu” parece independente, auto-instituído, estabelecido em
virtude de seu próprio caráter.

Também:
1. Lembre-se de uma ocasião em que algo de maravilhoso lhe aconteceu e lhe deu grande
prazer.
2. Examine seus sentimentos. Como o “eu” apareceu para a sua mente nesse momento?
3. De que maneira você o apreendeu?
4. Observe que o “eu” parece independente, auto instituído, estabelecido em virtude
de seu próprio caráter.
Capítulo II do livro: COMO SABER QUEM VOCÊ É – Dalai Lama

VEJA A SI MESMO COMO UMA ILUSÃO

“Como as ilusões de um mágico, os sonhos, e uma lua refletida na água,


Todos os seres e seus ambientes são vazios de existência inerente.
Embora não solidamente existentes, todos se parecem
Com bolhas aflorando na água”.

Gung Tang

Como resultado de sua investigação da natureza do “eu” e de outros fenômenos, agora você
sabe que eles parecem existir inerentemente, mas compreende que são vazios de existência
inerente, assim como uma ilusão produzida por um mágico não existe tal como parece. Como diz
Nagarjuna em sua Preciosa guirlanda de conselhos:

“Uma forma vista a distância


É vista claramente pelos que estão próximos.
Se uma miragem fosse água,
Por que a água não seria vista pelos que estão próximos?
O modo como este mundo é visto
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Como real pelos que estão distantes


Não é visto pelos que estão próximos,
Para os quais ele é insubstancial, como uma miragem”.

Uma face num espelho parece uma face, mas essa imagem não é uma face real de maneira
alguma; é sob todos os pontos de vista vazia de ser uma face. Assim, também, um mágico pode
produzir ilusões que parecem ser certas coisas, como uma pessoa numa caixa sendo espetada com
uma espada, mas elas não são de maneira alguma estabelecidas como essas coisas. De maneira
semelhante, fenômenos como corpos parecem ser estabelecidos a partir dos próprios objetos, mas
são vazios de ser estabelecidos dessa maneira e sempre foram.
Não é que os fenômenos sejam ilusões; eles são mais semelhantes a ilusões. Mesmo que uma
imagem de sua face no espelho não seja realmente a sua face, o reflexo não é inteiramente
inexistente. Através de sua aparência você pode saber como sua face de fato se parece. De ma-
neira semelhante, embora sejam vazias de uma existência que parece estabelecida por si mesma,
as pessoas e coisas não são inteiramente inexistentes; podem agir e podem ser experimentadas.
Portanto, ser como uma ilusão não é o mesmo que parecer existir, mas sim não existir, como os
chifres de um coelho, que não existem de maneira alguma.

REFLEXÃO MEDITATIVA

1. Lembre-se de uma ocasião em que você tomou o reflexo de uma pessoa no espelho por uma
pessoa real.
2. Ele parecia ser uma pessoa, mas não era.
3. De maneira semelhante, todas as pessoas e coisas parecem existir por si mesmas, sem
depender de causas e condições, de suas partes, e de pensamento, mas não o fazem.
4. Dessa maneira, pessoas e coisas são semelhantes a ilusões.
5.

IDENTIFIQUE O CONFLITO ENTRE APARÊNCIA E REALIDADE

Uso os exemplos de ilusões, reflexos e miragens para dar uma idéia aproximada do conflito
entre o que parece ser e o que é. A descoberta de que o reflexo de uma face num espelho não é
uma face não constitui a descoberta do vazio de existência inerente de uma imagem no espelho,
pois mesmo com esse conhecimento você se enganará a respeito da natureza de uma imagem no
espelho, tomando-a por inerentemente existente. Se souber que a imagem de uma face no espelho
é vazia de existência significasse verdadeira compreensão do vazio, assim que voltasse sua
mente para qualquer outro objeto - seu corpo, seu braço, sua casa -, você compreenderia também
seu vazio de existência inerente. Mas isso não acontece. Mais uma vez, não é que você e os
outros sejam ilusões, vocês são mais exatamente semelhantes a ilusões.
Ver a si mesmo ou aos outros fenômenos como semelhantes a ilusões exige duas coisas: a
falsa aparência dos objetos de serem inerentemente existentes e uma compreensão de que você ou
o que quer que esteja considerando não existe dessa maneira. Em razão de sua experiência, na
meditação, de procurar e não encontrar essa qualidade independente (embora depois da meditação
os fenômenos vão ainda parecer existir de maneira inerente), a força de sua compreensão
anterior abre caminho para que você reconheça que esses fenômenos são ilusórios, visto que,
embora pareçam existir inerentemente, não o fazem. Como disse Buda: “Todas as coisas têm o
atributo da falsidade, da capciosidade”.
Há muitas discrepâncias entre o modo como as coisas aparecem e o modo como realmente são.
Algo impermanente pode parecer permanente. Ademais, fontes de dor, como comer demais, parecem
por vezes fontes de prazer, mas não são. O que acabará levando ao sofrimento não é visto pelo
que realmente é, mas é confundido com um caminho para a felicidade. Embora queiramos
felicidade, em virtude da ignorância não sabemos como alcançá-Ia; embora não desejemos dor, e
como compreendemos mala que causa a dor, esforçamo-nos por alcançar as próprias causas da dor.
Os olhos dos que assistem a um espetáculo de mágica são afetados pelos truques do mágico,
e por intermédio desse engano a platéia pensa que vê cavalos, elefantes, e assim por diante.
De maneira semelhante, aceitando a aparência de existência, exageramos a condição de bons e
maus fenômenos, e somos assim conduzidos ao desejo, à raiva e a ações que acumulam carma. O
que não é um “eu” inerentemente existente parece ser um “eu” inerentemente existente, e
aceitamos a aparência tal como dada.

COMO VER DESSA MANEIRA AJUDA

Ver pessoas e coisas existindo à maneira de ilusões ajuda a reduzir emoções desfavoráveis,
porque concupiscência, raiva, etc. surgem porque sobrepomos qualidades - boas ou más - aos
fenômenos, além das que eles realmente têm. Por exemplo, quando ficamos muito irritados com
alguém, temos uma forte impressão da vileza dessa pessoa, porém, mais tarde, quando nos
acalmamos e olhan10s para essa mesma pessoa, podemos achar nossa percepção anterior risível.
O benefício do insight é nos impedir de atribuir aos objetos bondade ou maldade além do
que está realmente ali. Esse solapamento da auto-ilusão torna possível reduzir e finalmente
eliminar a concupiscência e a raiva, pois essas emoções são fundadas no exagero. Essa
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eliminação de emoções doentias, por sua vez, deixa mais espaço para que emoções e virtudes
saudáveis se desenvolvam. Vendo os fenômenos com insight, você os traz para o escopo da
prática do vazio.
Quando praticar a expansão do amor e da compaixão, tenha em mente que o próprio amor e
compaixão e as pessoas que são seus objetos são como as ilusões de um mágico, que parecem
existir solidamente em e por si mesmas, mas não o fazem. Se você os vir como inerentemente
existentes, isso o impedirá de desenvolver amor e compaixão plenamente. Veja-os em vez disso
como ilusões, existindo de uma maneira, mas aparecendo de outra. Essa perspectiva aprofundará
tanto seu insight do vazio quanto as emoções saudáveis do amor e da compaixão, de modo que
nessa compreensão você possa se empenhar em atividade compassiva eficaz.

REFLEXÃO MEDITATIVA

1. Como fez antes, lembre-se do alvo de seu raciocínio, o “eu” inerentemente


estabelecido, evocando ou imaginando uma situação em que acreditou fortemente nele.
2. Observe a ignorância que sobrepõe existência inerente e identifique-a.
3. Dê ênfase particular à contemplação do fato de que, se esse estabelecimento inerente
existisse, o “eu” e o complexo mente-corpo teriam de ser ou a mesma coisa ou
diferentes.
4. Depois reflita intensamente sobre o absurdo de afirmações do eu e do complexo mente-
corpo como sendo a mesma coisa ou como diferentes, vendo e sentindo a impossibilidade
dessas afirmações.

UNICIDADE

- O “Eu” e a mente-corpo teriam de ser absolutamente e de todas as maneiras uma só coisa.


- Nesse caso, afirmar um “eu” seria sem sentido.
- Seria impossível pensar em “meu corpo” ou “minha cabeça” ou “minha mente”:
- Quando mente e corpo deixassem de existir, o eu também não existiria mais.
- Como mente e corpo são uma pluralidade, os “eus” de uma pessoa seriam também múltiplos.
- Como o “eu” é apenas um, mente e corpo seriam também um.
- Assim como mente e corpo são produzidos e se desintegram, assim também deveríamos
afirmar que o “eu” é produzido inerentemente e se desintegra inerentemente. Neste caso,
nem os efeitos agradáveis de ações virtuosas nem os efeitos penosos de ações não virtuosas
se refletiriam sobre nós, ou estaríamos experimentando os efeitos de ações que nós mesmos
não praticamos.
DIFERENÇA

- “Eu” e mente-corpo teriam de ser completamente separados.


- Nesse caso, o “eu” teria de ser encontrável depois que mente e corpo fossem removidos.
- O “eu” não teria as características de produção, permanência e desintegração, o que é
absurdo.
- O “eu”, absurdamente, teria de ser apenas uma fantasia da imaginação, ou permanente.
- Ridiculamente, o “eu” não teria nenhuma característica física ou mental.

5. Não encontrando esse “eu”, decida firmemente: “Nem eu nem ninguém somos inerentemente
estabelecidos”.
6. Permaneça por algum tempo absorvendo o significado do vazio, concentrando-se na
ausência de estabelecimento inerente.
7. Depois, deixe mais uma vez que as aparências das pessoas surjam na sua mente.
8. Reflita sobre o fato de que, no contexto do surgimento dependente, as pessoas também se
envolvem em ações e assim acumulam carma e experimentam os efeitos dessas ações.
9. Verifique o fato de que a aparência das pessoas é real e viável na ausência de
existência inerente.
10. Quando a realidade e o vazio parecerem contraditórios, use o exemplo de uma imagem no
espelho:
A imagem de uma face é inegavelmente produzida na dependência de uma face e de um
espelho, mesmo que seja vazia dos olhos, orelhas e o que mais aparenta ter, e a imagem
de uma face inegavelmente desaparece quando ou a face ou o espelho estão ausentes.
De maneira semelhante, ainda que uma pessoa não tenha sequer um grão de estabelecimento
inerente, não é contraditório que pratique ações, acumule carma, experimente efeitos, e
nasça na dependência de carma e emoções destrutivas.
11. Tente ver a falta de contradição entre realidade e vazio com relação a todas as
pessoas e coisas.
Extraído do livro: COMO SABER QUEM É VOCÊ – Dalai Lama
71

PREPARAÇÃO PARA A COMPREENSÃO DE SHUNYATA


“Tudo existe perfeitamente como total abertura.”

Quando começarmos a considerar a possibilidade de nos tornarmos iluminados, entendemos


a iluminação como alguma forma distinta de experiência. Supomos que a meditação conduzirá a
estados de ser mais elevados e sutis, até que, por fim, tudo se transforma de algum modo,
passando do que normalmente vemos e sentimos para uma experiência de alegria e graça
contínuas. No entanto, do ponto de vista da mais alta realização, tudo aquilo com que nós nos
envolvemos já está dentro da iluminação. Tudo já é perfeito; não existe uma coisa sequer que
seja imperfeita, “coisa” alguma precisa ser limpa ou desenvolvida. Cada forma, cada qualidade
específica já é completa exatamente como está, sendo o que é, não importa o que. Nessa
perspectiva, não existe não-iluminação nem iluminação; nem samsara nem nirvana. A perfeição
intrínseca da existência esta além de todas as interpretações relativas ou das tentativas de
descrição de suas qualidades. Antes mesmo de começarmos a praticar e meditar, todas as formas
e aparências são manifestações do ser perfeito. Assim, nada há a ganhar, nada a perder, nada a
realizar e nenhum lugar para se ir. Então, por que já não somos iluminados? Como podemos estar
dentro da existência perfeita, se nosso mundo e nossas vidas parecem tão distantes da utopia?
As respostas a estas perguntas encontram-se em nossa tendência de a tudo dar uma identidade,
de rotular, definir e categorizar toda a nossa experiência. Em virtude desse processo perdemos
contato com a realidade, porque tão logo começamos a descrever e interpretar, ficamos do lado
de fora, olhando para ela. Ao nos colocarmos a parte da realidade, criamos a separação que
depois tentamos transpor com nossa meditação. Chegamos até a pensar na realização como a meta
final de uma relação entre sujeito e objeto, sem enxergar que esta “realização” é apenas um
conceito a mais, um produto do nosso condicionamento, que obscurece a clareza e a profundidade
potenciais da mente. Na verdade, nada há a descobrir, quer no sujeito quer no objeto – nem
espaço, nem tempo, nem matéria; não existe nem mesmo uma mente. Quem pode, então, realizar a
iluminação? Ninguém.

Não existe eu; não existe quem vivencie a experiência e não existe a experiência. Tudo
existe perfeitamente como total abertura. Todas as manifestações são vazias, e o vazio é todas
as manifestações. Contudo, nós como indivíduos não conseguimos apreender esta perfeita
abertura. Não podemos vê-la, toca-la, cheira-la, interpreta-la ou experiencia-la: não há um
“eu” para apreender, ver, cheirar ou experienciar, para negar ou afirmar a fisicalidade da
matéria, ou sequer para comparar o existente e o não-existente. A abertura absoluta, ou
shunyata, não tem ponto de apoio, não tem posição. Sem características nem essência, não pode
ser vivenciada pelos sentidos ou pela mente.
Todavia, nada está fora de shunyata. A realidade abrange todas as posições, cada
aspecto da existência e da não-existência. Em shunyata há espaço para cada possibilidade, e
tudo se ajusta com perfeição. Você começará a entender o vazio quando se desligar dos
preconceitos. Se acreditar que shunyata é uma vasta extensão, descarte essa idéia. Se
acreditar na mente, ou que tudo é criado pela mente, ou que há algum fundamento ou substancia,
jogue fora tais conceitos. Desmascare tudo e deixe a mente ficar em silencio total, em paz,
vazia e clara: deixe-a tornar-se a experiência de shunyata. Dentro desse espaço claro e vazio
que se encontra entre um pensamento e outro, antes que um outro conceito se forme, não existe
sujeito, nem objeto, nem experiência. Aí está a natureza da iluminação. Talvez seja difícil
aceitar isso se tivermos um conceito impreciso de iluminação. Podemos pensar que alcançar a
iluminação exija mais do que simplesmente abraçar a qualidade aberta do vazio. Porém, nossas
idéias sobre iluminação e sobre seres infinitos são muitas vezes restritivas.
Criamos estes conceitos para melhor entender nossa realidade e, no entanto, estes mesmos
conceitos podem, irônicamente, bloquear nossa realização.
Também criamos restrições ao nos considerarmos separados das outras coisas. Pensamos que
nos projetamos para tocar algo separado de nós mesmos, ou que olhamos em volta para ver alguma
coisa fora de nós, mas aquele que toca já está tocando, o observador já está observando. Assim
que afirmamos algo como sendo separado, ou isolamos alguma coisa a fim de tentar entendê-la,
perdemos shunyata de vista.
De onde vem a mente? Aonde vai ela? Onde está a fonte da consciência? Onde se origina a
vida? Onde se cria toda a existência?
A resposta a todas estas perguntas é: em parte alguma; tudo é a mesma realidade, a mesma
energia, sem fonte nem princípio. Não há separação real entre passado e presente, aqui e lá.
Nós estamos sempre dentro da realidade. Nossa mente não está separada da iluminação.
Qual é, então, a diferença entre a iluminação e a existência comum? O estado iluminado
dispõe de grande riqueza, abertura e plenitude de ser, enquanto o estado samsárico inclui
tremendo sofrimento, ignorância e confusão. Não obstante, do ponto de vista de shunyata, os
dois estados coexistem: não há separação entre eles.
Quando compreendermos que o fundamento da iluminação não é um dado lugar ou uma
dada pessoa, saberemos que jamais nos afastamos dessa mente desperta. Veremos que a iluminação
permeia todo o nosso ser e não pode separar-se de nós, tanto quanto o som não pode se divorcia
da musica. Shunyata é tudo e nada. Toda a nossa experiência está compreendida dentro dessa
perfeita realização da abertura.
A MENTE OCULTA DA LIBERDADE – Tarthang Tulku
72

BHAGAVATI PRAJNA PARAMITA HRIDAYA SUTRA


O abençoado coração da Sabedoria Transcendental,
inconcebível, inexprimível, o prajna-paramita
não-nascido, incessante, por natureza semelhante ao céu,
experenciado pela cognição prístina da consciência auto-reflexiva
mãe de todos os vitoriosos dos três tempos, A você presto homenagem!

ASSIM EU OUVI.
CERTA ÉPOCA O ABENÇOADO ESTAVA EM RAJAGRIHA, NA MONTANHA DO PICO DOS ABUTRES,
EM COMPANHIA DE UM GRANDE NÚMERO DE MONGES E BODHISATTVAS.
NAQUELA OCASIÃO, O ABENÇOADO ESTAVA CONTEMPLANDO OS INÚMEROS ASPECTOS DOS FENÔMENOS, DENOMINADO
PROFUNDA ILUMINAÇÃO.

O “Abençoado” refere-se ao Budha Shakyamuni. Budha encontrava-se absorto num estado de contemplação
sobre a vacuidade, ou natureza última, dos inúmeros aspectos dos fenômenos. O Budha contemplava todos os
fenômenos como expressões do Tatagathagharba. Ele praticava o samadhi da inseparatividade.

NESSA MESMA OCASIÃO O NOBRE AVALOKITHESVARA1, O BODHISATTVA, O GRANDE SER, OBSERVAVA PERFEITAMENTE A
PRÁTICA DA PROFUNDA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA QUE OBSERVA PERFEITAMENTE A VACUIDADE DA EXISTÊNCIA INERENTE
TAMBÉM DOS CINCO AGREGADOS.

Enquanto Budha permanecia em samadhi, Avalokiteshvara contemplava porque os cinco agregados são
vazios de existência inerente. A palavra “também” indica que o Grande Ser já havia realizado a vacuidade
da existência inerente do “eu” ou pessoa.

ENTÃO, PELO PODER DO BUDHA, O VENERÁVEL SHARIPUTRA DISSE AO NOBRE AVALOKITESHVARA, O GRANDE SER:
“COMO DEVE PROCEDER UM FILHO OU FILHA QUE QUEIRA PRATICAR A PROFUNDA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA?”.

Este é o tipo de diálogo entre dois aspectos de nós mesmos. Aquele que pergunta [aspecto nirmanakaya]
e aquele que responde [aspecto samboghakaya], na presença de Budha em samadhi [aspecto dharmakaya]
“A prática da Profunda Perfeição da Sabedoria” refere-se, neste contexto, à vacuidade. É qualificada
como profunda porque, se a realizarmos, seremos capazes de cumprir o grande propósito – alcançar a
liberação da existência cíclica [samsara]. Praticar profundamente significa ser capaz de ver através da
superfície.

ASSIM ELE FALOU E O SUPERIOR AVALOKITESHVARA, O BODHISATTVA, O GRANDE SER, RESPONDEU AO VENERÁVEL
SHARIPUTRA COMO SEGUE:
“SHARIPUTRA, QUALQUER FILHO, OU FILHA, DE NOBRES QUALIDADES QUE QUEIRA PRATICAR O PROFUNDO PRAJNA-
PARAMITA DEVERIA OBSERVAR ASSIM DE MANEIRA PERFEITA E CORRETA: A VACUIDADE DA EXISTÊNCIA INERENTE TAMBÉM
DOS CINCO AGREGADOS”.

Evidentemente quando Budha afirmou a inexistência inerente do eu “Anatma”, estava assim negando
implicitamente os cinco agregados que o compõe, bem como todos os fenômenos. Nada existe por si mesmo,
nenhuma entidade tem substância própria. Vacuidade significa interdependência, impermanência e não-eu.
Para a maioria das pessoas, a primeira mente que realiza a vacuidade é uma sabedoria advinda do ouvir.
Se, depois continuarmos a contemplar e a meditar, poderemos atingir uma realização mais poderosa. Isso
será uma sabedoria advinda da contemplação. Então, se continuarmos a meditar sobre a vacuidade,
obteremos, pelo poder da meditação, uma experiência válida da vacuidade.

FORMA É VACUIDADE

Refere-se à vacuidade de existência inerente dos fenômenos, ou a ausência de substância própria dos
fenômenos. A vacuidade é a natureza última dos fenômenos. Forma, nesse contexto, refere-se a um dos cinco
agregados2. Quando tivermos realizado a vacuidade usando como base a forma, não será difícil
estabelecermos a vacuidade dos demais fenômenos. Para compreendermos o que significa existência inerente
[substância própria] precisamos entender quais seriam as características de um objeto inerentemente
existente. Para ser inerentemente existente, uma coisa teria que existir por si mesma, independente de
outros fenômenos. Normalmente, nunca nos ocorre que haja qualquer envolvimento de nossa parte na
existência desses fenômenos. O modo como tais objetos existem difere bastante da maneira como parecem
existir. Um corpo inerentemente existente seria um corpo independente dos outros fenômenos. Saber se os
objetos existem inerentemente, ou não, é assim uma questão extremamente importante, porque todos os
nossos sofrimentos e insatisfações remontam ao agarramento à existência inerente, nossa e dos demais
fenômenos. É necessário realizarmos que os fenômenos carecem de existência inerente, para podermos nos
liberar dos sofrimentos.
Ver as coisas como elas são realmente é acabar com o sofrimento. Não que não haja algum sofrimento, a
vida é dolorosa. Mesmo que possamos ser salvos do sofrimento, isto não significa que não iremos sofrer,
mas que devemos saber como aceitar nossa dor, e saber como aceitar a alegria. Tudo o que surge, isto é
nossa vida. Quando é doloroso, é apenas doloroso. Quando é prazeroso é apenas prazeroso. Apenas aceitamos
cada momento como é, com o que é, com profunda aceitação. Então, dizemos que a meditação é não
discriminar, sem apego e rejeição. Se examinarmos bem, compreenderemos que os mundos dos estados
despertos e oníricos existem de maneira muito semelhante. Ambos aparecem-nos de modo muito vívido e
parece ter existência própria, independente da mente. Acreditamos que essa aparência é verdadeira e
reagimos a ela gerando desejo, aversão, medo etc. exatamente como num sonho.

VACUIDADE É FORMA
73

A primeira profundidade de um fenômeno é a vacuidade de existência inerente do mesmo [Forma é Vazia].


A segunda profundidade é o fenômeno enquanto manifestação da vacuidade. Verdade Última e vacuidade de
existência inerente são sinônimas. As formas são exibições da vacuidade. Logo, podemos dizer que nosso
corpo é uma manifestação da vacuidade. Isso implica que nosso corpo não está separado de sua vacuidade,
mas é uma aparência que surge dela. Para entender melhor a relação entre nosso corpo e sua vacuidade,
podemos evocar o exemplo da moeda de ouro. A natureza intrínseca da moeda é o ouro; a moeda é o próprio
ouro que aparece sob a forma da moeda. A moeda por nós percebida não está separada do seu ouro e não
poderá existir sem ele. Logo, podemos dizer que a moeda é uma manifestação do seu ouro.

A VACUIDADE NÃO É OUTRA DO QUE A FORMA;


A FORMA TAMBÉM NÃO É OUTRA DO QUE A VACUIDADE.

Aqui compreendemos que a natureza relativa e a natureza última dos fenômenos não existem
separadamente. A vacuidade da forma é a ausência de existência inerente da forma. Se quisermos saber o
que é a ausência inerente da forma, a resposta será: a forma ela mesma. Não existe vacuidade da forma
separada da forma e não existe forma separada da vacuidade da forma. Portanto, a forma e a vacuidade da
forma são a mesma entidade.

DA MESMA MANEIRA, SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO, FORMAÇÕES MENTAIS, E CONSCIÊNCIA SÃO VAZIAS.

A “sensação” só seria inerente se existisse independente de todos os outros fenômenos. Assim, do


mesmo modo “percepção”, “formações mentais”, e “consciência” são vazias e interdependentes. Se houvesse
um “eu” inerentemente existente, ele teria que poder ser física e mentalmente separado dos outros
fenômenos, pois não dependeria deles. A maioria dos estados mentais deludidos está enraizada na crença de
que existe um eu, inerentemente existente. [existe separadamente por si só].

SHARIPUTRA, ASSIM SENDO, TODOS OS FENÔMENOS SÃO VAZIOS, NÃO TÊM CARACTERÍSTICAS. NÃO SÃO PRODUZIDOS E
NÃO CESSAM. NÃO SÃO PUROS NEM IMPUROS.
NÃO DIMINUEM, E NEM AUMENTAM.

“Não produzidos” significa que a produção dos fenômenos não é inerentemente existente; não negamos
que sejam produzidos de algum modo. Todos os fenômenos impermanentes, inclusive nosso corpo, são
produzidos a partir de causas e condições. O corpo que temos hoje é uma transformação do corpo anterior,
como um fluxo contínuo. Assim, podemos investigar a produção do nosso corpo até os corpos de nossos pais,
e daí até o aparecimento da vida no planeta. A mente também surge de seus momentos anteriores, num
continuum [fluxo psico-mental] sem início e sem fim. Ao investigarmos descobriremos que todo universo e
seus seres foram ‘produzidos’ [transformados] a partir de causas e condições. Entretanto, o ensinamento
principal é que a produção dos fenômenos não é inerentemente existente, porque depende de causas e
condições; se as causas apropriadas não estiverem reunidas, a ‘produção’ [transformação] não ocorrerá.
Conforme vimos, algo que dependa de outros fenômenos será necessariamente vazio de existência inerente. A
frase “e não cessam” indica um fluxo interminável de transformações. O mesmo pode ser dito a respeito da
experiência interior que temos da felicidade e sofrimento; tudo surge a partir de causas e condições que
formam o continuum da nossa existência. A ‘produção’ é vazia de existência inerente, pois depende de
causas e condições. Conforme foi visto, algo que dependa de outros fenômenos será necessariamente vazio
de existência inerente.
A cessação de um objeto é um fenômeno meramente imputado. Por exemplo, a transformação gradual da
semente em broto, envolve a cessação da semente. Contudo, não existe um ponto em que a semente deixa de
existir. Semente e broto, ambos são fenômenos imputados pela nossa concepção e o ponto onde a semente
cessou e o broto foi produzido não pode ser encontrado.
“Não são puros ou impuros”, pureza e impureza são julgamentos relativos de nossa mente conceitual, a
coisa em si não é pura nem impura.
“Não há diminuição nem aumento”, significa que, embora um fenômeno possa diminuir ou aumentar, essa
diminuição não é inerentemente existente. Sabemos que os fenômenos passam de estado de diminuição para o
estado de aumento, e vice-versa, na dependência de causas e condições. É da natureza de todos os
fenômenos impermanentes passarem por aumento ou diminuição; contudo eles surgem na dependência de causas
e condições e são vazios de existência inerente. Em suma, ao revelar que a natureza e os atributos dos
fenômenos são, eles próprios, vazios de existência inerente, essa secção do sutra ensina, em essência,
que os fenômenos são totalmente desprovidos de existência inerente. Além de revelar a natureza última dos
fenômenos, ele também ensina, implicitamente, os diversos aspectos de sua natureza relativa, como a
impermanência, a interdependência, a lei de causa e efeito e o abandono de máculas.

PORTANTO, SHARIPUTRA, NA VACUIDADE NÃO HÁ FORMA, SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO, FORMAÇÃO MENTAL, NEM
CONSCIÊNCIA. NÃO HÁ VISÃO, AUDIÇÃO, OLFATO, PALADAR, TATO, NEM MENTE; NÃO HÁ APARÊNCIA, SOM, CHEIRO,
SABOR, TATO, NEM PENSAMENTO.
NÃO EXISTEM OS ELEMENTOS DA CONSCIÊNCIA RELACIONADOS AOS OLHOS, OUVIDOS... E MENTE, E NÃO HÁ TAMPOUCO
O ELEMENTO CONSCIÊNCIA MENTAL.
NÃO HÁ IGNORÂNCIA, NEM EXTINÇÃO DA IGNORÂNCIA E ASSIM POR DIANTE; ATÉ VELHICE E MORTE NEM EXTINÇÃO DE
VELHICE E MORTE.
DO MESMO MODO NÃO HÁ SOFRIMENTO, NEM ORIGEM, NEM CESSAÇÃO, NEM CAMINHO; NEM EXCELSA PERCEPÇÃO, NEM
AQUISIÇÃO, TAMPOUCO NÃO-AQUISIÇÃO.

Quando obtemos pela primeira vez uma realização direta da vacuidade e atingimos o caminho da visão,
nossa contemplação sobre a vacuidade é capaz de superar as delusões intelectualmente formadas, mas não
tem o poder de superar as delusões inatas. Permanecendo no caminho da visão desenvolvemos a contemplação
do equilíbrio meditativo que serve como liberação do nível mais denso das delusões inatas. Ao gerar essa
sabedoria, atingimos o caminho da meditação.
A causa raiz das delusões inatas é o auto-agarramento inato. Ao contrário das intelectualmente
formadas, as delusões inatas não provêm da adoção de filosofias e pontos de vistas equivocados, mas
74

surgem intuitivamente em todos os seres no samsara, inclusive nos animais. O auto-agarramento inato é uma
mente que se desenvolve de modo natural e apreende os fenômenos como inerentemente existentes. Ele causa
o surgimento da força básica de auto-preservação, inclusive nas formas animais mais primitivas. Como
resultado surgem os três venenos. Durante o caminho da meditação, abandonamos progressivamente as
delusões inatas.
O encontro dos seis objetos e das seis faculdades leva ao desenvolvimento das seis consciências.
Estamos operando automaticamente os olhos, e os outros sentidos, a mente está associada a cada um deles.
Vemos os objetos como se fossem separados de nós. Para cada sentido temos o órgão, o objeto e a
consciência relativa que percebe o objeto. Então para os seis sentidos, temos os dezoito dhatus3. Embora
os seis órgãos e seus objetos sejam condições essenciais para gerarmos a consciência, elas não são
inerentemente existentes. O simples desenvolver da consciência visual provoca o surgimento de delusões
produzindo obstáculos. Assim como acontece com os demais fenômenos, as Quatro Nobres Verdades não têm
existência inerente, bem como os Doze Elos da Originação Interdependente. O antídoto direto à ignorância
é a Sabedoria que realiza a vacuidade. Entretanto, a própria sabedoria de um ser que realiza a vacuidade
também é vazia de existência inerente. Se continuarmos a meditar desta maneira, nossa realização direta
da vacuidade tornar-se-á cada vez mais poderosa. Por fim, ela agirá como antídoto contra os níveis mais
sutis das delusões, possibilitando ultrapassá-las por completo, removendo até as marcas das delusões, ou
seja, os obstáculos à onisciência.
Em sua resposta, Avalokiteshvara descreve qual é a experiência de um bodhisattva no caminho da
meditação, quando medita sobre a vacuidade. Para sua mente, todos os fenômenos absorvem-se e se dissolvem
na vacuidade. Até a mente que está apreendendo a vacuidade é, ela mesma, vacuidade e não aparece ao
meditante. Como resultado, a distinção entre a mente e seu objeto desaparece. (a dualidade terminou)

PORTANTO, SHARIPUTRA, PORQUE NÃO HÁ AQUISIÇÃO OS BODHISATTVAS CONFIAM E PERMANECEM NA PERFEIÇÃO DA


SABEDORIA; SUAS MENTES NÃO TÊM OBSTRUÇÕES NEM MEDO. TRANSCENDENDO COMPLETAMENTE AS FALSAS VISÕES ATINGEM
O NIRVANA FINAL. TODOS OS BUDHAS DOS TRÊS TEMPOS POR TEREM CONFIADO NA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA, REALIZAM
COMPLETAMENTE A ILUMINAÇÃO PERFEITA E INSUPERÁVEL.

Se entendermos a natureza convencional dos fenômenos, iremos compreender que o ambiente e a maneira
de experimentá-lo dependem de nossa mente e de suas potencialidades. Um animal e um ser humano percebem
este mundo de forma muito diferente. Visto que a aparência do ambiente depende da mente, conforme nossa
mente se purifica a aparência do ambiente também se purifica.
“Portanto, Shariputra, porque não há aquisição”. Tais palavras reafirmam que as aquisições de um
bodhisattva, em particular a aquisição do caminho do não-mais aprender, são vazias de existência
inerente. A própria aquisição da budeidade não existe em si-mesma, mas é uma mera imputação feita pela
mente. Se as aquisições de um bodhisattva fossem inerentemente existentes, elas existiriam de modo
independente e não se apoiariam em causas. Por isso a budeidade não é uma questão de aquisição, pois a
temos desde o princípio sem esforço. Na realidade, as aquisições de um bodhisattva carecem de existência
inerente.

PORTANTO, O MANTRA DA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA, O MANTRA DO GRANDE CONHECIMENTO, O MANTRA INSUPERÁVEL,


O MANTRA QUE TORNA IGUAL O QUE É DESIGUAL, O MANTRA QUE APAZIGUA POR COMPLETO TODO SOFRIMENTO, VISTO QUE
NÃO É FALSO, DEVE SER CONHECIDO COMO A VERDADE.

A frase: “O mantra da perfeição da sabedoria” qualifica a perfeição da sabedoria como mantra. De modo
geral, mantra significa “proteção da mente”. Aqui, a perfeição da sabedoria é denominada mantra, pois seu
papel principal consiste em proteger a mente das obstruções e delusões. “O mantra do grande conhecimento”
refere-se ao conhecimento do Grande Selo, ou Vacuidade.
“O mantra que torna igual o que é desigual”, pois todos os fenômenos são iguais em sua essência, a
vacuidade. “O mantra que apazigua por completo todo o sofrimento”, pois é isso que acontece quando ele é
praticado sinceramente.

O MANTRA DO PRAJNAPARAMITA É PROCLAMADO:

TAYATHA OM GATE GATE PARAGATE PARASANGATE BODHI SOHA


Tayatha significa “Assim é”. Om significa “As imensuráveis qualidades dos corpos, da fala e das
mentes dos seres iluminados”. Gate significa “ir”, Paragate significa “ir perfeitamente”, Parasangate
sgnifica “ir perfeita e completamente”, Bodhi significa “iluminação”, Soha significa “construir o
fundamento”.
“Shariputra, um bodhisattva, um grande ser, deve treinar a profunda sabedoria desse modo”:
Podemos treinar com os cinco sentidos, com a mente associada aos sentidos, com os doze elos, com as
quatro nobres verdades, com os vários tópicos do próprio sutra. Vemos assim, que o Sutra do Coração, além
de ser a expressão da sabedoria, é também um grande roteiro de meditação.

ENTÃO, O ABENÇOADO RETORNOU DO SEU SAMADHI E LOUVOU O NOBRE AVALOKITESHVARA, O BODHISATTVA, O GRANDE
SER, DIZENDO: MUITO BOM, MUITO BOM! OH FILHO DE NOBRES QUALIDADES.
ASSIM É! ASSIM É! EXATAMENTE COMO REVELOU, DESSA MANEIRA A PROFUNDA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA DEVE SER
PRATICADA E OS TATHAGATAS4 TAMBÉM IRÃO REGOZIJAR-SE.

A questão de Shariputra e a resposta de Avalokiteshvara surgiram pelo poder do Budha. Também nesse
caso, não significa que tal poder tenha sido a única razão desses fatos. O carma coletivo daqueles que
estavam presentes também foi uma condição necessária para que recebessem tais ensinamentos.

“QUANDO O ABENÇOADO ASSIM FALOU, O VENERAVEL SHARIPUTRA, O NOBRE AVALOKITESHVARA, O BODHISATTVA, O


GRANDE SER, E TODO O CÍRCULO DE DISCÍPULOS, JUNTAMENTE COM OS SERES MUNDANOS – DEUSES, HUMANOS, SEMI-
DEUSES, ESPÍRITOS – DELEITARAM-SE E LOUVARAM IMENSAMENTE O QUE FORA PROFERIDO PELO ABENÇOADO.

ISSO CONCLUI O “SUTRA DO CORAÇÃO DO PRAJNA-PARAMITA”.


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NOTAS DO SUTRA:

1. AVALOKITESHVARA APARECIA SOB A FORMA DE UM DISCÍPULO DO BUDHA, EMBORA JÁ TIVESSE REALIZADO A ILUMINAÇÃO PLENA HÁ MUITOS ÉONS. ESSE TAMBÉM FOI O CASO DE MANDJUSHRI,

SAMANTABHADRA, MAITREYA E DE TODOS OS BODHISATTVAS. AINDA QUE EM ESSÊNCIA FOSSEM BUDHAS, DEMONSTRARAM COMO DEVE AGIR UM BODHISATTVA AJUDANDO A DIFUNDIR OS ENSINAMENTOS DE BUDHA PARA O BEM

DE TODOS OS SERES.

2. OS CINCO AGREGADOS SÃO: FORMA, SENSAÇÃO, PERCEPÇÃO, FORMAÇÃO MENTAL E CONSCIÊNCIA. EM GERAL QUALQUER FENÔMENO PODE SER INCLUÍDO NUM DOS CINCO.

3. DHATU: ELEMENTO; PROPRIEDADE, CONDIÇÃO IMPESSOAL. OS QUATRO ELEMENTOS FÍSICOS OU PROPRIEDADES SÃO TERRA (SOLIDEZ), ÁGUA (LIQUIDEZ), AR (MOVIMENTO), E FOGO (CALOR). OS SEIS

ELEMENTOS INCLUEM OS MENCIONADOS ANTERIORMENTE MAIS ESPAÇO E CONSCIÊNCIA.

4. TATHAGATA: LITERALMENTE "AQUELE QUE VERDADEIRAMENTE FOI (TATHA-GATA)" OU " AQUELE QUE SE TORNOU AUTÊNTICO (TATHA-AGATA)" UM EPÍTETO USADO NA ÍNDIA ANTIGAMENTE PARA UMA PESSOA

QUE ALCANÇOU O OBJETIVO ESPIRITUAL MÁXIMO. NO BUDISMO, EM GERAL DENOTA O BUDA, EMBORA OCASIONALMENTE TAMBÉM DENOTE QUALQUER UM DOS SEUS DISCÍPULOS ARAHANTS.

A REALIZAÇÃO DA VACUIDADE

Dromtönpa: Qual é o ensinamento absoluto?


Atisha: De todos os ensinamentos, o absoluto é a vacuidade, da qual a compaixão é a
própria essência. É como um remédio muito poderoso, uma panacéia que pode curar cada doença do
mundo. E assim como esse poderoso remédio, a realização da verdade da vacuidade – a natureza
da realidade – é o remédio para todas as diferentes emoções negativas.
Dromtönpa: Então por que tantas pessoas que afirmam ter realizado a vacuidade não têm
menos apego e ódio?
Atisha: Porque a realização delas está apenas nas palavras. Se elas realmente tivessem
entendido o verdadeiro significado da vacuidade, os seus pensamentos, palavras a ações seriam
tão suaves quanto caminhar sobre um pano de algodão ou como a sopa de tsampa com manteiga. O
mestre Aryadeva disse que até mesmo querer saber se todas as coisas são vazias por natureza ou
não faria o samsara cair em pedaços. A verdadeira realização da vacuidade, portanto, é a
panacéia última que inclui todos os elementos do caminho.
Dromtönpa: Como cada elemento do caminho pode estar incluído dentro da realização da
vacuidade?
Atisha: Todos os elementos do caminho estão contidos nas seis perfeições transcendentes.
Agora, se você realizar verdadeiramente a vacuidade, se tornará livre do apego. Se você não
sentir desejo ou apego por qualquer coisa de dentro ou de fora, você sempre terá a
generosidade transcendente. Estando livre do desejo e do apego, você nunca será maculado
pelas ações negativas e sempre terá a disciplina transcendente. Sem quaisquer conceitos de
“eu” e “meu”, você não terá raiva, então sempre terá a paciência transcendente. Com sua mente
verdadeiramente feliz pela realização da vacuidade, você sempre terá a diligência
transcendente. Sendo livre da distração, que vem do apego às coisas como sendo sólidas, você
sempre terá a meditação transcendente. Como você não conceitua mais qualquer coisa em termos
de sujeito, objeto e ação, você sempre terá a sabedoria transcendente.
Dromtönpa: Aqueles que realizam a verdade tornam-se Budas simplesmente através da visão da
vacuidade e da meditação?
Atisha: De tudo que percebemos como formas e sons, nada há que não surja da mente.
Realizar que a mente é a consciência [luminosidade] indivisível da vacuidade é a visão. Manter
esta realização na mente em todos os momentos e nunca distrair-se dela é a meditação. Praticar
as duas acumulações como sendo uma ilusão mágica dentro deste estado é a ação. Se você fizer
uma experiência viva desta prática, ela continuará em seus sonhos. Se ela vier no estado dos
sonhos, ela virá no momento da morte. E se ela vier no momento da more, ela virá no estado
intermediário entre a morte e o renascimento (bardo). Se ela estiver presente no estado
intermediário, você pode estar certo de que atingirá a realização suprema.
Diálogo entre Atisha Dipamkara Shrijana (980-1055) e Dromtönpa Gyelwe Jungne (1005-1064)

Originalmente publicado em The Words of My Perfect Teacher, Patrul Rinpoche, Shambhala Publications

SOBRE O SUTRA DO CORAÇÃO


Han shan

O mundo de destinos miseráveis é comparável a um grande oceano, e os sentimentos e


pensamentos dos seres vivos à ausência de margem. Eles são ignorantes e não sabem que as ondas
crescentes de inconsciência são as causas da ilusão e das ações kármicas que resultam no ciclo
infinito de nascimentos-e-mortes. Seus sofrimentos são inexauríveis e eles são incapazes de
atravessar o oceano amargo da mortalidade. Portanto, isto é chamado de a margem.
Buda usou o brilho de sua grande sabedoria para iluminar e quebrar as paixões, e para por
um fim a todos os sofrimentos para sempre. Isto conduz à eliminação completa dos dois tipos de
morte [natural e violenta] e a saltar do oceano de misérias para a realização do nirvana.
Portanto, é chamada de a outra margem.
O coração mencionado é o coração da grande sabedoria que alcança a outra margem. Não é o
coração humano que os homens mundanos usam para pensar erroneamente. O homem ignorante não
sabe que fundamentalmente possui o coração da luz brilhante da sabedoria. Ele considera como
real o inchaço de músculos ligados à carne e ao sangue, e reconhece apenas as sombras
resultantes do pensamento errôneo e do apego, estimulados pelas circunstâncias. Assim os
76

pensamentos se sucedem um ao outro em sua cadeia incessante, sem um único deles voltar a luz
para si mesmo, para o auto-reconhecimento. Apenas o Buddha estava consciente da verdadeira
sabedoria fundamental que pode iluminar e quebrar o corpo e o coração dos cinco agregados, que
são não-existentes e cuja substância é inteiramente vazia. Portanto, ele saltou da aparência e
alcançou a outra margem instantaneamente, cruzando assim o oceano amargo. Como teve pena dos
homens deludidos, ele usou esta porta para a iluminação – que experimentou pessoalmente – para
abri-la e para guiá-los, de modo que cada homem possa estar consciente de que a sua sabedoria
é fundamentalmente auto-possuída, de que seus pensamentos errôneos são basicamente falsos e de
que seu corpo e coração são inteiramente não-existentes. Então ele poderá se erguer do oceano
dos sofrimentos e atingir o êxtase do nirvana. Foi por isto que ele expôs este sutra.

Avalokiteshvara, o bodhisattva da verdadeira liberdade, compreende através da profunda


prática da grande sabedoria que o corpo e os cinco agregados são apenas o vazio, e através
desta compreensão ele traz ajuda a todos os que sofrem.

Ao ouvir do Buda sobre esta profunda sabedoria, este bodhisattva pensou sobre ela e a
praticou usando sua sabedoria para fazer uma introspecção nos cinco agregados, que são vazios
tanto interna quanto externamente, resultando na realização de que o corpo, o coração e o
universo não existem realmente, em um salto súbito tanto sobre o mundano quanto sobre o
supramundano, na destruição completa de todos os sofrimentos e na aquisição de uma
independência absoluta. Já que o bodhisattva pode se liberar por meio disto, cada homem pode
confiar e praticar nela.
Por esta razão, o Honrado-pelo-mundo [Buddha Shakyamuni] falou para Shariputra apontar a
maravilhosa atuação de Avalokiteshvara, a qual ele queria que todos os outros conhecessem. Se
fizermos a mesma contemplação, realizaremos em um instante que nossos corações basicamente
possuem a luz da sabedoria, tão vasta, extensa e penetrante que brilha através dos cinco
agregados que são fundamentalmente vazios.
Após esta realização, onde os sofrimentos não poderiam ser aniquilados? Onde os grilhões
do karma seriam algemados? Onde estariam os argumentos obstinados sobre o ego e a
personalidade, sobre o certo e errado? Onde estaria a discriminação entre falha e sucesso,
entre ganho e perda? E onde estariam os obstáculos das coisas como riqueza e honra, pobreza e
desonra?
Shariputra!

Este era o nome de um discípulo do Buddha. Shari é o nome de um pássaro com olhos muito
brilhantes e penetrantes. A mãe dele tinha os mesmos olhos brilhantes e penetrantes, e foi
chamada com o nome do pássaro. Então o próprio nome dele era o filho [putra] de uma mulher que
tinha olhos do shari. Entre os discípulos do Buddha, ele era o mais sábio. Portanto Shariputra
foi chamado propositalmente para realçar o fato de que este ensinamento poderia ser dado
apenas a um ouvinte sábio.

A forma não difere do vazio, nem o vazio da forma. A forma é idêntica ao vazio e o vazio é
idêntico à forma. Assim também são os cinco agregados em relação ao vazio.

Isto foi dito a Shariputra para explicar o significado da vacuidade dos cinco agregados. A
forma foi apontada primeiro. Esta forma é a aparência do corpo que os homens consideram como
sua posse. É produzida pela cristalização de seu firme e sofrível pensamento errôneo. É
causada por manter o conceito de um ego, conceito este que é o mais difícil de quebrar.
Agora, no começo da meditação, a atenção deve ser dada a este corpo físico que é uma
combinação fictícia de quatro elementos e que é fundamentalmente não-existente. Já que a sua
substância é inteiramente vazia tanto por dentro quanto por fora, não estamos mais confinados
dentro deste corpo e, portanto não temos impedimentos quanto ao nascimento-e-morte, assim como
ao ir-e-vir. Este é o método para quebrar a forma. Se a forma é quebrada, os outros quatro
agregados podem, da mesma maneira, estarem sujeitos à introspecção profunda.
O ensinamento sobre a forma que não difere do vazio tem o objetivo de quebrar a visão do
homem mundano de que a personalidade é permanente [eternalismo]. Como os homens mundanos acham
que o corpo físico é real e permanente, eles fazem planos para um século sem realizar que o
corpo é irreal e não-existe, que está sujeito às quatro mudanças [nascimento, velhice, doença
e morte] de momento a momento, sem interrupção, até a velhice-e-morte, com o resultado último
de que ele é impermanente e de que finalmente retornará ao vazio. Este é ainda o vazio
relativo, em relação ao corpo e à morte, e não alcança ainda o limite da lei fundamental [o
vazio absoluto]. Como a forma ilusória, feita de quatro elementos, basicamente não difere do
vazio absoluto, o Buddha disse, “a forma não difere do vazio”, o que significa que o corpo
físico fundamentalmente não difere do vazio absoluto.
Quando o Buddha disse, “o vazio não difere da forma”, sua intenção era a de quebrar o
conceito de aniquilação [niilismo]. Significa que o vazio absoluto não é fundamentalmente
diferente da forma ilusória, mas não é um vazio relativo e aniquilador em oposição à forma.
Isto significa que a grande sabedoria é o vazio absoluto da realidade. Por quê? Porque o vazio
absoluto é comparável a um grande espelho, e todos os tipos de formas às aparências refletidas
nesse espelho. Se realizarmos que estes reflexos não estão separados do espelho, prontamente
entenderemos que “o vazio não difere da forma”.
77

Como o Buddha estava preocupado que os homens mundanos pudessem confundir estas duas
palavras – forma e vazio – como sendo duas coisas diferentes, e de que na visão de sua
igualdade eles pudessem não ter uma mente imparcial em sua contemplação, ele identificou a
forma e a vacuidade uma com a outra na frase “a forma é idêntica ao vazio e o vazio é idêntico
à forma”.
Com a contemplação correta feita de acordo e com a realização resultante de que a forma
não difere do vazio, não haverá avidez por som, forma, riqueza e ganho, e nenhum apego às
paixões dos cincos desejos surgidos dos objetos dos cincos sentidos – às coisas vistas,
ouvidas, cheiradas, degustadas ou tocadas. Isto é o salto do estágio do bodhisattva para a
ascensão instantânea ao estágio de Buddha. Esta é a outra margem.

Shariputra, toda a existência é vazia, não há nem início nem fim, nem pureza nem impureza,
nem crescimento ou declínio. Portanto, no vazio, não há forma, não há agregados; não há olho,
ouvido, nariz, língua, corpo e mente; não há forma, som, odor, sabor, toque e objeto do
pensamento; não há conhecimento, ignorância, ilusão e fim da ilusão; não há sofrimento,
declínio e morte, fim do sofrimento e morte; não há conhecimento, ganho e não-ganho.

Esta é uma explicação exaustiva da grande sabedoria para descartar todos os erros. O vazio
real pode limpar todos os erros porque é puro e claro e não contém uma única coisa, pois
dentro dele não há rastros dos cinco agregados e assim por diante.
Como o reino do Buddha é como o vazio e nada têm a se confiar, se a busca do estado
búddhico confiar numa mente que procura o ganho, o resultado será falso porque, dentro da
substância do vazio absoluto, fundamentalmente não há coisas como sabedoria [conhecimento] e
ganho, pois o não-ganho realmente é o ganho real e último.

Como não há ganho, os bodhisattvas que confiam nesta sabedoria que vai além, não têm
máculas em suas mentes, e uma vez que não têm máculas, eles não têm medo, são livres das
idéias contrárias e delusivas, e atingem o nirvana final.

Uma vez que todas as coisas estão fundamentalmente na condição de nirvana, se a meditação
for feita enquanto confiarmos no sentimento discriminativo e no pensamento, a mente e os
objetos se amarrarão um ao outro e nunca poderão ser desemaranhadas dos ávidos apegos
resultantes, que são todas as máculas. Se a meditação for feita por meio da grande sabedoria,
e a mente e os objetos como sendo não-existentes, todos os seus contatos resultarão apenas em
liberação. Como a mente não tem mácula, não pode haver medo do nascimento-e-morte. Já que não
há medo do nascimento-e-morte, tanto o medo do nascimento-e-morte e a busca do nirvana são
idéias contrárias e delusivas.
Nirvana significa calma perfeita; em outras palavras, a eliminação perfeita das cinco
condições fundamentais de paixão e delusão, e de alegria eterna na calma e extinção da
miséria. Isto significa que apenas descartando todos os sentimentos de “santos” e “pecadores”
é que poderemos experimentar uma entrada no nirvana. O desenvovimento do bodhisattva feito por
qualquer outro método não seria correto.

Todos os buddhas do passado, do presente e do futuro obtêm a visão completa e a iluminação


perfeita confiando na grande sabedoria. Então sabemos que a grande sabedoria é o grande mantra
sobrenatural, o grande mantra brilhante, insuperável e inigualável, que pode limpar
verdadeiramente e sem falha todos os sofrimentos.

Não apenas os bodhisattvas praticaram, mas também todos os buddhas dos três tempos se
exercitaram para obter o fruto da iluminação completamente correta e perfeita. Tudo isto
mostra que a grande sabedoria pode expulsar o demônio da aflição do mundo – por isso é o
grande mantra sobrenatural. Como pode quebrar a escuridão da ignorância, a causa do
nascimento-e-morte, é chamado de o grande mantra brilhante. Já que nada há nos mundos mundano
e supramundano que possa superá-lo, é chamado de o mantra insuperável. Como permite que os
buddhas-mãe produzam méritos ilimitados, e já que nenhuma coisa mundana e supramundana pode
ser igual a ele – apesar de ser igual a todos estes – é chamado de o mantra inigualável.
Por que [a grande sabedoria] é chamada de mantra? É apenas para mostrar a velocidade de
sua eficiência sobrenatural, como uma ordem secreta no exército que pode assegurar a vitória
se for executada silenciosamente. O mantra pode quebrar o exército de demônios no mundo,
comparável ao néctar que permite obter a imortalidade. Aqueles que o degustam podem dissipar o
maior dos desastres, causado pelo nascimento-e-morte. Portanto o Buddha disse, “ele pode
eliminar todos os sofrimentos”. Quando disse que é verdadeiro e sem erro, ele queria dizer que
as palavras do Buddha não são enganadoras e que os homens mundanos não devem cultivar suspeita
sobre elas, mas sim decidir praticá-las perfeitamente.

Tadyata Om Gate Gate Paragate Parasamgate Bodhi Soha

Antes do mantra ser ensinado, a grande sabedoria foi ensinada exotericamente, e agora foi
exposta esotericamente. Aqui não há espaço para pensar e interpretar, mas a repetição
silenciosa do mantra assegura rápida eficácia; isso se faz possível pelo poder inconcebível
através do descarte de todo sentimento e da eliminação de toda interpretação. Os seres vivos
78

deludidos usam-no para criar problemas por causa de seu pensamento errôneo. Apesar de o usarem
diariamente, não estão conscientes dele. Assim, ignorantes de sua própria realidade
fundamental, eles continuam passando inutilmente por todos os tipos de sofrimento. Não é uma
pena? Se eles puderem despertar instantaneamente para si mesmos, poderão voltar imediatamente
à luz, que há dentro de si mesmos. No momento de um pensamento, todas as barreiras dos
sentimentos do mundo se quebrarão, como a luz de uma lamparina ilumina uma sala onde a
escuridão existiu por mil anos. Portanto, não há necessidade de recorrer a qualquer outro
método.
Os homens mundanos estão andando por um caminho perigoso e boiando em um oceano amargo,
mas ainda não querem olhar para a grande sabedoria. Realmente, suas intenções não podem ser
adivinhadas! A grande sabedoria é como uma espada afiada, que corta todas as coisas que a
toca, tão afiadamente que elas nem sabem que são cortadas. Quem, além dos sábios e santos,
podem fazer uso dela? Certamente, não os ignorantes.
Han-Shan, séc. VII

SOBRE O SUTRA DO CORAÇÃO DA GRANDE SABEDORIA

O título completo do Sutra do Coração é o Sutra do “Coração da Grande Sabedoria Além da


Sabedoria”. Sabedoria, aqui, não é o nosso conhecimento comum; é o conhecimento inato, nossa
conexão inata e intuitiva como o princípio fundamental que é chamado de prajna em sânscrito.
No prólogo, Shariputra pergunta ao Buddha como seguir a perfeição da sabedoria, e o Buddha,
por sua vez, pede a Avalokiteshvara para explicá-la a Shariputra. Avalokiteshvara está
praticando profundamente; uma das traduções realmente diz “seguindo”, seguindo profundamente
na perfeição da sabedoria. Assim, “praticar” é um boa palavra para “seguir”. Ele não está
apenas pensando sobre ela, ele é um com ela. Quando sentamos em meditação, estamos praticando
profundamente a Prajnaparamita e, esperançosamente, quando deixamos a almofada, ainda estamos
praticando profundamente a Prajnaparamita. Então, há dois aspectos disto: o primeiro é o de
que há um bodhisattva Avalokiteshvara que está fazendo isto; e nós estamos assistindo a cena.

Mas, realmente, cada um de nós é o bodhisattva Avalokiteshvara, e cada um de nós também é


Shariputra. Este é o tipo de diálogo entre os dois aspectos de nós mesmos. Aquele que pergunta
e aquele que responde. “Praticar profundamente” significa ser capaz de ver através da
superfície.

Em sânscrito, os cinco skandhas são as formas, sensações, percepções, formações mentais e


consciência. Estes são chamados de “os cinco fluxos da existência”. Geralmente, quando falamos
sobre “mim” e “meu”, e quando falamos sobre “eu mesmo” e “quem eu sou”, estamos falando sobre
alguma idéia que temos, algum conceito de “um ser”. Quando olhamos para nós mesmos, nossa
mente cria alguma imagem, tanto através da visão quanto da audição — através de um dos cinco
sentidos — e então decidimos que isso é o que vemos ou ouvimos, etc. Temos um tipo de visão
parcial do que esta pessoa é. Mas, realmente, vemos algo em sua total realidade? No Dharma de
Buddha, dizemos que não há um eu, não há a natureza de eu permanente. Este ser que encontramos
como nós mesmos, ou como qualquer um, é uma “confecção”, algo “agregado”, constituído pela
forma, sensações, percepções, formações mentais (pensamentos de vários tipos) e consciência.
Dentre estas cinco categorias, deveria ser achado o que chamamos de “ser humano”. Mas, dentro
dos cinco skandhas, não há um eu permanente, nenhum eu inerente.

“O bodhisattva Avalokiteshvara, quando praticava profundamente o Prajnaparamita, percebeu


que todos os cinco skandhas em seu próprio ser são vazios, e foi salvo de todo sofrimento. A
palavra ou frase importante aqui é “ser próprio”. Nada, nenhuma entidade, tem seu “ser
próprio”. Vacuidade significa interdependência. Isto significa para outras coisas também, mas
para este propósito significa que nada existe por si mesmo. Se fizermos um bolo, temos
farinha, ovos, açúcar, sal etc. Batemos tudo junto e assamos, e então dizemos que temos um
bolo. Comemos um bolo, e é um bolo real, comido por uma boca real. Mas o bolo é vazio, e a
boca é vazia de seu “ser próprio”. O que faz o bolo é a boca, e o que faz a boca é o bolo. O
que faz o bolo são todos os ingredientes. Então, temos um bolo real, mas o bolo é ilusório.
Parece um bolo real. Hoje é um bolo real mas, se você deixá-lo sobre a mesa até amanhã, ou até
a próxima semana, não é mais um bolo real. Então, ele tem apenas uma existência momentânea
como um bolo. Não apenas os ingredientes, mas o forno faz o bolo, a mesa faz o bolo, a colher
faz o bolo, o céu faz o bolo. O bolo é dependente de tudo no universo para sua existência, e
ele é uma expressão da vida universal. Do mesmo modo, um ser humano é uma expressão da vida.
Podemos usar a analogia da água e da onda. A água é vida por si mesma, e a onda é uma
expressão da água. A onda nada mais é do que a água, e a água nada mais é do que a onda, mas a
onda não tem “ser próprio”: seu “ser próprio” é a água. Uma onda é dependente do vento e das
condições climáticas para sua existência e, claro, é dependente de uma grande massa d’água.
Então, cada onda é uma expressão de uma massa d’água, assim como cada um de nós é uma
expressão da própria vida. Isto é chamado de “ser vazio”, e “ser vazio” também significa “ser
cheio”. É importante lembrar que, sempre que dizemos algo no budismo, o seu oposto também está
incluído. Isto é chamado de não-dualidade. Se você diz “Estou vivo”, o “Estou morto” também
está incluído. Se você diz, “Estou morto”, o “Estou vivo” também está incluído. Caso
contrário, você cai na dualidade e você vê apenas de maneira parcial.
79

Ver as coisas como são completamente é acabar com o sofrimento. Não é que não haja algum
sofrimento, a vida é dolorosa. Mesmo que possamos ser salvos do sofrimento, isto não significa
que não haja sofrimento ou que não iremos sofrer, mas devemos saber como aceitar esse
sofrimento e como aceitar nossa dor, e saber como aceitar nossa alegria. Tudo o que surge,
isto é nossa vida. A verdadeira vida é mais importante do que um aspecto qualquer da vida. Se
entendemos isto, então podemos apreciar nossa vida, não importa o que aconteça. Isto é a
maturidade, e isto é o que experimentamos na meditação. Na meditação dizemos, “Bom, como foi?”
“Bem, foi doloroso” e “Foi prazeroso” e “Foi” o que quer que você queira dizer. Mas aceitamos
igualmente a cada um desses aspectos. Isto é o que é a meditação. O que quer que venha, é
isto. Quando é doloroso, é apenas doloroso. Quando é prazeroso, é apenas prazeroso. Apenas
aceitamos cada momento como é, com o que é, com profunda apreciação. Esta visão é o aspecto da
iluminação. Então, dizemos que a meditação é não discriminar, não separar e escolher.
“Ó Shariputra, a forma não difere da vacuidade, a vacuidade não difere da forma, o que é
forma é vacuidade, o que é vacuidade é forma”. Qualquer forma que surge é vazia de seu “ser
próprio”, mesmo achando que o tenha. Você pode ter um copo d'água e, quando o copo está cheio,
você diz, “O copo está cheio”. Depois de beber a água, “O copo está vazio”. Realmente, o copo
é vazio, mesmo estando cheio ou não. O copo dá forma à água. A água não tem uma forma
especial. Quando ela cai do céu, a chamamos de gota, o quando atinge a terra, ela cai em
regatos, charcos e poças; e os rios e ribeiros correm até o oceano. Quando a bebemos, ela toma
a forma de nossos corpos. Ela toma forma dentro de garrafas, e de miríades de recipientes. Ela
está em tudo, mas não tem uma forma especial; em qualquer forma que encontre, ela toma essa
forma. Este é o segredo da meditação. Mesmo que tivéssemos a forma mais confinada para a
meditação, nossas sensações vêm, nossa consciência vem, os pensamentos vêm, as percepções vêm.
Tudo o que vem toma essa forma. Nosso corpo toma essa forma, nossa consciência toma essa
forma. Nossa meditação é completamente vazia, completamente aberta, assim como a água.

“O mesmo é verdadeiro para as sensações, percepções, formações e consciência”. Você aplica


a mesma fórmula: as sensações não diferem da vacuidade, a vacuidade não difere das sensações;
o que é sensação é vacuidade, o que é vacuidade é sensação. O mesmo é verdadeiro para as
formações mentais e para a consciência. No sutra, ele primeiro usa a forma como um exemplo,
mas os outros obedecem à mesma fórmula. A consciência não difere da vacuidade, a vacuidade não
difere da consciência. Cada um dos skandhas é experimentado do mesmo modo, e cada um deles é
vazio em seu “ser a própri”. Então, o sutra vai falar sobre os dharmas: “Todos os dharmas
estão marcados com a vacuidade”. Não apenas todos os skandhas estão marcados com a vacuidade,
mas todos os dharmas estão marcados com a vacuidade. Os dharmas, significam “coisas” ou
“objetos”. Tecnicamente, os dharmas significam formações mentais como a ganância, o ódio, a
delusão ou a felicidade; todos os pensamentos, sentimentos e emoções que são associados à
mente e às sensações. Mas, em um sentido mais amplo, os dharmas significam “todas as coisas”.
Isto é com um d minúsculo. Dharma com D maiúsculo significa “ensinamento budista”, “a
verdade”, “a lei”. Marcas significam “características”. Por exemplo, a marca do fogo é o
calor. A marca da água é a humidade, e a marca dos dharmas é a vacuidade. A verdadeira marca
de todas as coisas é a vacuidade.
“Todos os dharmas estão marcados com a vacuidade, não aparecem nem desaparecem, não são
impuros nem puros, não aumentam nem diminuem”. Apesar de tudo ter uma aparência, não há
qualquer coisa que apareça ou desapareça. Esse é o ponto. O que aparece e desaparece é vazio.
Com todos os dharmas, apesar de darem a impressão de aparecer e desaparecer, não há uma
“coisa” real que aparece e nenhuma “coisa” real que desaparece. Se algo pudesse aparecer e
desaparecer, não poderia ser real nesse sentido. Então, todas as coisas que aparecem são
reais, mas sua realidade é a sua vacuidade. Se entendermos que todos os dharmas e todos os
skandhas são vazios de um ser próprio, então poderemos chamá-los de reais, no sentido de não-
substancialidade. Tudo existe apenas por causa de seu oposto. Tudo é dependente de algo mais.
Apesar das coisas darem a impressão de aparecer e desaparecer, nada aparece ou desaparece
porque, definitivamente, as coisas não vêm ou vão.

Falamos sobre as ondas na água, “Ó, aquela onda fez um grande tubo e quebrou na praia”.
Mas, realmente, as ondas apenas vão para cima e para baixo. Acho que isto é um fato
científico. A energia move. Quando vemos as coisas sobre a superfície, dizemos, “Ó, isto está
se movendo e aquilo está se movendo”, mas é a energia que está os movendo, e até mesmo a
energia é vazia de seu “próprio ser”.

Impuro e puro — as pessoas estão sempre procurando pela forma da pureza. Olhamos para o
lixo e, então, quando olhamos para a comida, dizemos, “isto é puro”. Ela não tem um certo tipo
de pureza. Quando olhamos para o lixo, dizemos, “isso é impuro” e, comparado com o que é puro,
ele é impuro, mas apenas por comparação. Definitivamente, tudo é lixo. Desculpe-me por falar
assim, mas como você sabe, tudo é lixo e tudo é puro. Não há qualquer coisa que não seja
realmente pura, e não há qualquer coisa que realmente não seja lixo, porque tudo está se
decompondo e tudo está vindo à vida e se decompondo. Está se compondo e se decompondo ao mesmo
tempo.
80

Estamos sempre medindo em termos de “mais” ou “menos”. Mas “mais” ou “menos” não são
apenas termos comparativos. Dizemos que um rato é pequeno e que um elefante é grande, mas uma
formiga é ainda menor do que um rato. Então dizemos que um rato é pequeno e que um elefante é
grande, mas não é necessariamente assim. É apenas um modo comparativo de falar sobre as coisas
por causa da nossa posição. Então, estamos sempre olhando para as coisas em torno do nosso
ponto de vista, da nossa posição. O único modo em que podemos realmente conhecer é deixar
nossa posição. É muito difícil deixar nossa posição. Assim que começamos a pensar, então a
mente começa a discriminar, e discriminar é separar e “dualizar”. Estamos continuamente
confrontados com o discriminar e dualizar nosso mundo. A dualidade é importante, mas temos que
ser capazes de ver o outro lado.
O sutra está falando do outro lado, por isso ele parece tão estranho.
Sojun Roshi

AS PORTAS DA LIBERAÇÃO

As três portas da liberação – vacuidade, não-sinal e não-desejo - são comuns a todas as


escolas de budismo. A primeira é vacuidade, shunyata.
Vazio sempre significa vazio de alguma coisa, portanto, devemos perguntar: “Vazio de quê?”
Se eu bebo toda a água de um copo, o copo fica vazio de água, mas não fica vazio de ar. Vazio
não quer dizer inexistência. Se Avalokiteshvara nos diz que os cinco skandhas são vazios,
temos de perguntar: “Vazios de quê?” Se o fizermos ele irá nos dizer: “Vazios de uma
existência independente”. Significa que “A” é inteiramente feito de elementos “não-A”.
Esta folha de papel é vazia de uma existência independente, porque ela não pode existir
por ela mesma; ela tem de inter-ser com todas as outras coisas. A folha de papel é feita de
elementos não-papel tais como árvores, luz do sol, chuva, solo, minerais, tempo, espaço e
consciência. Ela é vazia de um eu separado, mas está cheia de todas as outras coisas. De
modo que vazio significa ao mesmo tempo cheio. Os ensinamentos de inter-existência e
interdependência podem se relacionar. Vacuidade é uma porta de liberação, uma prática, não
apenas um assunto para ser discutido. Olhe em profundidade todas as coisas e será capaz de
enxergar a verdadeira natureza da vacuidade. Fazendo-o você removerá a discriminação e
transcenderá o medo do nascimento e da morte.
A segunda porta da liberação é não-sinal, alakshana. Podemos reconhecer Buda por meio de
sinais? Se formos pegos por sinais, perdemos Buda. O Sutra do Diamante nos diz: “Um lugar
onde alguma coisa pode ser distinguida por sinais, nesse lugar há decepção”. O engano surge
dos sinais, por isso nossa prática é transcendê-los. Se ficarmos presos numa noção ou num
sinal, esta porta da liberação, se fechará. Precisamos abrir a porta usando a chave do não-
sinal. Não tente agarrar a realidade por meio de sinais. Não confie muito em suas
percepções.
No Sutra do Diamante, Buda pergunta a Subhuti: “O que você acha, Subhuti? É possível
agarrar o Tathagata por meio de sinais corpóreos?” Subhuti responde: “Não, honrado Senhor.
Quando o Tathagata fala em sinais corpóreos, não há sinais sobre os quais se esteja falando”.

Subhuti está usando a linguagem do Prajnaparamita. Por isso ele diz: “Quando o Tathagata
fala de sinais, não há sinais sobre os quais se esteja falando”. Se você pode ver a natureza
não-sinal dos sinais, você pode ver o Tathagata. Como podemos encontrar o Tathagata?. Buda
nos diz que não podemos apreendê-lo pelas nossas noções. A palavra “sinal” é usada aqui.
Podemos também usar as palavras “marca”, ou “aparência externa", “fenômeno” ou “designação”
(lakshana ou nimitia). Um sinal ou uma marca nunca é a própria realidade.
Usualmente, por causa da nossa ignorância e energias-de-hábito, percebemos as coisas
incorretamente. Somos detidos em nossas categorias mentais, especialmente em nossas noções de
eu, pessoa, ser vivente e extensão de vida. Fazemos discriminaçao entre o eu e o não-eu, como
se o eu não tivesse nada a ver com o não-eu. Cuidamos do bem-estar do eu, mas não pensamos
muito sobre o bem-estar de tudo que seja não-eu. Quando vemos as coisas desse jeito, nosso
comportamento está baseado em percepções equivocadas. Nossa mente é como uma espada cortando
a realidade em pedaços. E então agimos como se cada pedaço da realidade fosse independente
dos outros pedaços. Se observarmos profundamente, removeremos essas barreiras entre nossas
categorias mentais e veremos o um no muito e o muito no um, que é a verdadeira natureza da
interexistência. Esta é a forma de ficarmos livres de nossos conceitos. É por isso que no
Sutra do Diamante Buda usa a linguagem da liberdade quando responde a seu discípulo Subhuti.
Encontramos muitas sentenças como esta no Sutra do Diamante-. “O bodhisattva não é um
bodhisattva, por isso é um verdadeiro bodhisattva”. Esse modo de falar é chamado de dialética
do Prajnaparamita. Ele nos é ofertado por Buda para nos libertarmos de nossas noções.
Vamos tentar compreender a dialética da Prajnaparamita: Uma taça não é uma taça, portanto,
é verdadeiramente uma taça. Um eu não é um eu, por isso ele pode ser verdadeiramente um eu.
Quando olhamos para dentro de “A”, a coisa que estamos observando - uma taça, um eu, uma
montanha, um governo - vemos nela os elementos “não-A”. Na verdade, “A” é feito apenas de
elementos “não-A”, portanto, podemos dizer que “A” é “não-A” ou que “A” não é “A”. Pai é
feito de elementos não-pai, inclusive os filhos. Se não há filhos, como pode haver um pai?
Observando profundamente um pai, vemos os filhos; por conseguinte pai não é pai. O mesmo
acontece com relação aos fil(os, esposa, marido, cidadão, presidente, todos os demais e todas
as coisas.
81

Na lógica, o princípio de identidade é que “A” é “A” e que “A” nunca pode ser “B”. Para
nos libertarmos dos nossos conceitos, temos de transcender esse princípio. O primeiro
princípio da dialética do Prajnaparamita é que “A” é “não-A”. Vendo isso, sabemos que o bem-
estar de “A” depende do bem-estar dos elementos “não-A”. O bem-estar do homem depende do bem-
estar dos elementos não-homem na natureza. Quando você tem a percepção correta do homem e sabe
que ele é feito de elementos não-homem, você pode, com segurança, chamá-lo por seus
verdadeiros nomes - árvores, ar, mulher, peixe ou homem. Buda deveria ser visto da mesma
forma. Buda é feito de elementos não-Buda. A iluminação é feita de elementos não-Iluminação.
O darma é feito de elementos não-darma. Os bodhisattvas são feitos de elementos não-
bodhisativas. Declarações desse tipo constam no Sutra do Diamante Prajnaparamita, e elas são
um caminho para a prática da segunda porta da liberação, a porta do não-sinal.

Se aprendermos sobre as três portas da liberação, mas não as praticamos, elas não têm
nenhuma utilidade. Para abrir a porta do não-sinal e entrar no reino da realidade tal qual ela
é, temos de praticar a mente alerta em nossa vida diária. Observando atentamente todas as
coisas, enxergamos a natureza da inter-existência. Vemos que o presidente de nosso país é
composto de elementos não-presidente, inclusive economistas, políticos, ódio, violência, amor
etc. Observando atentamente uma pessoa que seja presidente, vemos a realidade de nosso país e
do mundo. Nela podemos encontrar tudo o que concerne à nossa civilização. Uma coisa contém
todas as outras coisas. Merecemos nosso governo e nosso presidente porque ambos refletem a
realidade de nosso país - a forma como pensamos e sentimos, e a maneira como levamos nossa
vida diária. Quando sabemos que “A” não é “A”, quando sabemos que nosso presidente não é
nosso presidente, que ele é “nós mesmos”, não mais o censuramos ou culpamos. Sabendo que ele é
feito apenas de elementos não-presidente, saberemos onde devemos aplicar nossa energia para
melhorar nosso governo e nosso presidente. Temos de cuidar dos elementos não-presidente e dos
elementos não-governo dentro e em torno de nós. Não é uma questão de debate. É uma questão de
prática.
“Um lugar onde alguma coisa pode ser distinguida por sinais, nesse lugar há decepção”.
Subitamente, esta sentença do Sutra do Diamante se torna clara. Enquanto não olharmos a
realidade profundamente e descobrirmos qual é sua verdadeira natureza, seremos enganados por
sinais ou noções. Quando enxergamos a natureza não-sinal dos sinais, vemos Buda. Depois de
ver a verdadeira natureza de “A” - que é “não-A”- nós tocamos a realidade de “A”.

Nos círculos zen costuma-se dizer: “Antes de eu começar a praticar, as montanhas eram
montanhas e os rios eram rios. Depois que comecei a praticar, as montanhas não eram mais
montanhas, e os rios não eram mais rios. Agora, como pratiquei por um bom tempo, as montanhas
voltaram a ser montanhas e os rios voltaram a ser rios”. Isto não é difícil de entender.
Noções, mesmo as de Buda e de darma, são perigosas. Um mestre zen era alérgico à palavra
“Buda” porque sabia que muita gente entendia mal Buda. Um dia, durante uma palestra sobre o
darma, ele disse: “Detesto a palavra 'Buda'. Toda vez que tenho de dizê-la, vou até o rio e
enxáguo três vezes minha boca”. Todos na assembléia ficaram em silêncio, até que um homem
levantou-se e disse: “Mestre, eu sinto o mesmo. Toda vez que o ouço dizer a palavra 'Buda',
tenho de ir até o rio e lavar três vezes meus ouvidos”. Isso quer dizer que devemos
transcender as palavras, conceitos e noções, e entrar pela porta do não-sinal. “Mate o Buda” é
um meio drástico de dizer que devemos matar o conceito de Buda para dar uma oportunidade ao
verdadeiro Buda.
Esses ensinamentos do Sutra do Diamante estão proximamente relacionados com aqueles do
Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente. Temos de estar atentos para não
ficarmos estagnados, mesmo nos ensinamentos de Buda. Segundo o Sutra do Diamante: “É por essa
razão que não nos devemos deixar aprisionar por darmas ou pela idéia de que isto não seja o
darma”. Se você pensa que a idéia de darma é perigosa, pode ficar gostando da noção de não-
darma. Mas a noção de não-darma é ainda mais perigosa. O que Buda quer dizer quando fala:
“Bhikkhus, todos os ensinamentos que lhes dou são um barco. Todos os ensinamentos devem ser
abandonados, e os não-ensinamentos, nem se fala”. Você tem de matar não somente os
ensinamentos mas também os não-ensinamentos, a fim de obter o verdadeiro ensinamento. Mesmo o
darma tem de ser largado, assim como o não-darma.
Praticar com o espírito da não-prática, sem apegar-se às formas é a melhor maneira de
praticar. Suponhamos que você pratica muito bem a meditação sentada. As pessoas olham e vêem
que você é um praticante aplicado. Você se senta perfeitamente e começa a sentir-se um pouco
orgulhoso. Enquanto os outros dormem até tarde e não comparecem em tempo à sala de meditação,
você está lá sentado lindamente. Com esse tipo de sentimento a felicidade que resulta da sua
prática será limitada. Mas se você percebe que está praticando para todos, mesmo que a
comunidade inteira esteja dormindo e você seja o único a meditar, sua meditação beneficiará a
todos e sua felicidade será ilimitada. Devemos praticar desta maneira - sem forma, no
espírito da não-prática.
Buda ensinou seis paramitas ou perfeições. A primeira é a prática da generosidade, dana.
Danaparamita deve sempre ser praticada sem forma. “Se um bodbisattva pratica generosidade sem
confiar em sinais, a felicidade resultante e inimaginável e incomensurável”. Quando,
voluntariamente, você limpa a cozinha e esfrega as tigelas, se está praticando como um
bodhisattva, experimentará grande alegria e felicidade ao fazê-lo. Mas se seu sentimento é:
82

“Estou fazendo tanto, enquanto os outros não estão contribuindo com sua parte”, você sofrerá,
porque sua prática está sendo baseada na forma e na discriminação entre o eu e o não-eu.
Quando está martelando um prego numa peça de madeira se, acidentalmente, você bater no
dedo, sua mão direita porá o martelo de lado e cuidará de sua mão esquerda. Não há
discriminação: “Eu sou a mão direita dando a você, mão esquerda, uma ajuda”. Ajudar a mão
esquerda é ajudar a mão direita. Essa é a prática de não se apoiar na forma, e a felicidade
resultante é sem limite. É a maneira de um bodhisattva praticar generosidade e serviço. Se
lavarmos os pratos com raiva e discriminação, nossa felicidade será menor que uma colher de
chá.
A segunda paramita que um bodhisattva pratica são os preceitos, silaparamita. Devemos
praticar os preceitos com esse mesmo espírito, sem confiar em formas. Não devemos dizer: “Eu
pratico os preceitos, você não. Eu trabalho muito para praticar os preceitos”. Há aqueles que
se alimentam com dieta vegetariana sem se apoiarem na forma. Nem sequer têm idéia de que são
vegetarianos e que os outros não o são. Apenas sabem que é natural e agradável serem
vegetarianos. Os preceitos se tornam proteção e deixam de ser vistos como limitadores da
liberdade.
O mesmo vale para a prática de outras paramitas - paciência (ksantiparamita), energia
(viriaparamita), e meditação (dhyanaparamita). O bodhisattva pratica sem confiar na forma. Por
isso sua prática é a prática da não-prática. Você pratica e, contudo, não parece que está
praticando.
A sexta paramita é a prática da Compreensão, Prajnaparamita. É a paramita básica, descrita
às vezes como receptáculo de todas as paramitas. Você precisa de um bom receptáculo para
carregar água, senão a água vai vazar. Se você não pratica a perfeição do entendimento, é como
um pote de barro não cozido. A água vazará e será perdida. Prajnaparamita é também descrita
como a mãe de todos os budas e bodhisattvas. Aqueles que praticam vipassyana, “observar em
profundidade”, são seus filhos. Essas são imagens importantes dos Sutras Prajnaparamita.

A terceira porta da liberação é não-desejo ou não-meta, apranihita. Significa que não há


nada para correr atrás, nada para obter ou realizar, nada a ser apanhado. Isto é encontrado
em muitos Sutras, não apenas nos do Mahayana, mas em Sutras primitivos como Conhecendo a
Melhor Maneira de Pegar uma Serpente.
Todos temos a tendência de lutar com nosso corpo e nossa mente. Acreditamos que a
felicidade é possível somente no futuro. Apercebermo-nos de que já chegamos, que não temos de
ir para mais longe, que já estamos aqui, pode nos dar paz e alegria. já há suficiência de
condições para nossa felicidade. Para tocá-las precisamos apenas nos permitir estar no
momento presente. O que estamos procurando para sermos felizes? Tudo já está aqui. Não
precisamos colocar um objeto à nossa frente para corrermos atrás, crendo que, até que o
alcancemos, não seremos felizes. O objeto está sempre no futuro, e este jamais poderemos
agarrar. Nós já estamos na Terra Pura, no Reino de Deus. Já somos Budas. Precisamos apenas
despertar e nos dar conta de que já estamos aqui.
Um dos ensinamentos básicos de Buda é que é possível viver feliz no momento presente.
Drishta dharma sukha é a expressão em sânscrito. O darma lida com o momento presente. O
darma não é uma questão de tempo. Se você pratica o darma, se vive de acordo com o darma, a
felicidade e a paz estão com você agora. A cura se dá, tão cedo seja abraçado o darma.
No ensinamento do budismo Mahayana há duas dimensões de realidade - a histórica e a
suprema. Na dimensão histórica parece que existe algo a ser realizado. Na dimensão suprema,
você já é o que deseja ser. Entenderemos melhor o ensinamento não-meta quando chegarmos ao
ensinamento do Sutra do Lótus.
CULTIVANDO A MENTE DO AMOR – Thic Nhat Hanh

MADHYAMIKA

A escola filosófica do Caminho do Meio (sânsc. Madhyamika) surgiu a partir dos trabalhos
do monge indiano Nagarjuna (séc. II-III) e de seu discípulo cingalês, Aryadeva (séc. III).
Outros filósofos importantes desta escola foram os monges indianos Buddhapalita (470?-540?),
Bhavaviveka (500-750), Chandrakirti (600?-650?), Shantirakshita (680-740) e Kamalashila (700?-
750?).

Nagarjuna não pretendia criar uma filosofia e sim elucidar os ensinamentos dos Discursos
sobre a Perfeição da Sabedoria (sânsc. Prajna-paramita Sutra). O principal trabalho de
Nagarjuna é o Mula-madhyamaka-karika (Versos fundamentais sobre o Caminho do Meio), um
conjunto de 400 versos divididos em 27 capítulos. Outros trabalhos também são atribuídos a
Nagarjuna: Mahayana-vimshaka, Dvada-shadvara Shastra, Maha-prajna-paramita Shastra. O Chatuh-
shastakastava (Quatrocentos Versos), de Aryadeva, complementa os trabalhos citados
anteriormente.

O ponto principal desta filosofia é a vacuidade dos fenômenos (sânsc. dharma-shunyata).


Segundo Nagarjuna, o vazio (sânsc. shunya) é a ausência de uma essência, de uma existência
inerente (sânsc. svabhava). A ausência de uma essência não significa que os fenômenos não
existam, e sim que eles são destituídos de “existência própria”, de uma “natureza própria”, e
que eles “existem” apenas em dependência de causas, partes e condições (originação dependente
83

ou pratitya samutpada). O nirvana (incondicionado) e o samsara (condicionado) seriam


igualmente vazios.

O surgimento interdependente dos fenômenos é a vacuidade e vice-versa. É como olhar os


dois lados de uma mesma moeda. O vazio de existência por si mesmo [existência inerente]
significa que o mundo que alucinamos, cheios de objetos e pessoas independentes e permanentes,
não existe. Isso não quer dizer, porém, que nada existe e que podemos ficar histéricos ou
explodir de energia nervosa. Essa é, normalmente, a reação exagerada que temos quando nossa
mente toca pela primeira vez o espaço absoluto, mas ainda não compreende ou não aceita essa
realidade. O que existe são coisas, pessoas e objetos surgidos interdependentemente,
transformando-se e funcionando momento após momento segundo a lei do karma. A lei do karma não
é uma coisa mística, mas uma análise precisa da transmutação da energia e dos fenômenos, que
parece ter alguma semelhança com as leis de conservação da energia da física moderna.
(T.Y.S. Lama Gangchen, Ngelso)

Há duas linhas de raciocínio padrão pelos quais se cultiva um entendimento sobre a


vacuidade. A primeira diz que nada tem auto-existência independente [existência inerente]
porque tudo é feito de partes. Já que todas as coisas são dependentes de suas partes, elas não
podem ter auto-existência independente. A segunda diz que um grupo de muitas coisas
individuais não pode ser dito como tendo uma auto-existência independente porque, pela
primeira linha de raciocínio, todas as partes componentes não têm auto-existência
independente. Se as partes de um todo são dependentes de suas partes, então o todo não pode
ser auto-existente independentemente.

Porém, a filosofia do Caminho do Meio não nega a existência das coisas no nível relativo.
O mal-entendimento dos ensinamentos do Caminho do Meio levariam a afirmar uma de duas posições
errôneas. A primeira é o niilismo, no qual nada teria sido deixado no nível relativo da
verdade, pelo qual se reconhece as coisas, o que negaria todos os conceitos ou entendimento
das coisas no nível relativo como sendo não-verdadeiros. Isto poderia conduzir à conclusão de
que própria vacuidade é incorreta, mal entendida ao afirmar a ausência de auto-existência
independente, inerente, das coisas no nível relativo. (...)

A segunda posição errônea seria o eternalismo, aceitar a vacuidade no nível absoluto da


verdade, mas ver todas as coisas no nível relativo como meros conceitos mentais que são
erroneamente tomados pela mente como sendo reais. Isto poderia levar a abandonar os
ensinamentos e práticas do Dharma, tais como a meditação e a tomada do refúgio que traz bons
efeitos kármicos.
Ambas as posições são compreensões errôneas da vacuidade e levariam os indivíduos a
acreditar que eles atingiram tudo, quando de fato não atingiram coisa alguma.

Um entendimento correto do ensinamento da vacuidade é a habilidade de manter na mente


ambas as verdades, a relativa e a absoluta, ao mesmo tempo, sem ver qualquer contradição entre
elas. Ashvaghosha disse, “Você nunca deve ignorar o nível relativo da verdade por causa da
vacuidade. Ao invés disso, deve compreender que o nível relativo da verdade e a vacuidade no
nível absoluto trabalham um com outro em harmonia”. Por este motivo, a filosofia Madhyamika é
dita como sendo um caminho intermediário ente o eternalismo e o niilismo.
(Brian T. Haffer, Is Deity Yoga Buddhist?)

Nagarjuna atacou a idéia de existência inerente, não a de existência convencional. O mundo


convencional é real, não ilusório, mas é radicalmente impermanente (isto é, sem svabhava), e
só pode ser descrito como convencionalmente verdadeiro. O conhecimento destas duas verdades,
isto é, a paramartha-satya, ou verdade absoluta da ausência universal de svabhava, e a
samvriti-satya, ou verdade relativa do mundo convencional, constitui o Caminho do Meio entre o
eternalismo e o niilismo.
(Andrew Skilton, A Concise History of Buddhism)

Para explicar estas duas verdades, pode-se usar como exemplo o corpo humano: o que é o
“corpo”? É possível apontar a cabeça, o tronco, os membros etc., mas não o “corpo” em si; é
possível analisar cada uma destas partes, até chegarmos às partículas da matéria, mas sem
encontrar qualquer coisa que, sozinha, possa ser chamado de “corpo”. Afirmar que o corpo
“existe” por si mesmo seria contraditório, mas afirmar que ele “não-existe” também seria
contraditório. Dizer que o corpo “existe e não-existe” ou que “não existe nem não-existe”
seria apenas uma argumentação absurda.

Assim, poder-se-ia concluir que o “corpo” é apenas um nome (sânsc. nama), um conceito para
designar uma determinada forma (sânsc. rupa) que, por sua vez, surge apenas em dependência de
diversas partes, causas e condições — a cabeça, o tronco, os membros, o nascimento etc. Esses
elementos, separadamente, não são o “corpo”. Aqui, a verdade no nível relativo é que,
convencionalmente, “existe” um corpo que surge em dependência das diversas causas, partes e
84

condições. A verdade no nível absoluto é a impossibilidade de fazer qualquer afirmação


definitiva a respeito do “corpo”, pois ele não existe por si mesmo, é destituído de existência
inerente, nada mais que vacuidade (sânsc. shunyata). Esta lógica também pode ser usada para
exlicar o anatman, ou não-eu: o conceito de “eu” é vazio pois surge em dependência do nossos
cinco agregados (forma, sensação, percepção, formações mentais, e consciência).

Cada um de nós possui um corpo físico, com o qual temos as experiências de céu e terra,
amigos e inimigos, alegria e tristeza. Quando esse corpo se deita à noite para dormir, mesmo
que não saia da cama, uma experiência totalmente diferente de corpo, céu, terra, amigos e
inimigos aparece — o corpo do sonho, a fala do sonho e a mente do sonho. Quando acordamos, no
dia seguinte, novamente temos as experiências do estado de vigília do corpo, fala e mente, que
consideramos reais. Por ocasião da morte, quando temos uma outra experiência de corpo, fala e
mente, no estado intermediário entre o final desta vida e o começo da próxima, uma experiência
até certo ponto semelhante à do sonho, porém mais difícil e amedrontadora. Então, mais uma
vez, renascemos com ainda outro corpo, fala e mente. Se formos capazes de ter realização plena
do caminho espiritual, quando da iluminação alcançaremos o corpo vajra ou o corpo de
sabedoria, a fala de sabedoria e a mente de sabedoria.

Assim, há uma continuidade no princípio de corpo, fala e mente. No entanto, se pensarmos


que ele é uma determinada “coisa”, se tentarmos encontrá-lo, determinar seu tamanho ou
formato, por mais inteligentes que formos, por mais poderosa a tecnologia que empregarmos, não
encontraremos nada que possamos apontar como sendo a natureza do corpo, fala e mente. No
entanto, não podemos negar a nossa própria experiência. Essa natureza está além dos conceitos,
além da medida da mente ordinária: é aquilo que chamamos vacuidade. Ela não pode ser
destruída, mudada nem interrompida — ela exibe as sete qualidades vajra.
(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista
)

Pense numa árvore. Ao pensar nela, você tende a pensar num objeto distintamente definido;
e num certo nível (...) é isso mesmo. Mas quando você olha mais de perto para a árvore,
percebe que em última análise ela não tem existência independente. Ao contemplá-la, verá que
ela se dissolve numa rede extremamente sutil de relações que se estende por todo o universo. A
chuva que cai em suas folhas, o vento que a balança, a terra que a alimenta e sustenta, todas
as estações e o tempo, o luar, a luz das estrelas e o sol — tudo isso é parte dessa árvore. À
medida que você começa a pensar mais e mais sobre a árvore, descobre que tudo no universo
ajuda a fazer parte dela o que é; que ela não pode em momento algum ser separada de qualquer
outra coisa; e que é o significado que queremos dar quando dizemos que as coisas são vazias,
que não têm existência independente.
(Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer)

Saiba que todas as coisas são assim: uma miragem, um castelo de nuvens, um sonho, uma
aparição, sem essência, mas com qualidades que podem ser vistas.
Saiba que todas as coisas são assim: como a lua num céu brilhante, refletida em algum lago
claro, ainda que para aquele lago a lua jamais se moveu. Saiba que todas as coisas são assim:
como um eco que provém da música, sons e lamentos, embora nesse eco não haja melodia. Saiba
que todas as coisas são assim: como um mágico que fabrica ilusões de cavalos, bois, carroças e
outras coisas, nada é como parece.
(Samadhi-raja Sutra)

“Surgir”, “perdurar” e “desintegrar”; “existir” e “não-existir”; “inferior”, “médio” e


“superior” não tem existência verdadeira. Estes termos são usados pelo Buda de acordo com as
convenções mundanas. Todo fenômeno deveria ter “existência própria” ou “não-existência
própria”. Não há fenômeno que seja um destes dois, nem existem expressões que não venham sob
estas duas categorias. Todo fenômeno (...) é similar ao nirvana, pois todo fenômeno é
destituído de existência inerente. Qual é o motivo disto? É porque a existência dos fenômenos
não é achada nas causas, condições, agregados ou partes. Assim, todo fenômeno é destituído de
existência inerente e é vazio.
(Nagarjuna, Shunyata-saptati-karika)

Entre os séculos V e VI, o Madhyamika se dividiu em dois segmentos: Prasangika e


Svatantrika. O primeiro, fundado por Buddhapalita, usa a razão para mostrar que todas as
afirmações são incorretas, inaceitáveis, absurdas ou contraditórias, levando a consequências
indesejáveis (sânsc. prasanga). O segundo grupo, fundado por Bhavaviveka, usa argumentos
substanciais pelo uso da inferência lógica válida (svatantra-anumana).

O Madhyamika teve grande importância no estabelecimento do budismo Mahayana na Índia, no


Tibet, na China (escola San-lun) e no Japão (escola Sanron). Madhyamaka e Yogachara
representam as principais filosofias Mahayana. Entre os séculos VII e VIII, o monge indiano
Shantirakshita sintetizou os ensinamentos destas escolas, criando filosofia Yogachara-
Svatantrika. Shantideva (séc. VII-VIII), adepto desta última filosofia, escreveu a Coleção de
85

Regras (sânsc. Shikshamuchchaya) e o Entrando no Caminho do Bodhisattva (sânsc. Bodhisattva-


charya-avatara).
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

Pense numa árvore. Ao pensar nela, você tende a pensar num objeto distintamente definido;
e num certo nível (...) é isso mesmo. Mas quando você olha mais de perto para a árvore,
percebe que em última análise ela não tem existência independente. Ao contemplá-la, verá que
ela se dissolve numa rede extremamente sutil de relações que se estende por todo o universo. A
chuva que cai em suas folhas, o vento que a balança, a terra que a alimenta e sustenta, todas
as estações e o tempo, o luar, a luz das estrelas e o sol — tudo isso é parte dessa árvore. À
medida que você começa a pensar mais e mais sobre a árvore, descobre que tudo no universo
ajuda a fazer dela o que é; que ela não pode em momento algum ser separada de qualquer outra
coisa; e que é o significado que queremos dar quando dizemos que as coisas são vazias, que não
têm existência independente.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

Saiba que todas as coisas são assim: uma miragem, um castelo de nuvens, um sonho, uma
aparição, sem essência mas com qualidades que podem ser vistas.
Saiba que todas as coisas são assim: como a lua num céu brilhante, refletida em algum lago
claro, ainda que para aquele lago a lua jamais se moveu. Saiba que todas as coisas são assim:
como um eco que provém da música, sons e lamentos, embora nesse eco não haja melodia. Saiba
que todas as coisas são assim: como um mágico que fabrica ilusões de cavalos, bois, carroças e
outras coisas, nada é como parece.
SAMADHI – RAJA SUTRA

“Surgir”, “perdurar” e “desintegrar”; “existir” e “não-existir”; “inferior”, “médio” e


“superior” não tem existência verdadeira. Estes termos são usados pelo Buddha de acordo com as
convenções mundanas. Todo fenômeno deveria ter “existência própria” ou “não-existência
própria”. Não há fenômeno que seja um destes dois, nem existem expressões que não venham sob
estas duas categorias. Todo fenômeno (...) é similar ao nirvana, pois todo fenômeno é
destituído de existência inerente. Qual é o motivo disto? É porque a existência dos fenômenos
não é achada nas causas, condições, agregados ou partes. Assim, todo fenômeno é destituído de
existência inerente e é vazio.
SHUNYATA–SAPTATI–KARIKA – Nagarjuna

Entre os séculos V e VI, o Madhyamika se dividiu em dois segmentos: Prasangika e


Svatantrika. O primeiro, fundado por Buddhapalita, usa a razão para mostrar que todas as
afirmações são incorretas, inaceitáveis, absurdas ou contraditórias, levando a conseqüencias
indesejáveis (sânsc. prasanga). O segundo grupo, fundado por Bhavaviveka, usa argumentos
substanciais pelo uso da inferência lógica válida (svatantra-anumana).
O Madhyamika teve grande importância no estabelecimento do budismo Mahayana na Índia, no
Tibet, na China (escola San-lun) e no Japão (escola Sanron). Madhyamaka e Yogachara
representam as principais filosofias Mahayana. Entre os séculos VII e VIII, o monge indiano
Shantirakshita sintetizou os ensinamentos destas escolas, criando filosofia Yogachara-
Svatantrika. Shantideva (séc. VII-VIII), adepto desta última filosofia, escreveu a Coleção de
Regras (sânsc. Shikshamuchchaya) e o Entrando no Caminho do Bodhisattva (sânsc. Bodhisattva-
charya-avatara).

O CERNE DA MADHYAMAKA DE NAGARJUNA

No quadro convencional e mundano de referencia, os objetos da experiência são o resultado


de causas e condições particulares. Dizer que eles simplesmente não estão lá é negar algo
relativamente verdadeiro. Dizer que os fenômenos “não estão lá” é um absurdo, porque nós os
experimentamos. Não podem ser totalmente inexistentes. Mas, de conformidade com o ponto de
vista budista, todos estes fenômenos ocorrem de modo relativo, condicionado, baseados em
condições prevalecentes.
A Escola Theravada (ou Ortodoxa) sustenta que nossa experiência é baseada na produção
condicionada de compostos. Estes compostos, por serem assim, são meras designações desprovidas
de qualquer realidade intrínseca. São resultantes de elementos extremamente pequenos (ou
partículas analisáveis, as mais diminutas possíveis) e unidades de tempo (ou momentos
analisáveis, os mais diminutos possíveis).
De acordo com este enfoque ortodoxo, que reflete uma visão incompleta com relação a
Vacuidade, todos os objetos cognoscíveis são construídos com o auxílio de condições
apropriadas, a partir dessas partículas e momentos reais.
A Escola Vijnanavada (da Tradição Mahayana) sustenta que toda experiência é uma projeção
da mente ocorrendo como resultado de carma anterior. Devido ao amadurecimento de “sementes
cármicas”, projetamos nosso mundo, o qual funciona de conformidade com a maneira pela qual foi
projetado, mas é vazio de realidade intrínseca, relativa a si próprio. A “mente projetante”,
contudo, é considerada real pela Escola Vijnanavada.
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Ambos os enfoques negam que as coisas sejam o que parecem ser. Reconhecendo que o mundo
não é completamente real, eles se aproximam de uma espécie de Vacuidade. Mas, ao atribuírem
existência verdadeira ora as partículas e tempo, ora a mente projetante, postulam uma
alternativa inerentemente real ao modo ilusório de surgimento dos fenômenos; apegando-se,
assim, a falsa noção de alguma espécie de natureza-própria.
Pelo enfoque da Escola da Visão do Caminho do Meio, a Escola Madhyamaka, não há qualquer
apego a qualquer concepção de natureza absoluta, essencial. Em nenhuma experiência dos
agregados há algo verdadeiramente real. Se examinarmos a natureza básica da realidade, não
encontraremos nada que constitua a sua essência, mas isto não implica num mero vazio.
A falta de uma realidade palpável, não obstante, permite a expressão contínua de todos os
tipos de experiências. Ao investigarmos a Natureza Última, descobrimos que não há qualquer
característica fundamental, realidade essencial, palpável, ou qualquer realidade verdadeira,
absoluta, o que significa que todas as coisas são “vazias”.
No entanto, a Vacuidade não é distinguível da aparência dos fenômenos que experimentamos.
Os fenômenos não são separáveis da Natureza Fundamental e, assim, nossa experiência básica do
mundo é, na verdade, tão somente a “Vacuidade Fundamental”, ou a falta de Realidade Última de
todas as coisas.
Desta forma, a “Verdade Convencional” (sobre o modo como as aparências e experiências
funcionam) e a “Verdade Última” (sobre a natureza fundamentalmente vazia e sem realidade
constatável nas coisas) são inseparáveis, não são duas coisas diferentes, mas um todo
integrado.
(Os fenômenos são o vazio, o vazio são os fenômenos; o vazio e os fenômenos se
interpenetram).
Este é o ponto de vista básico da Escola Madhyamaka conforme explicado pelo Sábio
Nagarjuna e é a descrição do verdadeiro ponto de vista de um Iluminado sobre a Realidade.
Há várias maneiras de se alcançar este ponto de vista: atingindo-o por estágios,
entendendo-o todo de uma só vez, reconhecendo-o por meio de metáforas, etc.
Meramente descrevi aqui, em termos gerais, qual é a natureza deste ponto de vista.
PORTA ABERTA PARA A VACUIDADE – Kenchen Thrangu Rinpoche

O DIAMANTE QUE CORTA AS ILUSÕES

O diamante pode cortar qualquer coisa, mas nada pode cortar o diamante. Precisamos
desenvolver um insight que se assemelhe ao diamante para cortar nossas aflições. Se você
estuda o Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente e, a seguir, o Sutra do
Diamante, verá a conexão entre essas duas escrituras.
O Sutra do Diamante registra uma conversa entre Buda e seu discípulo Subhuti. É um dos
primeiros sutras Prajnaparamita. Estão presentes dois mil e duzentos bhikshus e muitos
bodhisattvas - 25.000 ou 50.000. A questão colocada por Subhuti é: “Honrado Senhor, se filhos
e filhas de boas famílias querem dar início ao mais elevado, mais completo despertar da mente,
em que deveriam eles confiar e o que deveriam fazer para dominar seus pensamentos?” Subhuti
estava ciente de que o princípio do caminho de um bodhisattva é a bodhichitta a aspiração de
trazer a nós e a todos os outros seres vivos até a “outra margem” da felicidade e liberdade.
Esta é a resposta de Buda: “Haja tantas espécies de seres viventes quantas houver, sejam
eles nascidos de ovos, de ventres, da humidade, ou espontaneamente; tenham ou não formas;
tenham ou não percepção; ou, que não se possa afirmar deles que têm ou não têm percepção,
devemos levar todos esses seres ao Nirvana para que possam ser liberados”. Devemos fazer
votos de praticar para todos, não somente para nós. Praticamos para árvores, animais, rochas
e água. Praticamos para seres com forma e seres sem forma, para seres com percepção e seres
sem percepção; fazemos votos de trazer todos esses seres à praia da liberação. E, contudo,
quando tivermos trazido todos esses seres até a outra margem da liberação, nos damos conta de
que ser nenhum foi trazido à outra margem da liberação. Este é o espírito do budismo Mahayana.
Existem quarenta versos resumindo os ensinamentos do Sutra do Diamante Prajnaparamita.
Todo budista que pratica discernimento, vipasyana, tem Prajnaparamita, o perfeito
entendimento, como seu pai ou sua mãe. Seres viventes jamais nasceram, e são puros desde a
origem. Esta é a prática da mais elevada perfeição. O bodhisativa, enquanto leva seres
viventes à outra margem, não vê qualquer ser. Isto não é difícil de entender. Apenas relaxe
e deixe a chuva do darma cair. Tenho certeza de que você entenderá.
Segundo o Senhor Buda, existem quatro noções que devemos examinar cuidadosamente self,
pessoa, ser vivente e extensão de vida. “Quando estes inumeráveis, imensuráveis, infinito
número de seres forem liberados, nós, verdadeiramente, não acharemos que um ser sequer tenha
sido liberado. Por que é assim? Subhuti, se um bodhisattva mantém a idéia de que existe um
self, uma pessoa, um ser vivente, ou uma extensão de vida, esse alguém não é um bodhisattva
autêntico.
Sabemos que uma flor é feita somente de elementos não-flor, isto é luz solar, terra, água,
tempo e espaço. Tudo no cosmo vem junto para realizar a presença de uma flor, e a essa
condição sem limites chamamos de elementos não-flor. O lixo ajuda a fazer a flor, e a flor
cria mais lixo. Se meditarmos, poderemos ver agora, aqui mesmo, o lixo na flor. Se você é um
jardineiro orgânico, já sabe disso.
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Isso não são apenas palavras. É nossa experiência, o fruto da nossa prática de observar
profundamente. Podemos ver a natureza da interexistência, olhando qualquer coisa. Um eu não é
possível sem elementos não-eu. Olhando profundamente qualquer coisa, vemos o cosmo todo. O um
é feito de muitos. Cuidando de nós mesmos, cuidamos dos outros ao nosso redor. A felicidade e
estabilidade deles são a nossa felicidade e estabilidade. Se estivermos libertos das noções de
eu e não-eu, não teremos medo das palavras eu e não-eu. Mas se virmos o eu como nosso inimigo
e pensarmos que o não-eu é nosso salvador, estaremos presos. Estaremos tentando empurrar uma
coisa e abraçar outra. Quando nos damos conta de que cuidar do eu é cuidar do não-eu, estamos
libertos, e não temos que empurrar fora nem um nem outro.
Buda disse: “Refugie-se na ilha do eu”. Ele não temia usar a palavra “eu”, porque estava
liberto de conceitos. Mas nós, estudantes de Buda, não nos atrevemos a usar essa palavra.
Muitos anos atrás, quando propus um gatha para acompanhar o som dos sinos – “Ouça, ouça. Este
som maravilhoso me traz de volta ao meu eu” -, vários budistas se negaram a recitá-lo porque
incluía a palavra “eu”. Então eles mudaram para: “Ouça, ouça. Este som maravilhoso traz-me de
volta à minha verdadeira natureza”. Para se considerarem estudantes sérios de Buda, eles
tentaram fugir do “eu” mas, em lugar disso, apenas se tornaram prisioneiros de conceitos.
Se um bodhisattva se apega à idéia de que existe um eu, uma pessoa, um ser vivo, ou uma
extensão de vida, essa pessoa não é um autêntico bodhisattva. Se estivermos conscientes de
que o eu é sempre feito de elementos não-eu, nunca seremos escravizados ou atemorizados pela
noção de eu ou não-eu. Se dissermos que a noção de eu é prejudicial ou perigosa, devemos
dizer que a noção de não-eu pode ser até mais perigosa. Prender-se à noção de eu não é bom,
mas prender-se à noção de não-eu é pior.
O entendimento de que o eu é feito tão somente de elementos não-eu é seguro. Buda não
disse: “Você não existe”. Ele apenas disse: “Você não tem um eu”. Sua natureza é não-eu.
Nós sofremos porque pensamos que ele disse que não existimos. De um extremo caímos em outro
extremo, mas ambos os extremos são apenas conceitos. Nunca experimentamos a realidade. Apenas
temos conceitos sobre ela, e sofremos por isso.
Temos noção de que pessoa é distinto de não-pessoa, como as árvores, um veado, um esquilo,
uma coruja, ar ou água. Mas “pessoa” também é uma noção a ser transcendida. Ela é feita
somente de elementos não-pessoa. Se você crê que Deus fez primeiro o homem e depois criou as
árvores, frutos, água, céu, você está em desacordo com o Sutra do Diamante. O Sutra do
Díamante ensina que um homem é feito de elementos não-homem. Sem árvores o homem não pode
ser.
Esta é a prática de enxergar profundamente, de tocar a realidade, e de viver totalmente
consciente. Você enxerga e toca todas as coisas como uma experiência e não como uma noção. A
noção do homem ser mais importante que as outras espécies é uma noção errada. Buda nos ensinou
a ser cuidadosos com o nosso meio-ambiente. Ele sabia que, cuidando das árvores, estamos
cuidando dos homens. Precisamos viver nosso dia-a-dia com esse tipo de consciência. Isto não
é filosofia. Precisamos desesperadamente de total consciência para que nossos filhos e netos
estejam a salvo. A idéia de que o homem pode fazer qualquer coisa que queira às custas dos
elementos não-homem é uma noção ignorante e perigosa.
Respire com profunda consciência de que você é um ser humano. Então expire e toque a
Terra, um elemento não-homem, como se ela fosse a sua mãe. Visualize as correntes de água sob
a superfície da Terra. Veja os minerais. Veja nossa Mãe-Terra, a mãe de todos nós. Então
levante seus braços e inspire novamente, tocando as árvores, flores, frutas, pássaros,
esquilos, ar e céu - os elementos não-homem. Quando sua cabeça está tocando o ar, o sol, a
lua, as galáxias, o cosmo - elementos não-homem que vêm juntos para tornar possível o homem -
você vê que todos os elementos estão vindo para você a fim de tornar possível seu ser.
Vamos considerar juntos a noção de “ser vivente”. Seres viventes são seres que têm
sensações. Seres não-viventes são seres que não têm sensações. Atualmente os cientistas
estão achando difícil estabelecer fronteiras. Alguns não têm certeza se os cogumelos são
plantas ou animais. O poeta francês Lamartine perguntou se os objetos inanimados têm alma. Eu
diria que sim. O compositor vietnamita Trinh Cong Son disse: “Amanhã mesmo rocha e pedregulho
necessitarão um do outro”. Como sabemos que as pedras não sofrem? Depois da bomba atômica ter
sido jogada em Hiroshima, as rochas e os parques de lá ficaram mortos, e os japoneses levaram
tudo embora e trouxeram rochas vivas.
Nos templos do budismo Mahayana fazemos votos para que todos os seres, animados ou
inanimados, realizem a iluminação perfeita. Embora usemos as palavras animados e inanimados,
estamos conscientes de que todos são seres, e que a distinção entre seres viventes e seres
não-viventes é falsa. Um verdadeiro bodhisattva vê que seres viventes são feitos de elementos
não-viventes. A noção de “seres viventes” é dissolvida, e o bodhisattva é emancipado. O
bodhisattva devota sua vida a ajudar a levar os seres viventes “para a outra margem”, sem se
ater à noção de “seres viventes”.
Devido à nossa tendência em usar noções e conceitos é que não conseguimos tocar a
realidade como ela é. Construímos uma imagem da realidade que não coincide com o que ela de
fato é. Por isso são importantes esses exercícios para ajudar a nos libertar. Eles não são
filosóficos. Se tentarmos fazer doutrina dos ensinamentos de Buda, estaremos perdendo o ponto
essencial. Estaremos apanhando a serpente pelo rabo. Durante nossa vida diária praticamos
viver totalmente conscientes a fim de tomarmos contato com a realidade, observarmos as coisas
para enxergar a verdadeira natureza do não-eu. Muitas pessoas entendem mal os ensinamentos de
Buda. Elas pensam que ele está negando a existência de seres-viventes. Não é uma negação.
88

Buda está nos oferecendo um instrumento para nos ajudar a alcançar um profundo entendimento e
a emancipação. O instrumento é para ser usado e não para ser idolatrado. O barco não é a
praia.
As três primeiras noções - eu, pessoa e ser vivente são apresentadas em termos de espaço.
A quarta noção extensão de vida - é apresentada em termos de tempo. Antes de nascer, você já
existia? Existia um eu?. Quando você começou a ter um eu?. No momento da concepção?. A espada
do discernimento corta a realidade em dois pedaços - o período da sua não existência e o
período em que você começou a existir. Como continuará você? Quando morrer, transformar-se-á
em nada outra vez?. Esta é uma questão assustadora que todos os seres humanos ponderam. O que
acontecerá depois que eu morrer?. Quando ouvimos: “Não existe eu”, nos tornamos ainda mais
temerosos. É confortável dizer: “Eu existo”, e então perguntamos: “O que acontece depois que
eu morrer?”. Tentamos nos agarrar a noção de eu que nos faz sentir mais confortáveis. “Este é
o mundo. Este sou eu. Eu continuarei”.
Buda fez uma simples declaração a respeito da existência das coisas: “Isto é, porque
aquilo é. Isto não é, porque aquilo não é”. Tudo conta com tudo o mais a fim de existir.
Precisamos entender o que Buda quis dizer por “ser”. Nosso conceito de ser pode ser diferente
do dele. Não podemos dizer que Buda confirmou “ser” e negou “não-ser”. Isto é como pegar uma
serpente pelo rabo. Quando ele disse: “Isto é, porque aquilo é”, Buda não estava tentando
estabelecer uma teoria de ser que negasse o não-ser. Isto é oposto ao que ele quis dizer.
Na filosofia ocidental, o termo “ser-em-si-mesmo” está bem próximo do termo budista “tal-
qual-é”, a realidade como ela é, livre de concepções ou apegos. Você não pode agarrá-la,
porque querer agarrar a realidade com conceitos e noções é como querer agarrar o espaço com
uma rede. A técnica, portanto, é parar de usar conceitos e noções e entrar na realidade em um
instante não-conceitual. Buda nos muniu de um instrumento para remover noções e conceitos e
tocar diretamente a realidade. Se você continua a se agarrar a noções e conceitos budistas,
está perdendo a oportunidade. Você estará carregando o barco sobre os ombros. Não seja
prisioneiro de nenhuma doutrina ou ideologia, mesmo as budistas.
O modo de ser expresso por Buda está no âmago da realidade. Não na noção que usualmente
construímos para nós. Nossa noção de ser é dualista, o oposto da noção de não-ser. A
realidade de ser que Buda tenta nos transmitir não é o oposto do não-ser. Ele está usando a
linguagem de um modo diferente. Quando diz “eu” não significa que seja o oposto de alguma
coisa. Buda é muito consciente de que o eu é feito de elementos não-eu. Esse é nosso
verdadeiro eu.
É possível abandonar nossas noções de ser e não-ser a fim de que possamos tocar a
realidade? Claro! De outra forma, qual a utilidade de praticar? No budismo Mahayana, usamos
“anti-noções” para ajudar a nos livrar das noções. Se você é pego pela noção de ser, a noção
de vacuidade está ali para resgatá-lo. Mas se você se esquece de que a verdadeira vacuidade é
plena de tudo, você será pego pelo seu conceito de vacuidade, sendo picado pela serpente. O
Sutra Ratnakuta diz que é melhor ser pego pela noção de ser do que pela noção de vacuidade.
Todas as outras noções podem ser curadas pela noção de vacuidade, mas quando somos pegos pela
noção de vacuidade, a doença é incurável.
A crença de que o eu existe antes de eu ter nascido e que, depois de eu ter morrido,
continuará, é uma crença na permanência. A crença oposta - de que depois de morrer você
penetra na absoluta vacuidade - é uma crença na extinção. Esses tipos de pontos de vista são
debatidos no Sutra Conhecendo a Melhor Maneira de Pegar uma Serpente. Os praticantes budistas
precisam tomar cuidado para não cair em nenhuma das armadilhas - a crença num eu permanente
(pequeno ou grande) ou a crença na extinção (tornar-se nada). Essas duas noções devem ser
transcendidas. Muitos budistas não são capazes disso, e ficam presos numa noção ou na outra,
sendo picados pela serpente uma vez após outra.
Um dia eu estava observando uma vareta de incenso queimando. A fumaça que vinha de sua
ponta criava lindas formas no ar. Ela parecia viva, realmente ali. Percebi uma existência, um
ser, uma vida, e sentei-me calmamente apreciando a mim mesmo e o “eu”da vareta de incenso.
Fiquei apreciando a fumaça flutuar para cima criando formas variadas. Usei minha mão esquerda
para “pegar” a fumaça. Foi especialmente belo o último momento em que o incenso queimou.
Instantes antes dele se consumir havia mais oxigênio de ambos os lados, desse modo, por um
momento, ele ardeu mais intensamente, emitindo uma brilhante cor vermelha. Olhei-o com toda a
minha concentração. Era um parinirvana, uma grande extinção. Para onde tinha ido a chama?
Quando uma pessoa está para morrer, geralmente se torna muito alerta nesse último momento
de vida, e então se apaga exatamente como a vareta de incenso. Para onde foi a alma? Eu tinha
várias outras varetas de incenso e sabia que, se no último momento eu pegasse uma outra e a
acendesse na primeira, a chama teria continuado na nova vareta, e a vida do incenso
continuaria. Era apenas uma questão de combustível, ou de condições.
O ensinamento de Buda é muito claro: quando certas condições estão presentes, nossos
sentidos percebem algo e o qualificam como “ser”. Quando essas condições não são mais
suficientes, nossos sentidos percebem a ausência daquele algo, e o qualificam como “não-ser”.
Essa é uma percepção equivocada. A caixa de incenso tem muitas varetas. Se eu abasteço uma
vareta após outra, no combustível, a vida do incenso é eterna?
Está Buda vivo ou morto? É uma questão de combustível. Talvez você seja o combustível, e
dê continuidade à vida de Buda. Não podemos dizer que Buda esteja vivo ou morto. A realidade
transcende nascimento, morte, produção e destruição. “Qual era sua face antes de seus pais
89

terem nascido?”. Este é um convite para que encontre seu verdadeiro eu, que não está sujeito a
nascimento e morte.
CULTIVANDO A MENTE DO AMOR – Thic Nhat Hanh

A NATUREZA DAS COISAS

Pergunta: Os fenômenos que surgem no bardo são denominados “manifestações ilusórias”,


assim como os do sonho ou inclusive os do estado presente. O que significa esse termo
“manifestações ilusórias”? Implica que, quando é realizada a verdadeira natureza da mente e
dos fenômenos, quando, então, a ilusão é desmascarada, toda manifestação cessa de existir?
Resposta: Não, não exatamente. Quando a manifestação ilusória cessa, a manifestação pura
não cessa. Há transformação da manifestação samsárica ilusória em manifestação pura. O que
vivemos agora, aqui onde nos encontramos, as aparências que percebemos, tudo isso é a ilusão.
Entretanto, na verdade, é essa própria ilusão que é não-ilusão, e esse mundo ordinário que é
campo puro, além do sofrimento. A transformação se passa nesse nível e não significa um
desaparecimento das aparências. Qual é, então, a diferença? A experiência da manifestação
ilusória significa que atribuímos uma realidade independente tanto aos objetos percebidos
quanto à mente que os percebe. A transformação da manifestação ilusória impura em manifestação
pura significa que cessa essa dupla apreensão de um sujeito e de um objeto. A apreensão dual
cessa, mas as aparências permanecem.
A manifestação ilusória divide-se em duas categorias. Distinguimos, de um lado, as
“aparências objetivas”, ou seja, os objetos dos sentidos percebidos exteriormente e, de outro
lado, as “aparências mentais”, isto é, os pensamentos e as imagens mentais. Estar na ilusão é
perceber uma ou outra como dotadas de uma realidade independente e, por conseqüência, entrar
no jogo do apego e da aversão conforme elas sejam sentidas como agradáveis ou desagradáveis.
Disso nasce um grande numero de sofrimentos. Quando, ao contrário, cessa essa ilusão, as
aparências continuam a existir mas já não são mais assimiladas a “objetos” apreendidos por um
“sujeito”. Elas são vistas como o aspecto manifestado da mente, ou ainda, a irradiação natural
da mente. Todavia, nesse caso, o apego e a aversão são esvaziados de toda substância e nenhum
sofrimento pode se produzir. Não existe diferença fundamental na manifestação das aparências,
quer nos situemos na ilusão ou na não-ilusão. A diferença reside na apreensão ou na não-
apreensão de uma realidade intrínseca nos fenômenos. Se há apreensão de uma realidade, é a
ilusão. Se há não-apreensão, é a não-ilusão.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

A NATUREZA FUNDAMENTAL E A PERFEIÇÃO DA SABEDORIA


O Cerne da visão do Sábio Nagarjuna – O Prajna Paramita

A análise de todas as coisas em geral, de acordo com o Prajna Nama Mula Madhyamaka Karika
de Nagarjuna. Nesta Perícia, examinamos as fontes (causas), os resultados (efeitos) e a
Natureza Fundamental, ou qualidade essencial, de forma conjunta, sem os dividirmos. Em
primeiro lugar, podemos constatar que todos os dharmas (ou eventos em ocorrência, fenômenos)
não afloram (surgem) de uma natureza real inerente, mas ao contrário, devido a uma fonte
básica (ou causa) e a condições concomitantes que permitem que tal fonte produza determinado
fruto. Em nenhum lugar em nosso campo de experiência nos deparamos com eventos ocorrendo
arbitrariamente, ou com fenômenos sem causa. Os fenômenos não possuem nenhuma essência, ou
natureza real, que possa ser descoberta, mas aparecem sem qualquer realidade palpável, como
reflexos em um espelho, devido as causas e as condições. Os fenômenos ocorrentes, desprovidos
de natureza real palpável, não são eternos, mas tampouco são meramente nada. Não provem de
nenhum lugar, nem vão para nenhum lugar. Não há nenhum afloramento (surgimento) real neles,
nem falecimento, nem aniquilação, nem nulidade. Não existem independentemente, mas ocorrem
interrelacionadamente devido a presença de causas e de condições apropriadas. Em conseqüência,
todas as ocorrências fenomênicas estão além de qualquer concepção possível. É freqüentemente
dado o exemplo da imagem de Vajradhara em um espelho. Se examinarmos a imagem de Vajradhara no
espelho, poderemos constatar que não é uma coisa real, mesmo assim realmente aparece lá e,
como tal, não é uma mera substancialidade do nada, não é uma mera ausência. Não provém de
lugar nenhum em particular; se virarmos o espelho, não existe nenhum lugar para onde a imagem
tenha ido. Não podemos observar nenhum afloramento real na ocorrência da imagem, ou qualquer
falecimento genuíno no seu desaparecimento. Nenhuma realidade palpável independente pode ser
atribuída a imagem refletida no espelho.

A reflexão, como o todo da nossa experiência, não pode ser adequadamente descrita em
termos conceituais. Os fenômenos são meramente uma interminável seqüência de surgimentos
momentâneos, estruturada segundo um modo particular, não tendo nenhuma existência
independente. Não são descritíveis por meio de nenhuma das quatro proposições de (1) ser, (2)
não-ser, (3) tanto quanto e (4) nem um nem outro, quer quanto as suas fontes, quer quanto aos
seus resultados. Nenhum determinado ponto real de seus afloramentos pode jamais ser descoberto
e noções parciais a respeito deles, tais como serem permanentes, impermanentes, etc., são
completamente inadequadas para descrever a Verdadeira Natureza dos fenômenos. Esta existência
aparente, irreal, na qual nos encontramos é a conjunção de meras aparências ocorrendo devido a
90

causas e condições. E tais aparências condicionadas não são de modo algum diferentes da
Vacuidade Fundamental que já descrevemos. Em decorrência, segundo a perspectiva da Madhyamaka,
a verdade do sofrimento, a verdade da fonte do sofrimento, bem como dos atos de comer, de
dormir e de praticar quaisquer atividades corriqueiras mundanas, são todos igualmente
desprovidos de qualquer realidade intrínseca. Ocorrem através de surgimentos condicionados sem
possuírem qualquer Realidade Fundamental, seja lá qual for. Somente em assim sendo o caso,
pode o mundo tal qual o experimentamos aflorar, já que se existisse alguma Realidade
Fundamental relativa a este mundo, ou, se a Vacuidade fosse algo completamente diferente da
nossa experiência usual, não haveria nenhuma maneira pela qual qualquer experiência pudesse
ter ocorrido inicialmente. A Vacuidade Fundamental não é isolada de nossa experiência
corriqueira, nem é em hipótese alguma divorciada das Quatro Nobres Verdades e do Caminho da
Libertação do Sofrimento. Agora, todas estas formas de surgimento condicionado, conforme
demonstramos por meio das Quatro Perícias da Madhyamaka – O Pequeno Diamante, etc. - não
possuem nenhuma Realidade Fundamental. Não obstante, surgem como se verdadeiramente lá
estivessem, exatamente como o elefante, em nosso sonho, parece realmente lá estar. Mas, se
examinarmos as condições do mundo, se examinarmos de que forma afloram, se examinarmos como
produzem fruição, e procurarmos pela Qualidade Essencial, constataremos que, de qualquer um
destes pontos de vista, as coisas não possuem nenhuma realidade intrínseca - tudo ocorre
devido a determinadas condições. Este ponto de vista é desenvolvido em maiores detalhes por
Nagarjuna no Prajna Nama Mula Madhyamaka Karika. Da mesma forma como uma pessoa trancada em
uma prisão não tem nenhum jeito de escapar exceto se abrir a porta, também nós, que caímos sob
os domínios do sofrimento, não temos como nos livrar exceto através da compreensão, através do
reconhecimento da Natureza Fundamental da Realidade: a Vacuidade. O reconhecimento da Natureza
Fundamental da Realidade é por vezes chamado de “Os Três Fatores Libertadores”, quais sejam:

(1) Que nenhuma fonte real pode jamais ser descoberta;


(2) Que as condições resultantes não tem nenhuma natureza verdadeira intrínseca; e,
(3) O reconhecimento da qualidade essencial vazia de todas as aparências.

Pela apreensão da verdade destes três fatores, podemos alcançar a compreensão e podemos
nos libertar do samsara. Esta visão suprema da Vacuidade une, invisivelmente, a Verdade
Convencional e a Verdade Última. Quer dizer, a Vacuidade apontada pela Escola Madhyamaka não é
uma nulidade em branco, não é uma mera ausência de qualidades, muito embora, em uma análise
final, ela seja indescritível. A Vacuidade é uma potencialidade total a medida em que dá vazão
a todos os surgimentos e a todas as aparências que ocorrem aos seres sensoriais. É tal visão
integrada dos níveis convencional e último que precisa ser obtida a fim de se alcançar a
Realização.

Este campo supremo de Visão Interior, o Dharmadhatu, ou Espaço Básico de todos os Dharmas,
é freqüentemente apontado como sendo a Mãe de Todos os Budas e Bodhisatvas, pois exatamente
como uma mãe dá nascimento as crianças, igualmente a Visão Interior da Natureza Fundamental
produz todos os seres iluminados do passado, do presente e do futuro. A Natureza Fundamental
da Vacuidade-e-Aparência Integrais é similar, muito parecida, com o meio de um espaço vazio e,
embora tenhamos tentado descreve-la nos ensinamentos precedentes, é basicamente indescritível
no que toca a impossibilidade de predicados (ou de construções conceituais) serem a ela
aplicados: transcende a todas as afirmações lógicas. Se permanecermos em consciência
meditativa com respeito a esta Sabedoria Não-Discriminativa, além de qualquer possível
concepção e, saindo de nossa meditação, reconhecermos todos os Dharmas como sendo ilusões,
sonhos, ou reflexões, os quais aparecem, mas não possuem nenhuma realidade fundamental,
desenvolveremos confiança na Visão Reta, a Natureza Integral das Duas Verdades. Tal é a grande
ferramenta do conhecimento transcendente, a Perfeição da Sabedoria, a Prajna Paramita. O uso
deste conhecimento transcendente pode ser ilustrado dizendo-se que, se desejarmos ir daqui até
Kathmandu, deveremos primeiro tentar descobrir em que direção fica Kathmandu em relação a
nossa presente posição. Estando isto determinado, deveremos conhecer que caminho seguir a fim
de lá chegar e podermos, igualmente, dar a outras pessoas as indicações apropriadas. Se
alcançarmos visão interior verdadeira da Natureza Fundamental, em si-mesma expressa em todas
as aparências, então estaremos capacitados a demonstrar a Natureza Fundamental da Vacuidade a
todos os seres. Se a Visão Interior da Vacuidade não tivesse nenhuma relação direta com todas
as aparências, então qualquer um que alcançasse tal visão interior não teria nenhuma percepção
dos demais seres sensoriais e, portanto, jamais transmitiria os ensinamentos: O ensino da
Vacuidade nunca se disseminaria. Uma compreensão meramente intelectual da aparência e da
Vacuidade integrais não nos dá o poder de demonstrar tal Vacuidade as demais pessoas. Somente
com a Visão Interior Direta da Natureza Fundamental é que podemos começar a demonstrar aos
seres esta Vacuidade Fundamental, a qual é brilhantemente expressiva por si mesma. Compreensão
da Vacuidade é a fonte e a realidade da Senda Mahayana para a realização as qualidades do
Buda. Acabamos de debater sobre a ausência de qualquer realidade essencial na individualidade
mundana, do ponto de vista do surgimento condicionado. Por meio dos exemplos (como o da
carroça), examinamos a ausência de qualquer verdade, de qualquer realidade inerente em todos
os dharmas, em toda aparência fenomênica, através da investigação dos seus pontos de
afloramento. Fizemos isto buscando uma natureza essencial e examinando tudo em geral, de
conformidade com quatro diferentes enfoques encontrados nas escrituras clássicas sânscritas e
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reunidos em uma única lição por Jamgon Ju Mipham Rimpoche. Em geral, nos ocorre conhecer as
coisas de três modos: pela percepção direta, pela dedução lógica e pela palavra autorizada.
Com relação ao Dharma, o que é realmente necessário para a Realização é a Percepção Direta da
Realidade Fundamental da Natureza Fundamental. Mas, com o fim de alcançarmos tal estágio de
Direta Visão Interior, necessitamos, primeiro, atingir alguma apreciação do que isto seja e
ouvir algo a respeito. Ao ouvirmos sobre a Natureza da Realidade, só acreditaremos em uma
pessoa digna de toda a confiança, que soubesse muito bem sobre o que está falando e, ainda, se
tudo for aprovado no teste da razão. Não acreditaríamos em algo dito por alguém não confiável,
que não conhecesse bem o tema, ou que não fizesse sentido. Munidos da informação, por meio de
alguma forma de dedução lógica, tentamos examinar e descobrir como se parece a Natureza
Fundamental. Em seguida, tanto no sentido mundano como no âmbito do Dharma, a compreensão por
meio da informação conduz, inevitavelmente, a uma visão não decorrente da dedução lógica.
Assim poderemos nos iniciar na prática do Mahamudra apropriadamente e, eventualmente, alcançar
a Visão Interior Direta da Natureza da Realidade, a Verdadeira Percepção da Natureza da
Realidade que conduz a Libertação. Uma compreensão adequada da Visão do Caminho do Meio, a
Madhyamaka, é, conseqüentemente, muito importante como suporte para a prática do Mahamudra,
que produzirá a Visão Interior Direta. Ensinei um pouco da Visão Reta da Escola Madhyamaka e
incito a todos a que orem para que qualquer mérito decorrente da tentativa de compreende-la
não se dirija para o benefício individual exclusivo, mas que seja distribuído entre todos os
seres, de tal forma que todos possam alcançar a Completa e Perfeita Realização.
A PORTA ABERTA PARA A VACUIDADE – Kenchen Thrangu Rinpoche

A VACUIDADE

Está dito no Madhyamakavatara do Mahasiddha Chandrakirti:

“Não existindo o ator, não existe a ação. Não pode haver um eu de uma pessoa que não
existe. Se você que procura a verdade, compreender a vacuidade do eu e do meu, chegará à
libertação perfeita”

Estamos preenchidos da sensação de que somos independentes e auto-suficientes, e não de


que somos manifestações interdependentes. Essa é a base de todos os nossos problemas e
sofrimentos.
Nossa mente comum sente espontaneamente: “Eu existo”, “Eu existo”. Esse é nosso mantra no
nível subconsciente. Temos uma percepção distorcida da realidade de nosso eu ou ego pois,
mesmo tendo conhecimento intelectual de nossa própria morte e impermanência, sentimos nosso eu
como completamente independente e permanente. Não conseguimos integrar o conhecimento
intelectual de nossa morte e impermanência em nosso coração. Por isso, quando a realidade da
impermanência invade nossa fantasia de um mundo e um eu permanentes, vivemos um monte de
problemas e sofrimentos. Esse ego independente do qual cuidamos tanto e com o qual nos
identificamos cem por cento é, na verdade, uma completa alucinação.
O Treinamento Espacial, ou a meditação na vacuidade, na sabedoria ou no espaço absoluto
são métodos para nos fazer aceitar, de uma forma mais suave ou mais firme, que esse ego é uma
alucinação, uma ilusão e um terrível engano. São técnicas para dissolvermos a loucura alienada
do apego a si mesmo e devolvermos nossa mente à sanidade, na qual vivemos diretamente a
natureza verdadeira da realidade como espaço absoluto e manifestações interdependentes de
fenômenos.
Tanto no Sutra como no Tantra, o processo de meditação na vacuidade é o mesmo. A diferença
é que no Sutra usamos a mente grosseira, enquanto no Tantra usamos os níveis mentais mais
profundos, o que torna a experiência subjetiva mais poderosa. A vacuidade à qual tentamos unir
nossa mente, porém, é a mesma.
Pergunta: O que é essa vacuidade de existência intrínseca que temos que compreender?
Resposta: No nível relativo, você pensa que é uma pessoa bonita, sente fome, dorme,
trabalha, sente-se só, etc. Entretanto, se você tentar encontrar esse “você” que você acredita
tão fortemente existir independentemente de todos os outros fenômenos, perceberá que não pode
encontrá-lo. Você pode, por exemplo, dividir seu corpo em muitas partes. Qual dessas partes é
realmente você? Não é possível encontrar o que realmente você é. Porém, dentro da relação
interdependente corpo-mente, há alguém que existe. Há muito para se falar sobre esse tema. É
um assunto muito profundo.

Vacuidade significa vazio de existência intrínseca ou independente. Por isso, no primeiro


estágio de meditação no espaço absoluto, tentamos visualizar, imaginar ou identificar
claramente como é esse estado de existência concreta. Temos que procurar esse estado para nos
convencer por meio da lógica que ele não existe de verdade. Só percebemos isso quando o
procuramos.
Sempre começamos esse tipo de meditação usando nossa própria sensação de si mesmo ou ego
como a coisa que desejamos fazer desaparecer, pois o impacto emocional de perdermos nosso
próprio ego é, ao mesmo tempo, devastador e libertador. Perceber que o ego de outra pessoa é
uma fantasia ou que a montanha não existe como parece não tem o mesmo impacto e capacidade de
transformar nossas distorções e negatividades mentais. Nosso ego é nosso inimigo numero um e,
por isso, precisamos empreender uma guerra impiedosa contra ele.
92

Uma vez tendo destruído nosso próprio ego com a arma da sabedoria, toda a estrutura de
nosso samsara pessoal começa a desmoronar e rapidamente colapsa. O primeiro passo é
compreender o que é existência intrínseca independente.
Tchandrakirti, o grande filósofo indiano disse:
:

“As coisas existirem por si mesmas significa que elas não dependem de outros/fatores para
sua existência. Porém, como as coisas realmente dependem de outros/fatores, não pode haver um
fenômeno existente por si mesmo”.

Isso significa que nós não existimos realmente de uma forma independente. Somos o
resultado de muitas causas e condições de surgimento interdependente.
Tchandrakirti também disse:

“Muitas pessoas podem usar o mesmo cavalo para passear. Da mesma forma, quando pessoas
diferentes percebem a vacuidade, todas elas percebem a mesma vacuidade”.

Muitos grandes yogues antigos como Tchandrakirti chegaram à percepção profunda da


vacuidade de existência independente, mas não tinham interesse por desenvolver ou cuidar do
mundo externo. Hoje em dia, os cientistas modernos pesquisam a natureza dos fenômenos de uma
forma relativa e, como resultado, são capazes de criar muitas coisas no mundo externo. Além
disso, sua investigação da natureza da realidade externa os levou, através da teoria da
relatividade geral e da mecânica quântica, a uma idéia sobre a realidade grosseira que se
assemelha em muitos aspectos às idéias sutis dos yogues antigos e modernos.
Por exemplo, como disse o grande físico americano David Bohm:

“O estado atual da física teórica implica que o espaço vazio tem toda a energia e que a
matéria é um leve aumento dessa energia. A matéria é como uma pequena ondulação nesse imenso
oceano de energia, uma ondulação manifesta e com uma relativa estabilidade. Portanto, minha
sugestão é a de que isso nos leva a uma realidade muito além do que chamamos de matéria. A
própria matéria é apenas uma ondulação nesse pano de fundo”.
e

“A massa é um fenômeno de raios de luz em conexão movimentando-se para frente e para trás,
como que congelando-se em formas... Portanto, a matéria, tal como é, é luz condensada ou
congelada. Pode-se dizer que quando chegamos à luz estamos chegando à atividade fundamental na
qual a existência tem sua base ou, ao menos, estamos nos aproximando dessa base”.

Não quero sugerir com essas citações que os cientistas atuais tenham o mesmo nível de
realização que os yogues, mahasiddhas ou Budas. Entretanto, se os cientistas modernos
aprofundassem suas idéias e pesquisassem nosso mundo interior, eles se tornariam realmente
seres realizados, mais que os antigos siddhas budistas como Tchandrakirti, Darikapa e outros.
Quem sabe o que Einstein teria feito se tivesse entrado em contato com a filosofia Madhyamika
ou o Tantra de Kalachakra. Talvez ele ligasse o contínuo espaço-tempo da relatividade geral à
Roda Absoluta do Tempo de Kalachakra, encontrando assim a teoria fundamental para explicar a
natureza do universo, o objeto de sua busca.

Em minha opinião, se as pessoas de hoje que possuem uma mente científica apenas
deslocassem um pouco a posição da mente, poderiam chegar às realizações internas com mais
rapidez que os antigos yogues. Por quê? As pessoas dos tempos antigos não acreditavam e não
concordavam com muitas coisas, ao passo que hoje as pessoas têm uma mente muito mais aberta,
além de receberem uma ótima educação no nível relativo.

Além disso, atualmente muitos cientistas se sentem entediados depois de tanto pesquisar o
mundo externo. Gastaram tanto tempo, dinheiro e esforço e ainda não descobriram a natureza da
realidade, uma das metas da física e da cosmologia. Se eles integrassem sua investigação do
mundo externo com uma pesquisa do mundo interior, tenho certeza de que algo realmente
maravilhoso poderia acontecer. Tanto os que investigam cientificamente o mundo interno quanto
os que pesquisam o mundo externo precisam usar a chave da interdependência dos fenômenos para
abrir os segredos da realidade.
NGELSO – AUTOCURA III – Lama Ganchen

DESENVOLVER UMA VISÃO INEQUÍVOCA DA REALIDADE

REFUTAR A EXISTÊNCIA INTRÍNSECA DE FORMA CORRETA

Toda a discussão filosófica anterior sugere o seguinte ponto básico: o modo como tendemos
a perceber as coisas não está de acordo com o que elas são. Porém, isso não nega de forma
niilista o fato de nossa experiência. A existência das coisas e dos eventos não é questionada;
é de que maneira elas existem que deve ser esclarecida. Esse é o objetivo de se passar por
essa análise complexa.
93

É essencial para qualquer aspirante espiritual cultivar uma perspectiva que se oponha de
forma direta à crença errônea que se agarra à existência concreta das coisas e eventos.
Somente pelo cultivo de uma visão assim podemos começar a diminuir o poder das aflições que
nos dominam. Quaisquer práticas diárias em que nos empenhemos – recitação de mantra,
visualizações e outras – por si só serão incapazes de se opor à ignorância fundamental.
Simplesmente idealizar a aspiração “Possa esse apego enganoso à existência empírica
desaparecer”, não é suficiente; devemos esclarecer inteiramente nosso entendimento da natureza
da vacuidade. Esse é o único jeito de se ficar livre do sofrimento. Além disso, sem esse
entendimento claro, é de se imaginar que, em vez de nos ajudar contra nosso apego à realidade
concreta, a visualização de deidades e a recitação de mantras possa até reforçar nosso apego
enganoso à realidade objetiva do mundo e do eu.
Muitas práticas budistas funcionam a aplicação de um antídoto. Por exemplo, cultivamos a
aspiração de beneficiar os outros como um antídoto para o interesse pessoal, e cultivamos
nosso entendimento da natureza impermanente da realidade como antídoto para ver as coisas e
eventos como fixos. Da mesma maneira, cultivando o insight correto sobre a natureza da
realidade – a vacuidade das coisas e eventos – somos capazes de nos liberar gradativamente do
apego à existência intrínseca e por fim eliminá-lo.

ENTENDER AS DUAS VERDADES

No Sutra do Coração lê-se:

Deve-se perceber perfeitamente que até os cinco agregados são vazios de existência
intrínseca. Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é outra coisa senão forma;
forma também não é outra coisa senão vacuidade.

Essa passagem apresenta o resumo da resposta de Avalokiteshvara para a pergunta de


Shariputra sobre como praticar a perfeição da sabedoria. A expressão “vazios de existência
intrínseca” é a referência de Avalokiteshvara ao entendimento mais sutil da vacuidade, da
ausência de existência intrínseca. Avalokiteshvara detalha sua resposta que começa com as
seguintes frases: “Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é outra coisa senão
forma; forma também não é outra coisa senão vacuidade”.

Para nós é importante evitar a apreensão errônea de que a vacuidade é uma realidade
absoluta ou uma verdade independente. A vacuidade deve ser entendida como verdadeira natureza
das coisas e eventos. Por isso lê-se: “Forma é vacuidade, vacuidade é forma; vacuidade não é
outra coisa senão forma; forma também não é outra coisa senão vacuidade”. Não se refere a
alguma espécie de Grande Vacuidade em algum lugar lá fora, mas sim à vacuidade de um fenômeno
específico, no caso, da forma ou matéria.

A afirmação de que, “a partir da forma não existe vacuidade” sugere que a vacuidade da
forma não é outra coisa senão a natureza última da forma. A forma carece de existência
intrínseca ou independente; por isso sua natureza é vacuidade. Essa natureza – a vacuidade –
não é independente da forma, mas sim uma característica da forma; a vacuidade é o modo de ser
da forma. Deve-se entender a forma e sua vacuidade em unidade; não são duas realidades
independentes.

Vamos olhar as duas declarações de Avalokiteshvara mais detidamente: que forma é vacuidade
e vacuidade é forma. A primeira afirmação, “forma é vacuidade”, indica que o que reconhecemos
como forma vem a existir como resultado da agregação de muitas causas e condições, e não por
meios próprios independentes. Forma é um fenômeno composto constituído por muitas partes.
Porque vem a existir, e continua a existir baseado em outras causas e condições, é um fenômeno
dependente. Essa dependência significa que a forma é consequentemente vazia de qualquer
realidade intrínseca e auto-existente e, portanto, diz-se que forma é vacuidade.

Vamos nos deter agora na declaração seguinte, de que vacuidade é forma. Entendido que a
forma carece de existência independente, jamais pode ser isolada de outros fenômenos.
Conseqüentemente, a dependência sugere um tipo de abertura e maleabilidade em relação a outras
coisas. Devido a essa abertura fundamental, a forma não é fixa, mas sim sujeita a mudança e
causalidade. Em outras palavras, uma vez que as formas surgem a partir da interação de causas
e condições e não possuem realidade independente e fixa, prestam-se à possibilidade de
interação com outras formas e, portanto, com outras causas e condições. Tudo isso faz parte
de uma realidade complexa e interconectada. Como as formas não possuem identidade fixa e
isolada, podemos dizer que a vacuidade é a base para a existência da forma. De fato, em certo
sentido, é possível dizer até que a vacuidade cria a forma. Pode-se entender a afirmação de
que “vacuidade é forma” no sentido de a forma ser uma manifestação ou expressão da vacuidade,
algo que advém da vacuidade.

Esse relacionamento aparentemente abstrato de forma e vacuidade é de algum modo análogo ao


relacionamento de objetos materiais e espaço. Sem espaço vazio, os objetos materiais não podem
94

existir; o espaço é o meio para o mundo físico. Contudo, essa analogia sucumbe na medida em
que se pode dizer que os objetos materiais, em certo sentido, são separados do espaço que
ocupam, ao passo que não é possível dizer isso da forma e da vacuidade.

No Lankavatara Sutra, encontramos descrições de sete diferentes maneiras em que uma coisa
pode ser considerada vazia. Aqui, seguindo nossos propósitos, vamos examinar duas maneiras de
ser vazio. A primeira é conhecida como “vacuidade do outro” – no sentido de que um templo pode
estar vazio de monges. Nesse exemplo, a vacuidade (do templo) é separada do que está sendo
negado (a presença de monges).

Em contraste, quando dizemos que “forma é vacuidade”, estamos negando uma essência
intrínseca da forma. Essa maneira de ser é chamada de vacuidade da existência intrínseca (em
tibetano, significa literalmente “vacuidade do eu”). Contudo, não devemos entender a vacuidade
do eu ou vacuidade da natureza do eu como significando que a forma é vazia de si mesma; isso
seria equivalente a negar a realidade da forma, o que, conforme tenho repetido enfaticamente,
esses ensinamentos não fazem. Forma é forma: a realidade da forma sendo forma não é rejeitada,
apenas a realidade independente e, portanto, a essência intrínseca dessa realidade. Portanto,
o fato de forma ser forma não contradiz de modo algum o fato de forma ser vacuidade.

Esse é um ponto crucial, e vale a pena reitera-lo. Vacuidade não implica não-existência;
vacuidade implica vacuidade de existência intrínseca, o que implica necessariamente originação
dependente. Dependência e interdependência estão na natureza de todas as coisas; coisas e
eventos vêm a existir apenas como resultado de causas e condições. A vacuidade possibilita a
lei de causa e efeito.

Podemos expressar o que foi dito ainda de outra maneira, conforme o seguinte raciocínio.
Todas as coisas se originam de modo dependente, dessa maneira, dessa maneira pode-se observar
a causa e o efeito. Causa e efeito só são possíveis em um mundo desprovido de existência
intrínseca, ou seja, em um mundo que é vazio. Assim, podemos dizer que vacuidade é forma,
outra maneira de dizer que a forma surge a partir da vacuidade, e que a vacuidade é a base que
permite a originação dependente da forma. Portanto, o mundo da forma é uma manifestação da
vacuidade. (formas da vacuidade)

É importante esclarecer que não estamos falando da vacuidade como sendo algum tipo de
estrato absoluto da realidade, aparentado, por assim dizer, com o antigo conceito indiano de
Brahman, concebido como uma realidade absoluta subjacente, a partir da qual emerge o mundo
ilusório da multiplicidade. A vacuidade não é uma realidade essencial, que reside de algum
modo no coração do universo, da qual surge a diversidade de fenômenos. A vacuidade só pode ser
concebida em relação a coisas e eventos individuais. Por exemplo, quando falamos de vacuidade
de uma forma, estamos falando sobre a realidade absoluta daquela forma,o fato dela ser
desprovida de existência intrínseca. Aquela vacuidade é a natureza absoluta daquela forma. A
vacuidade existe como uma qualidade de um fenômeno específico; e não separada e
independentemente de um fenômeno específico.

Alem disso, uma vez que a vacuidade só pode ser entendida como realidade absoluta em
relação a um fenômeno individual, coisas e eventos individuais, quando um fenômeno individual
termina, a vacuidade daquele fenômeno também cessa. Assim, embora a vacuidade não seja ela
própria o produto de causas e condições, quando uma base para a identificação da vacuidade não
mais existe, a vacuidade não mais existe, a vacuidade daquela coisa também cessa*.

A linha “Vacuidade não é outra coisa senão forma; forma também não é outra coisa senão
vacuidade” indica a necessidade de se entender o ensinamento do Budha sobre as duas verdades.
A primeira é a verdade da convenção diária, ao passo que a segunda, a verdade absoluta, é a
verdade a que se chega por meio da análise sobre o modo de ser absoluto das coisas.
Nagarjuna faz referência a isso nos Fundamentos do Caminho do Meio:

“Os ensinamentos revelados pelos budhas


Assim o são em termos de duas verdades –
a verdade convencional do mundo
e a verdade última”.

Percebemos a verdade convencional, ou seja, o mundo relativo em toda a sua diversidade,


por meio do uso cotidiano da mente e de nossas faculdades sensoriais. Contudo, somente por
meio da análise penetrante somos capazes de perceber a verdade absoluta, a verdadeira natureza
das coisas e eventos. Perceber isso é perceber a talidade dos fenômenos, seu modo absoluto de
ser, que é a verdade absoluta sobre a natureza da realidade.
Embora muitas tradições indianas de pensamento – tanto budistas quanto não-budistas –
entendam a natureza da realidade em termos de duas verdades, o entendimento mais sutil
acarreta a realização das duas verdades não como duas realidades separadas e independentes,
mas sim como dois aspectos de uma única realidade. É essencial que captemos essa distinção com
clareza. [...]
95

* Nota: Na prática de meditação Vajrayana, é enfatizado que, quando se medita sobre a vacuidade no
contexto do yoga da deidade, é importante escolher uma base para a meditação. Essa base pode ser o
aspecto da mente que manterá sua continuidade ao longo das vidas de um individuo até que alcance a
iluminação. O fato de que a mente prosseguirá no estagio da iluminação é um dos principais motivos para a
mente ser frequentemente enfatizada como foco da meditação sobre a vacuidade. Também é assim em outras
práticas, tais como Mahamudra e Dzogchen, onde o foco principal da meditação sobre a vacuidade é a mente
do indivíduo.
Do livro: A Essência Do Sutra Do Coração – Dalai Lama – 10º. Capítulo – págs. 103-108

A NÃO-DUALIDADE

Durante o verão de 1977, o Lama Yeshe visitou Madison, Wisconsin, e ficou na casa e centro de seu
mestre, o Geshe Lhun-dup Sopa. Lá, ele deu seis semanas de aulas sobre o texto de Maitreya Discriminating
between Relative and Ultimate Reality (Dharma-dhatmata-vibhanga-karika) (Discriminando entre Realidade
Relativa e Definitiva), do qual o que se segue é um breve ex- trato. 0 texto básico de Maitreya é uma
abordagem dinâmica e meditativa da profunda visão da realidade, enfatizando a não-dualidade natural de
toda a existência. No trecho seguinte, o Lama Yeshe comenta algumas idéias centrais desse texto e
apresenta introdução ao pensamento não-dualista.

Não há nenhum interesse ou valor em estudar esse tema como mero estímulo intelectual. Isso
seria uma completa perda de tempo. O conhecimento contido no ensinamento de Maitreya é
incrivelmente profundo, mas só vale a pena se for abordado com a devida motivação. A não ser
que nos empenhemos nesse estudo com a intenção de erradicar nossos problemas psicológicos,
seria melhor passar o nosso tempo tentando produzir coca-cola, por exemplo; pelo menos,
mataríamos a nossa sede.

Provavelmente, todos já ouvimos falar sobre a meditação Mahamudra. “Maha” quer dizer
grande e “mudra” significa selo. Se eu tiver um selo do governo ninguém me impedirá a passagem
ou me incomodará. Quando há um selo governamental em meu passaporte, tenho a liberdade de ir
para onde quiser. O selo do Mahamudra é parecido, mas estamos falando aqui sobre um estado da
mente que transcende nossa simples visão dualista da existência. Esse é o grande selo que nos
liberta da prisão do samsara. O Mahamudra em si é a não-dualidade. É a natureza absoluta e
verdadeira de todos os fenômenos universais, sejam eles interiores ou exteriores.

O que significa o termo “não-dualidade”? Todos os fenômenos existentes, sejam eles


considerados bons ou maus, não são por natureza transcendentes a não-dualidade, transcendentes
as nossas falsas discriminações. Nada do que existe acontece fora da não-dualidade. Em outras
palavras, todas as energias existentes nascem dentro da não-dualidade, funcionam dentro da
não-dualidade e, por fim, desaparecem na natureza da não-dualidade. Nós nascemos nesta Terra,
vivemos e desaparecemos sempre dentro do espaço da não-dualidade. Trata-se de uma verdade
simples e natural e não de uma filosofia fabricada pelo Buda Maitreya. Estamos falando sobre
fatos concretos e sobre a natureza fundamental da realidade, nem mais nem menos.

Se quisermos compreender o Mahamudra, é essencial que desenvolvamos a habilidade da arte


da meditação. Mas para meditar adequadamente, devemos ouvir primeiro uma exposição perfeita do
assunto. Isso nos dará uma compreensão exata e precisa do objetivo da meditação. Se tivermos a
clara intenção de por em prática essas explicações sobre a meditação, então o mero fato de
ouvir os ensinamentos torna-se uma poderosa experiência, em vez de alguma espécie de “viagem”
intelectual superficial.

Compreender que a mente dualista, perdida em falsas discriminações, é a origem do


sofrimento sem começo nem fim da própria pessoa e dos outros, é ter uma visão intuitiva
verdadeiramente valiosa que irá modificar profundamente a qualidade de nossa vida diária.

A mente dualista é contraditória por natureza. Ela estabelece um dialogo interior que vem
perturbando a nossa paz. Estamos sempre pensando: “Talvez isto, talvez aquilo, talvez qualquer
outra coisa” – e assim por diante. O pensamento dualista perpetua o conflito dentro da nossa
mente. Ele nos torna agitados e profundamente confusos. Quando chegamos a conclusão de que
essa confusão é o resultado de uma mente condicionada pela visão dualista da realidade, então
poderemos fazer alguma coisa a respeito. Até lá, será impossível lutar contra o problema,
porque não identificamos corretamente sua verdadeira causa. Não é suficiente tratar apenas dos
sintomas. É claro que devemos erradicar completamente a origem dos nossos problemas, se
quisermos ficar verdadeiramente livres deles.

Na medida em que a nossa compreensão e o nosso conhecimento do Mahamudra se aprofundam,


compreendemos que o modo como as coisas nos parecem é uma mera projeção da nossa mente. Por
exemplo, não se trata da questão de se Madison, Wisconsin, existem ou não, mas se o modo como
os vemos de fato existe ou não. Deve ficar claro que isso difere da visão niilista, que afirma
que nada existe. Estamos apenas procurando ter uma visão correta da realidade.
96

Para esclarecer ainda mais este ponto, podemos investigar as fantasias que projetamos
sobre os nossos amigos e sobre as pessoas com quem convivemos ou que encontramos diariamente.
Nossa mente dualista projeta uma máscara de atração ou de rejeição sobre a imagem mostrada por
todas as pessoas que encontramos, ocasionando o aparecimento de reações de desejo ou de
aversão, que matizam nossas atitudes e o nosso comportamento com relação a essas pessoas. E
começamos a discriminar: “Ele é bom” ou “Ela é má”. Se essas atitudes rígidas e
preconceituosas já impossibilitam a comunicação adequada com nossos amigos mais íntimos, o que
dizer da comunicação com a profunda sabedoria de um ser iluminado, de um Buda?

Se investigarmos persistentemente as maquinações interiores da mente, seremos finalmente


capazes de mudar nossa maneira habitualmente rígida de perceber o universo e de deixar espaço
e luz dentro da nossa consciência. Com o tempo, teremos um discernimento do que significa, na
verdade, a não-dualidade. Nessa altura, deveríamos simplesmente meditar sem manter pensamentos
intelectuais ou discursivos. Com forte determinação, devemos apenas deixar a mente meditar
intencionalmente sobre a visão da não-dualidade, além de sujeito/objeto, do bom/mau e assim
por diante. A visão da não-dualidade pode ser tão vívida e poderosa que quase julgamos poder
alcançá-la e tocá-la. É muito importante matizar a mente apenas com essa nova experiência de
alegria e luminosidade, sem buscá-la através de análise. Devemos compreender diretamente que a
não-dualidade é a verdade universal da realidade. Ao dirigir nossa mente ao longo do caminho
do dharma, é melhor não esperar demais logo no começo. O caminho é um processo gradual que
deve ser percorrido passo a passo. Antes que alguém possa seguir práticas que tragam
resultados rápidos e profundos, há outras técnicas preparatórias que devem ser realizadas.
[...]
Ajuda bastante perceber que a compreensão da não-dualidade apresenta muitos níveis ou
graus. Do ponto de vista filosófico, há duas escolas indianas de pensamento budista mahayana:
a Chittamatrin, ou escola Mente Única, e a Madhyamika, ou escola do Caminho do Meio, com a sua
subdivisão Prasangika ou Conseqüencialista. Ambas as escolas concordam que a visão dualista é
enganadora, e por isso irreal, e ambas defendem que a não-dualidade é a natureza absoluta de
todas as coisas e por isso é verdadeira. Apesar das escolas Mente Única e Madhyamika
concordarem nesses aspectos, sua compreensão do que é a não-dualidade varia um pouco.

Do ponto de vista Madhyamika, a doutrina Mente Única apresenta uma abordagem que ajuda a
visão da verdade convencional, mas não descreve com precisão a natureza absoluta e verdadeira
da realidade. Em outras palavras, os Madhyamikas declaram que a visão Mente Única da realidade
ainda esta maculada por crenças supersticiosas. Apesar disso, os Madhyamikas concordam que, se
formos capazes de compreender a visão da Mente Única, ficaremos aptos a praticar os métodos
profundos do yoga tântrico, alcançando elevados e inimagináveis níveis de compreensão.

O importante é saber que a escola Mente Única argumenta que todas as coisas do mundo
sensorial são simples manifestações da energia mental e não existem externamente. De acordo
com os Madhyamikas, é mais correto dizer que a existência de todas as coisas depende do
reconhecimento de uma consciência atributiva. Ambas as escolas dão grande importância ao papel
da mente na determinação do modo como as entidades surgem, mas a escola Madhyamika diz que
afirmar a não-existência de quaisquer fenômenos externos – que não existe nada, a não ser a
mente – é um erro. Semelhante visão desvia-se do verdadeiro caminho do meio que transcende
todos os extremos.

Os meditadores da Mente Única destroem a visão dualista por julgarem que todos os objetos
no campo dos seis sentidos nada mais são do que meras projeções mentais. Todos os fenômenos
relativos aparecem e desaparecem como as bolhas de uma garrafa de coca-cola. Nessa analogia, a
coca-cola corresponde à própria mente, enquanto as bolhas que surgem dentro dela são os
fenômenos relativos percebidos pelos seis sentidos. Podem as bolhas de coca-cola serem
separadas da coca-cola? Não. Como elas não são separáveis, são não-dualistas. Quando tivermos
uma profunda compreensão consciente desse fato, ficarão estremecidas as bases do samsara.

Os conseqüencialistas transcendem o dualismo através da constatação de ambas as coisas:


mente e objeto. O campo dos sentidos é ilusório e vazio; não tem existência própria. Sujeito e
objeto são mutuamente interdependentes: não podem existir independentemente um do outro. Por
essa razão, os Madhyamikas não concordam com a posição da escola Mente Única de que a mente em
si – como fonte e essência de onde surgem todos os fenômenos relativos – tenha verdadeira e
inerentemente existência própria. De acordo com os Madhyamikas, todos os fenômenos, incluindo-
se a mente, são vazios até mesmo do mais leve traço de existência própria.

O plenamente desperto Lama Tzong-khapa, na sua obra The Heart of Perfection [O Coração da
Perfeição] explicou que devemos primeiro dominar a visão da escola Mente Única, porque dessa
posição elevada podemos progredir facilmente para a visão superior e mais sublime dos
Madhyamikas. É exatamente por essa razão que o Buda Maitreya explicou a doutrina da escola
Mente Única. Ela é a ponte confiável para passarmos de uma perspectiva completamente
materialista para a visão transcendental da realidade, que ultrapassa todos os extremos.
97

Quando exponho temas dessa espécie, tento evitar ser demasiado filosófico – insistindo em
dizer que a “Mente Única diz isto”, que “A escola Madhyamika defende aquilo” – especialmente
quando estamos tratando de textos tão sutis e profundos como este. Em termos gerais, esse
ensinamento do Buda Maitreya é considerado um texto da escola Mente Única; contudo, não é
necessário confiná-lo a essa interpretação. Esse texto completo serve também perfeitamente
para uma explicação Madhymika da realidade e dos dois níveis da verdade. É essencial conhecer
bem esses dois níveis da verdade porque, quando os harmonizamos com sucesso, chegamos a uma
verdadeira compreensão das coisas como elas na verdade são, e ficamos livres de todo
sofrimento e das suas causas.

Eu gostaria de voltar mais uma vez a esse ponto. Todos os fenômenos têm duas qualidades ou
naturezas características. Uma é a sua aparência relativa, sua cor, sua forma, sua qualidade,
sua textura, e assim por diante. Isso é apontado como a “verdade enganadora”, porque ela
parece existir independentemente das causas e condições. Nos termos desse nível de realidade,
discriminamos sujeito e objeto, isto e aquilo, e assim por diante. Apesar de todos os
fenômenos participarem dessa natureza relativa, eles nascem, existem e desaparecem, sem nunca
se afastarem da esfera da não-dualidade. O segundo nível da verdade é a natureza não-dualista,
absoluta e verdadeira de todas as coisas, que coexistem espontaneamente com todos os
fenômenos.

Os fenômenos em si e a natureza absoluta dos fenômenos têm qualidades distintas; não se


trata da mesma coisa. Todos os fenômenos possuem simultaneamente um modo de existência
relativo ou convencional, como também uma natureza absoluta e verdadeira, que é não-dualista.
Certas energias vem juntas e produzem um fenômeno relativo. Seu modo de existência relativo é
dualista e aparece nos termos de uma relação entre sujeito e objeto, apesar de todas as coisas
surgirem dentro do espaço da não-dualidade.

Os fenômenos relativos (samsara) são como bolhas. Eles representam a visão dualista da
mente dualista. Por isso, não existem nem são verdadeiramente, reais. A natureza verdadeira e
absoluta (dharma) é não-dualista. Por isso, é real ou verdadeira. Apesar dos fenômenos
relativos e da visão dualista existirem e atuarem, em última análise eles não são verdadeiros.
Esse é o ponto fundamental da questão.

Quando dizemos que todos os fenômenos relativos têm a natureza da não-dualidade, não
queremos dizer com isso que toda existência seja o vazio ou a verdade absoluta. Toda
existência relativa não é verdade absoluta. Os fenômenos relativos não são fenômenos
absolutos. Mas toda energia existente, seja relativa ou absoluta, apresenta a natureza
característica da não-dualidade.

Quero explicar isso melhor. Quando contemplamos a não-dualidade, a visão dualista deve
desaparecer. Por isso, podemos dizer que não-dualidade significa natureza absoluta. Mas será
que podemos afirmar que toda não-dualidade seja natureza absoluta? Não. Por que não? Porque,
apesar de todos os fenômenos participarem da natureza da não-dualidade, precisamos compreende-
la para entender a realidade convencional. Minha cabeça, por exemplo, tem a natureza da não-
dualidade e, mesmo assim, não posso dizer que a cabeça seja a verdade absoluta ou o vazio.
Para perceber a minha cabeça não é necessário perceber a não-dualidade. Ainda assim, pode
persistir uma dúvida: “Se a cabeça tem a natureza característica da não-dualidade, por que,
então, quando se percebe a minha cabeça não se percebe a própria não-dualidade?” Porque existe
o véu da mente dualista entre vocês e a minha cabeça.

Isso pode ficar mais claro com outro exemplo. Qual é o mais abrangente: a população dos
Estados Unidos ou a população de Madison, Wisconsin? A população dos Estados Unidos inclui a
população de Madison, mais os habitantes de Madison não abrangem a população dos Estados
Unidos. A não-dualidade é como a população dos Estados Unidos, e todos os fenômenos relativos
são como os habitantes de Madison. Todos os fenômenos relativos são abarcados pela não-
dualidade porque eles surgem dentro do espaço da não-dualidade; todos os fenômenos relativos
apresentam a característica de não-dualidade.

Concluindo, para compreender a não-dualidade, precisamos compreender o vazio. Por isso,


podemos dizer que a não-dualidade é o vazio. Mas todas as bolhas dos fenômenos relativos,
apesar delas próprias serem afinal não-duais, não são o vazio. A verdade relativa e a absoluta
não se integram, mas ambas são integradas pela não-dualidade. Se pudermos compreender as
características distintivas tão bem como as naturezas não-contraditórias desses dois níveis da
verdade, alcançaremos a libertação até mesmo das ilusões mais sutis da mente. Não pode haver
um motivo maior nem mais forte para o estudo e a meditação do que esse.
Extrato de seis semanas de aulas do Lama Yeshe
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DEIXANDO NASCER A BODICHITA

Para guiarmo-nos no caminho espiritual, precisamos de uma meta em direção à qual


trabalhar, da mesma forma que uma flecha precisa de um alvo. Através da bodichita, a porta
seguinte de acesso à prática nas tradições Mahayana e Vajrayana, continuamos a mirar no alvo
da iluminação para benefício dos outros seres a cada momento que praticamos. Essa é a melhor
meta possível.

A bodichita constitui a base, o fundamento de tudo o que fazemos, semelhante à raiz de uma
árvore medicinal cujos galhos, folhas e flores produzem todos medicamentos que preservam a
vida. A qualidade e pureza da nossa prática depende do fato dela permear cada um dos métodos
que utilizamos. Com ela, tudo fica assegurado. Sem ela, nada funciona.
É por essa razão que, desde a primeira vez que ouvimos os ensinamentos, dizem-nos para
estabelecer a liberação de todos os seres como o objetivo da nossa prática. Nós nos tornamos
recipientes apropriados para os ensinamentos espirituais, e praticamos mudando nossa motivação
de uma atitude de interesse próprio para uma atitude de altruísmo.

A bodichita possui três componentes: a geração de compaixão pelo sofrimento de todos os


seres; a aspiração de chegarmos à iluminação a fim de alcançarmos a capacidade de beneficiar
todos os seres, chamadas de bodichita da aspiração; e o fato de ativamente nos engajarmos no
caminho da liberação a fim de realizarmos tal meta, chamada de bodichita da ação.

O termo tibetano para a expressão bodichita, em sânscrito, é chang chub sem. Chang
significa a remoção dos obscurecimentos, chub, a revelação de todas as qualidades perfeitas
internas, e sem, mente. Por meio da prática da mente de bodichita, purificamos obscurecimentos
e fortalecemos nossas qualidades positivas intrínsecas, revelando a mente iluminada.

Os obscurecimentos da mente podem ser comparados ao barro que recobre um cristal que há
muito tempo está enterrado no chão. Se pegarmos o cristal coberto por aquelas crostas, parece
uma pelota de barro. No entanto, suas qualidades essenciais não foram por qualquer modo
reduzidas; ficaram apenas obscurecidas. Se removermos e lavarmos o barro, o cristal aparecerá
com clareza, suas qualidades se tornarão aparentes. Do mesmo modo, ao purificarmos e remo-
vermos os obscurecimentos da mente, revelamos nossa natureza verdadeira e cristalina.
Nós sempre buscamos por essa essência do lado de fora, embora ela se encontre em nosso
interior. É como procurar por toda parte por um cavalo perdido, seguindo incontáveis pegadas
pela floresta, apenas para descobrir, por fim, que o cavalo estava no porão da nossa casa o
tempo todo.
A compaixão, o primeiro aspecto da bodichita, também existe, de forma intrínseca, dentro
de nós. Embora tenhamos naturalmente um bom coração, geralmente ele é bastante limitado.
Através da prática, podemos expor e ativar nossa compaixão perfeita e ilimitada.
Chang chub sem é, assim, tanto o método quanto o fruto da prática. Devido ao impulso da
bodichita — a força e o poder da intenção de liberar os seres —, a essência da mente, que é
como o Sol, se revela por completo, fazendo surgir, espontaneamente e sem esforço, benefícios
para os outros, como o reflexo do Sol que pode ser visto em todos os corpos de água, em todos
os recipientes que contenham água.
Começamos a prática de chang, a remoção dos obscurecimentos da mente, reduzindo nossa
auto-importância e redirecionando nossa atenção para os outros. O hábito de nos focarmos em
nós mesmos vem sendo reforçado a incontáveis vidas, razão pela qual estamos presos no samsara.
Os Budas eliminaram os pensamentos egoístas e ordinários, cultivaram motivação altruísta e,
assim, alcançaram a iluminação.
O desenvolvimento desse tipo de motivação repousa sobre quatro pedras fundamentais,
chamadas as quatro qualidades incomensuráveis. A primeira delas é a eqüanimidade, uma atitude
de igualdade para com todos os seres. Se conseguimos viver livres de preconceitos e
prevenções, sem fazer divisão em nossa mente entre amigos e inimigos, então apreendemos a
essência da existência e plantamos as sementes da felicidade e liberdade, para nós mesmos e
para os outros.
Agora, nosso amor e compaixão estendem-se apenas a certas pessoas em certos tipos de
situação, a nossos familiares, amigos e entes queridos, mas não a alguém que percebamos como
um inimigo. Pode ser que não desejemos má sorte para pessoas desagradáveis ou perigosas; ainda
assim, pode nos ser difícil deixar de nos regozijar quando algo de ruim acontece a elas. Nossa
compaixão por uma criança doente pode vir, simplesmente, de nosso apego a ela. Através da
prática da eqüanimidade, cultivamos, do fundo do coração, uma atitude nobre de compaixão por
todos os seres sem distinção. A menos que tenhamos esse tipo de pureza de coração, nossa
prática permanecerá superficial — não entenderemos, de verdade, o propósito do Darma.
Desenvolvemos eqüanimidade, em primeiro lugar, dando-nos conta de que todos os seres,
igualmente, desejam a felicidade. Ninguém quer sofrer. Em segundo lugar, contemplamos o fato
de que todos os seres, em uma ou outra ocasião, ao longo de incontáveis vidas, já foram nossa
própria mãe. O Buda Sakiamuni e outros Budas e bodisatvas, que removeram o barro da natureza
cristalina de suas mentes e se tornaram oniscientes, ensinaram que não há um único ser que não
tenha sido nossos pais, algo que nós também poderíamos perceber, se assim purificássemos nossa
mente. Cada ser — não importa quão antagónico a nós possa ser agora — já foi tão bondoso e
99

importante para nós quanto nossos pais nesta vida. Uma pessoa que agora desempenha um papel
aparentemente insignificante ou mesmo ameaçador em nosso drama pessoal, foi outrora amorosa e
prestativa.
A fim de adquirirmos apreciação dessa bondade, precisamos reconhecer a enorme generosidade
dos nossos pais. Antes de mais nada, eles nos deram de presente o nosso corpo humano. Após a
morte em nossa última encarnação, quando nossa mente mergulhou no bardo, o estado
intermediário amedrontador e caótico que há entre a morte e o próximo renascimento, fomos
jogados de um lado para outro sem defesa, como uma pluma ao vento, sem qualquer ponto de apoio
ou de referência estável, experimentando visões e sons terríveis. Por fim, encontramos
segurança no ventre de nossa mãe no momento da concepção. Daí por diante, ela nos carregou em
seu corpo por nove ou dez meses, suportando desconforto e talvez enfermidade para nos oferecer
nosso nascimento humano.
Quando estávamos indefesos no berço, nossa mãe nos dedicou cuidado e proteção, para que
pudéssemos crescer fortes e sadios. Se ela não tivesse nos alimentado, ou pedido a uma outra
pessoa que fizesse isso, seguramente teríamos morrido.
Ela salvou nossa vida, quando crianças, vez após vez, protegendo-nos de cair, de comer
coisas que nos deixariam doentes, de nos aproximar demais do fogo, da água, do trânsito. Ela
nos deu de comer e de vestir, nos lavou e manteve limpa a nossa casa. Pense quanto teríamos
que gastar agora para que alguém viesse limpar a nossa casa ou cozinhar para nós. Hoje em dia,
quando alguém nos dá uma xícara de chá ou alguma pequena coisa, sem pedir pagamento,
consideramos a pessoa imensamente bondosa. Essa bondade, porém, esmaece em comparação à
generosidade de nossa mãe.
Nossa capacidade de falar, de nos portar na sociedade, de conviver com os outros são todas
dádivas de nossos pais. Em vez de nos comprazermos com nossa própria inteligência, deveríamos
nos lembrar de que houve um tempo em que não sabíamos dizer uma única palavra, não sabíamos
como nos alimentar, nos vestir e nos limpar. Palavra por palavra, nossa mãe e nosso pai nos
ensinaram a falar. Eles nos ajudaram a aprender como andar, como comer, como nos vestir. Eles
foram nossos primeiros professores.
Nesta e em incontáveis vidas passadas, os outros seres nos devotaram bondade por todos
esses meios mundanos. Eles também têm uma importância essencial para nosso desenvolvimento
espiritual, no sentido de que a liberação deles é a finalidade da nossa prática, o alicerce da
nossa motivação altruísta, sem a qual não poderíamos alcançar a iluminação. Ponderando essas
questões, começamos a experimentar uma profunda sensação de gratidão e adquirir consciência de
nossa dívida para com eles.
Desse modo, ao cultivarmos eqüanimidade, reconhecemos que todos os seres foram nossas
mães, em algum momento. Então, cultivamos apreciação pela bondade que eles nos dedicaram e o
desejo de oferecer retribuição. Dessa maneira, desenvolvemos uma motivação mais elevada, a de
beneficiarmos todos os seres, não apenas de uma perspectiva temporária, mas com a mais
perfeita forma de retribuição possível: alcançarmos a iluminação para podermos ajudar os
outros a fazer o mesmo.
Um aluno ocidental certa vez perguntou a um lama, “Eu tenho problema em pensar que os
seres uma vez foram minha mãe. A minha mãe nunca foi boa comigo. Nós tivemos um péssimo
relacionamento. Então, toda vez que eu me sento para meditar sobre bodhicitta, penso na minha
mãe e fico irritado e com raiva. Será que eu posso simplesmente esquecer de pensar na minha
mãe por enquanto?”
O lama disse ao aluno que o objetivo era desenvolver compaixão por todos os seres,
inclusive a nossa mãe, mas não importava a ordem em que isso fosse feito. Ele disse que no
Tibet e na Índia as pessoas consideram sua mãe a mais bondosa, a mais maravilhosa pessoa
imaginável. Quando um principiante precisa de um acesso fácil para a prática, o professor usa
os sentimentos ligados à mãe como base para se cultivar calor humano e compaixão pelos outros.
O lama acrescentou, “Se você acha que um método melhor para você é desenvolver compaixão
por todos os outros seres primeiro, e então pela sua mãe, não há problema. O importante é, ao
final, termos compaixão por todos os seres, inclusive nossa mãe”.
Por fim, reconhecemos a igualdade de todos os seres no sentido de que a natureza
intrínseca da cada um deles, do menor inseto ao maior praticante detentor de realização, é a
pureza primordial.
Quando passamos a compreender essa igualdade —no sentido de que todos querem ser felizes,
todos sofrem, todos nos dedicaram a bondade de um pai ou uma mãe, todos possuem natureza
búdica — geramos compaixão por todos eles sem exceção, ao reconhecer sua situação trágica:
embora apenas queiram ser felizes, por ignorância criam as condições que perpetuam seu
sofrimento.
A própria compaixão, a aspiração de que o sofrimento venha a cessar, é a segunda qualidade
incomensurável. Um potente antídoto para a auto-importância e o interesse próprio, a
compaixão, de forma mais imediata, nos ajuda a liberar nosso foco implacável em nós mesmos e
em nossos problemas. E também é benéfica a longo prazo, pois mesmo um ou dois minutos de com-
paixão, sentida em nosso coração, purifica quantidades imensas de carma.
Como é que geramos compaixão? Começamos contemplando as dificuldades dos outros seres e,
então, nos colocamos no lugar deles. Começamos com o sofrimento no retiro, já que a princípio
pode ser difícil contemplarmos a angústia dos seres nos demais remos.
Contemplamos as dificuldades de uma ou duas pessoas que conhecemos e, lentamente, com a
prática, ampliamos nosso foco para incluir mais e mais, até que o sofrimento de todos os seres
100

tenha verdadeiro significado para nós. Recordamo-nos da dor dessas pessoas de maneira tão viva
que podemos praticamente vê-la diante de nossos olhos.
Imagine, por exemplo, alguém próximo de você morrendo, talvez num hospital, cercado por
amigos e familiares. Quando o sofrimento dessa pessoa se torna real para você, coloque-se no
lugar dela. Seus amigos e familiares queridos estão chorando, implorando-lhe que não morra. O
médico diz que lhe restam apenas uns poucos minutos de vida. A respiração vai ficando mais
difícil e você está aterrorizado. Você não sabe o que o espera. Tudo o que lhe é familiar,
mesmo seu próprio corpo, terá que ser deixado para trás. Nem um tostão do dinheiro que você
acumulou irá consigo, nem um único amigo ou parente irá atrás de você, por mais queridos que
eles possam ser a você, ou você a eles.
Ou, em vez de contemplar o infortúnio de uma pessoa que você conheça, você poderia
imaginar alguém que viva num país assolado pela seca, onde famílias, mesmo aldeias inteiras,
estejam morrendo de fome. Ponha-se no lugar daquela pessoa. Visualize-se entre os poucos
familiares queridos que ainda não morreram, cuja vida se prolonga à beira da morte. Você sabe
que você, também, logo irá morrer; simplesmente não resta nada para comer. Você se sente fraco
demais para ajudar seus parentes que sobrevivem, e eles estão fracos demais para ajudá-lo.
Vocês estão todos impotentes diante da morte.
Você poderia imaginar alguém que morre na guerra e, então, se colocar no lugar dessa
pessoa. Seu melhor amigo foi morto, está estirado ao seu lado, e você próprio está ferido,
esvaindo-se em sangue, sem conseguir se mexer. Todos à sua volta estão morrendo ou ocupados
demais para lhe prestar atenção. Você se sente completamente só e aterrado.
Ou você poderia contemplar a situação angustiosa de uma pessoa idosa. Visualize um tempo
em que seus próprios filhos, que você criou com tamanho cuidado por tantos anos, não queiram
saber de ajudá-lo, sequer de ouvi-lo. Talvez estejam esperando ansiosamente por sua morte.
Você não consegue mais cuidar de si próprio, nem seus filhos cuidam de você. Talvez você este-
ja solitário numa clínica de repouso, onde seus filhos o visitam apenas uma ou duas vezes por
ano. Seus amigos não o respeitam mais; eles não o ouvem mais. Você gostaria de se movimentar,
agir, falar como fazia quando era mais jovem, mas falta-lhe capacidade para isso.
Ao examinar cada uma dessas situações, um medo tremendo aparece. Nesse momento, pergunte-
se, “Se eu sinto tanto medo assim simplesmente ao contemplar este sofrimento, como é que devem
se sentir aqueles que realmente o vivenciam?”
Então, pense no fato de que muitas pessoas, por todo o mundo, estão ferindo outras. Elas
estão criando carma negativo que acabará por lhes prejudicar, e sequer se dão conta disso.
Elas pensam que estão fazendo a coisa certa, mas estão apenas se destruindo.
Quando você contempla dessa forma, brotam intensas em seu coração a compaixão e a
aspiração de ajudar tanto aqueles que estão atualmente sofrendo, quanto aqueles que estão
plantando as sementes de seu sofrimento futuro. Reconheça sua boa sorte relativa, e então
assuma o compromisso de fazer tudo o que puder para criar benefícios. Você escutou os
ensinamentos do Darma; você conta com alguns métodos para purificar as causas e condições do
sofrimento. Estes seres, porém, que já lhe dedicaram todos a bondade de uma mãe, não contam
com nada. Como isso é trágico.
No budismo Mahayana, uma grande compaixão, uma compaixão eqüânime por todos os seres —
amigos e inimigos — é crucial. Com esse alicerce sólido, mesmo se você não tentar alcançar a
iluminação, ela estará na palma da sua mão. Se, no entanto, você não cultiva compaixão e é
motivado apenas pelo desejo egoísta de escapar do sofrimento, você não atingirá a meta última.
A compaixão é realçada pela terceira qualidade incomensurável: um amor que se estende
igualmente a todos. O amor é o desejo sincero de que cada ser vivencie tanto a causa quanto o
fruto da felicidade, temporária e definitiva. Estabelecemos o compromisso de fazer todo o
esforço — físico, verbal e mental — para que isso venha a ocorrer.
Quando nos empenhamos para trazer felicidade para os outros, precisamos fazer isso com
pureza de coração. Se houver qualquer interesse próprio mesclado com nossos esforços, um
insucesso irá nos levar a arrependimento, e esse arrependimento anulará a virtude de nossa
ações.
Para nos ajudar a desenvolver a capacidade de manifestar amor puro e altruísta por todos
os seres, há um método chamado meditação tonglen. Começamos gerando compaixão, com a
contemplação da condição dolorosa dentro da qual vivem os demais seres. Então, quando
respiramos, imaginamos que estamos inspirando o sofrimento e o carma negativo de todos os
reinos da existência, sob a forma de uma luz preta. Quando expiramos, visualizamos que todo o
nosso amor, alegria e boa fortuna se irradiam para os outros seres como uma luz branca.
A princípio, você pode sentir relutância em praticar essa meditação, temendo que ela possa
prejudicá-lo por algum modo. Porém, se você tiver a intenção altruísta de ajudar os outros,
suas dúvidas irão desaparecer e a prática fará crescer suas qualidades positivas. Somente seu
próprio medo pode prejudicá-lo, pois ele age como um imã para negatividades.
Depois de praticar essa meditação intensamente, com o coração puro, você começará a se ver
como um veículo para a felicidade dos outros. Não só seu amor e compaixão crescerão, como
também você verificará que passou a ter menos pensamentos negativos, a cometer menos atos
prejudiciais; o apego a seu próprio eu começará a se soltar, e seu carma será purificado. Em
termos ideais, desenvolvemos a capacidade de amor que caracteriza a mente de bodhicitta a uma
medida tal que, sem temor, hesitação nem arrependimento, daríamos ou faríamos qualquer coisa
para ajudar uma outra pessoa.
101

Em muitas de suas vidas ao longo do caminho do bodhisattva, o Buda Sakiamuni entregou seu
próprio corpo em benefício dos outros seres. Em uma determinada vida, ele era o filho do meio
de um rei que tinha três filhos. Certo dia em que havia se perdido na floresta com seus dois
irmãos, ele se deparou com uma tigresa e seus cinco filhotes, que estavam morrendo de fome. A
tigresa não conseguia mais se mover e não tinha leite para alimentar sua ninhada, O príncipe
pensou, “Quantas vezes em minhas vidas passadas eu tentei salvar a mim mesmo? Eu pensei apenas
na minha própria segurança, e morri vez após vez, sem beneficiar ninguém. Meu corpo é
impermanente; de qualquer modo, não vai durar muito. Se ele pode ter uso para essa tigresa e
seus filhotes, que assim seja”.
Ele mandou seus irmãos para longe, à procura de frutas, e deitou-se ao lado da tigresa.
Ela, porém, estava fraca demais para devorá-lo. Como não tinha uma faca, o príncipe quebrou um
talo de bambu, abriu seu pulso com ele e deixou o sangue pingar dentro da boca da tigresa.
Então, cortou pedaços de sua carne e deu de comer a ela. À medida que a tigresa lentamente ia
recuperando as forças, ele mais e mais perdia as suas; porém, não abrigava nenhum
ressentimento. Dedicou sua vida não apenas àquela mãe e seus filhotes, mas a todos os demais
seres, e então morreu.
Naquele momento, a mãe do menino teve um sonho no qual havia no céu três sóis, sendo que o
do meio entrava em eclipse. Ela acordou sabendo que algo havia acontecido com seu filho do
meio, e testemunhou fenômenos extraordinários — a terra tremeu, uma chuva de flores caiu,
música e hinos de louvor ecoaram.
O cabelo e os ossos do príncipe foram colocados em uma stupa, um monumento à natureza da
mente, em um local sagrado conhecido como Namo Buda, no Nepal. Muitas pessoas ainda hoje
conseguem grandes benefícios, purificando vastas quantidades de carma, ao circumambular essa
stupa.
A última das quatro qualidades incomensuráveis é o regozijo: a atitude de nos comprazermos
com a felicidade dos outros. Regozijamo-nos com as bênçãos mundanas de que os outros desfrutam
— sua saúde, riqueza, relacionamentos maravilhosos — e com sua boa fortuna espiritual. Não
permitimos que a inveja tome conta de nossa pessoa, nem nos perguntamos, “Por que é que eles
conseguem isso ou aquilo, e não eu?”. Em vez disso, formulamos a aspiração de que a felicidade
deles seja duradoura, e fazemos tudo o que está a nosso alcance para que isso aconteça.
Ao nos regozijarmos com a virtude dos outros, criamos tantas virtudes quanto eles possuem.
Do mesmo modo, se nos alegramos com a desventura de alguém, criamos tanta não-virtude quanto a
pessoa que provocou essa desventura.
No tempo do Buda Sakiamuni, dois meninos estavam mendigando comida diante do palácio de um
rei, O rei havia convidado o Buda e seu séquito para almoçar, e uma refeição maravilhosa havia
sido preparada. Um dos meninos pôs-se a pedir comida, antes que fosse oferecida ao Buda.
Ninguém deu-lhe nada para comer, e ele ficou com muita raiva. Ele pensou, “Se eu fosse um rei,
iria cortar a cabeça do Buda, a deste rei e a de todas as pessoas que o estão ajudando”.
O outro menino esperou até que o Buda e o seu sequito houvessem se servido. Então, pediu a
comida que havia sobrado e recebeu tanto quanto conseguia comer. Ele pensou consigo, “Que rei
maravilhoso. Que grande mérito ele criou ao convidar o Buda para almoçar e ao demonstrar
generosidade àqueles que são pobres como nós. Se eu fosse rei, todas as minhas posses
ofereceria ao Buda e também aos pobres”.
Depois do almoço, os meninos se separaram. O menino de bom coração pôs-se a caminhar,
atravessou a fronteira e foi parar em um reino vizinho. Ele se deitou para dormir, protegido
do calor pela sombra de uma árvore. Sem que ele soubesse, o rei daquela região havia morrido,
e seus ministros estavam à procura de alguém que tivesse as qualidades e méritos para ser o
novo rei. As pessoas da aldeia onde o menino dormia notaram que, ao longo do dia, embora o Sol
mudasse de posição no céu, a sombra nunca se movia de onde o menino se deitara. Julgando isso
extraordinário, relataram o fato aos ministros.
Quando receberam a notícia, os ministros ordenaram que o menino de bom coração fosse
incluído entre os candidatos ao trono, os quais deveriam comparecer perante uma grande reunião
de todos os súditos do rei, O novo rei seria escolhido por um elefante muito especial. No dia
marcado, o elefante aproximou-se daquele menino pobre e maltrapilho, que estava bem no fundo
do grupo de candidatos, ungiu sua cabeça com a água especial de um vaso, levantou-o com a
tromba e colocou-o sobre o trono.
Enquanto isso, o menino raivoso adormeceu no jardim do rei. Uma carroça que passava por
perto se desgovernou e tombou sobre seu corpo, cortando-lhe o pescoço e o matando.
A princípio, a prática das quatro qualidades incomensuráveis requer esforço. Um a um,
soltamos os nós que nos amarram — os venenos, enganos e ilusões da mente. A eqüanimidade reduz
o orgulho, o regozijo reduz a inveja, a compaixão reduz o desejo e o amor reduz a raiva e a
aversão. A medida que a raiva diminui, desponta a sabedoria que é como o espelho; à medida que
o desejo diminui, desponta a sabedoria que discrimina, e assim por diante. À medida que a
nossa prática amadurece e a sabedoria é revelada, as quatro qualidades incomensuráveis brotam
naturalmente, sem esforço, da mesma forma que os raios de luz e calor emanam do Sol.
Embora muitas pessoas pensem que possam reconhecer a sabedoria diretamente, isso não é tão
fácil. Até que os nós comecem a se desatar, a consciência intrínseca e primordial não será
algo evidente. É por intermédio das quatro portas do amor, com paixão, alegria e eqüanimidade
que podemos entrar no mandala da natureza absoluta da mente.
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche
102

A TRANSFORMAÇÃO ATRAVÉS DO ALTRUÍSMO


As qualidades de bodhichitta, a intenção altruísta.

A definição de bodhicbitta é apresentada em Ornamento de Conscientização


(Abhisamayalamkara), de Maitreya, texto no qual ele afirma que o altruísmo possui dois
aspectos, O primeiro é a condição que produz a perspectiva altruísta, e essa envolve a
compaixão que uma pessoa precisa desenvolver por todos os seres sencientes, bem como a
aspiração que ele ou ela deve cultivar de propiciar o bem-estar a todos os seres sencientes.
Isso leva ao segundo aspecto, que é o desejo de alcançar a iluminação. E com a intenção de
beneficiar todos os seres que esse desejo deveria surgir em nós.
Poderíamos dizer que bodhichitta é o nível mais elevado do altruísmo e a mais alta
forma de coragem; e também poderíamos dizer que bodhichitta é o resultado da mais alta
atividade altruísta.
Como o lama Tsongkhapa explica em sua Grande descrição do caminho à iluminação (Lam rím
cben mo), a natureza de bodhichitta é tal que, enquanto nos dedicamos a realizar os desejos
dos outros, a realização do nosso próprio interesse ocorre como um sub-produto. Essa é uma
forma sábia de beneficiar tanto a si mesmo quanto os outros. Na realidade, na minha opinião,
bodhichitta é algo verdadeiramente maravilhoso.
Quanto mais penso em ajudar os outros, e quanto mais forte se torna minha vontade de
cuidar dos outros, maiores são os benefícios que me cabem. Isso é totalmente extraordinário.
Examinando um pouco mais as qualidades positivas de bodhichitta, descobrimos que esse é um
dos meios mais eficazes para acumular méritos e aprimorar o nosso potencial espiritual.
Além disso, trata-se de um dos meios mais eficazes para acumular mérito e aprimorar nosso
potencial espiritual.
Além disso, trata-se de um dos métodos mais poderosos para enfrentar tendências negativas
e impulsos destrutivos. Como a superação das tendências negativas e o aprimoramento do
potencial positivo são a própria essência do caminho espiritual, a prática de desenvolver o
altruísmo é realmente a prática maior, mais eficaz e mais irresistível de todas.
Maitreya também declara numa das suas orações de enaltecimento que é essa mesma
bodhichitta que pode nos liberar da transmigração para reinos inferiores da existência, que
pode nos levar a reencarnações superiores e mais felizes e que pode até nos levar ao estado
fora do alcance do envelhecimento e da morte. Maitreya esta nesse texto sugerindo algo muito
especial. Em geral, de acordo com os ensinamentos budistas, é a prática da moralidade e da
conduta ética que nos protege da reencarnação nos reinos inferiores da existência. O que
Maitreya está dizendo é que a prática de bodhichitta supera todas as práticas éticas e é, com
efeito, um caminho muito superior. Da mesma forma, ele afirma que bodhichitta é um caminho
superior quando se trata de plantar as sementes para atingir formas superiores de
reencarnação.
Logo, em certo sentido, poderíamos dizer que a prática de gerar e cultivar a intenção
altruísta é tão abrangente que contém os elementos essenciais de todas as outras práticas
espirituais. Considerada isoladamente, ela pode, portanto substituir a prática de muitas
técnicas diferentes, já que todos os outros métodos são destilados e se unem em uma só
abordagem. É por isso que consideramos que a prática de bodhichitta está na raiz da felicidade
tanto temporária quanto duradoura.
Se examinarmos os preceitos adotados por um praticante de bodhichitta, veremos a tremenda
coragem que sustenta essa prática. [...]
A coragem de um raciocínio altruísta tão vasto estende-se a todos os seres sem exceção, e
não se confina a nenhuma época específica. Ela é totalmente sem limites. Numa estrofe do seu
Manual para o estilo de vida do Bodhisattva (Bodhicaryavatara), Shantideva também manifesta
essa enorme coragem, que transcende todas as fronteiras de espaço e tempo. Ele escreve:

Enquanto o espaço perdurar,


Enquanto os seres sencientes persistirem,
Que eu também possa permanecer
Para dissipar as desgraças do mundo.

Quando a intenção altruísta tem por base a profunda percepção do vazio, e especialmente a
conscientização direta do vazio, diz-se que a pessoa alcançou as duas dimensões de bodhichitta
que são conhecidas como bodhichitta convencional e bodhichitta máxima. Com essas duas
práticas de compaixão e sabedoria, o/a praticante tem nas mãos o método completo para atingir
o mais alto objetivo espiritual. Essa pessoa é verdadeiramente notável e digna de admiração.
Se conseguirmos cultivar essas qualidades espirituais dentro de nós mesmos, como
Chandrakirti escreve em termos muito poéticos em seu “Entrada para o Caminho do Meio”
(Madhyamakavatara), com uma asa de intenção altruísta e outra de profunda percepção do vazio,
poderemos cruzar todo o espaço e alçar vôo para além do estado da existência até as plagas da
natureza búdica de plena iluminação.
Embora eu tenha alguma experiência dessas duas dimensões de bodhichitta, sinto que minha
conscientização delas é muito baixa. Mesmo assim, tenho verdadeiro desejo de praticar e
entusiasmo pela atividade, e só isso já me dá uma inspiração imensa. Como mencionei em Muitas
ocasiões, acredito que todos nós somos fundamentalmente iguais, e que temos o mesmo potencial
103

básico. Alguns de vocês, não tenho dúvida, têm um cérebro muito melhor do que o meu.
Deveriam, portanto, fazer um esforço para contemplar, estudar e meditar, mas sem nenhuma
expectativa míope. Deveriam ter a mesma atitude de Shantideva - de que, enquanto o espaço
existir, vocês permanecerão para dissipar o sofrimento do mundo. Quando temos esse tipo de
determinação, além de coragem para desenvolver nossa capacidade, um século, uma era, um milhão
de anos não são nada. Além disso, vocês não irão considerar que os diferentes problemas
humanos que enfrentamos aqui e ali sejam de modo algum insuperáveis. Uma atitude e uma visão
dessas produzem algum tipo de verdadeira força interior. Talvez vocês imaginem que seja uma
ilusão pensar desse modo; mas, mesmo que seja, não faz diferença considero essa atitude
valiosa!
Agora, a questão é como nos treinamos para desenvolver bodhichitta. Os dois aspectos de
bodhichitta de que falamos anteriormente, a aspiração a ser de ajuda aos outros e a aspiração
a atingir por nós mesmos a iluminação, têm de ser cultivados separadamente por meio de
treinamentos distintos. A aspiração de ser de ajuda aos outros deve ser cultivada em primeiro
lugar.
O desejo de proporcionar bem-estar aos outros pode naturalmente, incluir a atividade de
aliviar seus sofrimentos muito óbvios e sua dor física; mas não é isso o que queremos dizer
neste contexto. Proporcionar o bem-estar aos outros significa realmente agudá-los a atingir a
libertação. Devemos, portanto, começar com uma compreensão do que queremos dizer com
“libertação”. Isso remonta diretamente ao que descrevi antes, ou seja, à compreensão do vazio,
porque o nirvana, como definido pelos ensinamentos budistas, tem de ser entendido em termos do
vazio. Logo, segundo o budismo, sem alguma compreensão do vazio não é realmente possível
compreender o que é a verdadeira libertação; e sem essa compreensão, uma forte aspiração de
atingir a libertação não surgirá.
A segunda aspiração, a de alcançar a plena iluminação, também está diretamente relacionada
à nossa compreensão do vazio. A palavra tibetana para iluminação é chang-chub; e em sânscrito
é bodhi. Um exame da etimologia das duas sílabas tibetanas revela que chang significa
“purificação” ou “purificados”, que se refere a uma qualidade do Buda de plena iluminação,
indicativa de que todas as características negativas e todos os poluentes mentais foram
superados. A segunda sílaba, chub, significa literalmente “ter percebido”, que se refere à
qualidade do Buda de ter consumado todo o conhecimento e toda a percepção. Portanto, a
iluminação, como é expressa no termo tibetano chang-chub, sugere tanto a superação das nossas
qualidades negativas quanto o aperfeiçoamento das nossas qualidades positivas. Isso está
diretamente associado à nossa compreensão do vazio, pois ela pressupõe que percebamos ser
possível eliminar os aspectos negativos da mente, e admite algum nível de compreensão de como
isso possa ser feito, bem como de qual é a natureza da liberdade total.
TRANSFORMANDO A MENTE – Dalai Lama

ABRINDO ESPAÇO

Bodhichitta é a verdade essencial, universal.


Esse pensamento puríssimo é o desejo e a vontade de levar todos os seres sensíveis à
realização do seu mais elevado potencial: a iluminação.

O bodhisattva vê a natureza cristalina que há em cada um de nós e, ao reconhecer a beleza


do potencial humano, sempre demonstra respeito.
Para a mente rude, seres humanos são como ervas, algo para ser usado. “Ah, ele não
significa nada para mim. Os seres humanos não representam nada para mim”.
Todos tentamos nos aproveitar dos outros, tirar proveito em causa própria. O mundo inteiro
está construído sobre o apego. Países grandes oprimem países pequenos, crianças maiores roubam
balas de crianças menores, maridos aproveitam-se de suas mulheres. Torno-me amigo de alguém
porque essa pessoa talvez me seja útil. O mesmo acontece com o resto do mundo. Namorados,
namoradas; todos querem alguma coisa.
O desejo de fazer amigos apenas para ajudá-los é extremamente raro, contudo, muito
valioso. Buda explicou que mesmo um único instante de pensamento da mente dedicada à
iluminação em favor dos outros pode destruir o carma negativo de cem mil existências.
O apego nos toma medíocres e incomodados. Mas basta um pouco do calor de bodhichitta para
aquecer-nos e acalmar o coração.
Bodhichitta é uma solução poderosa, é a energia atômica que destrói o reino do apego.
Bodhichitta não é o amor emocional. Ao compreender a natureza relativa dos seres sensíveis
e o seu destino mais elevado, e ao desenvolver a disposição de conduzir todos os seres rumo a
esse estado de iluminação, a mente é preenchida com um amor nascido da sabedoria, não da
emoção.
Bodhichitta não é parcial. Onde quer que você vá com bodhichitta, ao encontrar pessoas,
sejam elas ricas ou pobres, negras ou brancas, sentir-se-á bem e poderá comunicar-se com elas.
Temos uma idéia fixa: a vida é deste jeito ou daquele jeito. “Isto é bom. Isto é mau.” Não
compreendemos os diferentes aspectos da condição humana. Mas, tendo presente esse incrível
pensamento universal, a nossa mente estreita desaparece imediatamente, é tão simples; temos
espaço e a vida fica mais fácil.
Por exemplo, alguém olha para nós, para a nossa casa, para o nosso jardim, e ficamos
preocupados. Somos tão inseguros e mesquinhos de coração! Somos arrogantes. “Não olhe para
104

mim”. Mas com bodhichitta há espaço. Quando alguém olhar, simplesmente diremos: “Pois bem.
Estão olhando para mim. Mas não faz mal!” Compreendem? Em vez de se preocuparem acharão que
está tudo bem.
Bodhichitta é o agente tóxico que nos entorpece contra a dor e nos enche de alegria.
Bodhichitta é a alquimia que transforma todas as ações em bem para os outros.
Bodhichitta é a nuvem que descarrega uma chuva de energia positiva que alimenta as
coisas que crescem.
Bodhichitta não é doutrina. É um estado de espírito. Essa experiência interior é
completamente individual. Por isso, como podemos ver quem é um bodhisattva e quem não é? Como
podemos ver a mente que tem auto-estima?
Se nos sentirmos inseguros, projetaremos esse sentimento negativo sobre os outros.
Precisamos do mais puro e íntimo pensamento de bodhichitta; onde quer que vamos, ele
tomará conta de nós.
ENSINAMENTOS DO BUDISMO TIBETANO – Lama Thubten Yeshe

TROCANDO O “EU” PELOS OUTROS


Ou transformando-nos nos outros

Segundo o Budismo, para sermos felizes, temos de desenvolver um genuíno sentimento de amor
pelos outros: temos de ser capazes de amá-los. Aquilo que faz com que tenhamos amor pelos
outros nos vem dos deuses, e nos transforma em deuses. Este pensamento, este sentimento - o de
amor pelos outros - é a porta que abre as práticas Mahayanas. Todo sofrimento que
experimentamos tem uma causa: e esta causa reside no pensamento egoísta, no pensamento de se
preservar a si mesmo, de só pensar em si mesmo, de tirar vantagem para si, proveito para si
mesmo em tudo e com tudo. Ou seja, só pensar em si mesmo, o tempo todo. O nosso real inimigo
é esse tipo de carinho por si mesmo, de cuidado de si, de auto-compaixão. Ou seja, o
pensamento que diz sempre: “eu podia ter conseguido isso para mim”, “isso me aconteceu”,
“fizeram isso comigo”, “o que há de errado comigo?”, “por que isso só acontece comigo?” Esse é
o tipo de pensamento que gera a infelicidade: o de pensar em si mesmo.
Devemos desprezar o pensamento que pensa em si mesmo, abandonar esse tipo de pensamento,
desprezar a idéia de cuidar de si e nos dedicar inteiramente em pensar nos outros.
Não se trata de desprezar-nos a nós mesmos, julgando-nos inferior: muito ao contrário,
devemos desenvolver uma imensa autoconfiança na nossa capacidade de ir em socorro dos outros,
de ser deles a salvação e o amparo.
Temos de realizar um treinamento constante para reverter nossa tendência atual e nos
dedicarmos a pensar exclusivamente nos outros, esquecendo-nos de nós mesmos. Podemos começar
pelas pequenas coisas, como anular nossas reações de resposta às agressividades do outro para
conosco, quando o outro se encontra sob o poder dominador das aflições mentais. Em vez de
reagir, em vez de gerar ódio e negatividade, quando atacados, devemos tentar anular-nos como
pessoas, tornar-nos “vazios”, como sujeito zero, de tal forma que não haverá “alguém” ali para
ser ofendido ou atacado, ou não haverá ninguém.
Isto a princípio parecerá muito difícil, como tudo que a princípio aprendemos, mas depois
poderá nos parecer familiar. Podemos até sentir ódio, mas não demonstramos, mas anulamos
imediatamente este ódio-resposta, de forma que aos pouco vamos nos tornando mestres de nós
mesmos e de nossas reações. Todos os nossos problemas derivam de nós nos prezarmos demais, de
pensarmos muito em nós mesmos, de estimarmo-nos demais a nós mesmos. Alimentamos este
pensamento há muito tempo, há muitas vidas, que é o pensamento instintivo de preservação.
Todos os Buddhas praticaram este treinamento de trocar o “eu” pelos outros. Todos os
Bodisattvas também realizaram isso. Eles continuam fazendo isto: o cuidado para com os outros.
Incontáveis vidas o Bodisattva praticou assim, antes de se tornar um Buddha. E é muito
importante ver e entusiasmar-se com os exemplos dos grandes Mestres que praticaram antes de
nós: ou seja, não se importar com o que acontece ou acontecerá conosco mesmos, e sim com os
demais. Não se dar muito valor... e ao mesmo tempo se considerar com a responsabilidade
universal de assegurar o bem-estar do mundo. Este pensamento nos transforma num deus, nos
transformará num Buddha.
Só depois de aumentarmos e fortalecermos o pensamento de preocupação com os outros e
despreocupação conosco mesmo é que começamos a nos trocar pelos outros. Por exemplo, se
dermos toda a nossa comida para os outros, sem nos importarmos conosco mesmo. Devemos começar
pelas coisas mais simples, como ceder a vez numa fila, ou dar o seu lugar no ônibus. Devemos
aprender a nos dedicar aos outros nos mínimos gestos, por exemplo, distribuindo sorriso e
afeto genuíno. Mesmos os animais sentem quando nos aproximamos deles com afeto, com amor, com
alegria de vê-lo, de encontrá-lo. Agradar os outros acumula muito mérito e nos leva à
Iluminação.
Agradar aos outros acumula tudo que é positividade, acumula amigos e riqueza, felicidade e
segurança. Agradar aos outros com genuíno amor nos leva a galgar os mais altos degraus da
posição social.
É pela análise, é pela observação racional e minuciosa que podemos nos convencer das
imensas vantagens que afinal colhemos pela prática de anularmos os nossos interesses e
dedicarmo-nos ao amor genuíno e verdadeiro aos demais. São imensos os frutos, espirituais e
materiais.
105

O egoísmo, tentando engrandecer o “eu”, contraditoriamente é o principal inimigo do “eu”.


Quem se sente só, quem se sente isolado, é devido ao egoísmo que se sente só e isolado. Quem
se dedica aos demais, quem se dá aos demais, tem muitos amigos, atrai muitos amigos. Esta
pessoa passa a ser respeitada e amada por todos, pelos homens e deuses. Até pelos animais. A
bondade é algo que se irradia e atinge os outros, e é algo que faz bem aos outros, que os
outros sentem.
É por esta prática que se começa a desenvolver a chamada bodhicitta, ou mente de
iluminação. A bodhicitta é o desejo de atingir o estado de Buddha pelo bem de todos os seres.
A bodhicitta é amor e compaixão. Amor se define pelo desejo de que o outro seja feliz.
Compaixão se define pelo desejo de que o outro se liberte do sofrimento.
Algumas pessoas têm muito valor, muito saber, mas não são reconhecidas porque não
desenvolveram a bodhicitta. Porque são egoístas. E como são egoístas, acumulam negatividades,
geram negatividades e atraem negatividades para si. As pessoas egoístas não têm muitos amigos.
Ao contrário, têm inimigos. Assim, o egoísta não consegue ajuda e socorro quando precisa,
quando encontram problemas.
A nossa sociedade moderna se fundamenta no contrário, se baseia no egoísmo, no narcisismo.
Por isso há muito sofrimento. O egoísmo gera ódio, o ódio é a raiz da guerra. Ao contrário, a
nossa mente deve voltar-se para a maioria, para fora. Pensar na maioria nos faz crescer, como
heróis. Por isso os bodisattvas são conhecidos como heróis.
Pensar no mundo, na humanidade, sem ilusões, sem fantasia, mas começando pelos mais
próximos - isto nos faz crescer, aumenta a nossa capacidade de amar e de nos libertar a nós
mesmos e aos outros.
Por isso devemos nos concentrar em pensar constantemente nos outros e não no nosso
egoístico eu. Um dos modos de treinamento é o esforço por desenvolver a equanimidade. Com
equanimidade nós não fazemos diferença entre eu e você, entre amigos e inimigos, entre
familiares e estranhos. Assim vemos que todos, como nós, querem a felicidade. E como nós
também os outros buscam isso de diferentes maneiras. Nós também desenvolvemos a troca do eu
pelos outros pelo raciocínio. Como nós, os outros também não querem o sofrimento, mas querem a
felicidade.
É quando pensamos muito pouco em nós mesmos, e o tempo todo nos outros, que desenvolvemos
a troca pelos outros, o trocar-se pelos outros.
O forte pensamento, o forte sentimento de beneficiar os outros, de que os outros estejam
bem, é isso que se chama trocar a si pelos outros. É fazer sugir esse tipo de mente búdica, de
mente de bodhicitta. Se o nosso trabalho, se a nossa mente for toda dirigida para o benefício
dos outros nós seremos os principais benfeitores de nós mesmos e dos outros. Nós seremos
incluídos.
Aquilo que plantamos, colhemos. Quando plantamos para os outros, a riqueza vem abundante,
automaticamente.
Quando só pensamos nisto, minuto a minuto, nós nos trocamos pelos outros. É esse
treinamento da mente a prática mais sagrada. Quando dominamos essa técnica conseguimos gerar
compaixão espontânea, amor espontâneo.
A partir daí passamos a dar a nossa felicidade, e assumir o sofrimento dos outros. A
compaixão é o insuportável sentimento de dor pelo sofrimento do outro. Os Budhas são feitos da
matéria da compaixão. Lentamente progredimos da pequena para a grande compaixão. Praticando
diariamente.
Como o nosso tempo é da era degenerada, só investe nesta prática os heróis, ou seja, temos
de ter coragem e constância. O esforço é necessário para atingir a experiência. Fazemos a
seguinte promessa: “Eu tomo a responsabilidade de liberar a todos esses seres do sofrimento”
Anotações de uma palestra de Geshe Lobsang Tenpa

O MAHAYANA E O TRATAMENTO DAS EMOÇÕES:

A TRANSFORMAÇÃO

O mahayana baseia-se no princípio de que não devemos nos preocupar apenas conosco, e sim
considerar o outro como mais importante. Portanto, uma ênfase particular é colocada sobre o
amor e sobre a compaixão. Assim, no início de qualquer prática, pensa-se que vai ser realizada
com o objetivo de poder liberar todos os seres do sofrimento e de poder levá-los à felicidade
definitiva. Do mesmo modo, ao final de uma prática, dedica-se toda força positiva que emana
dela para o bem de todos os seres, para que se tornem livres dos sofrimentos, do karma e das
emoções conflituosas e para que alcancem finalmente o estado de Buddha.

EXTENÇÃO DO MAHAYANA

O conjunto da tradição budista baseia-se em duas correntes: a dos Sutras e a dos Tantras.
A abordagem dos sutras está dividida ela própria em três níveis: inferior, médio e
superior.
O nível inferior refere-se aos “auditores” (shravakas), o intermediário aos “Buddhas
solitários” (pratiyeka Buddhas) — estes dois níveis pertencem ao hinayana — e o superior aos
bodhisatvas praticando o mahayana.
106

Os “auditores” olham o indivíduo como desprovido de um “eu”, pois ele nunca pode ser
encontrado pela análise; o mundo exterior é, por sua vez, considerado como dotado
verdadeiramente de uma realidade material, impura e fonte de sofrimento.
Os “Buddhas solitários” consideram que não apenas o indivíduo é desprovido de existência
própria, mas que o mundo exterior também o é parcialmente, na medida em que, em última
análise, é apenas um agregado de átomos.
No veículo dos bodhisattvas, o indivíduo e o mundo exterior são vistos inteiramente
desprovidos de existência própria, vazios. Esta visão mais ampla que as duas precedentes, que
pertencem ao pequeno veículo, justifica a denominação de “grande veículo”.

O mahayana também é mais amplo que o hinayana na sua maneira de conceber a ação. O
praticante do hinayana esforça-se, de fato, para evitar qualquer ato que poderia ser nefasto
para si mesmo ou para os outros; ele observa uma ética que o protege de qualquer ação
negativa. O praticante do mahayana acrescenta a essa ética que evita prejudicar, uma ética que
busca fazer o bem aos outros.
Qualquer que seja o paramita que observamos, a visão do mahayana sempre é maior que a do
hinayana. Acabamos de vê-lo quanto à ética, também é verdadeiro para o paramita do dom. No
hinayana, o dom é limitado a seu aspecto material, no mahayana ele deve também fornecer a
segurança e se estender à vida espiritual — o que chamamos o “dom do dharma’. O dom está então
fundamentado no amor e na compaixão. O paramita da paciência é vista como uma virtude pessoal
no hinayana, enquanto que no mahajana ela é, ainda uma vez, uma expressão do amor e da
compaixão. A diligência, importante no hinayana, abarca no mahayana não apenas o
desenvolvimento individual, mas o bem de todos os seres. Quanto à perfeição do conhecimento,
ela atinge sua plenitude no mahayana, que desenvolve uma visão completa da natureza vazia de
qualquer manifestação.
O grande veículo divide-se em dois aspectos: o “mahayana dialético” e o Vajrayana.
Desses dois aspectos, o segundo é mais rico em métodos e mais profundo. O mahayana dialético,
ensinado nos sutras, considera a prática como uma causa que leva a um resultado, enquanto que
o vajrayana, vindo dos tantras, considera, ao contrário, o resultado como desde agora
presente. Mais freqüentemente, quando se fala do mahayana, sem outra precisão, refere-se à
primeira das duas abordagens e não ao vajrayana. É também ao mahayana dialético que o presente
ensinamento será dedicado.

A concepção do mundo exterior difere entre o veículo dos “Buddhas solitários” e o dos
bodhisattvas, no sentido de que o segundo considera que os átomos, nos quais a análise do
primeiro termina, não têm, eles mesmos, nenhuma existência sobre o plano último.

A BODHICHITTA

Encontramos o fundamento do mahayana na dupla noção de bodhicitta: A bodhicitta relativa;


A bodhicitta absoluta.

A bodhicitta relativa consiste no reconhecimento de que todos os seres foram nosso pai ou
nossa mãe no passado, e a seguir na observação de nossa própria situação para compreender que
ela é comum a todos; ficamos felizes por causa dos acontecimentos agradáveis que nos
acontecem, infelizes se encontramos o sofrimento. Compreendendo que todos os seres funcionam
desse modo, desenvolvemos o amor e a compaixão.

A bodhicitta absoluta é o desenvolvimento, por meio do conhecimento justo, da com-


preensão da natureza finalmente vazia de qualquer fenômeno. Pode-se, sem se limitar a uma
adesão intelectual, abordar a noção geral de vacuidade por uma meditação discursiva baseada no
raciocínio, mas essa abordagem corre o risco de permanecer na superfície das coisas. E
preferível começar por compreender a natureza de nossa própria mente: ela existe desde sempre,
primordialmente; não tem existência material: não tem forma, cor, volume etc.; não podendo ser
percebida como uma coisa, é, assim, vazia. Em seguida, com base nessa compreensão, chega-se a
uma certeza que apenas a experiência da meditação pode proporcionar, além de todos os
conceitos. Quando se chega à certeza da vacuidade da mente, desenvolve-se, então, a percepção
de que todos os fenômenos — nosso corpo e o mundo exterior — procedem de fato da mente. Sendo
a própria mente vazia por natureza, todas as suas produções também o são. Chega-se, assim, à
conclusão de que todas as coisas são vazias por natureza.

OS TRÊS CORPOS DO SAMSARA

Ainda que esta asserção da vacuidade de todas as coisas possa nos parecer desconcertante,
o exemplo do sonho poderá nos torná-la mais compreensível. Quando sonhamos, percebemos todo um
mundo constituído de formas visíveis, sons, objetos tangíveis que nos parecem reais.
Entretanto, eles não existem em parte alguma; eles são unicamente uma produção da mente.
Durante o sonho, eles parecem possuir a mesma realidade do mundo que percebemos agora e é por
isso que podem provocar a dor ou o prazer. Mas quando estamos acordados, tudo o que parecia
existir durante o sonho — nosso corpo, o meio, as casas etc. — tudo isso desaparece. É apenas
107

a mente, manifestando-se por meio de um corpo onírico chamado o “corpo dos condicionamentos
latentes”, O que é verdadeiro para o sonho, também o é para nossa experiência presente, por
meio do que se chama o “corpo de maturidade cármica”.
Quando abandonamos este mundo, no momento da morte, os sentidos deixam de funcionar de
modo que o corpo e o mundo exterior não são mais percebidos. A mente fica só. Ainda que ela
seja vazia, produz de novo aparências ilusórias, incluindo a visão, a audição, o tato etc.,
tudo como agora. A alegria, a dor, o medo, portanto, são também experimentados, por meio de um
“corpo mental”, como se todo o meio parecesse real.
A mente permanece assim um certo tempo no bardo; depois, sob a força do karma, ela é
levada a renascer sob uma forma ou outra. Quando isto se produz, todos os fenômenos que se
manifestaram durante o bardo desaparecem. Eles não existem mais em nenhuma parte. Então, é de
novo o “corpo de maturidade cármica” que dá continuidade, como suporte de existência, em uma
das seis classes de seres.
A totalidade de nossa experiência no samsara desenvolve-se, então, por intermédio desses
três corpos: corpo de maturidade cármica, no estado de vigília, corpo dos condicionamentos
latentes, no sonho, corpo mental, no bardo.

VACUIDADE E COMPAIXÃO

Saber que todos os fenômenos são na realidade uma manifestação da mente, que ela mesma é
vazia, desprovida de qualquer característica material, e, sobre esse fundamento, tomar o
caminho das diferentes etapas da meditação — a pacificação mental e a visão superior — caminho
que leva à realização desta vacuidade, é o que se chama a bodhicitta absoluta.
Tendo como referência essa vacuidade de todas as coisas, tomamos consciência que os seres,
pelo fato deles não a realizarem, mas tomarem o mundo como real, são prisioneiros da
engrenagem do desejo, da aversão e da cegueira(avydia). Por esse fato, são sacudidos pelas in-
cessantes ondas do ciclo dos renascimentos, indo de sofrimento em sofrimento. Essa visão da
condição dolorosa dos seres, derivada da ignorância da vacuidade, produz um ímpeto de amor e
de compaixão: é a bodhicitta relativa.
Essa bodhicitta relativa é extremamente poderosa: ela permite purificar-se de condi-
cionamentos latentes e de muito karma negativo, assim como acumular muito mérito e sabedoria.
Essa purificação e essa acumulação proporcionam, por sua vez, uma grande abertura para o
aprofundamento da experiência da vacuidade. Diz-se que permitem que todas as qualidades
cresçam da mesma maneira que as chuvas da monção enchem os rios.
Guiados pela vacuidade e pela compaixão, praticando os seis paramitas — o dom, a ética, a
paciência, a diligência, a concentração e o conhecimento — percorre-se o caminho do mahayana
que, da primeira à décima terra de bodhisattva, conduz ao estado de Buddha.

A TRANSFORMAÇÃO DAS EMOÇÕES

Vimos que a maneira de tratar as emoções conflituosas no hinayana consistia em rejeitá--


las. No mahayana, ao contrário, esforça-se para transformá-las de maneira positiva.
Geralmente, contam-se seis emoções principais, repartidas em dois grupos de três. O
desejo-apego, o ódio-aversão e a cegueira (ignorância) constituem a base sobre a qual se
implantam as outras três: do desejo-apego nasce a possessividade, do ódio-aversão, o ciúme, da
cegueira, o orgulho.
Essas seis emoções conflituosas estão relacionadas com os renascimentos nos diferentes
mundos, segundo sua predominância:
• ódio-aversão conduz ao renascimento nos infernos;
• a possessividade, no mundo dos espíritos ávidos;
• a cegueira, no mundo animal;
• desejo-apego, no mundo humano
• ciúme, no mundo dos semideuses;
• orgulho, no mundo dos deuses.

Em razão do renascimento em uma ou outra condição de existência, as emoções conflituosas


são modificadas pelos atos positivos e negativos: os primeiros produzem as alegrias e as
felicidades dos três mundos superiores (humanos, semi-deuses e deuses), os segundos provocam
os sofrimentos dos três mundos inferiores (animais, espíritos ávidos e infernos).

GRADAÇÃO DAS EMOÇÕES

Podemos classificar as emoções conflituosas segundo a quantidade de sofrimento que


provocam. Desse ponto de vista, o ódio-aversão aparece como o de consequências mais pesadas,
já que causa as dores extremas dos infernos. Em segundo, vem a possessividade que provoca o
renascimento no mundo dos espíritos ávidos, já que a cegueira — a estupidez, a incapacidade de
compreender — conduz ao mundo animal. Em seguida, pode-se colocar o ciúme, causa do
renascimento entre os semi-deuses, envolvidos em querelas e conflitos contínuos, sofrendo de
uma insegurança permanente, resultado de seu desejo de ter o que os outros possuem, em
particular os deuses.
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O desejo-apego e o orgulho são as duas emoções conflituosas cujo predomínio conduz ao


renascimento em mundos relativamente felizes, aqueles dos homens ou o dos deuses. Para que
produzam esse resultado, é preciso, entretanto, que intervenham outros fatores.
Tomemos o exemplo dos deuses. Seu orgulho, isolado de qualquer contexto, leva-os a pensar:
“Eu SOU forte, inteligente, alguém importante”. Foi preciso este orgulho, fortemente dominante
com relação ao desejo, à cólera, ao ciúme etc., para renascer nesse mundo. Se, entretanto, os
deuses gozam ali de todos os prazeres dos sentidos e de uma longa vida, é porque a esse
orgulho foi acrescentado um forte potencial de karma positivo. A vida de um deus vai ser,
portanto, essa mistura de orgulho e de prazer dos sentidos no qual as outras emoções só
intervém muito pouco.
Da mesma maneira, uma predominância do desejo-apego origina a vida humana. Entretanto, ela
será atenuada por outros fatores: um karma positivo anterior permitirá que seja feliz e longa,
enquanto que um karma negativo anterior produzirá doenças, pobreza e numerosas dificuldades.
O desejo-apego não é em si mesmo um defeito, como também não é a causa direta de muitos
atos negativos. Seu inconveniente é ser seguido de ódio, ciúme etc., que são muito nefastos.
Temos, então, seis emoções conflituosas fundamentais; mas elas não poderiam descrever toda
a complexidade da situação. É por isso que consideramos numerosas ramificações que levam a um
número total de 84.000 emoções conflituosas. Sua intervenção leva-nos a errar continuamente no
samsara.
O Buddha apresentou diferentes métodos para tratar essas emoções, conduzindo a diferentes
estados de realização:
• a rejeição, em vigor no pequeno veículo, permite atingir o estado de arhat
• a transformação, tratada pelo grande veículo, conduz ao estado de bodhisattva;
• o simples reconhecimento, ensinado pelo vajrayana, leva ao estado de Buddha nesta
própria vida.
As técnicas de transformação das emoções são diferentes sob o Mahayana dialético ou o
Vajrayana. Iremos tratar aqui do primeiro, unindo a teoria à meditação.

REFÚGIO E BODHICHITTA

Considerando-se que nos situamos no contexto do mahayana, primeiramente devemos lembrar


que não somente nós mesmos, mas todos os seres, são prisioneiros do samsara. Desejamos,
portanto, obter para nós mesmos a libertação e a felicidade que resultam do mahayana, assim
como a capacidade de ajudar os outros e conduzi-los a essa mesma felicidade. Dado que apenas
as Três Jóias podem nos guiar nesse caminho, tomamos refúgio nelas do fundo do coração.
Depois, geramos a mente do Despertar, a bodhicitta, pensando: “Para o bem de todos os seres,
eu me exercitarei na transformação das emoções segundo o ensinamento do mahayana”.
No momento em que nós recitamos a fórmula de tomada de refúgio, pensamos que, no céu a
nossa frente, estão os Buddhas, os bodhisattvas e os textos representando o ensinamento. Em
sua presença, pensamos que nós mesmos e todos os seres, com confiança e respeito, prosternamo-
nos e pedimo-lhes para nos proteger dos sofrimentos do samsara.

(meditação)

Ao final da recitação da tomada de refúgio, pensamos que os Buddhas e bodhisattvas emitem


uma imensa luz que toca todos os seres e os purifica de seus erros e de seus véus. Depois,
sentimos plenamente a graça recebida das Três Jóias e guardamos por um momento a mente em
repouso.
(breve meditação)

Agora, lembramo-nos que todos os seres das três esferas e dos seis mundos foram nosso pai
e nossa mãe em nossas vidas passadas. Todos cometem muitos atos negativos, causa dos
sofrimentos, e experimentam o resultado disso. Pensamos que é preciso retirá-los do oceano de
sofrimentos do samsara e trazê-los ao estado de Buddha e que, para fazer isso, iremos praticar
a meditação do mahayana. Com esse pensamento recitamos a fórmula do desenvolvimento da mente
do Despertar (Bodhichitta).
(meditação)

TRANSFORMAÇÃO DA CEGUEIRA

Tomemos agora a postura de meditação, as costas bem retas, e deixemos nossa mente em
repouso. Nessa mente em repouso, o desejo-apego, o ódio-aversão, a possessividade, o ciúme e o
orgulho estão inativos. Constata-se, entretanto, a presença da cegueira (avydia) que é a base
das outras emoções. Esta cegueira significa que não compreendemos as implicações de nossos
atos e de nossa situação; significa também que, quando um pensamento ou uma emoção se
produzem, nós não vemos, fora do simples sentir do pensamento ou da emoção, qual é a sua
natureza e origem. Primeiramente, iremos meditar tomando por base essa cegueira.
A cegueira vem da ignorância (sct. avydia) fundamental. Ainda que sejam muito semelhantes,
pode-se dizer que a ignorância é o fato de a mente nada perceber, e a cegueira, o fato de nada
compreender. Podemos comparar essas duas noções à obscuridade, uma obscuridade sem lua, sem
estrelas, sem vela, sem eletricidade.
109

Precisamos transformar essa cegueira e essa ignorância, essa “in-consciência”, em cons-


ciência. Para fazer isso, permanecemos simplesmente na vacuidade da mente, que possui de
maneira inerente a capacidade de consciência. Quando um pensamento ou uma emoção se elevam,
continuamos preservando nossa capacidade de percebê-los, de termos consciência deles.
Permanecemos na consciência de nosso estado interior.
Essa meditação é muito fácil. Se a mente permanece na vacuidade, ficamos simplesmente
conscientes dessa vacuidade. Quando um pensamento se produz, só temos que reconhecê-lo, sem
querer interrompê-lo, mas também sem seguí-lo. Depois, quando um outro pensamento se
apresenta, de novo apenas reconhecemos sua presença. É extremamente simples.

(meditação)

A cegueira é não-conhecimento (a-vydia). Por esse processo, nós a transformamos em


conhecimento (vydia), em consciência do que se passa. É muito fácil: a mente permanece
simplesmente lúcida, consciente, seja da ausência de pensamentos, seja dos pensamentos que se
produzem. Não há nada a rejeitar ou nada a produzir. A própria não-consciência se transforma
em consciência.
(meditação)

Esta meditação, que pode ser feita regularmente, é semelhante à luz que afasta a obscu-
ridade da qual falamos há pouco. Ela é um meio de desenvolver o paramita do conhecimento.
(Mahaprajana paramita)

TRANSFORMAÇÃO DO DESEJO

Em segundo lugar, tomemos o desejo. Como podemos transformá-lo em experiência de


felicidade? Tomemos o desejo sexual: ele ocorre ao vermos uma bela mulher ou um belo homem e
provoca uma sensação agradável, ao mesmo tempo física e mental. A esta sensação vai se
acrescentar um elemento complicador: a sede de possuir o objeto do desejo. Esta sede é um
produto da cegueira que não vê que a primeira sensação agradável é suficiente. Faz acreditar
que a posse também é necessária.
Supondo que um homem veja uma mulher bonita, o desejo faz com que ele experimente logo uma
sensação física e mental agradável. Ao mesmo tempo, a cegueira provoca uma vontade de posse,
da qual se espera que consolide a experiência de felicidade. No contexto da meditação que visa
transformar as emoções, detém-se na sensação de felicidade produzida pelo desejo, sem
considerá-la como uma coisa ruim, sem querer rejeitá-la. Fica-se consciente dessa felicidade,
lucidamente, e ela é experimentada sem que se deixe levar pela sede que quer possuir o objeto.
Assim, a alegria proveniente do desejo não causa nenhum problema. Quando pensamos em
alguém que amamos, eleva-se espontaneamente uma alegria interior e um bem-estar físico.
Permanecemos simplesmente não-distraídos nessa sensação de alegria, sem sermos tomados pelas
complicações devidas à sede de posse. O fato de permanecermos nessa sensação, faz com que ela
cresça e leva-nos a um estado de felicidade natural. Meditar assim é extremamente benéfico.
Meditemos, então, agora, pensando em alguém ou em um objeto que nos atraia particu-
larmente, depois, permanecemos na sensação agradável provocada por esse pensamento.

(meditação)

TRANSFORMAÇÃO DA AVERSÃO

No mahayana, os meios de tratar o ódio-aversão são tão numerosos, quanto é forte a


insistência sobre o amor e a compaixão. Vejamos simplesmente aqui como abordar o ódio/aversão
do ponto de vista da meditação.
Quando um forte acesso de cólera se manifesta, produz-se ao mesmo tempo na mente uma
grande vivacidade, um grande vigor, como um raio que proporciona um possante dinamismo.
Entretanto, mais uma vez, por causa da cegueira, esse vigor não é reconhecido; deixamo-nos
levar pelas complicações que o acompanham, dirigidas ao objeto que suscitou nossa cólera:
pensamos em prejudicar, bater ou matar. Contudo, a essência dessa cólera, longe de se situar
na obscuridade, é uma grande claridade. É preciso, portanto, que olhemos essa essência,
permanecendo sem distração nessa claridade. Assim operamos a transformação da emoção: a cólera
é transformada em claridade.
Para realizar nosso exercício de meditação, pensemos agora em uma pessoa ou uma situação
que provoque nossa raiva. Sem seguir o movimento dessa raiva, permanecemos sem distração na
claridade que a acompanha.
(meditação)

Assim, cada vez que se produzir em vocês um movimento de raiva ou de aversão, vocês podem
permanecer na essência clara que a subentende, sem procurar rejeitar ou seguir a raiva, mas
fixando-se em sua vivacidade. Desse modo a raiva se transformará em claridade.
110

TRANSFORMAÇÃO DO ORGULHO

“Sou melhor que os outros”, “Sou muito inteligente; sou importante”: esses pensamentos
característicos de um forte apego ao “eu” constituem o orgulho. Quando o orgulho se produz,
permanece-se neutro diante dele, sem rejeitá-lo ou segui-lo, conservando simplesmente a mente
nesse sentimento, sem distração; a partir de então esse orgulho, comparável a uma montanha,
encontra-se naturalmente aplainado. O “eu” perde sua supervalorização.

(meditação)

Na medida em que aprendemos a meditar dessa maneira, as numerosas ocasiões em que o


orgulho se eleva em nossa mente acabam sendo muito proveitosas, pois se transformam no
suporte para o desenvolvimento do quinto paramita, o da concentração. Ao mesmo tempo, o
orgulho, nascido da assimilação de um “eu”, quando se apaga pelo fato de olharmos sua
essência, da lugar à percepção da ausência do eu.

TRANSFORMAÇÃO DA POSSESSIVIDADE

Todos nós somos marcados pelo conjunto das emoções conflituosas. Dentre elas, a
possessividade, que se aplica ao nosso corpo, a nossa casa, a qualquer de nossos bens, está
sempre muito presente e é muito forte. Qualquer que seja a forma que ela se apresente, podemos
neutralizá-la pelo dom praticado em diferentes graus: o dom dos bens materiais é o primeiro
grau, o dom de sua família é o segundo, o dom de seu sangue e de sua carne constitui a forma
mais elevada. O mahayana oferece assim uma grande variedade de meios colocando em prática a
generosidade para suplantar a possessividade.

Do ponto de vista da meditação, onde nos situamos agora, quando a possessividade se


produz, nós a tratamos do mesmo modo que as emoções precedentes: sem segui-la ou rejeitá-la,
permanecemos simplesmente no sentimento que é a sua base. Assim, a possessividade ordinária se
tornará um sentimento de contentamento, neutro, do qual se apagará espontaneamente o caráter
nocivo. Quando a possessividade desaparece, ela é automaticamente transformada em seu oposto:
uma generosidade fundamental.
TRANSFORMAÇÃO DO CIÚME

O ciúme é comparável a um espinho: espeta não somente os outros, mas volta-se também
contra aquele que o concebe, deixando-o muito incomodado e tornando-o infeliz. Cada vez que o
ciúme se elevar, permaneçamos simplesmente fixados nele, sem segui-lo ou rejeitá-lo: ele se
apaziguará automaticamente e não poderá “espetar”. Encontrará espontaneamente sua essência que
é a paz interior. Assim, o ciúme é transformado em paz, ao mesmo tempo que, do ponto de vista
dos seis paramitas, ele se encontra associado à quarta, a diligência.
Dessa forma, vimos brevemente como abordar as seis principais emoções conflituosas por
meio da meditação. Entretanto, é a transformação das três primeiras — desejo-apego, ódio-
aversão e cegueira — que é necessário se dedicar primeiramente. Assim, o desejo-apego será
transformado em felicidade vazia, o ódio-aversão em claridade vazia e a cegueira em
conhecimento. Isto mostra como este tipo de meditação sobre as emoções é benéfico. As três
emoções de base são para nós a fonte mais abundante de atos negativos, de problemas e de
sofrimentos; por isso, é necessário abordá-las em primeiro lugar. As outras três — posses-
sividade, orgulho e ciúme — são apenas corolários.
Todas as emoções conflituosas vêm da mente. Para concluir, permanecemos um momento na
vacuidade da mente, depois dedicaremos o mérito deste ensinamento e desta prática ao bem-estar
de todos os seres.
(meditação)
BUDISMO TIBETANO – Kalu Rinpoche Vancouver, junho de 1982.

O VAJRAYANA E O TRATAMENTO DAS EMOÇÕES:

O SIMPLES RECONHECIMENTO

Ao longo deste ensinamento, iremos considerar, na perspectiva do Vajrayana, como se opera,


pela meditação, a liberação das emoções conflituosas em seu simples reconhecimento.
O Vajrayana, de um modo geral, oferece instruções que tratam de maneira específica os
pensamentos e as emoções, de modo a permitir um progresso muito rápido no caminho do
Despertar. Considerando-se que os humanos pertencem a um domínio de manifestação chamado a
“esfera do desejo”, uma atenção especial é dada ao desejo-apego. Estabelece-se particularmente
uma correspondência entre as quatro classes de tantras e os quatro graus de complexidade
crescente de satisfação do desejo sexual que eles permitem tratar.
111

FELICIDADE E INFELICIDADE NO OCIDENTE

Os americanos e os canadenses (e por extensão os europeus) são certamente pessoas que


possuem um grande mérito proveniente de suas vidas passadas. Deduzimos isso pelo fato de, por
um lado, suas condições de vida exteriores serem extraordinárias e, de outro lado, por terem
podido receber ensinamentos, iniciações e instruções da prática de personalidades eminentes
como o Dalai Lama, o Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpocbe, Situ Rinpoche, Shamar Rinpoche, ou
Jamgön Kongtrul Rinpoche. Têm também a sorte de terem se estabelecido em seu território lamas
tão notáveis como Trungpa Rinpoche e outros. A América do Norte dispõe, então, de um grande
potencial positivo.

O país é belo, as casas muito confortáveis, a prosperidade evidente em todos os setores, a


começar pela alimentação e roupas. A abundância e a qualidade dos bens materiais são tais, que
acreditamos estar no mundo dos deuses. Primeiramente, somos levados a pensar que as pessoas
que vivem num tal contexto só podem ser felizes. Entretanto, a mente dos norte-americanos* não
parece sempre de acordo com seu ambiente: ao invés de encontrar ali felicidade, percebem-se
muitas dificuldades, insatisfações e sofrimentos. De onde vêm esses problemas? Das emoções
conflituosas, mais particularmente do desejo-apego, que os ocidentais não sabem transformar
nem afastar. Parece-me que se as emoções perdessem seu poder, o país se tornaria um lugar
extraordinário, onde a alegria e a paz se casariam com a prosperidade.
* (Ou dos europeus. Isto significa que quem não tem nada para comer é atormentado pela maneira mais imediata de conseguir alimento; quanto àquele que está saciado, sua mente é atormentada pelos prazeres

dos sentidos. Parece-me que os ocidentais, mais freqüentemente, têm a barriga cheia... É por isso que a utilização de meios que permitem dissipar as emoções conflituosas e particularmente o desejo, parece-me

indicada para conduzir a uma verdadeira paz e a uma verdadeira felicidade)

Um provérbio tibetano diz:

Barriga vazia só pensa em roubo


Barriga cheia só pensa no desejo.

ORIGEM DAS EMOÇÕES

Vimos, com relação ao mahayana, métodos que permitem transformar as emoções. Há no


vajrayana métodos que visam purificar as emoções para que elas se tornem as cinco sabedorias
ou os cinco Buddhas Patriarcas. Esses métodos implicam visualizações complexas que não podem
ser ensinadas em público e não podemos, portanto, abordá-las aqui. Entretanto, existe no
vajrayana uma outra abordagem das emoções, fácil de expor e de praticar, muito benéfica, que
consiste no “simples reconhecimento”.
Para abordar este método, é preciso, inicialmente, compreender de onde vêm as emoções. É
evidente, em primeiro lugar, que as emoções não são produzidas nem pelo corpo, nem pela
palavra. Tomemos um cadáver: ele permanece um envelope físico, mas desprovido de mente.
Ninguém nunca ouviu falar de um cadáver experimentando o desejo, a cólera, o ciúme ou o
orgulho. Portanto, não podemos atribuir de modo algum as emoções ao corpo. Ele não possui
nenhuma faculdade para experimentá-las. A palavra também não possui essa faculdade: é apenas
um acúmulo de sons, comparável a um eco, logo, desprovida ela própria da capacidade de
experimentar o quer que seja.
As emoções só podem vir da própria mente. Isto não significa que o corpo e a palavra não
estejam implicados no processo emocional; mas eles o estão a título de executantes ou de
servidores. Eles não são os mestres da situação. Se a mente, por exemplo, pensa que é preciso
abrir a janela, é o corpo que vai abri-la; se a mente pensa que é preciso acender a luz ou ir
embora, é o corpo que vai acionar o interruptor ou se deslocar. O corpo só pode intervir a
serviço da mente, mas ele mesmo não toma nenhuma iniciativa. Do mesmo modo, o corpo não dirige
as emoções conflituosas, mas se coloca a serviço da mente que as produz.
Os tibetanos utilizam muito a palavra em suas práticas espirituais, recitando um grande
número de mantras ou de orações, pois estão convencidos de que, por meio disso, opera-se uma
profunda purificação, assim como uma vasta acumulação de mérito. Dessa forma, eles podem
passar horas recitando. Os ocidentais, ao contrário, parecem pensar que apenas a mente importa
e nutrem dúvidas sobre a eficácia de uma prática da palavra. Por isso, a recitação de mantras
ou da oração de refúgio é para eles difícil e não conseguem fazê-la bem por um tempo longo.
Eles esquecem simplesmente que, quando a palavra atua, está a serviço da mente que a dirige;
portanto, é sempre a mente que está em jogo.

MEDITAÇÃO SOBRE A MENTE

Essa mente que penetra todas as coisas, essa mente comum a todos, precisamos compreender o
que ela é.
A mente, em primeiro lugar, é vazia, no sentido de que não existe enquanto objeto: não tem
cor, nem forma, nem peso etc. Também não tem lado, nem fronteira, nem centro, nem
circunferência. Nada sendo materialmente, é semelhante ao espaço. E necessário saber isto,
pois a vacuidade é muito diferente da experiência que temos agora de nossa mente: algo de
112

muito pequeno, que chamamos “eu”, algo limitado ao nosso corpo, algo estreito e conse-
qüentemente fonte de numerosos problemas.
Deixando nossas costas bem retas, meditamos nessa vacuidade vasta como o espaço, a mente
aberta.
(meditação)

“Tenho uma mente; ela se encontra em meu corpo; quero ter as coisas que me agradam, evitar
o que me desagrada”: este modo de funcionamento constitui um fardo pesado que nos causa muitos
aborrecimentos. Se, ao contrário, colocamo-nos em um estado de abertura e de tranqüilidade
onde reconhecemos a mente tal como ela é verdadeiramente, penetrando todas as coisas,
desprovida de qualquer limitação material, experimentamos, então, naturalmente, uma sensação
de calma e leveza, sem nenhuma complexidade.

(meditação)

A vacuidade da mente na qual nós nos colocamos é semelhante ao espaço, não um espaço
obscuro onde não brilham nem o sol, nem a lua, nem mesmo as estrelas, mas um espaço iluminado
pelo sol, límpido e vasto. Quando nos colocamos na natureza da mente, em sua vacuidade,
devemos fazê-lo com essa qualidade de abertura e limpidez. Em segundo lugar, meditamos, então,
sobre a “claridade” da mente. Vacuidade e claridade não são dois aspectos que poderiam ser
isolados, ficando cada qual de um lado diferente. Da mesma maneira que num dia ensolarado o
céu e a luz são apenas um, a claridade e a vacuidade da mente estão indissoluvelmente
misturadas.
(meditação)

Vacuidade e claridade são, em si mesmas, inertes: elas não podem gerar nenhum ato benéfico
ou negativo, não podem engendrar nem pensamentos nem emoções conflituosas. Quando permanecemos
no estado de claridade-vacuidade, semelhante ao espaço vazio, há ao mesmo tempo uma qualidade
conhecedora, uma inteligência (sct. vydia, tib. rikpa) que está consciente da claridade e da
vacuidade. A vacuidade-claridade é como a palma da mão e essa inteligência, como a percepção
evidente que temos dela. Todavia, na natureza da mente nada divide esses três aspectos.
Meditemos, agora, tomando particularmente consciência dessa inteligência.

(meditação)

A MENTE ESPAÇOSA

Assim, a mente é descrita sob esses três aspectos: vacuidade, claridade, inteligência.
Caso se medite apoiado nesses três aspectos, de modo muito vasto, muito amplo — praticando-se
a pacificação mental, a visão superior ou as fases de criação e de conclusão das divindades do
vajayana — isto produzirá um grande conforto, uma grande facilidade e aumentará a eficácia.
Se, ao contrário, permanecermos na nossa percepção comum: “Este sou eu, eu estou nesse corpo”,
as mesmas práticas serão realizadas com dificuldade, de maneira estreita como se estivéssemos
presos num desfiladeiro estreito do qual não saberíamos como sair. Portanto, é muito
importante saber meditar da maneira que acabamos de mostrar.
Mesmo quando o lama que dá as instruções sobre a pacificação mental, a visão superior ou
as meditações das divindades seja perfeito, se o discípulo abordar essas técnicas com a mente
fechada em si mesma, nunca verá o desenvolvimento das qualidades que delas decorrem. Ao
contrário, corre um grande risco de se irritar por causa do lama e de ficar ressentido com
ele!
Essa mente, união da vacuidade, da claridade e da inteligência, vai em direção ao estado
de Buddha; mas é ela também que erra no samsara. Quando meditamos, é a mente que medita;
quando se elevam emoções conflituosas ou pensamentos, é ela que os experimenta. Nada é
experimentado fora da mente.
A MENTE EM PLENO VÔO

Caso se medite tendo compreendido bem essa tríplice natureza — vacuidade, claridade e
inteligência — da mente, medita-se com a liberdade de um pássaro que voa no céu. Nada obstrui
a sua rota; pode ir aonde quiser. Nossa meditação será, então, eficaz. Caso contrário, seremos
como uma criatura com muitas patas presa num espaço muito pequeno.
Durante a meditação, algumas pessoas sentem dor de cabeça, outras dores nos olhos, nos
ombros, ou ainda sentem incômodos em outras partes do corpo. Todas essas dores vêm de uma
mente em uma atitude fechada.
Podemos comparar nossa mente dotada desses três aspectos com o mar. As emoções
conflituosas e os pensamentos que nela se produzem são como as ondas. As ondas do mar são
muito numerosas; mas elas são apenas água, a mesma água do mar. Do mesmo modo, todos os
pensamentos e todas as emoções procedem da mente e se reabsorvem na mente. Pode ser útil
meditar na beira do mar: pode-se ver, vindo de longe, pequenas ondas que se formam, que depois
crescem até ficarem enormes e parecerem capazes de destruir tudo em sua passagem. As ondas
voltam em seguida para o mar e não sobra nada delas. As emoções e os pensamentos, do mesmo
modo, elevam-se em nossa mente, ganham um enorme poder e acabam por voltar para a vacuidade
113

não sobrando nada deles. Depois surgem outros, que por sua vez se dissipam, para dar lugar a
outros.
Sejam, então, hábeis ao meditar. Quando, por exemplo, um desejo poderoso, quase
irresistível, eleva-se na mente, tomem a postura de meditação e permaneçam em um estado de
grande abertura. Quando o desejo se elevar, olhem simplesmente a mente neste desejo que se
eleva, sem se deixarem distrair por outra coisa; o desejo se liberará então por si mesmo na
vacuidade. Cada vez que ele voltar, olhem-no da mesma maneira e cada vez ele se desfará. Ao
meditar assim, o desejo se libera na consciência primordial. A partir de então as próprias
manifestações das emoções serão benéficas e não poderão mais incomodá-los.

RECONHECER A ESSÊNCIA

Tentemos, agora, fazer a experiência da qual falamos. Tomando a postura de meditação


correta, deixemos que nossa mente repouse na vacuidade, na claridade e na inteligência. Sem
dúvida, irão surgir pensamentos de desejo, de cólera ou de ciúme. Quando se manifestarem,
permaneçamos com relação a eles em um estado de simples reconhecimento. Não devemos pensar que
devem desaparecer ou que é preciso pará-los, mas simplesmente reconhecer sua essência. Desse
modo eles se liberam por si mesmos.
(meditação)

Nesse tipo de meditação, todas as emoções conflituosas são tratadas do mesmo modo. Mesmo
quando se elevam em grande número, é uma boa coisa. Não se deve rejeitá-las. Basta reconhecer
sua essência; isto não é difícil. E por essa razão que dizemos que elas se liberam por si
mesmas.
A emoção principal que vocês encontram é, sem dúvida, o desejo-apego. Se puderem aprender
a tratá-la mediante esse tipo de meditação, poderão em seguida estender essa abordagem às
outras emoções. Gampopa comparava a meditação a um fogo; quanto mais se alimenta o fogo com
madeira, mais potente e vivo ele se torna. Para o praticante, da mesma maneira, quanto mais a
meditação encontra emoções conflituosas, mais forte brilha a consciência primordial.
Quando, após o trabalho, vocês se sentem cansados, mental e fisicamente, se estabelecerem
a mente nesse estado aberto e espaçoso do qual falamos, o cansaço logo desaparecera; vocês se
sentirão relaxados e tranqüilos. Quando, por outro lado, uma forte emoção conflituosa se
eleva, se, do mesmo modo, vocês colocarem a mente em um estado semelhante ao espaço, a emoção
se liberará por si mesma. Isso será extremamente proveitoso.
Em primeiro lugar, é preciso compreender bem no que consiste esse tipo de meditação,
depois aplicá-la. Antes de mais nada, talvez não seja tão fácil compreendê-la como falar dela;
depois, a tendo compreendido, se não a praticarmos, não poderemos extrair nenhum benefício
dela. Logo após ter alcançado o Despertar, o Buddha disse:

“Encontrei um dharma semelhanteà ambrosia,


Profundo, pacífico, simples, indiviso, radiante.
Como ninguém compreenderia o que eu poderia mostrar,
Permanecerei mudo no meio da floresta”.

Então, ele permaneceu absorvido em sua meditação. Algumas semanas mais tarde, os grandes
deuses da Índia védica, Brahma e Indra, vieram lhe implorar para que ensinasse aos homens que,
sem ninguém para guiá-los, eram como cegos no samsara. Atendendo a esse pedido, aceitou
ensiná-los.

Questão — Essa prática, na qual as emoções se liberam por si mesmas, é suficiente para
chegar ao Despertar?
Kalu Rinpoche — Sim, é possível, pois ela permite que as emoções se transformem em
sabedorias, mais precisamente naquilo que, no nível do Despertar, é chamado as “cinco
sabedorias” e que, no nível dos meios, é representado pelos cinco “Buddhas Patriarcas”.

Questão — Rinpoche explicou-nos que as emoções se elevavam da mente e voltavam para ela.
Mas, quando penso em minha própria experiência, não vejo muito bem, nesse caso o que se chama
mente. É apenas uma palavra, mas que não designa nada em particular. Acredito ter uma mente,
mas não posso encontrá-la.

Kalu Rinpoche — Para responder a essa questão, podemos tomar uma citação do Terceiro
Karmapa, Rangjung Dorje:

A mente: não há mente, ela é vazia de essência mental;


Vazia, ela é ao mesmo tempo livre e se manifesta em todas as coisas.
Possa um perfeito exame eliminar toda indecisão.
E ainda:
A mente não é existente. os próprios Vencedores (Os Budhas) não a vêem;,
Ela não é inexistente, é o fundamento universal do samsara e do nirvana;
Ela não é o amálgama de contrários, mas a união, o caminho do meio;
Possa eu realizar o aquilo-mesmo da mente desprovida de extremos.
114

Forneci-lhes os métodos que, acredito, permitem que toda vez que se produzam emoções
conflituosas, pensamentos ou sofrimentos, eles se liberem por si mesmos. Agora, depende de
vocês colocá-los em prática ou não. Vocês podem escolher permanecer enredados nas emoções
conflituosas ou então livrar-se delas. A escolha é sua: podem continuar prisioneiros ou
colocar-se em uma situação confortável, deixando que as emoções liberem-se por si mesmas.
Vancouver, junho de 1982.

TRAÇOS SOBRE A ÁGUA

No Vajrayana, encontramos as três maneiras de tratar as emoções conflituosas em relação


aos tantras ditos exteriores, interiores e secretos. Os tantras exteriores utilizam a rejeição
das emoções, os tantras interiores sua transformação e os tantras secretos, o simples
reconhecimento de sua essência. O Vajayana representa, de fato, o caminho mais direto para
escapar do império das emoções. Até Marpa, o tradutor, a maioria dos praticantes não se
colocavam em uma situação em que se protegiam exteriormente das emoções, mas tratavam-nas
interiormente. O próprio Marpa dava um exemplo que permitia compreender o que era sua
experiência do desejo e da cólera, diferente do que os outros podiam perceber. Para as pessoas
do exterior, dizia, suas emoções assemelhavam-se a desenhos gravados em uma rocha; para ele,
eram apenas traços sobre a superfície da água.
Os métodos que permitem se liberar das emoções por meio da rejeição, da transformação ou
do reconhecimento da essência, pertencem todos ao ensinamento do Buddha. Entretanto, ele não
os ofereceu em um único contexto, mas expôs esta ou aquela abordagem em relação às variadas
faculdades daqueles às quais esses métodos se destinavam, propondo cada vez o método que se
revelava mais útil.
Do livro: BUDISMO TIBETANO – Kalu Rinpoche

O ESTADO DE BUDA
Dilgo Khyentse Rinpoche

Como o samsara se manifesta? O que quer que percebamos ao nosso redor com nossos cinco
sentidos, todos os tipos de sentimentos de relação e repulsão, se formam em nossa mente. Não
são as percepções em si que nos mantém no ciclo de existências, mas sim o modo pelo qual
reagimos a elas e o modo pelo qual as interpretamos. É nisso que o Vajrayana nos dá meios
extraordinários para não perpetuar o samsara: ele nos mostra como perceber os fenômenos como
sendo a exibição pura da sabedoria.
O ódio ou a raiva que possamos sentir por alguém não são inerentes àquela pessoa. Eles
existem apenas em nossa mente. Assim que vemos o nosso inimigo, nossos pensamentos se fixam na
memória do mal que ele fez para nós, em seus ataques presentes e naqueles que poderá fazer no
futuro. Tornamos-nos irritados a ponto de não sermos mais capazes de suportar o som de seu
nome. Quanto mais liberdade nós damos a estes pensamentos, mais a raiva irá nos invadir e,
com ela, a vontade irresistível de pegar uma pedra para lhe jogar, ou de um bastão para lhe
bater. Deste modo, um simples instante de raiva nos conduz ao paradoxo do ódio.
O ódio parece muito poderoso para vocês, mas de onde ele tira o poder de dominá-los a esse
ponto? É uma força externa, com braços e pernas, armas e guerreiros? Ou é uma força interna,
que está dentro de vocês? Se esse for o caso, vocês podem identificá-la em seu cérebro, em seu
coração, ou em alguma parte de vocês?
Apesar de ser impossível de localizá-lo, o ódio parece ter uma presença muito concreta que
tende a amarrar a mente, a solidificá-la, e desse modo a desatrelar todo um processo de
sofrimento para vocês e para os outros. Assim como as nuvens que, apesar de serem
insubstanciais para suportar o menor peso, podem encobrir o céu e o sol, do mesmo modo os
pensamentos podem obscurecer o brilho da consciência iluminada. Reconheçam a vacuidade da
mente, sua transparência, e ela retornará por si mesma ao seu estado natural de liberdade.
Reconheça a vacuidade do ódio e ele perderá seu poder de fazer o mal. Ele se tornará a
sabedoria que é como o espelho.
Quando falamos da ignorância, nos referimos ao fato de que não estamos conscientes de
nossa natureza de Buda. Comportamos-nos como um mendigo que segura uma jóia preciosa, mas a
joga fora porque não sabe do seu valor. É por causa da ignorância que não acreditamos no
karma, nas conseqüências inevitáveis de nossos atos. Congelados pela ignorância, falhamos em
reconhecer a vacuidade e persistimos em acreditar na realidade dos fenômenos. Esta crença é a
fonte de todas as percepções ilusórias e é a raiz das oitenta e quatro mil emoções negativas.
Porém, ao contrário das trevas de uma caverna subterrânea, escondida da luz solar, a
ignorância não é eterna. Como qualquer fenômeno, ela pode emergir apenas da vacuidade e não
tem existência independente. Uma vez que vocês tenham reconhecido sua verdadeira natureza, a
vacuidade, a ignorância se transforma na sabedoria da dimensão absoluta.
Deixados por si mesmos, os pensamentos criam o ciclo das existências. Na ausência do exame
crítico, eles retêm sua realidade aparente, perpetuando o samsara com uma força que aumenta
cada vez mais. Porém, nenhum deles, seja bom ou ruim, possui a menor realidade tangível.
Todos, sem exceção, são inteiramente vazios, como arco-íris, imateriais e intocáveis. Nada
pode alterar a natureza de Buda, mesmo quando os véus superficiais a escondem de nossa visão.
115

Os pensamentos são o jogo da consciência. Eles surgem nela e se dissolvem nela. Se


reconhecermos que esta consciência está na própria origem dos pensamentos, deveremos
compreender que os pensamentos nunca começaram, continuaram ou deixaram de existir. Neste
ponto, os pensamentos são incapazes de perturbar a mente.
Enquanto corrermos atrás de nossos pensamentos, seremos como o cachorro que corre atrás de
uma pedra; não importa quantas pedras joguemos, ele correrá atrás delas a toda hora. Porém, se
olharmos para a consciência, que está na origem de todos os pensamentos, cada pensamento
surgirá e se dissolverá dentro do espaço dessa consciência, sem gerar outros pensamentos.
Deste modo, seremos como um leão, que não corre atrás da pedra, mas sim atrás daquele que a
jogou... e só se joga uma pedra em um leão!
Para conquistar a cidadela não-criada da natureza da mente, devemos ir à fonte e
reconhecer a origem dos pensamentos. De outro modo, um pensamento dará origem a um segundo,
então a um terceiro e assim por diante. Assim, estamos constantemente obcecados pelas memórias
do passado, antecipamos o futuro e perdemos a consciência do momento presente.
Vamos preservar o estado da simplicidade. Se experimentarmos felicidade, sucesso,
abundância e outras condições favoráveis, devemos considerá-las como sonhos, ilusões, e não
nos apegarmos a elas. Se formos golpeados pela doença, calúnia, destituição ou por outras
provações físicas ou morais, devemos evitar ficar desencorajados, reavivar nossa compaixão e
desejar que os sofrimentos de todos os seres se exaurem pelo nosso sofrimento. Então, em todas
as circunstâncias, sem cair nos estados de euforia ou desespero, vamos permanecer livres, à
vontade, desfrutando da serenidade imperturbável.
Se a nossa mente, sendo livre do passado e do futuro, repousa em um estado de consciência
clara, sem ser atraída por objetos externos ou se preocupar pelas elaborações mentais, ela
ficará na simplicidade primordial. Neste estado, a mão de ferro da vigilância forçada não tem
a necessidade de imobilizar os pensamentos. Diz-se que “o estado de Buda é a simplicidade
natural da mente”. Uma vez que tenhamos esta simplicidade, devemos preservá-la com uma atenção
livre de esforço. Devemos assim desfrutar da liberdade interior, dentro da qual é
desnecessário bloquear os pensamentos ou temer que eles interrompam a meditação.
O estado de Buda parece ser uma meta distante, virtualmente fora de nosso alcance. Porém,
a vacuidade natural de nossa mente é o Corpo Absoluto, sua expressão luminosa é o Corpo do
Êxtase Perfeito, a compaixão universal que emana dele é o Corpo Manifesto, e a unidade
intrínseca destes três corpos é o Corpo Essencial. Estes quatro corpos do Buda, ou kayas,
sempre estiveram presentes em nós; é apenas por ignorar a sua presença que nós os consideramos
como sendo uma meta externa.
“Minha meditação está correta? Quando farei progresso? Jamais atingirei o nível de meu
mestre espiritual”. Dividida entre a esperança e a dúvida, nossa mente nunca está em paz.
Conforme o nosso humor, um dia praticamos intensamente e, no dia seguinte, nem tanto. Somos
apegados às experiências agradáveis que emergem do estado de calma mental e desejamos
abandonar a meditação quando falhamos em tentar reduzir o fluxo de pensamentos. Esse não é o
modo correto de praticar.
Qualquer que seja o estado em que nossos pensamentos estejam, devemos nos aplicar
constantemente à prática regular, dia após dia, observando o movimento de nossos pensamentos e
voltando até a origem deles. Não devemos esperar ser imediatamente capazes de manter, dia e
noite, o fluxo de nossa concentração. Quando começamos a meditar sobre a natureza da mente, é
preferível fazer sessões curtas de meditação, várias vezes por dia. Com perseverança,
realizamos progressivamente a natureza de nossa mente, e essa realização se tornará mais
firme. Neste estágio, os pensamentos terão perdido o poder de nos perturbar e de nos subjugar.
A vacuidade, a natureza última, o Dharmakaya, o Corpo Absoluto, não é um simples “nada”.
Ela possui, intrinsecamente, a faculdade de conhecer os fenômenos. Esta faculdade é o aspecto
luminoso ou cognitivo do Dharmakaya, cuja expressão é espontânea. O Dharmakaya não é o produto
de causas e condições; é a natureza original da mente.
O reconhecimento desta natureza primordial assemelha-se ao nascer do sol da sabedoria na
noite de ignorância: a escuridão é dissipada instantaneamente. A claridade do Dharmakaya não
aumenta e diminui como a lua; é como a luz imutável que brilha no centro do sol.
Quando as nuvens se amontoam, a natureza do céu não é corrompida; e quando as nuvens se
dispersam, ela não é melhorada. O céu não se torna menos ou mais vasto. Ele não muda. É o
mesmo com a natureza da mente: ela não é deteriorada pela chegada dos pensamentos, nem
melhorada pelo desaparecimento deles.
A natureza da mente é a vacuidade; sua expressão é a claridade. Estes dois aspectos são,
essencialmente, um único aspecto - simples imagens projetadas para indicar as diversas
modalidades da mente. Seria inútil se apegar em torno da noção de “vacuidade” e então da
“claridade”, como se fossem entidades independentes. A natureza última da mente está além de
todos os conceitos, de toda definição e de toda fragmentação.
“Eu poderia caminhar sobre as nuvens!”, diz uma criança. Mas se ela alcançasse as nuvens,
não encontraria lugar algum para colocar seus pés. Igualmente, se não examinarmos os
pensamentos, eles apresentam uma aparente solidez; mas se os examinarmos, nada há lá. Isso é o
que é chamado de ser, ao mesmo tempo, vazio e aparente.
A vacuidade da mente não é o nada, nem um estado de entorpecimento, pois ela possui, por
sua própria natureza, uma faculdade luminosa de conhecimento, que é chamada de consciência, ou
consciência iluminada. Estes dois aspectos, a vacuidade e a Consciência, não podem ser
116

separados. Eles são essencialmente um, como a superfície do espelho e as imagens que são
refletidas nela.
Os pensamentos se manifestam dentro da vacuidade e são reabsorvidos nela, assim como um
rosto que aparece e desaparece em um espelho; o rosto nunca esteve no espelho, e quando cessa
o reflexo, ele não deixou de existir realmente. O próprio espelho nunca mudou. Assim, antes de
entrarmos no caminho espiritual, permanecemos no assim chamado estado “impuro” do samsara, que
é, aparentemente, governado pela ignorância. Quando nos comprometemos a esse caminho, cruzamos
por um estado onde a ignorância e a sabedoria estão misturadas. Ao final, no momento da
Iluminação, apenas o conhecimento puro existe, mas ao longo do caminho desta jornada
espiritual, apesar de aparentemente existir uma transformação, a natureza da mente nunca
mudou: ela não foi corrompida ao entrar no caminho e não foi melhorada na hora da realização.
As qualidades infinitas e inexprimíveis do conhecimento primordial - o verdadeiro nirvana
- são inerentes à nossa mente. Não é necessário criá-las, fabricar algo novo. A realização
espiritual serve apenas para revelá-las através da purificação, que é o próprio caminho.
Finalmente, se considerarmos do ponto de vista último, estas qualidades são, por si mesmas,
apenas o vazio. Assim, o samsara é vacuidade, o nirvana é vacuidade - e, conseqüentemente, um
não é “mal” e nem o outro é “bom”. Quem realizou a natureza da mente é livre do impulso de
rejeitar o samsara e de obter o nirvana. É como uma criança que contempla o mundo com uma
simplicidade inocente, sem conceitos de beleza ou feiura, de bem ou mal. Ele não é mais vítima
de tendências conflitantes, a fonte dos desejos ou aversões.
De nada serve se preocupar com os rompimentos da vida diária, como uma criança que se
alegra ao construir um castelo de areia e que chora quando ele desmorona. Veja como os seres
pueris se jogam nas dificuldades, como uma borboleta que mergulha na chama de um lampião, para
se apropriar do que desejam e se libertar do que odeiam. É melhor deixar o fardo, que todos
estes apegos imaginários trazem, do que suportá-lo em cima de nós.
O estado de Buda contém, em si mesmo, três “corpos” ou aspectos do estado búdico: o Corpo
Manifesto, Nirmanakaya, o Corpo Luminoso Sambhogakaya, e o Corpo Absoluto, o Corpo Essencial o
Imutável Corpo de Diamante Dharmakaya. Eles não devem ser buscados fora de nós: eles são
inseparáveis do nosso ser, de nossa mente. Assim que tenhamos reconhecido esta presença, há um
fim para a confusão. Não teremos mais qualquer necessidade de buscar a Iluminação a partir de
fora. O navegante que aportou em uma ilha feita inteiramente de fino ouro não irá encontrar
uma simples pepita, não importa o quanto procure. Devemos entender que todas as qualidades do
Buda sempre existiram inerentemente em nosso ser.

REVELANDO A NOSSA NATUREZA ESSENCIAL

(...) A base do nosso ser é a essência búdica, a natureza búdica. Todos os seres, quer
grandes quer pequenos, têm essa natureza fundamental, essa pureza essencial. Como o ouro
incrustado no minério, a verdade da nossa natureza, embora seja uma pureza que não teve
princípio nem terá fim, não é obvia para nós. Pelo fato de ser essa a nossa natureza
fundamental, podemos revelá-la por meio da prática, da mesma forma que o refinamento revela o
ouro que existe de forma inerente no minério.
Essa essência, desde tempos sem princípio, é completamente isenta de substância, vazia.
Embora possamos tentar encontrar características a partir das quais definiríamos e
entenderíamos a vacuidade, ela não pode ser concebida por conceitos ordinários. Assim, ela é
desprovida de sinais e características. Nada mais é preciso, além de mantermos o
reconhecimento da nossa natureza fundamental, para que o fruto – as qualidades plenas, a
realização completa dessa pureza inerente – seja revelado. O que revelamos não está além de
nossa natureza fundamental e, nesse sentido, está além de qualquer desejo. Não há nada que
esteja faltando, nada que esteja em outro lugar a que devamos aspirar para que aconteça. Ela é
isenta de aspiração.
Pelo fato de não reconhecermos essa natureza – não nos darmos conta de que, embora as
aparências surjam incessantemente, nada na verdade, está presente – emprestamos solidez e
realidade à verdade aparente do “eu” e do “outro”. E das “ações” que ocorrem entre “eu” e
“outro”. Esse obscurecimento intelectual é causa do apego e aversão, seguidos de ações e
reações que criam carma, solidificam-se em hábitos e perpetuam os ciclos de sofrimento. Esse
processo todo é que precisa ser purificado.
Na primeira das três etapas sucessivas de ensinamentos, chamada “o primeiro giro da roda
do Dharma”, o Buda ensinou as quatro nobres verdades: a verdade do sofrimento, da origem do
sofrimento, do caminho pelo qual ele é erradicado e a verdade de sua cessação. No segundo giro
da roda do Dharma, ele ensinou que a verdadeira natureza de todos os fenômenos é vazia,
desprovida de sinais e de aspiração: a natureza fundamental é a vacuidade, o caminho é isento
de sinais e o fruto, isento de aspiração. No terceiro giro da roda, ele falou das qualidades
da natureza da mente que são plenas, infalíveis e resplandecentes, falou da aparência da clara
luz da sabedoria.
A tradição Vajrayana ensina a inseparabilidade, desde tempos sem princípio, de duas
coisas: a união entre a natureza não-nascida da mente e as qualidades puras da clara luz da
sabedoria, uma união que está além das palavras. Pura, imutável, não-composta e onipresente –
essa é a natureza da nossa própria mente. No Vajrayana, somos introduzidos nessas qualidades
da mente vajra.
117

Todas as aparências surgem da energia dinâmica, ou exibição, da nossa natureza


fundamental. As experiências podem surgir de dois modos. O reflexo do não-reconhecimento da
nossa natureza fundamental surge como as experiências impuras dos três reinos do samsara.
Embora possamos entender que a nossa natureza seja pura, essa não é a nossa experiência
ordinária. Nós não vemos, sentimos, nem pensamos sobre as coisas de modo puro. Quando
começamos a nos aplicar ao caminho espiritual, a pesquisar e investigar, a ouvir os
ensinamentos, repetidamente contemplando e meditando sobre eles, começamos a experimentar um
misto de percepções puras e impuras. Através da prática espiritual, podemos purificar nossos
obscurecimentos e alcançar o fruto. Nossa natureza fundamental, intrinsecamente pura, torna-se
completamente aparente como um corpo puro de sabedoria, a plena revelação da nossa natureza de
sabedoria, como manifestação de aparências puras.
Porque não é essa a nossa experiência no presente? Todas as aparências ordinárias dos
elementos – terra, fogo, água, vento, carne e osso – são em essência puras. Porém, da mesma
forma que uma pessoa com icterícia vê uma montanha nevada como sendo amarela, devido aos
nossos obscurecimentos não vemos as coisas de forma pura. Essa percepção impura tornou-se um
hábito profundamente entranhado. Através da prática espiritual, nossa falta de reconhecimento
pode ser purificada e, então, como alguém curado de icterícia que consegue ver uma montanha
nevada em sua cor branca, nós, como todos os budas, veremos as manifestações de pureza tal
como são: o mandala puro e incomensurável da deidade. Tudo sempre foi dessa maneira, desde
tempos sem princípio. Não é algo a ser criado, mas a cintilação das qualidades inerentes da
nossa natureza fundamental.
A pureza da nossa natureza, imutável ao longo dos três tempos, passado presente e futuro,
encontra-se agora obscurecida, como o sol pelas nuvens. Como resultado da infalível lei do
carma de causa e efeito, e como reflexo das negatividades da mente, surgem infindáveis
aparências de meio ambiente e de corpos.
Através das práticas de visualização do estágio de desenvolvimento do Vajrayana, nós nos
exercitamos em reconhecer a natureza e as qualidades puras do meio ambiente, corpo, fala, e
mente como sendo a terra pura, e o corpo, fala e mente da deidade. Isso purifica os
obscurecimentos mentais que criam os reflexos mais grosseiros da falta de reconhecimento da
nossa mente: os três reinos da experiência e as três portas que são o corpo, fala, e mente,
transformando o nosso hábito de perceber de modo ordinário.
Através do estágio da consumação das práticas Vajrayana, purificamos os obscurecimentos
mais sutis. A visualização que criamos é completamente desfeita na vacuidade, e repousamos sem
esforço no estado desperto intrínseco que percebe a natureza da mente.
No Vajrayana, reconhecemos que todas as aparências fenomênicas possíveis do samsara e
nirvana, desde tempos sem princípio, são iguais, sem separação nem distinção, dentro de sua
natureza búdica completamente pura; da mesma forma que o são as aparências do sonho da noite
dentro da verdade do sonho. Partindo dessa perspectiva ou visão, aplicamos método e sabedoria,
práticas do estágio de desenvolvimento e da consumação; como remédios utilizados para tratar
uma doença, elas purificam o hábito de nos apegarmos a esses reflexos temporários das nossas
ilusões e enganos como sendo sólidos, e revelam nossa pureza intrínseca.
Com a aplicação repetida desses métodos, temos a realização plena do fruto: como nuvens
que são sopradas para longe e revelam o céu imutável, nossos obscurecimentos se desfazem e a
pureza primordial, sem começo, é revelada.
Nossa natureza fundamental é compreendida como inseparabilidade dos três kayas. As
qualidades plenas e resplandecentes do dharmakaya aparecem como o samboghakaya para
bodhisattvas do décimo grau, e como nirmanakaya para seres comuns, criando incessantes
benefícios.
Dado que a pureza sem princípio, dharmata, é a nossa natureza, para torná-la manifesta não
precisamos fazer nada com ela nem tirar nada dela, não precisamos incrementá-la nem diminuí-
la. Antes, usando os métodos que compõem o caminho, simplesmente a revelamos tal como é.
Então, a falta de compreensão dessa natureza, os hábitos ordinários e as visões enganosas da
nossa mente que se refletem na experiência samsárica impura que chamamos realidade, desfazem-
se completamente na natureza absoluta.
No Vajrayana, o caminho não é concebido como alguma coisa com a qual começamos e à qual
acrescentamos certas causas e condições para chegarmos a uma coisa diferente. Utilizamos o
estado desperto intrínseco que percebe a nossa natureza fundamental para revelá-la como fruto
do caminho. Nós simplesmente removemos os obscurecimentos temporários que impedem a realização
plena disso. Ao contemplar e meditar repetidas vezes sobre esse entendimento, fica fácil nos
apoiarmos no Vajrayana para termos êxito em nossa busca espiritual.
A tradição Vajrayana reúne métodos de prática externos, internos e secretos. Quando
fazemos práticas externas com deidades, o que, de fato, é a deidade? Em essência, a natureza
do dharmata, a verdade da nossa própria mente e de todas as experiências – é a deidade. A
deidade não é algo que inventamos ou criamos, algo que ainda não existia, mas sim, a
manifestação espontânea da verdade, a exibição não de algo ordinário, mas de sabedoria. Essa é
o mandala da mente de bodhichitta.
A natureza de todos os seres, de todos os fenômenos, é dharmata. Dentro da natureza
absoluta não há distinção nem separação entre “eu” e “outro”. Tudo tem um só sabor. Todos os
fenômenos surgem indissociados da natureza absoluta, e nela estão contidos. Nenhuma de nossas
experiências – nem os elementos, nem os fenômenos, nem sequer uma única molécula – está além
118

da natureza absoluta; nem mesmo o que chamamos de espaço básico. Ela é verdadeira e tudo
permeia.
Se não reconhecermos essa natureza, vivenciamos todos os fenômenos e nós mesmos como
diferentes da deidade. Por exemplo, visto que uma natureza vazia permeia totalmente o sonho da
noite, não há, na realidade, qualquer separação entre nós mesmos e a terra, o céu, a água.
Quando acordamos, vemos que todas as experiências incessantes que surgiram durante o sonho
foram apenas a exibição da mente, vazias, porém, manifestas. No entanto, se não reconhecemos
que estamos sonhando, no contexto do sonho tudo parece ser, em si mesmo, verdadeiro e
independente.
De modo semelhante, da perspectiva da mente ordinária, percebemos diferenças entre o corpo
do dia e o da noite, entre nós e os outros, entre alguém que nos ajuda e alguém que nos cria
dificuldades. No entanto, no nível da verdade absoluta, ninguém nunca veio, nem vai. Tudo é
exibição da mente. Se não conhecemos a natureza das nossas experiências, se não conhecemos a
deidade, então nos vivenciamos como separados da deidade; essa falta de conhecimento nos torna
prisioneiros do carma e do obscurecimento. Se tivermos realização da nossa natureza como sendo
a deidade, todos os limites serão liberados, como paredes no espaço, e teremos a realização do
corpo vajra. Ao conhecermos nossa natureza e mantermos o reconhecimento dela, seremos capazes
de revelar nossa natureza como sendo a deidade e ter plena realização dessa revelação.
Quando alcançamos a realização do dharmakaya, obtemos benefícios para nós mesmos, sendo
que a capacidade incessante de beneficiar os outros surge como o kaya da forma. Os seres são
auxiliados de forma incomensurável pelas qualidades de grande conhecimento, amor, bondade e
energia espiritual; também pela força da grande sabedoria e pelas preces de aspirações que são
acumuladas no caminho da iluminação. Essas manifestações, para benefício dos seres, surgem
como a aparência das deidades pacíficas e iradas acompanhadas de seus séqüitos – por exemplo,
a forma pacífica de Manjushri com o aspecto irado de Yamantaka, ou a forma pacífica de
Vajrasattva com o aspecto irado de Vajrakumara. Nessas manifestações de sabedoria pura, vindas
da natureza da mente, surge o corpo – a forma e a cor da deidade; a fala – o mantra da
deidade; e a grande mente – a inseparabilidade da vacuidade e compaixão. A deidade é uma fonte
infalível de benefícios, capaz de conduzir os seres do samsara à iluminação.
Pelo fato de vivermos presos aos nossos obscurecimentos e não compreendermos nossa
natureza como sendo igual à da deidade nós nos exercitamos nesse reconhecimento, criando a
visualização e recitando o mantra da deidade, fazendo oferendas e orações. Desse modo,
recebemos as bênçãos daqueles que alcançaram a iluminação. Essa é a prática da deidade
externa.
Na categoria das práticas da deidade interna, visualizamos dentro do nosso próprio corpo,
que toma a forma da deidade, o canal central, puro e sutil, dentro do qual se movimenta o
vento da sabedoria ou energia sutil (prana), e que contém as esferas de sabedoria ainda mais
sutis, chamadas bindus ou tigles. Essa é a deidade interna.
Embora a nossa experiência impura do corpo, fala e mente convencionais apareça como
manifestação do vento cármico, o mandala da deidade se conserva dentro dos canais do nosso
corpo sutil. Por meio da visualização desse mandala, do trabalho com o movimento dos ventos
sutis e da recitação de mantras, revelamos a nossa natureza como a deidade, revelamos a
bodhicitta que está além dos extremos, a grande felicidade imutável que reside no coração.
Nas práticas da deidade secreta, reconhecemos que todo o samsara e o nirvana sempre foram
iguais dentro do espaço básico que está além dos extremos e que não há nada que não possa ser
tornado melhor ou pior; que a natureza pura de nossa mente sempre foi uma sabedoria espontânea
que não teve nascimento. Com essa compreensão, não há necessidade de colocarmos nossas
esperanças em uma deidade externa, nem de fazermos esforço. Através do método budista mais
profundo, chamado Grande Perfeição (Dzogchen / Ati-Yoga), alcançamos liberação sem esforço,
espontaneamente, apenas nos conservando dentro do reconhecimento da natureza absoluta na qual
tudo está contido, da qual todos os fenômenos surgem de forma indissociada, como o oceano e
suas ondas, ou o sol e seus raios.
Porque há tantos caminhos diferentes? Em primeiro lugar, o Buda ensinou muitos métodos.
Além disso, diferentes lamas possuem diferentes tipos de experiência e de conhecimento; os
alunos possuem graus variados de capacidade, e assim, requerem métodos diferentes. Alguns
sentem ligação maior com as práticas da deidade externa, outros com as práticas da deidade
interna, e ainda outros com o nível secreto da prática.
Pode parecer muito fácil simplesmente reconhecer a deidade, nossa própria essência búdica,
e nos conservarmos dentro desse reconhecimento. Porém na realidade, pelo fato de estarmos tão
afundados em esperança e medo, apego e aversão, isso é muito difícil. Nós temos uma infinidade
de conceitos e hábitos, e quando muitas experiências diferentes se apresentam, é muito difícil
mantermos reconhecimento da sua natureza. É por isso que quando começamos as práticas no
Vajrayana, nós nos focamos na criação e na dissolução da visualização; então trabalhamos com
as práticas yogas internas e, gradualmente, ingressamos no estagio de consumação isento de
esforço e nas práticas da Grande Perfeição.
Os ensinamentos do Dharma do Buda são como um jardim transbordante de flores de muitos
matizes e formatos. Não é necessário escolher apenas um método, nem é necessário que uma só
pessoa tente aplicar todos eles.
Se você é uma pessoa raivosa, é muito eficaz fazer prática de visualização usando a ira
como antídoto para cortar a raiva que existe em sua mente. Nas práticas com deidades iradas,
visualizamos seres irados, manifestações de sabedoria, com duas, quatro ou muitas pernas,
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pisoteando seres negativos, soltando faíscas e brandindo armas. Aqueles que são destruídos não
são seres externos, mas nossos próprios venenos, nossos verdadeiros inimigos e demônios. O
apego ao eu é encarnado por Rudra, um ser muito poderoso, o “dono” do samsara, que é reprimido
por seres que personificam a sabedoria. Em todas essas imagens iradas, assistimos ao
desenrolar de uma guerra interna: a sabedoria destrói a raiva, o apego e a ignorância. Uma
pessoa raivosa conquista e libera seus pensamentos raivosos e negatividades com métodos irados
de Maha Yoga.
Se você manifesta desejo muito intenso, em vez de abandoná-lo pode fazer dele seu caminho,
trabalhando com os canais e ventos do corpo sutil, bem como as fontes de calor e prazer
internos, treinando-se com as energias de seu corpo. As deidades representadas em união com
suas consortes não correspondem ao desejo ordinário nem ao relacionamento homem/mulher
convencional, mas sim, à inseparabilidade de vacuidade e grande êxtase. No nível de união
interna, os canais sutis do corpo são masculinos e os ventos ou energias sutis são femininos;
o calor interno é feminino e o êxtase interno, masculino. A união dos dois produz êxtase não
ordinário, mas inexaurível. Através do desejo, o praticante de Anu Yoga se conecta com o
êxtase, compreendendo e vivenciando a inseparabilidade de grande êxtase e vacuidade –
sabedoria. Por meio dessa prática, purificamos carma, acumulamos mérito e revelamos sabedoria.
Os caminhos de Maha Yoga e Anu Yoga requerem esforço, diligência e consistência. Aqueles
cujo veneno predominante da mente é a ignorância e que são preguiçosos praticam um terceiro
caminho, a Grande Perfeição ou Ati Yoga. Nesse caminho, repousamos sem esforço no
reconhecimento sutil da natureza da mente. Ele é chamado o caminho do esforço sem esforço.
Todos os ensinamentos e níveis de prática que levam até à Grande Perfeição trabalham com
conceitos ordinários, inteligência ordinária e esforço ordinário. Na Grande Perfeição, porém,
o estado desperto é, ele próprio, o caminho. Os praticantes da Grande Perfeição utilizam o
método da deidade absoluta, seu próprio estado desperto intrínseco.
Todos esses três caminhos purificam obscurecimentos. Qual deles vamos usar é algo que
dependerá do veneno predominante em nossa mente: ele será a porta para a prática que estará
mais próxima de nós. Aquele que for o mais forte para nós e o mais familiar passa a ser o meio
pelo qual removemos todos os obscurecimentos da mente.
Através dos vários métodos do caminho Vajrayana, trazemos três elementos para nossa
prática: a purificação dos obscurecimentos, o amadurecimento da mente e o fortalecimento de
suas qualidades positivas. Por esses meios, temos condições de, rapidamente, purificar a
experiência samsárica e realizar o fruto que está além do samsara e do nirvana: os três kayas,
nossa natureza fundamental na qual tudo está incluído. Através desses métodos, a sabedoria não
nasce em nós – seria mais exato dizer que ela se torna óbvia, apoiando e amadurecendo nossa
prática. [...]
PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

A MENTE E A NATUREZA DA MENTE

A descoberta ainda revolucionária do budismo é que a vida e a morte estão na mente, e em


nenhum outro lugar. A mente é revelada como a base universal da experiência-criadora da
felicidade e criadora do sofrimento, criadora do que chamamos vida e do que chamamos morte.
Há muitos aspectos da mente, mas dois se destacam. O primeiro é a mente comum, chamada
pelos tibetanos de sem. O mestre a define “aquilo que possui uma consciência que discrimina,
aquilo que possui um senso de dualidade – que agarra ou rejeita alguma coisa externa – isso é
a mente. Fundamentalmente é aquilo que pode se relacionar com um “outro” - com “alguma coisa”,
que é percebida como diferente daquilo que percebe”. Sem é a mente discursiva, dualista,
pensante, que só pode funcionar em relação a um ponto de referência externo, projetado e
falsamente percebido.

Desse modo, sem é a mente que pensa, trama, deseja, manipula, que se inflama de raiva, que
cria e se entrega a ondas de emoções e pensamentos negativos, e que tem que continuar
afirmando, validando e confirmando sua “existência” por meio da fragmentação, conceitualização
e solidificação da experiência. A mente comum fica incessantemente mudando, presa impotente
das influências externas, das tendências habituais e dos condicionamentos. Os mestres comparam
sem a chama de uma vela diante de uma porta aberta, vulnerável a todos os ventos
circunstanciais.

Vista de certo ângulo, sem é vacilante, instável, ávida, e se envolve infinitamente nas
coisas dos outros; sua energia se consome projetando-se para o exterior. Penso nela às vezes
como o feijão saltador mexicano, ou como o macaco pulando irrequieto de galho em galho de uma
árvore. Vista por outro lado, entretanto, a mente comum possui uma estabilidade falsa e
amortecida, uma inércia presunçosa e auto protetora, uma calma de pedra em seus hábitos
arraigados. Sem é astuciosa como um político corrupto, é cética, desconfiada, especialista em
truques e trapaças, “engenhosa” - como escreveu Jamyang Khyentse – “Nos jogos do engano”. É
dentro da experiência dessa caótica, confusa, indisciplinada e repetitiva sem, dentro dessa
mente comum, que vez após vez nós passamos por mudança e morte.

E existe a natureza mesma da mente, sua essência mais profunda, que é absoluta e intocada
pela mudança ou pela morte. No presente ela está oculta dentro de nossa própria mente, nossa
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sem, envolvida e obscurecida pela disparada correria mental dos nossos pensamentos e emoções.
Tal como as nuvens podem ser alteradas por uma forte rajada de vento, revelando o sol
brilhante no céu aberto, assim também, sob certas circunstâncias especiais, alguma inspiração
pode revelar-nos vislumbres dessa natureza da mente. Esses vislumbres têm diferentes
profundidades e graus, mas cada um deles para alguma luz de entendimento, significado e
liberdade. Isso porque a natureza da mente é a própria raiz da compreensão. Em tibetano damos
a ela o nome de Rigpa, uma consciência primordial, pura, original, que é ao mesmo tempo
inteligente, cognitiva, radiante e sempre desperta. Poder-se-ia dizer dela que é o próprio
conhecimento do conhecimento.

Não se cometa o erro de imaginar que a natureza da mente é uma exclusividade da nossa
mente. Ela é de fato natureza de tudo. Nunca é demais repetir que realizar a natureza da mente
é realizar a natureza de todas as coisas.
Os santos e místicos ao longo da história sempre “adornaram” suas realizações com
diferentes nomes, a que atribuíram diferentes faces e interpretações, mas o que eles
basicamente experimentaram foi a natureza essencial da mente. Cristãos e judeus a chamam de
“Deus”, os hindus referem-se ao “Eu”, a “Shiva”, a “Brahma” e a “Vishnu”; os místicos sufis
falam de “Essência oculta”, os budistas na “Natureza Búdica”. No coração de todas as religiões
existe a certeza de que há uma verdade fundamental, e de que esta vida é uma oportunidade
sagrada para evoluir e compreendê-la melhor.

Quando falamos Buda pensamos naturalmente no príncipe indiano Sidarta Gautama, que obteve
a iluminação no sexto século antes de Cristo, e que ensinou o caminho espiritual seguido por
milhões de pessoas em toda a Ásia, hoje conhecido como budismo. Buda, no entanto, tem um
significado muito mais profundo. Refere-se a uma pessoa, qualquer pessoa, que despertou
completamente da ignorância e abriu-se para o seu vasto potencial de sabedoria. Um Buda é
alguém que terminou definitivamente com o sofrimento e a frustração, e descobriu uma
felicidade e paz permanente e imortal.

Mas para muitos de nós, nesta era de ceticismo, esse estado pode parecer uma fantasia ou
um sonho, uma conquista muito além do nosso alcance. É importante lembrar sempre que o Buda
era um ser humano, como você ou eu. Ele nunca reivindicou divindade; apenas sabia que tinha
natureza Búdica, a semente da iluminação, e sabia que todo mundo também a tem. Essa natureza
búdica é simplesmente o direito inato de todo ser senciente, e eu sempre digo: “Nossa natureza
búdica é tão boa quanto a de qualquer Buda”. Essa foi a boa nova que o Buda trouxe para nós de
sua iluminação em Bodhigaia, que tantas pessoas consideram tão inspiradora. Sua mensagem - que
a iluminação está ao alcance de todos - traz consigo uma enorme esperança. Através da prática,
todos nós também podemos despertar. Se isso não fosse verdade, incontáveis indivíduos até os
nossos dias de hoje não teriam atingido a iluminação.

Diz-se que quando o Buda se iluminou, tudo o que ele queria era mostrar aos demais a
natureza da mente, e compartilhar integralmente o que havia realizado. Mas em sua infinita
compaixão ele também viu, com tristeza, como seria difícil compreendermos.
Pois embora tenhamos a mesma natureza interior do Buda, não a reconhecemos de tão
envolvidos e encerrados em nossa mente individual comum. Imagine uma jarra vazia. O espaço de
dentro é exatamente o mesmo que o espaço de fora; apenas as frágeis paredes da jarra separam
um do outro. Nossa mente búdica está encerrada dentro das paredes da mente comum. Mas quando
nos tornamos iluminados, é como a jarra se quebrasse em pedaços. O espaço “interno” se funde
imediatamente com o espaço “externo”. Eles se tornam um só: nesse exato momento percebemos que
nunca estiveram separados nem foram diferentes; na verdade, foram sempre o mesmo.
Do O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER - Sogyal Rinpoche

MENTE DA ATIVIDADE, NATUREZA DA MENTE

Na tradição budista, fazemos distinção entre compreensão intelectual, experiência instável


e realização estável. A compreensão intelectual, como um remendo mal costurado que vai cair
com o tempo, é temporária. Se formos adiante em nossa prática, poderemos ter um vislumbre da
verdadeira natureza da mente, mas, como a névoa, ele se dissipará. O que buscamos alcançar com
nosso trabalho é uma realização imutável como o espaço, que por sua própria natureza nunca se
altera.

Quando cresce a nossa compreensão da impermanência e da qualidade ilusória da existência,


começamos a observar os fenômenos sem projetar nossas falsas suposições; com o tempo, passamos
a reconhecer o estado desperto intrínseco, aberto e nu, como a nossa verdadeira natureza e a
verdadeira natureza da realidade.

Para ter acesso a experiência daquilo que é natural, comece reconhecendo a impermanência
em cada ação do seu corpo, em cada palavra da sua fala, em cada movimento da sua mente. Ao
movimentar sua mão, reconheça na mudança de posição uma demonstração de impermanência.
Primeiro, ela estava do lado esquerdo, depois do direito. Com sua respiração, reconheça a
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Impermanência, à medida que ela vai e vem, vai e vem. Com a prática, o processo intelectual
deliberado de olhar para cada coisa e pensar, “Isto é impermanente”, evolui para um conhecer
natural, espontâneo, da constante manifestação das mudanças. Isso ameniza nossa atitude em
relação à realidade; começamos a apreciar a verdade das metáforas do Buda que descrevem os
fenômenos como ilusões ou imagens de um sonho, como alucinações, ecos ou arco-íris —
aparentes, mas não tangíveis nem corpóreos —, como reflexos da lua sobre a água; brilhantes,
porém não sólidos.

Nossa compreensão convencional está baseada em suposições que foram passadas a nós,
suposições que dependem de formas convencionais de percepção. Fomos ensinados a dar nome às
coisas, atribuindo-lhes uma realidade que não possuem. A mente convencional é muito linear,
pulando de um pensamento para outro, Podemos nos imaginar como pensadores multifacetados,
cujas idéias formam algo como um mosaico, mas somos tão somente seres que mudam muito
depressa. Todos os conceitos e pensamentos que surgem na mente, na verdade toda a nossa
experiência da realidade, não é muito diferente de desenhos feitos com o dedo sobre a
superfície da água. No próprio ato em que uma imagem está sendo criada, ela deixa de existir.

A crença na solidez das nossas experiências produz apego c aversão, os quais, por sua vez,
alimentam perpetuamente o fogo do samsara até que a realidade fica parecendo um inferno
devorador. Compreender a verdade das nossas experiências é como deixar de pôr lenha na
fogueira. As chamas não desaparecem imediatamente, mas sem combustível, o fogo lentamente vai
morrendo.

Sem apego e aversão, não somos confundidos pelo jogo de atração e repulsão dos fenômenos.
Aí, nessa abertura natural — o espaço claro da mente ao final de um pensamento, antes que o
próximo apareça — está o estado desperto.
Grandes praticantes alcançaram a iluminação trazendo contínuamente consciência para seu
trabalho. Durante todo o dia, por doze anos, o mestre indiano Tilopa prensou sementes de
gergelim para fazer óleo. Com cada movimento, seu estado desperto permanecia inteiramente
presente; não escapava para o passado nem para o futuro, não se perdia em vôos da imaginação.
O mesmo acontecia com Togtzepa, um praticante que cavava valas: a cada movimento, ele mantinha
o estado desperto.

Semelhantemente, muitos dos oitenta e quatro mahasiddhas da Índia, praticantes


altamente realizados, exerciam profissões comuns. Enquanto trabalhavam, eles meditavam. Não
importava o que faziam. Como repousavam em seu estado desperto, em meio às atividades a que se
dedicavam, eles desenvolveram a capacidade de transformar fogo em água, água em fogo,
atravessar paredes e voar pelo ar. Em vez de ficarem sujeitos à realidade ordinária, eles se
tornaram senhores dela. Evidentemente, a finalidade da meditação não é transformar água em
fogo, mas essas capacidades são subprodutos que aparecem naturalmente quando cortamos nosso
apego às percepções ordinárias da realidade.

Certa vez, o filho de um rei foi ter com um iogue para receber instruções sobre meditação.
Depois que o iogue lhe mostrou um método, o menino disse, “Isso não dará resultado para mim.
Mas eu conheço música. Haveria uma meditação que eu pudesse praticar, enquanto toco meu
instrumento?”

“Lembre-se ao tocar”, respondeu o iogue, “que o som é vacuidade, e a vacuidade é som. O


som não está além da vacuidade; a vacuidade não está além do som”. Nós também seremos capazes
de transformar rapidamente a mente se trouxermos consciência a todas as nossas atividades. Se
você está construindo alguma coisa, mantenha a mente presente a cada movimento do martelo. Não
deixe que os pensamentos se interponham. Ao escrever, mantenha sua mente junto de cada
movimento da caneta ou toque das teclas do computador. Não deixe que ela fique saltando de um
lado para outro. Quando você estiver cortando lenha, mantenha a consciência junto de cada
golpe do machado. Seja o que for que estiver fazendo. relaxe a mente. Nesse processo, repousa-
mos suavemente em uma postura de abertura, imersos no que esta acontecendo, totalmente
presentes, mas ao mesmo tempo cientes da exibição dos fenômenos. Um adulto que esteja a olhar
crianças num parque, nunca perde a noção de que elas estão brincando, O adulto não se fixa, de
forma deliberada, na atividade delas, dizendo, “Elas estão brincando, elas estão brincando,
elas estão brincando”. Há, porém, um reconhecimento, um conhecimento desse fato.

Com freqüência perdemos esse relaxamento da mente quando estamos completamente mergulhados
em nosso trabalho; por exemplo, quando ficamos tão envolvidos com alguma coisa que estamos
escrevendo, tal como se estivéssemos dentro das palavras. Ao repousarmos a mente, porém, há um
pouco mais de espaço. E como estarmos um pouco fora do que está acontecendo, cientes de que é
uma manifestação, uma exibição, mas sem nos distanciarmos e criarmos dualidade.

A vida dos grandes praticantes demonstra, repetidas vezes, que para manter sua prática do
dharma uma pessoa não precisa renunciar ao mundo. Tampouco é preciso renunciar ao dharma para
se manter envolvido com as atividades do mundo. É possível integrar ambas as coisas em uma
única vida. Gradativamente, novas prioridades e um equilíbrio necessário aparecem.
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Em minha vida, testemunhei quatro pessoas alcançarem o corpo de arco-íris (ja-lus)na hora
da morte; elas não moravam em monastérios, mas viviam com suas famílias. Quando tinha vinte e
dois anos, presenciei um homem alcançar o corpo de arco-íris, e a maioria das pessoas sequer
sabia que ele fazia prática espiritual. Não há necessidade alguma de qualquer exibição externa
para se obter êxito no caminho espiritual. Não é o corpo que alteramos para nos tornarmos
iluminados — é a mente.

Você pode adotar o estilo de vida de um eremita, abandonar sua preocupação com comida,
roupa, riqueza, amigos, família, lar e mudar-se para uma montanha, dedicando-se inteiramente à
meditação. Esse é um modo de praticar perfeitamente válido, Dentro do Vajrayana, porém, há um
outro modo. Sua vida externa continua com a forma habitual. Você não deixa sua casa, não
renuncia a nada, mas nunca se aparta da virtude, nunca se separa do dharma, da intenção de
trazer benefícios ou do estado desperto.

Tilopa disse a seu aluno Naropa, “Você é aprisionado não pelas aparências, mas por seu
apego às aparências; portanto, corte esse apego, Naropa”. Nós nos conservamos presos ao
samsara não simplesmente porque temos bens materiais, um posição elevada ou amigos, mas porque
nos apegamos a essas coisas.

A prática tem que acontecer de forma consistente, bem ali onde a mente está ativa, bem
ali junto de cada experiência de desejo, raiva ou alegria — a cada momento. Então sua
meditação e o seu trabalho se unem — é uma espécie de casamento. Se você deseja resultados
rápidos, não é suficiente meditar apenas uma ou duas horas por dia. Nunca pense, “Agora vou
trabalhar; mais tarde vou meditar”. Quem é que sabe se a sua vida vai durar tanto? É difícil
adiarmos a visita do senhor da morte. Quando ele aparecer, não lhe dará ouvidos se você
disser, “Sinto muito, mas tenho estado muito ocupado e agora preciso meditar. Dê-me só uma
semana, um mês ou três anos”.

Através de prática com devoção, desenvolvemos a capacidade de transformar condições


negativas em condições que nos sustentem. Chamamos a isso “trazer as adversidades para o
caminho”, ou seja, não ser bloqueado, desviado ou avassalado por uma determinada coisa, mas
ver nela uma oportunidade para prática.

Então, todo o mundo fenomênico serve como um professor, ajudando-nos a desenvolver nossas
habilidades de lidar com a vida. Podemos tornar tudo o que acontece conosco parte do caminho.
Provações se transformam em oportunidade para prática porque nos forçam a cultivar paciência.
Aprendemos a aceitar adversidades com alegria porque compreendemos que, quando sofremos,
purificamos carma. Uma única dor de cabeça pode purificar o que seriam centenas de anos de
sofrimento em um dos remos dos infernos. Isso não quer dizer que rejeitemos a felicidade;
antes, regozijamo-nos com ela e dedicamos nosso mérito aos outros seres, rezando para que a
felicidade deles seja duradoura.

Às vezes, quando começam a fazer meditação, algumas pessoas me dizem que são um caso
perdido, que é impossível controlar seus pensamentos. Eu lhes asseguro que isso é um sinal de
melhora. A mente delas sempre foi revolta; acontece apenas que, finalmente, elas estão notando
isso. No passado, elas deixavam sua mente vagar livremente, seguindo as correntes de
pensamento que surgissem, fossem quais fossem. Agora, porém, que têm maior percepção do que
ocorre na mente, elas podem começar a mudar.

Você pode se queixar de que meditação não é fácil. Mas lembre-se de que você está
conduzindo sua mente como um cavalo selvagem para dentro do curral do estado desperto. Você
terá certeza de que sua prática está dando resultado se não estiver mais tão dominado por suas
emoções e confusão, se trouxer para todas as suas ações, onde quer que esteja, uma qualidade
de abertura, de relaxamento e uma intenção de compaixão, permanecendo consciente dos
movimentos da mente e da natureza de todas as coisas que acontecem à sua volta.

Certa vez, um aluno que estava tendo dificuldade com meditação veio à presença do Buda.
Quando o Buda perguntou qual era a profissão dele, o homem respondeu que era músico e tocava
alaúde.
O Buda perguntou: “Quando você está pondo as cordas no seu alaúde, você as estica com
bastante força ou as deixa bem soltas?”.
O homem respondeu, “Nenhuma das duas coisas. Se eu as esticar demais ou deixá-las soltas
demais, o tom sairá errado. Tenho que encontrar um ponto de equilíbrio”. Com isso, ele havia
respondido sua própria pergunta sobre meditação. Quer seja em nossa prática ou em nosso
trabalho, precisamos manter um equilíbrio — não ficaremos tensos e apegados demais, nem soltos
e desleixados demais.

Conta-se a história de um ótimo lama que tinha um aluno bastante obtuso que fazia
perguntas óbvias, mas nunca entendia direito as respostas. Um dia, o professor, com grande
frustração, olhou para ele e disse, “Mas você não tem chifres” — querendo dizer, “Você não é
uma vaca, você deveria entender o que eu estou dizendo”.
123

O aluno, continuando a não entender, pensou que o professor quisesse dizer que ele deveria
ter chifres. Levando isso a sério, entrou em retiro, visualizando, a cada dia, que possuía
chifres. Três anos mais tarde, o professor perguntou a um assistente, “O que foi feito daquele
meu aluno que não era tão brilhante?” Quando informado de que o aluno estava em retiro
meditando, o lama exclamou, “Mas como ele pode estar meditando? Ele não sabe nada. Tragam-no
aqui”.

Um mensageiro foi então enviado para buscar o aluno. Ao chegar na caverna do retiro, ele
espiou pela pequena porta e viu o aluno sentado lá dentro, com um belo par de chifres. O
mensageiro chamou, “O seu professor quer vê-lo; venha, por favor”.
O aluno se levantou para sair, mas não conseguiu fazer com que aqueles chifres enormes
passassem pela pequena porta. Ele disse ao mensageiro, “Por favor, apresente minhas
desculpas ao meu professor eu gostaria de ir até ele, mas não consigo sair da caverna por
causa dos meus chifres”.

O professor, ao ouvir o fato, disse, “Isso é maravilhoso! Diga a ele, agora, para meditar
que não tem chifres”.
Pela força da sua concentração, o aluno removeu os chifres em sete dias e voltou á
presença do lama. Depois de receber instruções adequadas sobre meditação, ele muito
rapidamente alcançou realização.
As pessoas dão muitos motivos para não fazerem prática espiritual. Algumas dizem que não
acreditam nos ensinamentos; outras sentem que não estão prontas ou que não têm a capacidade
necessária. Isso, porém, é um erro. Quer acreditemos ou não no samsara, é aqui que estamos.
Quer acreditemos ou não no carma, nós o estamos criando. Quer acreditemos ou não nos venenos
da mente, eles estão ai. Que vantagem há em não se acreditar em remédio? Quer estejamos ou não
prontos para fazer prática, a morte e as doenças não vão nos esperar. Por que não nos
preparar? Por que não desenvolver a capacidade de ajudar a nós mesmos e aos outros? Estamos
prontos para beber veneno, mas não para tomar remédio.

Não meditar depois de termos recebido os ensinamentos é como comprarmos todas as nossas
comidas preferidas, arrumá-las bem na cozinha, e então não comer. Vamos morrer de fome.
Meditar é como comer: nossa despensa está cheia e nós partilhamos daquilo que coletamos.
Em vez de dizer, “Não tenho tempo hoje, amanhã vou meditar. Não tenho tempo nesta semana,
vou fazer a semana que vem. Este ano tem sido muito corrido, vou deixar para o próximo ano”,
precisamos sentir uma necessidade imediata de fazer prática —agora mesmo, não apenas hoje, não
apenas nesta hora, mas neste exato momento.

Agora, rezo para que a verdadeira natureza de todos os seres, sem exceção, seja revelada,
para que cada um de nós veja com clareza a sua verdade inerente e fique livre dos grilhões do
sofrimento e das dificuldades impostas pelas limitações da mente.
Vamos dedicar a esse fim todas as virtudes destes ensinamentos, das mudanças que vamos
viver por termos sido expostos a estas verdades, e das mudanças que as pessoas á nossa volta
vão atravessar por nos verem encarnar o que aprendemos.
Possam essas virtudes se irradiar em todas as direções, em ondas de benefícios.
OS PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – CHAGDUD Tulku Rinpoche

VIVENDO E MORRENDO CONSCIENTEMENTE


“Agora que o bardo da morte desponta diante de mim,
Eu vou parar de me prender as coisas, de desejar e me apegar,
Vou entrar sem distrações na clara percepção dos ensinamentos,
E ejetar a minha consciência para a dimensão da percepção não nascida.
Quando eu deixar este corpo composto de carne e sangue,
Saberei ser ele apenas uma ilusão passageira”.
Padmasambhava em

O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS

Nos ensinamentos tibetanos, a morte é mais um momento no qual devemos praticar a atenção
plena. Lembrar-se da inevitabilidade de nossa morte, encarar o fato inescapável da nossa
própria mortalidade e da impermanência de todas as coisas, pode ser a mais liberadora das
meditações, porque apresentar a realidade das coisas como realmente são, ajuda a desalojar o
egoísmo grosseiro, o apego e a miopia - colocando nossas vidas na perspectiva correta.
A morte é um espelho, que reflete e ilumina tanto a vaidade quanto o sentido de nossas
vidas. A morte é o momento da verdade, quando nos encontramos com a realidade face a face.
Para todos nós, é também um momento de oportunidade, quando podemos atingir nossa natureza
original. A morte é mais certa do que o amor, e com certeza aguarda a todos nós na doença ou
na velhice. A sabedoria perene nos diz que deveríamos nos preparar para o nosso fim, o que nos
tornará melhor preparados para viver - ou morrer - de forma iluminada.
124

Diz-se que na morte apenas duas coisas contam: o que fizemos em nossas vidas e o estado
interior que temos na hora de morrer. Estes dois fatores determinam o que vem depois. Budha
ensinou que a experiência real do momento de morrer é crucial para o próximo renascimento, e
que no momento da morte ocorrem experiências espirituais extraordinárias que oferecem um
portal para a grande liberação. Portanto, a atmosfera física e os estados de espírito daqueles
que estão ao redor do moribundo são extremamente importantes, e paz, conforto, gentileza,
amor, aceitação e harmonia ajudam a guiar o morto, da melhor maneira possível, em sua
travessia.
Tradicionalmente no Tibet, o Bardo Thodol, conhecido no ocidente como o LIVRO TIBETANO DOS
MORTOS, é lido na cabeceira da cama de alguém que está morrendo, tanto na hora da morte como
por vários dias subseqüentes. Ele é uma meditação guiada, lida em voz alta, normalmente por um
lama, para ajudar a direcionar o morto ou o moribundo através dos vários estados de transição
no bardo. Este maravilhoso livro antigo é uma escritura de sabedoria que nos conduz à
liberdade e à iluminação através do reconhecimento da clara luz da realidade na hora da morte,
e depois. Ele também mostra como reconhecer e atingir a clara luz (a qualidade luminosa inata
da mente natural) dentro de cada um de nós, nesta vida. Apesar de ter sido ostensivamente
escrito para oferecer ao morto ou moribundo conforto, orientação e libertação pela audição, o
Bardo Thodol também nos mostra como viver, porque cada momento é tanto um nascimento quanto
uma morte.
Bardo1 é uma palavra tibetana que significa “No meio” ou “Em transição”. Ensina-se que
existem ao todo seis estados de bardo, acabam oferecendo suas oportunidades específicas. Três
delas ocorrem quando ainda estamos vivos: o bardo desta vida cobre o período inteiro desde que
nascemos até a nossa morte; o bardo da meditação se refere ao estado meditativo quando
conseguimos reconhecer nossa natureza búdica; e o bardo do sonho ocorre quando dormimos, e
também pode ser usado para treinar a mente.
Os outros três estados de bardo cobrem o período entre a morte e o renascimento, e
constituem o foco primário do Livro Tibetano dos Mortos.

O Bardo da Morte
Este bardo se refere ao processo de morrer em si. No Tibet, a morte é considerado um
processo de purificação, porque estamos voltando para a clara luz, nosso estado natural
intrínseco de luminosidade - estamos nos dissolvendo nele. No momento da morte, esta clara luz
da realidade desponta para cada um de nós. É a nossa própria natureza radiante, algumas vezes
chamada de Rigpa – o estado desperto e iluminado. Entretanto, para podermos realmente nos
beneficiar deste “Momento da Verdade” e atingir a libertação, precisamos estar preparados. Se
não, ele vai nos escapar rapidamente. Como a maioria de nós ainda está ligada aos hábitos e
padrões de comportamento estabelecidos em vida, não reconhecemos a luminosidade pelo que ela
é. Reagimos de forma não apropriada e inconsciente. Em vez de mergulharmos nela, em um ato de
fé, nos entregando à luminosidade, nos fundindo nela. E assim o momento passa. As instruções
de Kalu Rinpoche para esse momento de grande luminosidade foram: “Solte o corpo e a mente, e
dissolva-se na clara luz da luminosidade interior. Reconheça o raiar da clara luz e se liberte
neste instante. Enxergue além das ciladas, do dualismo da vida e da morte”.

O Bardo do Dharmata (Realidade)


Neste segundo estado de bardo, temos outra oportunidade de atingir a libertação. Kalu
Rinpoche dizia que a coisa mais importante para nos lembrarmos aqui é que, como nos sonhos,
tudo o que veremos aqui é criação de nossas mentes, e pode ser mudado, da mesma forma que se
pode acordar dentro dos sonhos e alterá-los. Neste estado, é como se sonhássemos, e nada mais
pode realmente nos fazer mal. A libertação pode ocorrer se conseguirmos apagar a resistência e
as dúvidas, soltar tudo e nos entregarmos à luminosidade inata da mente natural. Se não
pudermos fazer isso, então o próximo bardo inexoravelmente começará.

O Bardo do Vir-a-Ser
Neste terceiro estado de bardo pós-morte, nossas percepções estão voltando. Novamente,
temos preferências e aversões, e somos atraídos para lugares e pessoas que nos são familiares.
À medida que nossos apegos, paixões e propensões cármicas começam a se afirmar, estamos nos
aproximando do renascimento. Nesse momento, faríamos bem em voltar nossas mentes para as
intenções do bodhisativa, que são beneficiar e servir todos os seres sem exceções. Livres das
ciladas da atração e da repulsão, devemos procurar o meio ambiente oportuno para exercer o
voto do bodhisativa. Se você achar que está neste estado do bardo, através da coragem
destemida e da visão pura, vá além e abandone sua atração e seu desejo pelo homem e mulher que
se unem em união sexual. Em vez disso, perceba este casal amoroso, que serão seus novos pais,
como um casal búdico - Sr. e Sra. Sabedoria e Compaixão. Graciosamente, entre neste templo
humano e encontre sua nova vida.

Vivendo a Morte: Uma Meditação


Todos nós temos que nos defrontar com as questões da vida e da morte. Quer seja a morte de
um familiar idoso ou o nascimento de um filho, o nascimento e a morte são parte da vida. A
filosofia, a ciência, a religião, as artes lidam com a vida e a morte, e com a morte ou
renascimento. Todos nós nos perguntamos o que acontece quando morremos. Será que a morte é o
nosso fim? E o que isso significa para nós? Como podemos dar mais sentido às nossas vidas?
125

Existem diversas religiões e culturas, mas todas compartilham de pelo menos um princípio
comum: todas têm ritos, rituais e especialistas para lidar com a morte e o morrer. Estes ritos
nos oferecem conforto e segurança diante da precariedade e da insegurança da existência. Será
que continuamos? Será que atingimos um fim abrupto? Não existe mais nada? E o céu? E o
inferno? Existe vida depois da morte? Vamos nos defrontar com Deus ou com o carma? Verdade ou
conseqüência? Como podemos ter certeza de qualquer coisa? Isso pode ser verificado ou estão
nos pedindo para acreditar e confiar em um mito ou na imaginação? Devemos acreditar nas
pessoas que dizem ter voltado das experiências de quase morte? Devemos acreditar em Edgar
Cayce e nos outros videntes? Devemos acreditar nos lamas encarnados2, muitos dos quais dizem
que se lembram de vidas passadas e parecem ter algum controle consciente sobre o processo -
como se estivessem evoluindo, por escolha, através de diferentes níveis da escola espiritual?
Como podemos saber? Quem sabe?
Os budistas perceberam há muito tempo que contemplar a própria mortalidade é uma prática
que ajuda a ter foco e estabelecer prioridades. A vida espiritual, a jornada de despertar e
dar sentido às nossas vidas enquanto aprendemos a amar, é na verdade uma questão tanto de vida
quanto de morte. A precariedade da vida nos ajuda a permanecer totalmente dispersos no aqui
agora.
O que o budismo tibetano nos oferece, juntamente com seus ensinamentos pragmáticos e
éticos, é uma forma de lidar com a própria experiência da morte - uma forma de encarar a morte
no momento presente. Este treinamento pode nos ajudar muito a lidar com o momento da morte.
Passamos a apreciar mais, estar mais atentos e mais abertos a cada momento da vida, que se
torna mais pungente devido à sua absoluta impermanência.
Ao aprender a deixar esta vida ir embora, aprendemos também a viver cada momento sem
arrependimentos. Aprendemos a tomar decisões sem arrependimentos. Cada decisão se torna a
decisão certa. Quando aprendemos a largar as coisas em vida, abandonamos nossos rancores,
obtemos o perdão e nos aliviamos do fardo do ressentimento, da amargura e da hostilidade.
Assim, encontramos uma conclusão e podemos soltar velhas tristezas e antigas queixas, deixando
estes padrões congelados morrerem. É assim que morremos sem arrependimentos, enquanto
aprendemos a viver de novo. Aqui, neste momento. Respiração por respiração. Eis aqui uma
meditação que nos ajuda a fazer isso:
Respire profundamente relaxe. Deixe tudo se acomodar. Esteja totalmente presente,
naturalmente presente, sem esforço. Você está se sentando por um instante, um instante eterno.
Não perca o momento. Só existe este.
Sinta tudo, como é. Esteja presente, alerta, desperto e relaxado. Abra-se para a presença
sem esforço, para a consciência pura. A presença total. Tenha consciência de estar consciente,
uma percepção luminosa, sem centro, aqui e agora. Deixe que tudo aconteça sem esforço, de
forma transparente. Abandone o controle, a manipulação e o julgamento.
A cada respiração, solte um pouco mais. A cada respiração, solte, relaxe, abra e centre-se
cada vez mais profundamente. Cada expiração é uma pequena morte. Simplesmente esteja com a
expiração, e a cada expiração solte um pouco mais. Um pouco mais... solte os nós do seu
psiquismo. Relaxe. Largue tudo. Solte a tensão dos ombros, expire-a. Expire aquele pensamento,
aquela lembrança, solte, solte, solte...
Solte a expiração. Morra um pouco a cada expiração. Morra no momento presente. Qualquer
sensação sinta, deixe-a partir. Largue o corpo, largue a mente, largue os pensamentos e a
personalidade. Largue tudo. Solte. Largue sua auto-imagem, sua casa, suas posses, seus planos,
sua carreira. Solte. Tudo está perfeitamente resolvido na mente natural que não nasce nem
morre.
Abandone as tentativas de controlar a mente. A cada expiração, solte. Aperte a embreagem
do desapego espiritual e desengrene a marcha. A cada expiração, solte mais alguma coisa - o
que vier à cabeça, uma sensação, uma emoção, um sentimento, um relacionamento uma pessoa, um
medo, uma posse. Respiração à respiração, momento a momento - simplesmente solte tudo.
Habitue-se a evoluir, a se transformar, a passar sem resistência, sem se agarrar, sem apegos.
Respiração a respiração, vá soltando. Deixe todos fenômenos ilusórios irem embora.
A cada respiração, perdoe aos outros. Perdoe às pessoas de seu passado - aquelas com quem
não tem mais contato, e também as que ainda estão ao seu redor. Perdoe a sí. Aceite os outros
como são. Aceite totalmente a si mesmo. Deixe tudo ser como é. Isto é a sabedoria em ação. A
cada respiração, abandone o medo, a expectativa, a raiva, o arrependimento, o desejo, a
frustração, a fadiga. Abandone a necessidade de aprovação. Abandone os velhos julgamentos e as
opiniões. Morra para tudo isto, e voe livremente. Eleve-se na liberdade da ausência de
desejos.
Solte. Deixe. Veja através de tudo seja livre, completo, luminoso e volte para casa3.

Com este tipo de meditação, as camadas sutis que formam quem nós somos começam a se arrumar, e
nós penetramos mais profundamente no nosso estado natural - o estado despojado do ser
autêntico. Isto é uma transformação ocorrida aqui e agora. Um renascimento espiritual.
O DESPERTAR DO BUDA INTERIOR - Lama Surya Das

Notas:

1. período

2. tulku

3. nosso estado natural, o ser autêntico


126

INTRODUÇÃO AO DZOGCHEN,
MAHASANDI, ATI-YOGA
ou GRANDE PERFEIÇÃO
OS ENSINAMENTOS DZOGCHEN
E A CULTURA DO TIBET
UMA PERSPECTIVA INTRODUTÓRIA:

"Se dermos uma explicação do dzogchen


A cem pessoas interessadas
Isso não é suficiente,
Porém se dermos uma explicação
A uma pessoa que não está interessada
Isso é demais".

INTRODUÇÃO À GRANDE PERFEIÇÃO

Qual é o significado do termo “grande perfeição” ou grande “consumação”, como Dzogchen é,


às vezes, traduzido? O que é que chamamos de perfeito, consumado, completo? A verdadeira
natureza da mente é uma pureza original — completa em si mesma, não precisando ser
incrementada por qualquer modo. Quando tentamos olhar para a mente, não conseguimos encontrar
nada. Uma pessoa à qual falta visão não irá descobrir nada, e tampouco irá um ser iluminado.
Não obstante, tudo o que se manifesta é a atividade, o jogo da mente, por nenhum modo separado
da mente, do mesmo modo que as ondas não são separadas do mar.
Dentro da natureza da mente samsara e nirvana estão completos. A própria iluminação não
está além dessa natureza. Esse estado completo — que inclui todo o samsara, o nirvana, a
própria iluminação — é o âmbito da grande perfeição. O chen de dzogchen significa “grande”, no
sentido de que todos os seres de todo o universo das três mil dimensões possuem essa pureza
original, completa.
Se a verdadeira natureza da mente é completa ou perfeita, por que sofremos? Seguimos o
caminho da grande perfeição porque não enxergamos a nossa perfeição. Como o calor derrete o
gelo, nossa prática dissolve as aparências sólidas de realidade que obscurecem a nossa
natureza essencial, tornando completamente óbvias as verdadeiras qualidades da mente.
Portanto, o fundamento da grande perfeição é essa grande consumação. O caminho é o
processo de remoção daquilo que obscurece a natureza fundamental da mente. E o fruto é a
realização plena dessa natureza fundamental, quando inteiramente revelada.
Na abordagem da grande perfeição, visto que o caminho é forjado a partir da própria
consciência intrínseca primordial, precisamos diferenciá-la da mente ordinária. Nossa
consciência intrínseca no momento presente, livre de recordações ou pensamentos ordinários, de
artifícios ou fabricações, é ela própria Dharmakaya, a intenção iluminada da pureza original.
Isso nos é apresentado diretamente, na experiência imediata da nossa verdadeira natureza, como
sabedoria ou consciência primordial que ocorre por si só. Para além dos três tempos do
passado, presente e futuro, fazemos uma constatação no momento imediato dessa experiência.
Surgindo por si só e liberando-se por si só, como ondas que se dissolvem de volta no mar,
as recordações e pensamentos dissolvem-se no terreno do ser, sem deixar vestígio. Ganhamos
confiança interior diante da experiência imediata dessa liberação. [...]
Precisamos combinar a visão mais elevada com uma ação impecável. Então, a nossa prática
se torna infalível. Podemos falar sobre natureza búdica e vacuidade, mas, se não tivermos
tido realização delas, apenas nossas palavras não produzirão transformação. Precisamos ser
muito honestos sobre nossa capacidade. Se somos uma raposa, não devemos pensar que podemos
pular a mesma distância que um leão, ainda que possamos enxergar o alvo. Se não tivermos
realização profunda da verdadeira natureza da realidade, precisamos ser extremamente
cuidadosos com nossas ações. Não podemos descartar nossa experiência relativa pensando que
ela não importa, já que tudo é vazio. Precisamos ficar atentos a ela até que alcancemos a
iluminação.
Como praticantes, somos muito jovens, como crianças no jardim da infância. Não devemos
beber veneno, quer a natureza desse veneno seja vazia ou não. Podemos ser estudantes da grande
perfeição, mas, se nossa compreensão for incompleta, se nossos pensamentos, fala e ações forem
negativos, ainda vamos estar criando carma negativo; a grande perfeição não irá nos liberar.
Iremos apenas ficar mais profundamente enredados no samsara. Até que venhamos a alcançar
realização estável, tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos conta. O grande mestre
Padmasambava disse, “Em minha tradição, a visão do praticante é tão elevada quanto o céu, e as
suas ações tão refinadas quanto farinha de cevada”.

Agir com muito cuidado, meditar e manter a visão trazem maturidade para nossa prática e
aceleram nosso progresso no caminho. Shantideva disse que, se conhecermos diretamente a
verdadeira natureza da mente e mantermos esse conhecimento, todas as experiências dualistas
127

serão conquistadas e todos os venenos da mente serão purificados. Se a sua prática for ótima,
você notará mudanças dia após dia. Se sua prática não apresentar esse grau de eficácia,
mudanças estarão aparecendo a cada semana, cada mês ou cada ano. Se não ocorrer nenhuma
mudança, mesmo após anos de meditação, o erro estará na qualidade da sua prática. Você não
poderá pôr a culpa no Dharma.
Hoje em dia, embora muitas pessoas falem sobre grande perfeição, o nível de realização não
é o mesmo de antigamente. É menor o número de praticantes que conseguem o corpo de arco-íris,
a dissolução dos elementos do corpo em luz, quando a iluminação é alcançada. As pessoas dizem
estar praticando a grande perfeição e, no entanto, sequer alcançaram as metas básicas de
reduzir raiva, apego e ignorância.
O problema não está nos ensinamentos. Nem houve qualquer ruptura na linhagem mente-a-
mente. O fato é que os praticantes não são diligentes. Uma pessoa não pode simplesmente
escolher um ensinamento, praticá-lo na medida em que desejar, e ignorar o resto. As coisas não
funcionam assim. É essencial que a pessoa persista em seus esforços desde a base inicial até a
conclusão.
Podemos receber grandes ensinamentos e métodos, mas, se não fizermos uso deles, seremos
como alguém juntando dinheiro que não irá transpor o umbral da morte — estaremos apenas
desperdiçando o nosso tempo. Se praticarmos a grande perfeição com diligência, poderemos
atingir a iluminação em sete anos ou, com maior diligência, pureza e receptividade, em três
anos ou mesmo em apenas um. Sem essas qualidades, podemos ficar em retiro por dezesseis ou
trinta e dois anos, nossa mente correndo de um lado para outro, sem nada alcançar. A casa em
que fizermos o nosso retiro parecerá apenas uma prisão. Ou podemos praticar em meio às
atividades do mundo, direcionando a mente para o Dharma, repousando na consciência intrínseca
a cada momento do dia, e alcançar a iluminação nesta própria vida.
Embora ciente de que são ilusórias, o bodisatva se propõe a fazer meditações que demandam
esforço e a praticar atividades benéficas, visando ajudar aqueles que vivem aprisionados por
acreditarem na aparente solidez de sua realidade. Isso leva ao fruto do caminho: a revelação
integral da nossa natureza fundamental, a grande perfeição que tudo abarca. Por meio da
realização plena da visão, meditação e ação, atividades positivas surgem espontaneamente.
Do livro: PORTÕES DA PRÁTICA BUDISTA – Chagdud Tulku Rinpoche

Hoje em dia existe muita gente que não tem o mínimo interesse em assuntos espirituais,
falta o interesse que é reforçado pela visão materialista que impera em nossas sociedades. Se
perguntarmos a pessoas desse tipo em que crêem, a resposta pode inclusive ser “não creio em
nada”. Tais indivíduos pensam que toda religião está baseada na fé, a qual não parece muito
melhor que a superstição, e que as religiões em geral não são aplicáveis ao mundo moderno.
Pois bem, o Dzogchen não exige a adoção de crença alguma, nem pode ser considerado uma
religião. Este sistema se limita a sugerir ao indivíduo que se observe a si mesmo e assim
possa descobrir sua verdadeira condição. Nos ensinamentos Dzogchen se considera que o
indivíduo funciona em três níveis interdependentes, que são o corpo, a fala ou energia, e a
mente. Nem sequer aqueles que afirmam não crer em nada podem dizer que não crêem em seu
próprio corpo, pois este é algo básico para sua existência, e os limites e problemas do mesmo
são claramente tangíveis. Sentimos frio e fome, sofremos dor e solidão e passamos uma grande
parte de nossas vidas tratando de superar nossos sofrimentos físicos.

O nível da energia ou fala não é tão fácil de perceber e, em conseqüência, sua compreensão
não é tão universal. No Ocidente, inclusive os médicos, em sua maioria, o ignoram
completamente e tratam de curar todas as enfermidades atuando em um nível puramente material.
Então, se a energia de um indivíduo está alterada, nem o seu corpo nem sua mente estarão
equilibrados. Algumas enfermidades, como o câncer, são causadas por perturbações da energia e
não se podem curar simplesmente com a cirurgia ou os medicamentos. De forma similar, muitas
psicoses, neuroses e outros problemas mentais são causados por uma má circulação da energia.
Em geral, nossas mentes são muito complicadas e estão muito confusas. Se tentarmos obter uma
certa calma, é provável que não consigamos, a nossa energia nervosa e agitada torna isso
impossível. Assim pois, para enfrentar estes problemas do corpo, fala e mente, os ensinamentos
dzogchen apresentam exercícios que atuam sobre cada um desses três níveis, os quais podem
integrar-se em nossa vida cotidiana e portanto podem mudar a totalidade de nossa experiência
fazendo-nos passar da tensão e confusão à sabedoria e à verdadeira liberdade. Os ensinamentos
dzogchen não são meramente teóricos; eles são, sobretudo práticos e, ainda que sejam muito
antigos como a natureza do corpo, a energia e a mente dos indivíduos não mudaram com o passar
do tempo, seguem sendo tão aplicáveis à situação humana de hoje como o foram no passado.

O ESTADO PRIMORDIAL

Na essência, o ensinamento dzogchen se ocupa do Estado Primordial que, desde o começo, tem
constituído a natureza intrínseca de cada indivíduo. A vivência de dito Estado é a vivência de
nossa verdadeira condição: somos o centro do universo, embora não no sentido egoísta próprio
de nossa experiência comum. A consciência egocêntrica comum não é outra coisa que a gaiola
limitada da visão dualista que exclui a vivência de nossa verdadeira natureza: a vivência do
128

espaço do Estado Primordial. Descobrir o Estado em questão é compreender o ensinamento


dzogchen, cuja transmissão tem função de comunicar dito Estado: quem o descobriu e se
estabeleceu nele o transmite àqueles que estão presos na condição dualista. Inclusive o nome
“dzogchen”, que significa “Grande Perfeição”, se refere à auto-perfeição deste estado,
fundamentalmente puro desde o começo, no qual não há nada que aceitar ou rejeitar. Para entrar
no Estado Primordial e apreendê-lo diretamente, ninguém necessita conhecimentos intelectuais,
culturais ou históricos. Por sua própria natureza, dito Estado está além do alcance do
intelecto. No entanto, quando a gente encontra um ensinamento que não conhecia anteriormente,
logo quer saber onde surgiu, de onde veio, quem o ensinou e assim sucessivamente. Ainda que o
anterior seja perfeitamente compreensível, não se pode dizer que o dzogchen mesmo pertença à
cultura de nenhum país. Por exemplo, há um tantra dzogchen chamado “Dra Talyur Tsawe Guiü” que
afirma que o ensinamento dzogchen se encontra também em outros treze sistemas solares
diferente do nosso; em conseqüência, nem sequer podemos dizer que o ensinamento dzogchen
pertença ao planeta Terra. Como podemos afirmar que o ensinamento dzogchen pertença a alguma
cultura nacional particular? Embora seja certo que a tradição dzogchen foi transmitida através
da cultura do Tibet, que a conservou desde o começo da historia conhecida desse país, não
podemos concluir, no entanto, que o dzogchen seja tibetano, uma vez que o Estado Primordial
não tem nacionalidade e se encontra em todas as partes. No entanto, também é certo que em
todos os lugares os seres sensíveis entraram na visão dualista que oculta a vivência do Estado
Primordial. E quando os seres realizados entraram em contato com eles, somente raras vezes tem
sido capazes de comunicar o Estado em questão de maneira completa sem palavras ou símbolos; em
conseqüência, tiveram que usar como meio de comunicação a cultura própria de cada lugar. Assim
pois, freqüentemente tem sucedido que a cultura e os ensinamentos se encontram entrelaçados e,
no caso do Tibet, isto é certo a tal ponto que não é possível compreender a cultura do país
sem uma compreensão dos ensinamentos.
Isto não significa que, o ensinamento dzogchen se tenha difundido amplamente no Tibet e
chegado a ser bem conhecido por todos; a verdade é bem ao contrário. Dito ensinamento sempre
esteve reservado, pois é tão direto que as pessoas lhe tinham um pouco de medo e, em
conseqüência, em certa medida sempre houve que mantê-lo em segredo. No entanto, não há dúvida
de que ele constitui a essência de todos os ensinamentos tibetanos. Inclusive na antiga
tradição bön – tradição em grande parte chamânica, que é nativa do Tibet e que antecedeu a
chegada do budismo da Índia – existia um ensinamento dzogchen. Assim pois, ainda que os
ensinamentos dzogchen não pertençam ao budismo nem ao bön, podemos considerá-lo como a
essência de todas as tradições espirituais tibetanas, tanto dentro da primeira de ditas
religiões como dentro da segunda. Entendendo isto, e tendo em conta o fato de que as tradições
espirituais do Tibet constituem a essência da cultura tibetana, podemos fazer uso dos
ensinamentos dzogchen como uma chave para uma compreensão dessa cultura na totalidade. Com
efeito, todos os aspectos da cultura em questão surgiram como facetas da visão unificada dos
mestres realizados das distintas tradições espirituais. A claridade do Estado Primordial –
essência da experiência de muitos mestres – funcionou como um cristal no coração da cultura,
que projetou as formas da arte e iconografia, medicina e astrologia tibetanas, como brilhantes
raios ou reflexos. Se compreendermos a natureza do cristal, compreenderemos melhor os raios
refletidos que dele emanaram.

ESSÊNCIA DO DZOGCHEN

O famoso mestre Dzogchen N. Norbu Rinpoche expõe aqui um breve resumo da visão essencial
da grande perfeição situando-a com relação à via tântrica. Na aproximação tântrica trata-se de
transformar ou de transmutar a base em fruto pelas práticas do caminho, enquanto que no
Dzogchen essencial semelhante à um espelho está em questão uma liberação onde base, caminho e
fruto não são diferenciados.

O ensinamento do Dzog-Chen é um ensinamento principalmente ligado ao nível da mente, uma


maneira mais direta de obter o conhecimento. Em geral, dizemos o ensinamento do estado da
mente de Samantabhadra. Na tradição Nyingmapa, o verdadeiro ensinamento do Dzog-chen é chamado
Ati-yoga. Há uma diferença entre a Anu-yoga, cujo objetivo final é chamado Dzog-Chen e o Dzog-
Chen da auto-liberação. Na auto-liberação, desde o início, a via, a base e o fruto, a
realização, tudo é Dzog-Chen. Na linguagem de Oddiyana, isso se chama Ati-yoga. Ati significa
primordial, a compreensão ou a natureza primordial. Chamamos também a via da auto-liberação. A
via da auto-liberação não é nem a via da transformação nem a via da renúncia. Então é preciso
saber o que significa auto-liberação.

Em geral temos uma idéia do bem e do mal; todas as nossas noções do bem e do mal e toda
nossa visão dualista, consideramos que é nossa visão relativa ou visão impura. No tantrismo
dizemos que transformamos a visão impura em visão pura. Temos então agora uma idéia de duas
visões. Isso significa que alguma coisa não é válida. A visão impura é o samsara e o samsara
não é válido para nos encontrar no estado de contemplação: por esta razão o transformamos. Mas
no Dzog-Chen dizemos Kun tu Bzangpo (em sânscrito Samantabhadra). Kun tu significa “todas as
circunstâncias diferentes” e Bzangpo “bom”. Por quê? Que quer dizer bom? Isso não tem nada a
ver com as noções de bom e mau da visão dualista, mas quando estamos em estado de
contemplação, o estado de Dzog-Chen não existe nada de falso, de mau, nada a rejeitar, a que
129

devamos renunciar ou então a transformar. Não há nada que não seja válido na contemplação. É
o princípio que chamamos “Bzangpo” bom. É igualmente o estado de Dzog-Chen.

Podemos aprender pelo exemplo do espelho. Quando olhamos em um espelho podemos ver nosso
próprio reflexo bem como o dos objetos que estão em frente ao espelho. Nesse momento quando
consideramos que estamos a ponto de olhar no espelho, somos uma pessoa/sujeito e o espelho é o
objeto e pensamos então: “Eu olho, há um reflexo”: é a nossa condição de visão dualista. Neste
caso aqui temos sempre a noção de bem e de mal. Mesmo que saibamos que o reflexo no espelho
não é real, pensamos sempre que o objeto refletido é concreto para nós. Então nossa
compreensão do fato que o reflexo no espelho é irreal não é senão uma compreensão intelectual.
De toda maneira, temos sempre o apego, as tensões, os problemas, os conceitos, etc... e essa é
nossa condição habitual. Mas se tivermos o conhecimento de nossa condição real, isso que
chamamos Ati-yoga, através desta compreensão nos tornamos nós mesmos a natureza do espelho:
não olhamos mais no espelho mas somos o espelho. Se formos o espelho tudo o que se reflete,
bem ou mal, faz parte de nossa qualificação; isso que chamamos espelho tem a qualificação ou a
potencialidade de refletir diferentes coisas, senão não seria um espelho.

Então se formos o espelho, se estivermos no estado do espelho, temos esta qualificação e


manifestamos os reflexos. Todas as existências os corpos, as vozes, as mentes, os pensamentos
as confusões, as paixões, tudo é semelhante aos reflexos, faz parte dos reflexos. Então se
estivermos verdadeiramente no estado do espelho, todas as coisas não nos causarão nenhum
problema, porque os reflexos não podem jamais condicionar a natureza do espelho e um espelho
não tem jamais nenhum problema com os reflexos, ele não pergunta se um reflexo é bom ou mau,
ele tem a qualificação de os manifestar e isso é tudo. Pois se estamos verdadeiramente no
estado do espelho, o que significa que temos o conhecimento desta natureza, não há nada de
ruim, é isso que chamamos auto-liberação: podemos auto-liberar qualquer coisa nesta natureza
que é a nossa.
Namkhaï Norbu Rinpoche – Extrato dos ensinamentos dados durante o retiro de Marcevol, maio 1989,

publicados no livro: “DHARMA la voie du Boudha - Mahamudra-Dzogchen” - Tradução do texto: Flávio Capllonch Cardoso

A ESSÊNCIA MAIS PROFUNDA

Ninguém pode morrer sem medo e em completa segurança sem ter atingido a realização da
natureza da mente. Porque só essa realização, aprofundada em anos de prática continuada, pode
manter a mente estável no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheço
de ajudar a realizar a natureza da mente, a prática de Dzogchen, a mais antiga e direta
corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do budismo é a própria fonte dos ensinamentos do
bardo, é a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstâncias atuais. As origens do
Dzogchen remontam ao Buda Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta
de grandes mestres que chega até o presente. Centenas de milhares de indivíduos na Índia, no
Himalaia e no Tibet, atingiram a realização e a iluminação através dessa prática.
Alguns dos meus mestres me disseram que este é o momento de se difundir o Dzogchen. Os
seres humanos chegaram a um ponto crítico da sua evolução e esta época de extrema confusão
pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade.
Descobri também que as pessoas de hoje querem um caminho que elimine o dogma, o
fundamentalismo, exclusivismo, metafísica, complexa e parafernália cultural exótica, um
caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que não precise ser praticado em ashrams ou
mosteiros, mas possa integrar-se à vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar.
O que é, então, o Dzogchen? O Dzogchen não é apenas um ensinamento, nem mais uma
filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora série de técnicas. Dzogchen é
um estado, o estado primordial, aquele estado totalmente desperto que é o coração e a essência
de todos os budas e de todos os caminhos espirituais e o ápice da evolução espiritual de um
indivíduo. Dzogchen é freqüentemente traduzido como Grande Perfeição. Prefiro deixar a palavra
sem traduzir, porque Grande Perfeição traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para
conseguir, meta que fica no final de um longa e árdua jornada.
Nada podia estar mais distante do significado de Dzogchen: o estado já perfeito em si
mesmo da nossa natureza primordial, que não precisa de “aperfeiçoamento”, uma vez que, como o
céu, sempre foi perfeito desde o começo.
Todos os ensinamentos budistas são explicados em termos de “Base, Caminho e Fruição”. A
Base do Dzogchen é esse estado fundamental e primevo, nossa natureza absoluta que já é
perfeita e está sempre presente. Patrul Rinpoche diz: “Nem é para ser buscada externamente,
nem é algo que você não tinha antes ou que precise nascer agora de um modo novo em sua mente”.
Do ponto de vista da Base - o absoluto - nossa natureza é a mesma que a dos Budas, e nesse
nível não há que ouvir ensinamentos ou fazer prática - nem um pingo, dizem os mestres.
Não obstante, temos de entender, os Budas tomaram um caminho e nós tomamos outro. Os Budas
reconhecem sua natureza original e tornam-se iluminados; nós não a reconhecemos e por isso nos
tornamos confusos. Nos ensinamentos, esse estado de coisas é chamado “Uma base, dois
Caminhos”. Nossa condição relativa é que nossa natureza intrínseca está obscurecida e
precisamos seguir os ensinamentos e a prática para voltarmos à verdade: esse é o caminho do
Dzogchen. Finalmente, atingir a realização da nossa natureza original é atingir a completa
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liberação e tornar-se um Buda. Essa é a fruição do Dzogchen, que de fato é possível ao


praticante em uma só vida, quando ele ou ela a isso dedica seu coração e mente.
Os mestres Dzogchen são agudamente conscientes dos perigos de confundir o absoluto com o
relativo. Quem não consegue compreender essa relação pode subestimar ou até desprezar os
aspectos relativos da prática espiritual e a lei cármica de causa e efeito. No entanto,
àqueles que apreendem verdadeiramente o significado do Dzogchen terão um respeito ainda mais
profundo pelo carma, bem como uma apreciação mais intensa e premente da necessidade de
purificação e de prática espiritual. Isso se dará porque eles poderão perceber a vastidão
daquilo que há neles e que foi obscurecido, o que os fará empenhar-se de maneira mais
fervorosa, e com disciplina sempre fresca e natural, em remover o que quer que se interponha
entre eles e sua verdadeira natureza.
Os ensinamentos Dzogchen são como um espelho que reflete a Base da nossa natureza original
com pureza tão elevada e liberadora, e claridade tão imaculada, que constituem uma proteção ao
perigo de ficar presos em qualquer forma de entendimento conceitualmente fabricado, mesmo que
sutil, convincente ou sedutor.
Qual é então, para mim, a maravilha do Dzogchen? Todos os ensinamentos levam à iluminação,
mas a singularidade do Dzogchen é que, mesmo na dimensão relativa dos ensinamentos, a sua
linguagem nunca macula o absoluto com conceitos; deixa-o intacto em sua simplicidade desnuda,
dinâmica e majestosa, e mesmo assim fala dela a qualquer um de mente aberta em termos tão
vívidos e expressivos que, mesmo antes de nos iluminarmos, somos agraciados com o vislumbre
mais forte que podemos ter do esplendor do estado desperto.

A VISÃO

Tradicionalmente, o treinamento prático do Caminho Dzogchen é descrito com muita


simplicidade em termos de Visão, Meditação e Ação. Ver diretamente o estado absoluto, a Base
do nosso ser, é a Visão; o modo de estabilizar essa Visão e fazer dela uma experiência
contínua é Meditação; integrar a Visão à nossa realidade total e à nossa vida é o que chamamos
Ação.
O que é então a Visão? É nada menos que ver o estado real das coisas como elas são; saber
que a verdadeira natureza da mente é a verdadeira natureza de tudo; e atingir a realização de
que a verdadeira natureza da nossa mente é a verdade absoluta. Dudjom Rinpoche diz:

A visão é a compreensão da consciência intrínseca desnuda,


Dentro da qual tudo está contido:
a percepção sensorial e a existência fenomênica, o samsara e o nirvana.
Essa consciência intrínseca e imediata tem dois aspectos:
"vacuidade" como o absoluto, e a aparência ou percepção como relativo.

O que isso significa é que todo o conjunto das possibilidades das aparências e todos os
possíveis fenômenos em todas as diferentes realidades - todos eles, sem exceção, seja no
samsara ou no nirvana - sempre foram e sempre serão perfeitos e completos, dentro da vasta e
ilimitada extensão da natureza da mente. Mais ainda, que a essência de tudo seja vazia e “pura
desde o início”, sua natureza é rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades,
um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que é sempre perfeito e espontâneo.
[...]

Como a mente de sabedoria dos Budas pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como
seu próprio rosto; está sempre com você, mas não pode vê-lo sem ajuda. Agora imagine que
nunca viu um espelho antes. A introdução feita pelo mestre é colocar subitamente um espelho
diante de você, no qual pela primeira vez vai ver seu próprio rosto refletido. Tal como seu
rosto, a pura percepção de Rigpa [a base do nosso ser] não é algo “novo” que o mestre lhe está
dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora
de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com você, mas até aquele momento, surpreendente,
você nunca o tinha visto de maneira direta.
Patrul Rinpoche explica que “de acordo com a tradição especial dos grandes mestres da
linhagem dessa prática, a natureza da mente, o rosto de Rigpa, é introduzido precisamente na
dissolução da mente conceitual”.
[...]

Apenas uns poucos indivíduos na história, devido ao seu carma purificado, puderam
reconhecer e iluminar-se num instante; por isso a introdução deve quase sempre ser precedida
pelas práticas preliminares que apresento a seguir. São essas práticas preliminares que
purificam e removem os obscurecimentos da mente ordinária, trazendo você ao estado em que
“seu” Rigpa pode ser revelado.
Primeiro, a meditação, antídoto supremo da distração, traz a mente de volta e permite que
ela se assente no seu estado natural.
Segundo, práticas profundas de purificação e o fortalecimento do carma positivo, através
da acumulação de mérito e sabedoria, começam a enfraquecer e dissolver os véus intelectuais e
emocionais que obscurecem a natureza da mente. Como escreveu meu mestre Jamyang Khyentse: “Se
os obscurecimentos forem removidos, a sabedoria de Rigpa de cada um brilhará naturalmente”.
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Essas práticas de purificação, chamadas Ngöndro em tibetano, devem ser cuidadosamente


observadas para produzir uma ampla transformação interior. Elas envolvem o ser inteiro -
corpo, fala, mente - e começam com uma série de profundas contemplações sobre:

- A singularidade da vida humana


- A contínua presença da impermanência e da morte
- A infalibilidade da causa e efeito das nossas ações
- O ciclo vicioso de frustração e sofrimento que é o samsara

[...]

Mesmo sabendo que as palavras e os conceitos fracassam quando tentamos descrevê-la, vou
procurar dar uma idéia do que é a Visão e do que acontece quando Rigpa é revelado diretamente.
Dudjom Rinpoche diz: “Esse momento é como tirar um capuz de sua cabeça. Que amplitude
infinita e que alívio! Esse é o ver supremo: ver o que não foi visto antes”. Quando você vê
tudo se abre, se expande e se torna fresco, claro, transbordante de vida, animado de
encantamento e frescor. É como se o teto de sua cabeça se desprendesse, ou se um bando de
pássaros repentinamente revoasse de um ninho escuro. Todas as limitações se dissolvem e
desaparecem como se, dizem os tibetanos, um selo tivesse rompido.
Imagine-se morando numa casa no topo do mundo. De repente, toda a estrutura da casa que
limitava sua visão simplesmente desaparece e você pode ver tudo ao seu redor, tanto dentro
como fora. Mas não há alguma “coisa” para ver; o que acontece não tem qualquer referência no
mundo ordinário; é uma visão total, completa, sem precedentes, perfeita.

Dudjon Rinpoche diz:

“Seus inimigos mais mortais, aqueles que o mantiveram amarrado ao samsara por incontáveis
vidas, desde tempos imemoriais até o presente, são o agarrar e o agarrado”.

Quando o mestre o introduz e você os reconhece, “esses dois são completamente consumidos
como penas numa fogueira, não deixando vestígios”. Agarrar e agarrado, a coisa agarrada e
aquele que agarra são completamente liberados a partir mesmo da sua base. As raízes da
ignorância e do sofrimento são totalmente cortadas e todas as coisas aparecem como reflexos
num espelho, transparentes, bruxuleantes, ilusórias e com a qualidade de um sonho.
Quando você chega naturalmente a esse estado de meditação, inspirado pela Visão, pode
permanecer aí por um longo tempo sem qualquer distração ou esforço especial. Então não há
nenhuma coisa de nome meditação para proteger ou sustentar, uma vez que você está no fluxo
natural da sabedoria Rigpa. E, quando está nele, perceberá que é como se tivesse sido sempre
assim, e é. Quando brilha a sabedoria de Rigpa, nem uma sombra de dúvida permanece e um
entendimento completo e profundo surge diretamente e sem qualquer esforço.

[...]

Esse é o momento do despertar. Um profundo senso de humor brota de dentro e você sorri,
divertido com a inadequação dos seus antigos conceitos e idéias sobre a natureza da mente.
O que surge disto é uma crescente, tremenda e inabalável certeza e convicção de que “é
isto”. Não há nada além a procurar, nada a mais a ser esperado. Essa certeza da Visão é aquilo
que deve ser aprofundado, de lampejo a lampejo, sobre a natureza da mente, e estabilizado pela
contínua disciplina da meditação.

MEDITAÇÃO

Então o que é meditação do Dzogchen? É simplesmente repousar, sem distrações, na Visão,


uma vez que ela tenha sido introduzida. Dudjon Rinpoche a descreve:

A meditação consiste em ficar atento a esse estado de Rigpa, livre de todas as construções
mentais, embora permanecendo totalmente relaxado, sem qualquer distração e sem agarrar-se a
nada. Por isso se diz que a “meditação não é se esforçar, mas permitir que a própria meditação
nos assimile naturalmente”.

O ponto central da prática de meditação Dzogchen é fortalecer e estabilizar Rigpa,


permitindo que ele cresça até sua plena maturidade. A mente ordinária e habitual, com suas
projeções, é extremamente poderosa. Ela fica voltando e toma conta de nós quando estamos
desatentos e distraídos. Como Dudjon Rinpoche costumava dizer: “No momento, nosso Rigpa é como
um bebezinho desamparado no campo de batalha onde os pensamentos irrompem com força”. Gosto de
dizer que temos de começar sendo a ama-seca do nosso Rigpa dentro do ambiente seguro da
meditação.
Se a meditação é simplesmente continuar o fluxo de Rigpa após a introdução, como sabemos
quando é Rigpa e quando não é? Fiz essa pergunta a Dilgo Khyentse Rinpoche e ele respondeu com
sua simplicidade característica: “Se você está num estado inalterado, é Rigpa”. Se não estamos
dentro da mente que de algum modo manipula e distorce a realidade, mas apenas repousando num
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estado inalterado de consciência pura e original, então isso é Rigpa. Se há qualquer trama ou
maquinação de nossa parte, alguma forma de manobra ou de apego, já não se trata de Rigpa.
Rigpa é um estado em que não há mais qualquer dúvida: não há na verdade algo como uma mente
que possa duvidar: você vê diretamente. Se estiver nesse estado, certeza e confianças
completas e naturais vibram com o próprio Rigpa, e é assim que você sabe.
A tradição do Dzogchen é de precisão extrema, já que quanto mais fundo você vai mais sutis
são os enganos que podem surgir, e o que está em jogo é o conhecimento da realidade absoluta.
Mesmo após a introdução, os mestres esclarecem em detalhes os estados que não são
meditação Dzogchen e que com ela não devem ser confundidos. Num desses estados você perambula
por uma terra de ninguém da mente, onde não há pensamentos ou memórias; é um estado obscuro,
embotado e apático, onde você está mergulhado na base da mente ordinária. Num segundo estado
há certa quietude e leve claridade, mas é uma quietude estagnada, ainda enterrada na mente
ordinária. Num terceiro você experimenta a ausência de pensamentos, mas está “em outra”,
apenas num estado vazio de encantamento. Num quarto estado sua mente vagueia, ansiando por
pensamentos e projeções. Nenhum desses é o verdadeiro estado de meditação e o praticante deve
observar habilmente o que ocorre para evitar ser iludido por esses caminhos.
A essência prática da meditação no Dzogchen está contida nesses quatro pontos:

I - Quando um pensamento passado cessou e ainda não surgiu um pensamento futuro, há uma
brecha. Nesse preciso instante, não há uma consciência do momento presente, fresca,
virgem, em nada alterada por conceitos, uma atenção luminosa e pura?
Pois bem isso é Rigpa!

II - Entretanto a mente não fica neste estado para sempre, porque outro pensamento
subitamente surge, não é assim?
Essa é a auto-irradiação de Rigpa.

III - No entanto, se você não reconhece esse pensamento pelo que de fato ele é, no
instante em que surge, ele se transformará em um pensamento comum, como antes. Essa é a
chamada “cadeia da ilusão”, e é a raiz do samsara.

IIII - Se você é capaz de reconhecer a verdadeira natureza do pensamento logo que ele
surge e o deixa em paz, sem persegui-lo, então quaisquer pensamentos que surjam se
dissolvem automaticamente, retornando à vasta extensão de Rigpa, e são liberados.

É preciso uma vida inteira de prática para entender e realizar a profunda riqueza e a
majestade desses quatro pontos tão simples e tão fundamentais, e tudo o que posso fazer aqui é
dar a você uma amostra da vastidão que é a meditação Dzogchen.
Talvez o ponto mais importante é que a meditação Dzogchen vem a tornar-se um contínuo
fluxo de Rigpa, como um rio que se move constantemente, dia e noite sem interrupção. Claro que
isto é um estado ideal, uma vez que esse atento repouso na Visão, já introduzida e
identificada, é a recompensa de muitos anos de prática permanente.
A meditação Dzogchen é sutilmente poderosa na lida com os movimentos da mente,
apresentando uma perspectiva única sobre eles. Tudo o que surge é visto na sua verdadeira
natureza, não como coisa separada de Rigpa, e não antagônica a ele, mas - e isso é muito
importante - verdadeiramente como nada mais que a sua auto-irradiação, a manifestação de sua
própria energia.
Digamos que você se encontre num estado de profunda quietude; ele não costuma durar muito,
porque logo um movimento ou um pensamento surge, como uma onda no oceano. Não rejeite o
movimento nem se apegue à tranqüilidade, mas deixe seguir o fluxo da sua pura presença. O
estado penetrante e sereno da sua meditação é o próprio Rigpa e tudo que surge nada mais é que
a auto-irradiação de Rigpa. Esse é o coração e a base da prática Dzogchen. (...)

À medida que incorpora a firme estabilidade da Visão, você não é mais enganado nem
distraído pelo que quer que possa surgir, e assim não cai vítima da ilusão.
Claro que no oceano há ondas violentas e ondas suaves; surgem emoções fortes como raiva,
desejo e inveja. O verdadeiro praticante as reconhece não como perturbação ou obstáculo, mas
como uma grande oportunidade. O fato de você reagir ao que aparece com as tendências habituais
de apego e aversão é sinal não somente que está distraído, mas também de que não tem o
reconhecimento e perdeu a base de Rigpa. Reagir as emoções desse modo significa reforçá-las,
prendendo-nos ainda mais fortemente às cadeias da ilusão. O grande segredo do Dzogchen é ver
bem através delas, tão logo aparecem, percebendo-as pelo que de fato são: a vívida e elétrica
manifestação da própria energia Rigpa. À medida que você aprende a fazer isso, mesmo as
emoções mais turbulentas já não conseguem dominá-lo e se dissolvem como ondas bravias que
aparecem e retrocedem, mergulhando de volta na calma do oceano.

O praticante descobre - e essa é uma visão revolucionária, cuja sutileza e poder vão além
do que podemos entrever - que as emoções violentas não precisam necessariamente precipitá-lo
no turbilhão de suas próprias neuroses; elas podem ser usadas para aprofundar, estimular,
avivar e fortalecer Rigpa. Essa energia tempestuosa torna-se matéria-prima para a energia
desperta de Rigpa. Quanto mais forte e ardente a emoção, mais Rigpa se fortalece. Sinto que
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esse método peculiar ao Dzogchen é uma força extraordinária para libertar até os problemas
emocionais e psicológicos mais inveterados e mais profundamente enraizados. (...)

No Dzogchen, a fundamental e inerente natureza de tudo é chamada “Luminosidade Base”, ou


“Luminosidade Mãe”. Ela permeia todas as nossas experiências e é inclusive, embora não a
reconheçamos, a natureza inerente também dos pensamentos e emoções que surgem em nossa mente.
Quando o mestre introduz à verdadeira natureza da mente, ao estado de Rigpa, é como ele ou ela
nos desse uma chave mestra. No Dzogchen chamamos essa chave, que vai abrir a porta do
conhecimento total, de “Luminosidade Caminho”, ou “Luminosidade Filha”. A Luminosidade Base e
a Luminosidade Caminho. são fundamentalmente as mesmas, é claro, e é só para fins de
explanação e prática que elas são categorizadas dessa forma. Mas uma vez que temos a chave da
“Luminosidade Caminho” dada pela introdução do mestre, podemos usá-la à vontade para abrir a
porta da natureza inata da realidade. Este abrir a porta se chama na prática do Dzogchen “O
encontro da Luminosidade Mãe e Filha”. Outro modo de dizer isso é que, assim que um pensamento
ou emoção aparecem, a Luminosidade Caminho - Rigpa - reconhece-os imediatamente pelo que são,
reconhece sua natureza inerente, a Luminosidade Base. Nesse instante de reconhecimento, as
duas Luminosidades se fundem e os pensamentos e emoções são liberados em sua própria base.
É fundamental o aperfeiçoamento dessa prática de fusão das duas Luminosidades e da auto-
liberação daquilo que surge na sua mente enquanto você está vivo, porque o que ocorre para
todos no momento da morte é isto: a Luminosidade Base desponta com seu imenso esplendor,
trazendo com ela uma oportunidade de liberação total - se, e somente se, você tiver aprendido
a reconhece-la.
Talvez fique claro agora que essa fusão das Luminosidades e da auto-liberação dos
pensamentos e das emoções é meditação no seu nível mais profundo. De fato, um termo como
meditação não é verdadeiramente apropriado para a prática Dzogchen porque, em última análise,
implica meditar “sobre” algo, enquanto que no Dzogchen tudo é apenas e para sempre Rigpa.
Desse modo, não existe meditação separada do simples ficar na pura presença de Rigpa.
A única palavra que talvez pudesse descrever isso é “não-meditação”. Nesse estado, dizem
os mestres, mesmo se você procurar a ilusão, não encontrará nenhuma. Mesmo se você procurar
pedrinhas comuns numa ilha de ouro e jóias, não terá oportunidade de encontrá-las. Quando a
Visão é constante, o fluxo de Rigpa é inesgotável e a fusão das duas Luminosidades é contínua
e espontânea, toda a ilusão possível é liberada em sua própria raiz e toda a sua percepção
aparece como Rigpa, sem interrupção.

Os mestres enfatizam que para estabilizar a Visão na meditação é essencial, primeiro,


realizar essa prática num ambiente especial, de retiro, onde todas as condições favoráveis
estejam presentes; entre as distrações e a correria do mundo, as experiências verdadeiras, por
mais que você medite, não surgirão na sua mente. Segundo, embora não haja diferença no
Dzogchen entre meditação e vida cotidiana, até que você tenha encontrado a verdadeira
estabilidade pela prática em sessões a isso dedicadas, não conseguirá integrar a sabedoria da
meditação na experiência da vida diária. Terceiro, mesmo se você pratica e é capaz de assentar
no fluxo de Rigpa com confiança na Visão, mas não consegue manter esse fluxo todo o tempo, em
todas as situações, combinando sua prática com a vida cotidiana, isso não servirá quando
circunstâncias desfavoráveis surgirem, e você será desviado para a ilusão pelos pensamentos e
emoções.
[...]

AÇÃO

À medida que a familiaridade com o fluxo de Rigpa vai se tornando realidade e permeia a
vida cotidiana, as ações do praticante começam a mudar e geram estabilidade e confiança
profundas.
Dudjom Rinpoche diz:

“Ação é estar verdadeiramente atento aos seus próprios pensamentos. Bons ou maus, olhando
para a verdadeira natureza de qualquer pensamento que surja, sem evocar o passado ou convidar
o futuro, sem permitir qualquer apego a experiência de alegria nem deixar-se dominar pelas
situações tristes. Assim fazendo, você tenta atingir e permanecer num estado de grande
equilíbrio em que bom e mau, paz e angústia, são desprovidos de verdadeira identidade”.

Atingir a realização da Visão transforma de maneira sutil, porém completa, o modo como
você vê as coisas. Mais e mais eu percebi o quanto pensamentos e conceitos são tudo o que nos
impede de estar sempre, muito simplesmente, no absoluto. Agora vejo com claridade porque os
mestres dizem com tanta freqüência: “Procure com afinco não criar muita esperança ou medo”,
porque só engendram mais tagarelice mental. Quando a Visão está presente, os pensamentos são
percebidos como de fato são: fugazes, transparentes e apenas relativos. Você pode enxergar
através de tudo, como se tivesse olhos de raios – x . Não se apega aos pensamentos e emoções,
nem os rejeita, mas acolhe-os todos no vasto abraço de Rigpa. O que levava muito a sério antes
- ambições, planos, expectativas, dúvidas e paixões - já não tem nenhum poder profundo sobre
você nem o deixa ansioso, uma vez que a Visão o ajudou a perceber a futilidade e a insensatez
de todas as coisas, e fez nascer em você um espírito de verdadeira renúncia.
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Permanecer na claridade e na confiança de Rigpa permite que todos os seus pensamentos e


emoções se liberem naturalmente e sem esforço em sua vasta extensão, qual escrever na
superfície da água ou pintar no céu. Se você aperfeiçoa verdadeiramente essa prática, não há
jeito de acumular carma; e nesse estado de entrega despreocupada e sem intencionalidade, que
Dudjom Rinpoche chama de tranqüilidade aberta e desnuda, a lei de causa e efeito já não pode
sujeitá-lo de modo algum.

Não presuma que isso é fácil ou poderia de algum modo sê-lo. É muito difícil repousar sem
distrações na natureza da mente, mesmo por um instante, e permitir que um pensamento ou emoção
se auto libere espontaneamente quando surge. Via de regra assumimos que apenas porque
compreendemos algumas coisas intelectualmente, ou pensamos que compreendemos, nós de fato as
realizamos. Essa é uma enorme ilusão. A tarefa exige a maturidade que somente anos de audição,
contemplação, reflexão, meditação e prática contínua podem trazer. E nunca é demais enfatizar
que a prática continuada do Dzogchen sempre requer a direção e a instrução de um mestre
qualificado.

De outro modo há um grande perigo, que a tradição chama “perder a Ação na Visão”. Um
ensinamento tão elevado e poderoso como o Dzogchen comporta um risco extremo. Ao iludir-se de
que está liberando pensamentos e emoções, quando de fato não está nem próximo de conseguir
isso, e ao imaginar que está agindo com a espontaneidade de um verdadeiro yogue Dzogchen, tudo
o que você faz é acumular enormes quantidades de carma negativo. Como dizia Padmasambhava, e
esta é a atitude que todos devem ter:

“Embora minha visão seja tão vasta quanto o céu


Minhas ações e meu respeito pela causa e efeito
São refinados como o grão de farinha”.

Os mestres da tradição Dzogchen enfatizam incansavelmente que, sem um conhecimento


completo e profundo da “essência e método da auto-liberação”, através de longa prática, a
meditação somente incrementa o caminho da ilusão. Isso pode parecer severo, mas este é o caso,
porque só a auto-liberação constante dos pensamentos pode de fato acabar com o domínio da
ilusão e proteger o discípulo de mergulhar outra vez no sofrimento e na neurose. Sem o método
da auto-liberação você não estará apto para enfrentar desventuras e circunstâncias infelizes
quando elas surgirem, e mesmo se você já tem o hábito de meditar vai perceber que emoções como
raiva e desejo estão presentes, tão fortes quanto antes. O perigo de outros tipos de meditação
que não tem esse método consiste em que eles se tornam como a “meditação dos deuses”,
extraviando-se com facilidade em uma suntuosa auto-absorção, num transe passivo, ou numa
inanidade de espírito de um tipo ou de outro, e nada disso ataca e dissolve a ilusão na sua
raiz.
O grande mestre Dzogchen, Vimalamitra, falou de maneira muito precisa sobre os graus de
crescente naturalidade nesse caminho de liberação: quando você domina a prática pela primeira
vez, a liberação acontece simultaneamente ao que surge na mente, e aí é como reconhecer um
velho amigo na multidão. Aperfeiçoando e aprofundando a prática a liberação virá junto com o
surgimento das emoções e pensamentos, como uma serpente desenrolando-se. E, no estado final de
mestria, a liberação é como um ladrão que entra numa casa vazia; nada do que surge traz males
nem benefícios para o verdadeiro yogue Dzogchen.
Mesmo nos maiores yogues, a alegria e o sofrimento, a esperança e o medo, ainda aparecem
exatamente como antes. A diferença de uma pessoa comum e o yogue está em como eles vêem suas
emoções e reagem a elas. Uma pessoa comum, de maneira instintiva, irá aceitá-las ou rejeitá-
las, suscitando assim apego ou aversão que resultarão na acumulação de carma negativo. Um
yogue, no entanto, percebe tudo o que surge no seu estado natural e originalmente puro, sem
permitir o apego, ou qualquer pensamento superveniente. Como diz Dudjom Rinpoche:

“Em qualquer percepção que surja, você deve ser como uma criança que entra num templo
lindamente decorado: ela olha, mas o apego não entra de modo algum em sua percepção. Então
você deixa tudo ali, fresco, natural, vivo e intocado”.

Quando você deixa tudo no seu estado próprio, a forma não muda, a cor não esmaece, o
brilho não declina. Tudo o que surge não é maculado por nenhum apego, e assim todas as coisas
que você percebe surgem como a desnuda sabedoria de Rigpa, que é a inseparabilidade entre
luminosidade e vacuidade.

A confiança, o contentamento, a vasta serenidade, a força, o profundo humor e a certeza


que advêm da realização direta da Visão de Rigpa são o maior tesouro da vida, a maior das
felicidades, que uma vez obtida nada pode destruir, nem mesmo a morte. Dilgo Khyentse Rinpoche
diz:

“Uma vez que você obtém a Visão, embora as percepções ilusórias do samsara possam surgir
na sua mente, você será como o céu: não fica particularmente lisonjeado quando surge
nele o arco-íris, nem particularmente desapontado quando as nuvens o encobrem. Há uma
135

profunda sensação de contentamento. Você ri por dentro quando vê a fachada do samsara e


do nirvana; a Visão o manterá constantemente maravilhado com um suave sorriso interior
se esboçando, todo o tempo”.

Como diz Dudjom Rinpoche: “Tendo purificado a grande ilusão, que é o lado escuro do
coração, a luz radiante do sol não-obscurecido nascerá continuamente”.
Quem leva a sério as instruções sobre Dzogchen e sua mensagem sobre o morrer, contidas
nesse livro, irá se sentir inspirado, espero, para buscar, encontrar e seguir um mestre
qualificado, e para comprometer-se a passar por um completo treinamento sob orientação dele ou
dela. O coração do treinamento Dzogchen consiste em duas práticas, Trekchö e Tögal, que são
indispensáveis a uma compreensão profunda do que ocorre durante os bardos. Só posso dar aqui
uma brevíssima introdução a ambas. A explicação completa só é dada de mestre a discípulo,
quando este já se comprometeu de todo o coração com os ensinamentos e atingiu um certo estágio
de desenvolvimento. O que expliquei neste capítulo – “A Essência Mais Profunda” – é a essência
da prática do Trekchö.
Trekchö significa atravessar a ilusão essencialmente com força irresistível da visão
Rigpa, como uma faca corta manteiga ou um mestre de karatê quebra uma pilha de tijolos. Todo o
fantástico edifício da ilusão desmorona, como se você tivesse pulverizado seus alicerces. A
ilusão é atravessada e a pureza primordial e a natural simplicidade da mente são desveladas.
Somente quando o mestre determinar que você tem uma base firme na prática do Trekchö é que
ele ou ela o introduzirá na prática avançada do Tögal. O praticante do Tögal trabalha
diretamente com a Clara Luz - que habita de modo inerente em todos os fenômenos e está
“espontaneamente presente neles” - usando exercícios específicos e muito poderosos para
revelá-la dentro de si mesmo.
O Tögal tem a qualidade de ser instantâneo, de trazer realização imediata. Em vez de
viajar por uma cordilheira para alcançar um pico distante, o Tögal leva-o até lá num salto. O
efeito de Tögal é tornar alguém capaz de efetivar todos os diferentes aspectos da iluminação
em si próprios no decurso de uma vida. Por isso é considerado o método único e extraordinário
do Dzogchen; enquanto o Trekchö é a sua sabedoria, o Tögal são seus meios hábeis. Exige imensa
disciplina e é geralmente praticado em retiro.

[...]

INTEGRAÇÃO: MEDITANDO NA AÇÃO

Descobri que aos modernos praticantes da espiritualidade falta conhecimento de como


integrar a prática da meditação com a vida de todo dia. Nunca será demais dizer: integrar
meditação na ação é a base e o ponto central, o propósito da própria meditação. A violência e
a tensão, os desafios e as distrações da vida moderna fazem essa integração ainda mais urgente
e necessária.
As pessoas se queixam a mim: “Meditei por doze anos, mas de alguma forma não mudei. Ainda
sou o mesmo. Por quê?” Porque há um abismo entre sua prática espiritual e seu dia-a-dia. Eles
parecem existir em dois mundos separados e nenhum desses mundos inspira o outro. Lembro-me de
um professor que conheci numa escola do Tibete. Era brilhante na exposição das regras de
gramática tibetana mas não conseguia escrever uma frase corretamente!
Como obter então essa integração, esse permear do quotidiano com o calmo estado de
espírito e o largo desapego da meditação? Não há substituto para a prática regular, porque
apenas através da prática real começaremos a experimentar de maneira inquebrantável a tran-
qüilidade da natureza da nossa mente, sendo assim capazes de sustentar essa experiência na
vida de todo dia.
Digo sempre aos meus estudantes para não saírem da meditação muito depressa: dê um período
de alguns minutos para que a paz da prática da meditação se infiltre na sua vida. Como dizia
meu mestre Dudjom Rinpoche: “Não se atire ou saia correndo, mas procure mesclar sua presença
mental com a vida de todo dia. Seja como um homem que fraturou o crânio, sempre cauteloso
quando alguém vai tocá-lo”.
Então, após meditar, é importante não se entregar à tendência que temos para solidificar o
modo como percebemos as coisas. Quando você retorna à vida de todo dia, deixe que a sabedoria,
a percepção de si mesmo, a compaixão, o humor, a fluidez, o espaço e o desapego que a
meditação lhe trouxe penetrem na sua experiência quotidiana. A meditação desperta em você a
realização de como a natureza de tudo é ilusória, semelhante ao sonho; mantenha essa consciên-
cia mesmo no mais denso do samsara. Um grande mestre disse: “Depois da prática da meditação,
devemos nos tornar filhos da ilusão”.
Dudjom Rinpoche aconselhou: “Num certo sentido tudo é como o sonho, é ilusório, mas mesmo
assim você continua fazendo as coisas, com disposição de espírito. Por exemplo, se está
caminhando, caminhe alegremente pelo espaço aberto da verdade, sem desnecessária solenidade ou
constrangimento. Quando se sentar, seja a cidadela da verdade. Enquanto come, alimente suas
negatividades e ilusões na barriga da vacuidade, dissolvendo-as no espaço que permeia tudo. E
quando vai ao banheiro, pense que todos os seus obscurecimentos e bloqueios estão sendo limpos
e eliminados”.
Então o que importa de fato não é só a prática de sentar-se para meditar, mas muito mais o
estado da mente em que você se encontra depois da meditação. É esse calmo e centrado estado da
136

mente que você deve prolongar em tudo o que faz. Gosto da história Zen em que o discípulo
pergunta ao mestre:

— “Mestre, como o senhor põe a iluminação em ação, como prática na vida de todo dia?”
— “Comendo e dormindo”, responde o mestre.
— “Mas, Mestre, todo mundo come e todo mundo dorme”.
— “Mas nem todos comem quando comem e nem todos dormem quando dormem.”

Daí vem a famosa citação Zen: “Quando como, como; quando durmo, durmo”.
Comer quando você come e dormir quando você dorme significa estar inteiramente presente em
todas as suas ações, sem nenhuma das distrações do ego impedindo-o de estar lá. Isso é
integração. E se você quer consegui-la, o que precisa fazer não é praticar apenas como remédio
ou terapia ocasional, mas como se isso fosse seu sustento diário ou alimentação. Por isso, um
modo excelente de desenvolver a capacidade de integração é praticar num ambiente de retiro,
longe das tensões da vida urbana moderna.
Com muita freqüência as pessoas procuram a meditação com a esperança de resultados
extraordinários, como visões, luzes ou algum milagre sobrenatural. Quando nada disso acontece,
sentem-se desapontadas. Mas o milagre verdadeiro da meditação é mais ordinário e muito mais
útil. É uma transformação sutil, que não acontece apenas na sua mente e nas suas emoções mas
também e realmente no seu corpo. E é muito curativa. Cientistas e médicos descobriram que,
quando você está em boa disposição de espírito, até mesmo as células do seu corpo estão como
se se sentissem mais felizes; e quando sua mente está num estado negativo, suas células podem
se tornar malignas. O estado geral de sua saúde tem muito a ver com o estado da sua mente e
com seu modo de ser.
INSPIRAÇÃO

Disse aqui que a meditação é a estrada para a iluminação e o maior empenho da nossa vida.
Todas as vezes que falo a respeito da meditação para meus alunos, sublinho a necessidade de
praticá-la com disciplina resoluta e orientada devoção; ao mesmo tempo, sempre lhes digo como
é importante fazer isso do modo mais criativo e inspirado possível. Em certo sentido a
meditação é uma arte, e você deve trazer até ela o deleite do artista e a fertilidade da
invenção.
Torne-se tão engenhoso no inspirar-se para obter sua paz quanto você é nas andanças
neuróticas e competitivas do mundo. E se achar que a meditação não chega fácil à sua sala na
cidade, seja criativo e saia para a natureza. Ela é sempre uma fonte infalível de inspiração.
Para acalmar sua mente, dê um passeio no parque ao nascer do sol, ou observe o sereno numa
rosa do jardim. Deite-se na grama e contemple o céu, deixando sua mente se expandir em sua
amplidão. Deixe que o céu de fora desperte o céu que há dentro de você. Entre num riacho e
misture sua mente à música da água; torne-se um com essa sonoridade incessante. Sente-se ao
lado de uma cascata e deixe seu riso purificador refrescar-lhe o espírito. Caminhe numa praia
e receba o vento do mar, em cheio, doce, em seu rosto. Comemore e use a beleza do luar para
equilibrar sua mente. Sente-se junto a um lago ou num jardim e, respirando tranqüilamente,
deixe sua mente quedar-se silenciosa enquanto a lua sobe majestosa e lenta na noite sem
nuvens.
Tudo pode ser usado como um convite à meditação. Um sorriso, um rosto no metrô, a visão de
uma pequenina flor crescendo numa rachadura do calçamento, um belo traje numa vitrina, o modo
como o sol banha vasos de flores no peitoril de uma janela. Esteja desperto para qualquer
sinal de beleza e graça. Ofereça cada alegria, mantenha-se desperto em todos os momentos para
“as novidades que sempre estão chegando do silêncio”.
Aos poucos você se transformará no mestre de sua própria bem-aventurança, o alquimista de
sua própria alegria, com todas as espécies de medicamento sempre à mão para elevar,
incentivar, iluminar e inspirar cada respiração e movimento seus. O que é um grande praticante
espiritual? É alguém que vive sempre em presença do seu próprio eu verdadeiro, alguém que
encontrou e usa sempre as fontes da inspiração profunda. Como o moderno escritor inglês Lewis
Thompson escreveu: “Cristo, poeta supremo, viveu a verdade tão apaixonadamente que cada gesto
seu, a uma só vez Ato puro e Símbolo perfeito, personifica o transcendente”. É para
personificar o transcendente que estamos aqui.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

A BASE

Ouvimos sempre afirmações como esta: “A morte é o momento da verdade”, ou “A morte é o


instante em que finalmente você se vê face a face consigo mesmo”. E vimos como aqueles que
passam por experiências de quase-morte às vezes relatam que ao testemunharem a vida ser
repassada diante de si fazem-se perguntas como: “Que fez você da sua vida? Que fez você pelos
outros?” Tudo isso leva a um fato: na morte não podemos escapar de quem ou do que realmente
somos. Gostemos ou não a nossa verdadeira natureza é revelada. Mas é importante saber que há
dois aspectos do nosso ser que são mostrados no momento da morte: nossa natureza absoluta e
nossa natureza relativa — como somos e como temos sido nesta vida.
Como já expliquei, na morte todos os elementos que integram o nosso corpo e mente vão
sendo removidos e desintegram-se. À medida que o corpo morre, dissolvem-se os sentidos e os
137

elementos sutis, vindo em seguida a morte do aspecto ordinário da mente com todas suas emoções
negativas de raiva, desejo e ignorância. Finalmente, nada fica para obscurecer a nossa
verdadeira natureza, uma vez que tudo o que anuviava a mente iluminada desapareceu. E o que se
revela é a base primordial da nossa natureza absoluta, que é como um céu puro e sem nuvens.

Chama-se a isso o despontar da Luminosidade Base, ou “Clara Luz”, em que a própria


consciência se dissolve no espaço todo abrangente da verdade. O Livro Tibetano dos Mortos diz
sobre esse momento:

“A natureza de tudo é aberta vazia e nua como o céu.


Vacuidade luminosa, sem centro nem circunferência:
o puro e desnudo Rígpa desponta”.

Padrnasambhava descreve a luminosidade da seguinte maneira:

“A Clara Luz auto-gerada, que jamais, nem mesmo no princípio, teve nascimento,
É a filha de Rigpa, que por sua vez não tem pais que - extraordinário!
Essa sabedoria que a si mesma gerou e não foi criada por ninguém — que extraordinário!
Que nunca experienciou nascimento, e não tem nada em si mesma que poderia causar-lhe a morte—
que extraordinário!
Embora obviamente visível, não há ninguém lá que a veja — que extraordinário!
Embora tenha vagado pelo samsara, nenhum mal a atingiu —que extraordinário!
Embora tenha visto o próprio estado búdico, disso não lhe adveio nenhum bem — que
extraordinário!
Embora exista em todos e em toda parte, passou irreconhecida — que extraordinário!
E, no entanto você continua esperando conseguir, em outro lugar, algum outro fruto que não
esse— que extraordinário!
Ainda que ela seja o mais essencialmente seu, você a procura em outra parte — que
extraordinário!”

Por que esse estado é conhecido como “Luminosidade” ou Clara Luz? Os mestres têm modos
diferentes de explicar. Uns dizem que isso expressa a claridade irradiante da natureza da
mente sua condição totalmente livre das trevas ou do obscurecimento: “livre da escuridão de
desconhecer e dotada da habilidade de conhecer”. Outro mestre descreve a luminosidade da Clara
Luz como “um estado em que a distração é mínima”, porque todos os elementos, sentidos e
objetos dos sentidos foram dissolvidos. O importante é não confundi-la nem com a luz física
que conhecemos, nem com as experiências de luz que se desdobrarão em breve no próximo bardo a
luminosidade que surge na morte é a radiância natural da sabedoria de nosso próprio Rigpa, “a
natureza una, presente por todo o samsara e o nirvana”.
O surgimento da Luminosidade Base ou Clara Luz no momento da morte é a maior oportunidade
para a liberação. Mas é essencial perceber em que termos é dada essa oportunidade. Alguns
autores e estudiosos modernos da morte subestimaram a profundidade desse momento. Porque leram
e interpretaram o Livro Tibetano dos Mortos sem o benefício das instruções orais e o
treinamento que explicam plenamente seu sentido sagrado, eles o supersimplificaram tirando
conclusões precipitadas. Uma das afirmações que fazem é a de que o surgimento da Luminosidade
Base é a iluminação. Gostamos de identificar a morte com o céu ou a iluminação, porém mais
importante do que essa identificação é saber que o momento da morte só oferece uma
oportunidade real para a liberação se tivermos sido introduzidos à natureza da nossa mente,
nosso Rigpa, e se o estabelecemos e estabilizamos através da meditação, integrando-o em nossa
vida.

Ainda que a Luminosidade Base se apresente naturalmente a todos nós, muitos estão
despreparados para a sua absoluta imensidão, a vasta e sutil profundeza da sua simplicidade
desnuda. A maioria de nós simplesmente não dispõe de meios para reconhecê-la, porque não se
familiarizou durante a vida com o modo de obter esse reconhecimento. O que acontece, então, é
que tendemos a reagir de modo instintivo com os nossos medos, hábitos e condicionamentos
passados, todos os nossos velhos reflexos. Embora as emoções negativas tenham morrido para a
luminosidade aparecer, os hábitos de muitas vidas ainda permanecem — escondidos no fundo da
nossa mente ordinária; embora toda a nossa confusão morra na morte, em vez de nos rendermos e
abrirmos para a luminosidade, retraímo-nos em nossos medos e ignorância, e instintivamente
enfatizamos o nosso apego.

Isso é o que nos impede de verdadeiramente utilizar esse momento poderoso como uma
oportunidade para a liberação. Padmasambhava diz: “Todos os seres viveram e morreram e
renasceram incontáveis vezes. Vez após vez eles experimentaram a indescritível Clara Luz. Mas,
obscurecidos pelas trevas da ignorância, vagam infinitamente num ilimitado samsara”.

A BASE DA MENTE ORDINÁRIA - ALAYAVIJNANA

Todas essas tendências habituais — resultado do nosso carma negativo — que nasceram da
escuridão da ignorância, ficam acumuladas na base da mente ordinária. Sempre me pergunto qual
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seria um bom exemplo para ajudar a descrever essa base da mente ordinária. Pode-se compará-la
a uma bolha de vidro transparente, uma fina película elástica, uma barreira quase invisível ou
um véu que obscurece o todo da nossa mente; mas a imagem mais útil que me ocorre talvez seja a
de uma porta de vidro. Imagine-se sentado em frente a uma porta de vidro que dá para o seu
jardim, olhando através dela, fitando o espaço. Na aparência, não há nada entre você e o céu,
pois você não vê a porta. Pode até dar com o nariz nela se se levantar e tentar atravessá-la
pensando não haver nada. Mas se tocar o vidro verá imediatamente que há algo em que ficam suas
impressões digitais, alguma coisa que se põe entre você e o espaço lá fora.
Do mesmo modo, a base da mente ordinária impede-nos de abrir caminho até a natureza da
nossa mente — que tem qualidades similares às do céu — ainda que possamos vislumbrá-la. Como
eu disse, os mestres explicam que há um perigo de os praticantes de meditação se equivocarem
tomando a experiência da base da mente ordinária pela verdadeira natureza da mente. Quando
descansam em estado de grande calma e quietude, podem estar descansando apenas na base da
mente ordinária. É a diferença entre olhar para o céu de dentro de um domo de vidro e olhar
para esse mesmo céu do lado de fora, ao ar livre. Precisamos deixar a base da mente comum para
descobrir o ar fresco e puro de Rigpa, e deixá-lo entrar.
Assim, purificar essa barreira sutil, enfraquecê-la e rompê-la é o alvo ou propósito de
toda a nossa prática espiritual, e também a real preparação para o momento da morte. Quando
essa barreira desmoronou por completo, nada se interpõe entre você e o estado de onisciência.
A introdução à natureza da mente dada pelo mestre atravessa a base da mente ordinária, já
que é através dessa dissolução da mente conceitual que a mente iluminada se revela
explicitamente. Então, cada vez que repousamos na natureza da mente, a base da mente ordinária
se torna mais fraca. Mas perceberemos que o tempo que podemos ficar no estado da natureza da
mente depende por completo da estabilidade da nossa prática. Infelizmente, “os velhos hábitos
custam a morrer”, e a base da mente ordinária retorna. Nossa mente é como o alcoólatra que
pode abandonar o vício por algum tempo, mas que recai nele quando é tentado ou está deprimido.
Tal como a porta de vidro retém toda a sujeira da sua mão e dos seus dedos, também a base
da mente comum reúne e armazena todo seu carma e seus hábitos. E assim como temos sempre que
limpar o vidro, temos também que ficar purificando a base da mente ordinária. É como se o
vidro fosse ficando mais fino à medida que o limpamos, como se surgissem buracos nele e por
fim se dissolvesse no ar.
Pela nossa prática vamos estabilizando a natureza da mente mais e mais, até que ela deixa
de ser simplesmente a nossa natureza absoluta e torna-se a nossa realidade de todo dia. Com o
desenvolvimento desse processo, nossos hábitos se dissolvem e a diferença entre meditação e
vida cotidiana diminui. Aos poucos você se torna alguém que pode caminhar diretamente para o
jardim através da porta de vidro, sem obstrução. E o sinal de que a base da mente ordinária
está enfraquecendo é que aumenta a nossa possibilidade de repousar, com cada vez menos
esforço, na natureza da mente.
Quando surge a Luminosidade Base, o ponto crucial será o quanto fomos capazes de repousar
na natureza da mente, de unir a nossa natureza absoluta da mente com a nossa vida cotidiana, e
de purificar nossa condição ordinária no estado de pureza primordial.

O ENCONTRO DA MÃE COM A FILHA

Há um meio de nos prepararmos integralmente para reconhecer o surgimento da Luminosidade


Base no momento da morte. E através do mais alto nível de meditação — “A Essência Mais
Profunda” — em que se dá a fruição completa da prática do Dzogchen. É a chamada “União de Duas
Luminosidades”, também conhecida como “Fusão das Luminosidades Mãe e Filha”.
A Luminosidade Mãe é o nome que se dá à Luminosidade Base. Essa é a natureza fundamental e
inerente de tudo, subjacente a toda nossa experiência e que se manifesta em toda sua glória no
momento da morte.
A Luminosidade Filha, também chamada Luminosidade Caminho, é a natureza da nossa mente
que, se introduzida pelo mestre e reconhecida por nós, podemos estabilizar pela meditação e
integrar de maneira cada vez mais completa em nossa ação na vida. Quando a integração é
completa, o reconhecimento é integral e ocorre a realização.
Ainda que a Luminosidade Base seja nossa natureza inerente e a natureza de tudo, nós não a
reconhecemos e ela se mantém como se estivesse oculta. Gosto de pensar na Luminosidade Filha
como uma chave que o mestre nos dá para auxiliar-nos a abrir a porta do reconhecimento da
Luminosidade Base, sempre que surge a oportunidade.
Imagine que você tem de encontrar uma mulher que chega de avião. Se não tem idéia de como
ela é, pode estar no aeroporto e ela passar direto por você sem que se encontrem; mas se vir
uma fotografia dela e a mantiver firme na memória, você a reconhecerá tão logo se aproxime.

Uma vez que a natureza da mente foi introduzida e você a reconhece, tem a chave para
reconhecê-la novamente. Mas da mesma forma que precisa conservar a fotografia com você, e
continuar olhando para ela repetidas vezes a fim de ter a certeza de reconhecer a pessoa que
vai encontrar no aeroporto, precisa também continuar aprofundando e estabilizando seu
reconhecimento da natureza da mente através da prática regular. Então, esse reconhecimento
fica tão arraigado em você, passa de tal modo a fazer parte de você, que a fotografia já não é
mais necessária; quando encontrar a pessoa o reconhecimento será espontâneo e imediato. Desse
modo, depois de continuada prática do reconhecimento da natureza da mente, quando no instante
139

da morte surgir a Luminosidade Base você estará pronto para reconhecê-la e fundir-se com ela —
tão instintivamente, dizem os mestres do passado, quanto uma criancinha correndo para o colo
da mãe, como velhos amigos se encontrando ou um rio desaguando no mar.
E, no entanto isso é extremamente difícil. A única maneira de assegurar esse
reconhecimento é estabilizar e aperfeiçoar agora, enquanto estamos vivos, a prática de fundir
as duas luminosidades. Isso só é possível ao longo de uma vida inteira de treinamento e empe-
nho. Como dizia meu mestre Dudjom Rinpoche, se não praticamos a fusão das duas luminosidades
agora, e de agora em diante, não se pode afirmar que o reconhecimento acontecerá de forma
natural por ocasião da morte.
Como de fato fundimos as luminosidades? Essa é uma prática muito profunda e avançada, e
aqui não é a ocasião de explicá-la. Mas o que podemos dizer é isto: quando o mestre nos
introduz na natureza da mente, é como se a nossa visão tivesse sido restaurada, pois estivemos
cegos em relação à Luminosidade Base que está em tudo. A introdução do mestre abre em nós um
olho de sabedoria com que podemos ver claramente a verdadeira natureza de tudo o que surge, a
natureza luminosa — a Clara Luz — de todos nossos pensamentos e emoções. Imagine que nosso
reconhecimento da natureza da mente torna-se, depois de estabilizada e aperfeiçoada a prática,
como um sol constantemente resplandecente. Pensamentos e emoções continuam a surgir; são como
ondas de escuridão. Mas, a cada vez que as ondas encapelam-se e encontram a luz, dissolvem-se
de imediato.

À medida que desenvolvemos mais e mais essa habilidade de reconhecer, ela se torna parte
da nossa visão cotidiana. Quando somos capazes de trazer a realização da nossa natureza
absoluta à experiência do dia-a-dia, temos maiores possibilidades de reconhecer a Luminosidade
Base no momento da morte.
A prova para saber se temos ou não essa chave será o modo como vemos nossos pensamentos e
emoções no instante em que surgem; se tivermos a capacidade de penetrá-los diretamente com a
Visão e reconhecer a sua natureza luminosa inerente, ou se obscurecemos essa natureza com as
nossas reações instintivas habituais.
Se a base da nossa mente comum está completamente purificada é como se tivéssemos
destruído o depósito do nosso carma e assim esvaziado o suprimento cármico dos futuros
renascimentos. Entretanto, se não pudemos purificar a nossa mente por completo, ainda teremos
resíduos de hábitos passados e tendências cármicas estocados nesse depósito de carma. Sempre
que se materializarem condições favoráveis eles se manifestarão, impulsionando-nos para novos
renascimentos.
A DURAÇÃO DA LUMINOSIDADE BASE

A Luminosidade Base surge; para um praticante, ela dura o quanto ele puder repousar,
atento, no estado da natureza da mente. Para a maioria das pessoas, no entanto, ela não dura
mais que um estalar de dedos, e para alguns, dizem os mestres, “o tempo que se gasta para
fazer uma refeição”. A vasta maioria não reconhece em absoluto a Luminosidade Base, e em vez
disso mergulha num estado de inconsciência que pode prolongar-se por até três dias e meio. É
então que a consciência finalmente deixa o corpo.
Isso levou ao costume tibetano de evitar que o corpo seja tocado ou perturbado por três
dias após a morte. É especialmente importante no caso de um praticante que pode ter-se fundido
com a Luminosidade Base e estar repousando no estado da natureza da mente. Lembro-me, no
Tibet, do cuidado que todos tinham em manter uma atmosfera de paz e silêncio em torno do
corpo, particularmente no caso de um grande mestre ou praticante, de maneira a não causar a
menor perturbação.

Mas também era freqüente não mexer o corpo de uma pessoa comum antes de passados os três
dias, já que nunca se sabe se uma pessoa é ou não realizada, e é incerto o momento em que a
consciência se separou do corpo. Acredita-se que se ele for tocado em determinado lugar — por
exemplo, ao aplicar-se uma injeção — a consciência pode ser desviada para esse ponto. Então, a
consciência do morto pode sair pela abertura mais próxima, ao invés de pela fontanela, levando
a um renascimento infeliz.

Alguns mestres insistem mais que outros nessa questão de deixar o corpo em paz por três
dias. Chadral Rinpoche, um mestre tibetano do tipo Zen que viveu na Índia e no Nepal,
respondia a pessoas que argumentavam que um cadáver podia cheirar mal se mantido em clima
quente durante tanto tempo: “Não como se tivesse de comê-lo, ou tentasse vendê-lo”.
Assim, num sentido estrito, é melhor fazer autópsias e cremações após três dias de espera.
Nos dias de hoje, no entanto, já que pode não ser prático ou possível manter um corpo por esse
tempo sem movê-lo, pelo menos deve-se fazer a prática de P’howa antes que ele seja tocado.

A MORTE DE UM MESTRE

Um praticante realizado continua no reconhecimento da natureza da mente no momento da


morte e desperta na Luminosidade Base quando ela se manifesta. Ele ou ela pode permanecer
nesse estado até por vários dias. Alguns praticantes e mestres morrem eretos e sentados na
postura de meditação, e outros na “postura do leão adormecido”. Além de seu perfeito
equilíbrio, ocorrem outros sinais que mostram que está repousando no estado de Luminosidade
140

Base: há ainda um certo colorido e algum brilho no seu rosto, o nariz não afunda, a pele
permanece macia e flexível, o corpo não enrijece, diz-se que os olhos conservam um brilho
suave e compassivo e ainda há um calor no coração. Toma-se grande cuidado em não tocar o corpo
do mestre e faz-se silêncio ao seu redor até que saia desse estado de meditação.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER - Sogyal Rinpoche

A LINHAGEM E A PRÁTICA DO DZOGCHEN

Os ensinamentos do Dzogchen são transmitidos de três modos: de mente a mente, por sinais e
através da transmissão oral.
No primeiro, a transmissão de mente a mente, não há necessidade de símbolos ou palavras
pois o professor e o discípulo são, por sua própria natureza, um só. Este é o modo no qual a
transmissão foi dada do Buddha primordial Samantabhadra para Vajrasattva, e dele para Garab
Dorje.
Depois de Garab Dorje, a transmissão continuou com Manjushrimitra, Shri Simha, Jnanasutra
e Vimalamitra. Apesar de estes mestres terem se manifestado em forma humana, não havia
necessidade de eles darem ou
receberem transmissão por palavras, já que todos eles eram seres completamente realizados.
A transmissão foi efetuada simplesmente por “sinais” - por mudras ou por expressões
simbólicas. Quando o mestre dá a transmissão deste modo, os discípulos compreendem seu
significado de uma vez e atingem a realização completa das três categorias do Dzogpachenpo: da
mente, do espaço e das instruções essenciais.
A transmissão oral foi passada de um indivíduo para outro, começando com Guru Rinpoche.
Ele deu isto aos seus discípulos: aos vinte e cinco discípulos principais, aos oitenta siddhas
de Yerpa, aos cinqüenta e cinco
seres realizados de Sheldrag e outros. Os três principais discípulos de Guru Rinpoche
foram o rei Trisong Detsen, Vairochana, e sua consorte Yeshe Tsogyal. A transmissão então
continuou até o onisciente Longchen Rabjam, que passou para o grande detentor do estado
desperto, Jigme Lingpa, e que por sua vez transmitiu estes profundos tesouros aos seus
discípulos. Seus quatro principais discípulos eram chamados “os quatro Jigmes” - “os quatro
destemidos”. Dos quatro, os dois principais eram Dodrubchen Jigme Trinle Özer e Jigme Gyalwe
Nyugu, uma emanação de Avalokiteshvara; os outros dois eram Jigme Gocha e Jigme Ngotsar. De
Jigme Trinle Özer a transmissão foi para o mahasiddha Do Khyentse Yeshe Dorje, e de Jigme
Gyalse Nyugu ela
passou para Jamyang Khyentse Wangpo; tanto Do Khyentse quanto Jamyang Khyentse foram
emanações autênticas de Jigme Lingpa. As duas linhagens então se fundiram nos grandes
professores Gyalse Shenpen Taye, Patrul Rinpoche e Khenpo Pema Dorje. Eles, por sua vez,
transmitiram-na a Wönpo Tenga, Nyoshul Lungtog, Adzom Drugpa, ao terceiro Dodrubchen Jigme
Tenpe Nyima e a muitos outros mestres. Novamente, estas linhagens se juntaram na pessoa de
Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö, que foi uma emanação de Jamyang Khyentse Wangpo.
É assim que esta linhagem de indivíduos tem permanecido inquebrantável até os dias
presentes. Apesar de dizermos “indivíduos”, todos eles são seres realizados que permanecem nos
bhumis, os níveis dos bodhisattvas. Agora, para que possamos receber as bênçãos destes
mestres, precisamos rogar para eles com devoção unidirecionada.

A FONTE SUPREMA
A meta do Dzogchen é o redespertar do indivíduo para o estado primordial de iluminação que
é encontrado naturalmente em todos os seres. O mestre introduz o estudante a sua natureza
real, a qual já é perfeita e iluminada, porém, somente pelo reconhecimento desta natureza e
estabilidade neste estado de reconhecimento durante todas as atividades diárias é que o
estudante torna-se um autêntico praticante do Dzogchen do caminho direto de auto-liberação. O
praticante do Dzogchen está consciente da claridade absoluta e pureza da sua própria mente e,
sem tentar modificar o que por si mesmo já é perfeito, sem lutar para obter de qualquer outro
lugar o estado de realização, permanece sempre na natureza real da existência, a suprema fonte
de todos os fenômenos. “Os que tentam meditar e realizar esta condição por meio do esforço são
tais como um cego que tenta moldar o céu”.
Neste livro, o ensinamento do Dzogchen é apresentado por meio de um dos seus textos mais
antigos, o tantra Kundjed Gyalpo, “O Rei que Tudo Cria” – uma personificação do estado
primordial de iluminação. Este tantra é a escritura fundamental da Semde - a tradição
Dzogchen da “Natureza da Mente” - e é a fonte mais autorizada para se entender a visão do
Dzogchen. O comentário oral por Chogyal Namkhai Norbu facilita intuir as profundezas deste
texto desde um ponto de vista prático. Adriano Clemente traduziu a seleção de passagens
principais do tantra original. A Fonte Suprema será de grande interesse para todos os
estudantes de budismo tibetano. O que segue é um extrato deste livro.
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O ATIYOGA OU DZOGCHEN

Com o atiyoga alcançamos a culminância dos caminhos da realização: o Dzogchen - “a


perfeição total” – cujo caminho característico, baseado no conhecimento da auto-liberação, não
demanda qualquer outra transformação. De fato, quando entendemos o princípio da auto-
liberação, reconhecemos que nem mesmo o método transformador do tantra é o caminho final. O
ponto fundamental da prática do Dzogchen, chamado de tregchöd, o “relaxamento das tensões”, é
repousar no estado da contemplação, enquanto que o caminho de permanecer neste estado é
chamado chogshag, “deixando como está”.
Fazer uma visualização, uma prática de transformação da visão impura em uma mandala e etc.
significa “construir” alguma coisa, trabalhar com a mente, enquanto que no estado da
contemplação, o corpo, fala e mente estão totalmente relaxados, e é necessário que seja assim.
Um termo usado muito freqüentemente no Dzogchen é machöpa, “não corrigido”, “não alterado”,
enquanto que transformação significa corrigir, considerando que, por um lado, há visão impura
e, pelo outro, visão pura. Então, tudo o que se necessita para se entrar no estado de
contemplação é relaxar, não havendo necessidade de qualquer prática de transformação. Algumas
pessoas crêem que o Dzogchen é apenas a fase final do processo tântrico, semelhante ao
Mahamudra da tradição moderna, mas isso se dá porque o ponto de chegada do caminho do anuyoga,
também é chamado de Dzogchen. Na verdade, o atiyoga do Dzogchen é um caminho completo em si
mesmo e que, como mencionado acima, é independente do caminho dos métodos de transformação.
Quando seguimos o ensinamento do Dzogchen, se tivermos capacidade suficiente, poderemos
iniciar diretamente pela prática de contemplação. A única coisa que é indispensável é a
prática de guru yoga, a “unificação com o estado do professor”, pois é do professor que
recebemos a introdução direta ao conhecimento.
Os tantras originais sobre Atiyoga, como o Kundjed Gyalpo, afirmam freqüentemente que a
qualidade característica do Dzogchen é a falta dos dez requisitos para a prática do tantra:
iniciação, mantra, mandala, visualização e etc. Por que estes não estão presentes no Dzogchen?
Porque são maneiras de corrigir ou alterar a natureza própria do indivíduo, mas na realidade
nada há para ser mudado ou melhorado, tudo o que é necessário é a descoberta da condição real
e permanecer repousado neste estado. Assim, é importante que se compreenda que a palavra
Dzogchen refere-se ao estado (original) do indivíduo, e que o propósito do ensinamento do
Dzogchen é capacitar à pessoa a entender esta condição.
Em geral, o ensinamento do Dzogchen é explicado por meio de três aspectos fundamentais: a
base, o caminho e o fruto. A base é o estado primordial do indivíduo e será explicado
posteriormente por meio do princípio das ‘três sabedorias’, isto é, as três condições
naturais: essência, natureza e energia. Um dos exemplos mais claros que auxiliam a compreensão
deste ponto é o espelho. De fato, a condição relativa e a absoluta podem ambas ser
representadas por um espelho, a primeira pelas imagens refletidas e a última, pela capacidade
intrínseca do espelho de refletir. O mesmo acontece com o estado do indivíduo. O que é o
indivíduo? É aquele que possui o estado primordial de consciência, comparável à natureza do
espelho que é pura, clara e límpida. Isto corresponde às três condições chamadas “essência,
natureza e limpidez”. Tal como um reflexo emerge do espelho e, de certo modo, é uma qualidade
do espelho, todos os pensamentos e todas as manifestações de nossa energia, quer seja bonita
ou feia, são apenas a nossa própria reflexão, uma qualidade de nosso estado primordial. Se
estivermos conscientes e se realmente estivermos neste estado, tudo se torna uma qualidade de
nós e não haverá mais qualquer separação entre sujeito e objeto ou qualquer consideração sobre
relativo ou absoluto.
Dissemos que, como indivíduos, somos compostos por nosso próprio estado primordial como
essência, natureza e energia. Contudo, não devemos pensar nestes três aspectos como se fossem
três objetos separados: a condição original é somente uma, e o fato de ser explicada por meio
de três conceitos distintos é apenas para auxiliar a sua compreensão. Na verdade, não podemos
definir ou distinguir “isto é pureza, aquilo é claridade e esse outro é limpidez”.
O que é a essência? A fim de descobrir o que é o estado primordial é necessário refletir,
o que neste caso envolve o corpo, fala e mente, mais particularmente esta última. De fato, é
da mente que os pensamentos surgem. Se um pensamento surge enquanto estamos observando a
mente, poderíamos procurar de onde o pensamento se originou, onde ele se mantém, onde ele
desaparece. Contudo, no momento em que reconhecemos o pensamento, ele desaparece e não
encontramos nada sequer: não há origem, não local onde se mantenha, nem lugar onde ele
desaparece. Encontramos que não há nada, de onde se diz que a essência é vacuidade.
O conceito de vacuidade, sunyata, é muito divulgado no Budismo Mahayana, particularmente
na tradição Prajñaparamita. Contudo o ponto fundamental a ser entendido é que a vacuidade é a
essência real dos fenômenos materiais e não uma entidade abstrata e separada. De fato, o mesmo
exercício no qual se procura a origem do pensamento pode ser aplicado a qualquer objeto
perceptível aos sentidos. Se enxergarmos um objeto bonito e analisarmos de onde vem essa
“beleza” e onde ela desaparece, não achamos nada que seja concreto: tudo está no mesmo nível,
tanto o objeto quanto o sujeito são, em essência, vacuidade. Assim também é a condição última
da individualidade.
O que é claridade? Se a essência é vacuidade isto não quer dizer que não exista nada.
Quando observamos um pensamento e ele desaparece, imediatamente a seguir surge outro
pensamento, que poderia ser “estou procurando a natureza do pensar e não estou achando nada!”.
Isto também é um pensamento, não é? É um pensamento que pensa sobre a origem do pensar. Desta
142

forma, muitos pensamentos surgem continuamente. Mesmo que possamos estar convencidos de que
sua essência é vacuidade, eles ainda se manifestam continuamente. O mesmo se aplica aos nossos
sentidos: todos os objetos que percebemos são o surgimento incessante de nossa visão kármica.
Esta, então, é a natureza da claridade.
O que é a energia, ou a potencialidade da energia? É a função ativa e ininterrupta da
natureza de nosso estado primordial. Em geral, se fala da “função de sabedoria” em relação à
visão pura de um ser iluminado e da “função da mente” em relação à visão impura de samsara.
Por exemplo, pensamos em algo e então seguimos este pensamento e entramos em ação. Ou ainda,
enquanto estamos praticando, transformamo-nos em uma deidade com o mandala daquela deidade e
dimensão pura. Tudo isto evidencia a visão pura de energia nos aspectos de sua continuidade e
sua capacidade de produzir algo. Através de nossa energia surgem todas as manifestações em
termos de sujeito e objeto, as quais podem ser puras ou impuras, bonitas ou feias, etc. Se
colocarmos um cristal na luz solar, vemos imediatamente que ele irradia muitos raios
luminosos. Neste caso, o cristal representa o estado do indivíduo e as cores que se manifestam
externamente representam tudo o que vemos e percebemos pelos sentidos. Este “modo de
manifestação” da energia, no qual a reflexão se manifesta externamente, é chamado tsal em
tibetano. A visão impura ligada ao karma e à dimensão material e a visão pura no nível de
sujeito e objeto são ambas manifestações de energia tsal.
Há também um modo no qual a energia se manifesta “internamente”, no sujeito em si, da
mesma forma que imagens se refletem num espelho: isto é chamado de rolpa. Por exemplo, quando
fazemos uma prática tântrica e transformamos a nós mesmos na dimensão da deidade com seu
mandala, estamos trabalhando com este tipo de energia, pois tudo está ocorrendo dentro de nós.
Obviamente, no primeiro estágio da prática de transformação, é muito importante utilizar a
mente, a concentração, etc., a fim de alcançar esta função concretamente. Mas em certo ponto,
a dimensão pura do mandala pode se manifestar mesmo sem qualquer esforço da nossa parte, e
isto ocorre por meio da energia de rolpa.
A terceira maneira pela qual a energia se manifesta é chamada de dang, e representa
somente a condição básica da energia, sua potencialidade para assumir qualquer forma conforme
as circunstâncias. O exemplo tradicional é o de um cristal colocado em um tecido: o cristal
assumirá a cor do tecido mesmo sendo por si mesmo transparente e sem cor.
Essência, natureza e energia são chamadas de “as três sabedorias” porque elas representam
o estado de iluminação em sua inteireza. O indivíduo possui estes três aspectos desde o
próprio princípio e continua a tê-los mesmo após a realização da iluminação completa. Poderia
se pensar “qual é, então, o objetivo de se fazer prática, se já temos as mesmas qualidades que
um Buda tem?” “Basta apenas ficarmos quietos sem fazer nada!” É claro que podemos ficar
quietos sem fazer nada pelo tempo que for possível se não tivermos perturbações, pelo tempo
que for possível se estivermos realmente neste estado. Mas, se for de outra maneira, significa
que somos escravos do dualismo, condicionados pelo objeto. Neste caso, não é suficiente pensar
que temos a essência, natureza e energia: condicionados pela visão dualista que é exatamente o
obstáculo que necessitamos superar para permitir que o sol do estado primordial brilhe
novamente.
Este é o motivo pelo qual o caminho é necessário, o qual, por sua vez, engloba os três
aspectos da visão, meditação e conduta. No Dzogchen a “visão”, ou perspectiva, não se refere a
algo externo, significando simplesmente a observação de si mesmo para se descobrir a própria
condição verdadeira. Basicamente, significa discernir o condicionamento dualista atuando no
corpo, na fala e na mente a fim de superá-lo pela prática. O ensinamento do Dzogchen de forma
alguma sugere que se deva construir uma nova gaiola no lugar desta na qual já nos encontramos;
pelo contrário, serve como a chave que abre a porta desta gaiola. De fato, não basta
descobrirmos que estamos presos na prisão do dualismo: necessitamos sair dela, este é o
propósito de “meditar”.
Com relação ao segundo aspecto, meditação, mesmo desde o princípio é necessário fazer uso
dos métodos de concentração, respiração, etc., para acalmar a mente e dar o sustento a uma
condição de estabilidade, o real propósito da meditação é a continuidade do estado desperto,
isto é, a presença do estado primordial. Aqui deveríamos falar sobre contemplação, o ponto
essencial do qual é a presença instantânea pura, ou rigpa. O praticante do Dzogchen procura
compreender este estado de presença por meio de diversas experiências de vacuidade, clareza,
sensações prazerosas, e assim por diante. De fato, a meta dos métodos dos sutras e tantras é
tão somente também incitar experiências. O caminho verdadeiro do praticante do Dzogchen,
contudo, é a contemplação. De fato, apenas quando estivermos contemplando é que todas as
tensões de corpo, fala e mente são finalmente liberadas sem esforço: até descobrirmos e
mantermos estabilidade neste estado, nossa experiência de relaxamento será incompleta.
Contemplação, como sugerimos anteriormente, pode estar ligada a uma experiência de vacuidade,
de clareza ou de gozo, mas seu estado é somente um: a presença instantânea de rigpa. Há vários
métodos para reconhecer, estabilizar e integrar este estado a todas as circunstâncias da vida
cotidiana em correlação às séries fundamentais do Dzogchen: Semde, Longde e Mennagde.
“Conduta”, o último dos três aspectos do caminho, diz respeito à atitude que os
praticantes devem ter com relação ao momento no qual eles “saem” de uma sessão contemplativa e
assumem as suas demais atividades. O propósito disto é alcançar a integração total da
contemplação com a vida cotidiana, superando qualquer diferenciação que possa haver entre
meditação e não-meditação.
143

Retomemos agora o terceiro e último aspecto do ensinamento do Dzogchen, o fruto ou o


“resultado” da prática: a realização. Já dissemos que o estado primordial contém de forma
potencial a manifestação da iluminação. O sol, por exemplo, possui naturalmente luz e raios,
porém, quando o céu está nublado, ninguém pode vê-los. As nuvens, neste caso, representam
nossos obstáculos que são um resultado do dualismo e condicionamento: quando forem superados,
o estado da auto-perfeição brilha com todas as suas manifestações de energia, sem que nada
tenha sido alterado ou melhorado. Este é o princípio característico do Dzogchen. Não
compreender este ponto pode levar à idéia de que o Dzogchen é o mesmo que o Zen e o Ch’an. Em
seu âmago, o Zen, que sem dúvida alguma é um ensinamento budista elevado e direto, é baseado
no princípio da vacuidade tal como esta é explicada em sutras como o Prajñaparamita. Mesmo
deste ponto de vista, em conteúdo, não há diferença com o Dzogchen, a particularidade do
Dzogchen reside na introdução direta ao estado primordial não como “vacuidade pura” mas sim
como este estando dotado com todos os aspectos da auto-perfeição de energia. É por meio da
aplicação destes que se atinge a realização.
Com respeito ao fruto, há os três kayas, “corpos” ou “dimensões”: dharmakaya, samboghakaya
e nirmanakaya. De forma alguma os kayas são níveis de realização: não há como haver um
dharmakaya sem um nirmanakaya, e vice-versa. Para entender o seu significado, devemos retornar
aos conceitos de essência, natureza e energia. Kaya significa “corpo”, e, por isso, a dimensão
completa, tanto a material quanto a imaterial, na qual nós próprios nos achamos. Assim, o
dharmakaya é a dimensão total da existência, sem qualquer exclusão. Por isso, corresponde à
essência, a condição inefável e imensurável além dos conceitos e limites do dualismo.
Sambogha quer dizer “bem-aventurança”, “desfrute”, portanto, samboghakaya quer dizer “a
dimensão da bem-aventurança”. Neste caso, bem-aventurança não se refere a algo material, mas
sim, às qualidades perfeitas-por-si-mesmas que se manifestam através das substâncias dos
elementos, isto é, por meio das cores. De fato, quando os elementos tomam o estado material,
eles passam do nível de “cor” ao nível sólido dos elementos físicos. Em resumo, tudo o que
consideramos ser a dimensão pura da mandala e da deidade pertence ao samboghakaya, a fonte de
transmissão do tantra. Este corresponde ao aspecto da “natureza” de claridade do estado
primordial.
Nirmana significa “manifestação”, “emanação” e corresponde ao aspecto da energia
ininterrupta. Então, nirmanakaya quer dizer “dimensão da manifestação”. De fato, através da
energia, tanto a visão pura quanto a impura podem se manifestar e ambas são acreditadas como
dimensão nirmanakaya. A visão pura transcende a dimensão material e constitui a essência dos
elementos, enquanto que a visão impura ao que é chamado de “visão kármica”, produzida como a
conseqüência de determinadas ações feitas no passado.
A palavra nirmanakaya pode também se referir a um indivíduo realizado, tal como o
Sakyamuni Buddha, que assumiu uma forma física para transmitir os ensinamentos. De fato,
apenas no nirmanakaya é que os ensinamentos podem ser ditos e transmitidos em termos de
sujeitos e objeto. O samboghakaya é aquela dimensão na qual as potencialidades de som, luz e
raios (sgra, ‘od e zer), as três fontes fundamentais da manifestação, aparecem como a visão
pura da mandala, a origem dos ensinamentos tântricos. Os livros chamados “tantras”, que contêm
as revelações destas manifestações, constituem o testemunho de mestres que tiveram contato
direto com o samboghakaya e, somente depois, puseram por escrito. No que toca ao ensinamento
do Dzogchen em particular, os seus tantras se diz que emanaram diretamente do dharmakaya,
simbolizado pelo Buda primordial Samantabhadra, cuja imagem é a de um Buda azul celeste, nu e
sem adornos, a pureza original do estado do indivíduo.
O Tantra Fundamental para o Dzogchen Semde – Comentários por Chogyal Namkhai Norbu & Adriano Clemente[Extraído de SNOW LION, P.º Box 6483 Ithaca, NY 14851 USA, vol 14, número 4,

fall 1999, 143ág 1, 2 e 3. Tradução por André Collasiol – revisão pelo Lama Padma Samten – CEBB Caminho do Meio – março 2000]

RADIÂNCIA INTRÍNSECA

Quando a Luminosidade Base emerge na morte, um praticante experiente manterá plena


consciência e se fundirá com ela, atingindo assim a liberação. Mas se deixamos de reconhecer a
Luminosidade Base, encontramos então o próximo bardo, o bardo luminoso do dharmata.

O ensinamento sobre o bardo do dharmata é uma instrução muito especial, específica da


prática do Dzogchen e entesourada no coração dos ensinamentos do Dzogchen durante séculos. De
início, senti alguma hesitação em apresentar publicamente esse que é o mais sagrado dos
ensinamentos e, se não houvesse qualquer precedente, talvez não o fizesse. Entretanto, o
Lívro Tíbetano dos Mortos e muitos outros textos que se referem ao bardo do dharmata já foram
publicados, tendo levado a algumas conclusões ingênuas. Sinto que é extremamente importante e
oportuno tornar disponível uma clarificação franca e direta desse bardo, colocando-o no seu
verdadeiro contexto. Devo esclarecer que não entrarei em qualquer detalhe sobre as práticas
adiantadas nele envolvidas; nenhuma dessas práticas poderia ser feita, sob qualquer
circunstância, sem as instruções e orientação de um mestre qualificado, e sem a manutenção de
um compromisso e conexão com ele absolutamente puros.

Reuni visões e insights de muitas fontes diferentes para fazer com que este capítulo - que
é para mim um dos mais importantes do livro - seja tão lúcido quanto possível. Espero que
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através dele alguns de vocês estabeleçam uma conexão com esse ensinamento extraordinário, e
sejam inspirados a investigar mais profundamente e a iniciar a sua própria prática.

AS QUATRO FASES DO DHARMATA

A palavra sânscrita dharmata, ou chö nyi em tibetano, significa a natureza intrínseca de


tudo, a essência das coisas como elas são. Dharmata é a verdade nua e incondicionada, a
natureza da realidade, ou a verdadeira natureza da existência fenomênica. O que examinamos
aqui é algo fundamental para a total compreensão da natureza da mente e da natureza de tudo.

O fim do processo de dissolução e o despontar da Luminosidade Base abriram uma dimensão


inteiramente nova que agora começa a desdobrar-se. Um modo útil que encontrei de explicar
isso é compará-los à maneira como a noite se transforma em dia. A fase final do processo de
dissolução na morte é a experiência negra do estágio de “Plena Consecução”. É descrita como
“um céu amortalhado em trevas”. O surgimento da Luminosidade Base é como a claridade num céu
aberto quando o dia começa a raiar. Gradualmente o sol do dharmata começa a surgir em todo seu
esplendor, iluminando os contornos da terra em todas as direções. A radiância natural de Rigpa
manifestasse de modo espontâneo e resplandece como energia e luz.
Tal como o sol nasce nesse céu claro e vazio, os aspectos luminosos do bardo do dharmata
surgirão do espaço oniabrangente da Luminosidade Base. O nome que damos a essa manifestação de
som, luz e cor é “presença espontânea”, porque ela está sempre inerentemente presente na
vastidão da “pureza original”, que é sua base.
O que de fato ocorre aqui é um processo de desdobramento em que a mente e a sua natureza
fundamental vão pouco a pouco se tornando mais manifestas. O bardo do dharmata é um estágio
nesse processo. E é através dessa dimensão de luz e energia que a mente se desdobra do seu
mais puro estado, a Luminosidade Base, para manifestar-se como forma no bardo seguinte, o
bardo do vir-a-ser.
Acho muito sugestivo que a física moderna tenha mostrado que a matéria, quando
investigada, revela-se como um oceano de energia e luz. “A matéria, de certo modo, é luz
condensada ou congelada... toda matéria é uma condensação de luz dentro de padrões, movendo-se
de um lado para outro em velocidades médias menores que a da luz”, explica David Bohm. A
física moderna também compreende a luz de modo multifacetado: “É energia e é também informação
- conteúdo, forma e estrutura. É o potencial para tudo”.
O bardo do dharmata tem quatro fases, cada uma delas apresentando mais uma oportunidade
para a liberação. Se a oportunidade não é aproveitada, então a próxima fase se desdobra. A
explanação desse bardo que darei a seguir tem origem nos Tantras do Dzogchen, em que se ensina
que o verdadeiro significado do bardo do dharmata pode ser compreendido somente pela prática
especial e avançada da luminosidade, o Tögal. O bardo do dharmata figura com destaque bem
menor em outros ciclos de ensinamentos sobre a morte na tradição tibetana. Mesmo no Livro
Tibetano dos Mortos, que também pertence aos ensinamentos do Dzogchen, a seqüência dessas
quatro fases é apenas implícita, como se fosse sutilmente oculta, e ali não aparece em uma
estrutura clara e ordenada.
Devo enfatizar, no entanto, que tudo o que as palavras podem fazer é dar um quadro
conceitual do que poderá ocorrer no bardo do dharmata. As manifestações desse bardo
permanecerão apenas como imagens conceituais até que o praticante tenha aperfeiçoado a prática
do Tögal, momento em que cada detalhe da descrição que darei em seguida se torna uma
experiência pessoal inegável. O que tento dar a você aqui é alguma idéia de que essa dimensão
maravilhosa e surpreendente pode existir, completando a minha descrição de todos os bardos.
Desejo profundamente que ela possa ser proveitosa como uma espécie de lembrança quando você
passar pelo processo da morte.

1. Luminosidade - a paisagem de luz

No bardo do dharmata você toma um corpo de luz. A primeira fase desse bardo ocorre quando
“o espaço se dissolve na luminosidade”.
De repente, você se torna consciente de um mundo fluido e vibrante de som, luz e cor.
Todas as características ordinárias do nosso ambiente conhecido fundiram-se, numa paisagem
de luz que permeia tudo. Ela é brilhantemente clara e radiante, transparente e multicolorida,
cintilante e ilimitada por qualquer tipo de dimensão ou direção, e está constantemente em
movimento. O Livro Tibetano dos Mortos considera-a como “uma miragem numa planície sob o calor
do verão”. Suas cores são a expressão natural das qualidades elementares e intrínsecas da
mente: o espaço é percebido como luz azul, a água como luz branca, a terra como amarela, o
fogo vermelho e o vento verde.

O grau de estabilidade dessas deslumbrantes manifestações de luz no bardo do dharmata


depende inteiramente da estabilidade que você conseguiu atingir na prática do Tögal. A real
maestria dessa prática fará com que você consiga manter estável a experiência e assim usá-la
para ganhar a liberação. De outro modo, o bardo do dharmata apenas brilhará como o clarão de
um relâmpago; você nem mesmo saberá que ele ocorreu. Deixe-me reiterar uma vez mais que apenas
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um praticante do Tögal estará apto a fazer o crucial reconhecimento: que essas manifestações
radiantes de luz não têm existência separada da natureza da mente.

2. União – as deidades

Se você não é capaz de reconhecer isso como a manifestação espontânea de Rigpa, os raios e
cores individuais começam então a integrar-se e aglutinar-se em pontos ou bolas de luz de
diferentes tamanhos, chamadas tiglé. Dentro delas surgem os “mandalas das deidades pacíficas
e iradas”, como enormes concentrações esféricas de luz que parecem ocupar todo o espaço.

Essa é a segunda fase, conhecida como “luminosidade dissolvendo-se na união”, onde a


luminosidade se manifesta na forma de budas ou deidades de vários tamanhos, cores e formas,
contendo diferentes atributos. A luz cheia de brilho que emana delas é ofuscante e
estonteante, o som é tremendo como o ribombar de mil trovões, e os raios e fachos de luz são
como os lasers, penetrando tudo.
Essas são as “quarenta e duas deidades pacíficas e cinqüenta e oito deidades iradas”
descritas no Livro Tibetano dos Mortos. Elas se revelam por um certo período de “dias”,
assumindo o seu padrão característico de mandala de cinco partes. Essa é uma visão que ocupa
a sua percepção por completo e com tamanha intensidade que, se você não for capaz de
reconhecê-la pelo que de fato é, parecerá terrificante e perigosa. O medo absoluto e o pânico
cego poderão consumi-lo e você desfalecerá.
Finíssimos raios de luz jorram de você e das deidades, unindo o seu coração aos delas.
Incontáveis esferas luminosas que aumentam de tamanho e giram, aparecerão nos raios das
deidades, à medida que todas elas se dissolvem em você.

3. Sabedoria

Se outra vez você fracassa em reconhecer e conseguir estabilidade, desdobra-se a próxima


fase, chamada “união dissolvendo-se na sabedoria”.
Outro fino raio de luz origina-se em seu coração e abre-se uma grandiosa visão; cada
detalhe, no entanto, permanece distinto e preciso. Essa é a manifestação dos vários aspectos
da sabedoria, que aparecem juntos num espetáculo de planos de luz e resplandecentes tiglés
luminosos de forma esférica.
Primeiramente, num plano de profundo azul luminoso, aparecem tiglés cintilantes cor azul
safira, em padrões de cinco. Acima deles, num plano de luz branca, aparecem tiglés radiantes,
brancos como cristal. Acima ainda, num plano de luz amarela, surgem tiglés dourados e, sobre
eles, um plano de luz vermelha serve de base a tiglés de coloração vermelho-rubi. Todos eles
são coroados por uma esfera radiosa, como um dossel de penas de pavão.
Essa esfuziante exibição de luz é a manifestação das cinco sabedorias: a sabedoria do
espaço todo-abrangente, a sabedoria do espelho, a sabedoria da equanimidade, a sabedoria do
discernimento e a sabedoria-que-tudo-realiza. Mas uma vez que a sabedoria-que-tudo-realiza é
aperfeiçoada unicamente quando se chegou à iluminação, ela ainda não aparece. Assim, não há o
plano verde de luzes e tiglés, embora esteja contido em todas as outras cores. O que se
manifesta aqui é o nosso potencial de iluminação; a sabedoria-que-tudo-realiza só aparecerá
quando nos tornarmos budas.
Se você não obtém aqui a liberação, através do repouso atento na natureza da mente, os
planos de luz e seus tiglés, assim como o seu Rigpa, todos se dissolvem na esfera radiante de
luz que é como um dossel de penas de pavão.

4. Presença espontânea

Isso anuncia a fase final do bardo do dharmata, “sabedoria dissolvendo-se na presença


espontânea”. Agora o todo da realidade se apresenta num tremendo espetáculo. Primeiro, o
estado de pureza original nasce como um céu aberto e sem nuvens. Então, as deidades pacíficas
e iradas aparecem, seguidas pelos reinos puros dos budas, e abaixo delas os seis reinos da
existência samsárica.
O ilimitado dessa visão está além da nossa imaginação comum. Cada possibilidade é
apresentada: da sabedoria e liberação à confusão e o renascimento. Nesse ponto você se verá
dotado do poder de percepção e recordação clarividentes. Por exemplo, com total
clarividência e seus sentidos desobstruídos, você conhecerá suas vidas passadas e futuras,
verá a mente de outros e terá conhecimento de todos os seis reinos da existência. Num
instante poderá evocar de maneira vívida todos os ensinamentos que ouviu - e até mesmo
ensinamentos que nunca ouviu despertarão em sua mente.
A visão inteira, então, dissolve-se retomando à sua essência original, como um toldo ou
tenda que cai quando as suas cordas são cortadas.

Se tiver estabilidade suficiente para reconhecer essas manifestações como a “auto-


irradiação” de seu próprio Rigpa, você se liberará. Mas sem a experiência da prática do Tõgal,
não será capaz de ter a visão das deidades, que são “brilhantes como o sol”. Em vez disso,
como resultado das tendências habituais de suas vidas prévias, seu olhar será atraído para
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baixo, para os seis reinos. São eles que você reconhecerá e que servirão de isca para atraí-lo
novamente para a ilusão.
No Livro Tibetano dos Mortos atribuem-se períodos de dias às experiências do bardo do
dharmata. Não se trata de dias solares de vinte e quatro horas, porque na esfera do dharmata
fomos completamente além dos limites de tempo e espaço. Esses dias são “dias de meditação”, e
referem-se à extensão temporal que formos capazes de repousar sem distração na natureza da
mente ou num único estado mental. Sem estabilidade na prática da meditação esses dias podem
ser muito curtos, e a manifestação das deidades pacíficas e iradas tão fugaz que sequer
poderemos registrar que elas se manifestaram.

COMPREENDENDO O DHARMATA

“Agora que o bardo do dharmata desponta sobre mim, abandonarei todo medo e terror,
Reconhecerei tudo o que aparece como a manifestação do meu próprio Rigpa,
E saberei que é a manifestação natural deste bardo;
Agora que alcancei esse ponto crucial, não temerei as deidades pacíficas e iradas
que surgem da natureza da minha própria mente”.

A chave para a compreensão desse bardo consiste no fato de que todas as experiências que
nele ocorrem são parte da radiância original da natureza da nossa mente. O que acontece é que
diferentes aspectos da sua energia iluminada estão sendo liberados. Assim como os arco-íris
dançantes de luz que se irradiam de um cristal são sua manifestação natural, também as
deslumbrantes manifestações do dharmata não podem ser separadas da natureza da mente. Elas são
sua expressão espontânea. Assim, não importa quão aterrorizantes possam ser essas
manifestações, diz o Livro Tibetano dos Mortos, elas não lhe trarão mais medo do que um leão
empalhado.

Estritamente falando, no entanto, seria um equívoco chamar essas manifestações de “visões”


ou “experiências”, porque visão e experiência dependem de uma relação dualista entre o
percebedor e a coisa percebida. Se pudermos reconhecer as manifestações do bardo do dharmata
como sendo a energia de sabedoria da nossa própria mente, não há diferença entre percebedor e
percebido, e essa é uma experiência de não-dualidade. Entrar por completo nessa experiência é
obter a iluminação. Porque, como diz Kalu Rinpoche: “A liberação surge naquele estado pós-
morte em que a consciência pode perceber que as suas experiências nada são além da própria
mente”.
No entanto, agora que já não estamos mais assentados em ou protegidos por um corpo
físico, as energias da natureza da mente liberadas no estado de bardo podem parecer
esmagadoramente reais e ganhar uma existência objetiva. Elas parecem habitar o mundo fora de
nós. E sem a estabilidade da prática não temos conhecimento de nada que seja não-dual, que
independa da nossa própria percepção. Se tomarmos essas manifestações de maneira errada,
como sendo alguma coisa separada de nós, como “visões externas”, reagiremos com medo ou
esperança, o que nos conduzirá à ilusão.
Tal como no surgir da Luminosida de Base o reconhecimento é a chave para a liberação,
também ocorre o mesmo no bardo do dharmata. Só que aqui o reconhecimento da auto-radiâncía de
Rigpa, a energia manifesta da natureza da mente, é o que faz a diferença entre atingir a
liberação ou continuar num ciclo incontrolado de renascimentos. Tome, por exemplo, a
manifestação de uma centena de deidades pacíficas e iradas, que ocorre na segunda fase deste
bardo. São os budas das cinco famílias búdicas, suas contrapartes femininas, bodhisatvas
masculinos e femininos, os budas dos seis reinos e um bom número de deidades iradas e
protetoras. Todas surgem em meio à luz brilhante das cinco sabedorias.
Como entender esses budas ou deidades? “Cada uma dessas formas puras expressa uma
perspectiva iluminada de parte da nossa experiência impura”. Os cinco budas masculinos são o
aspecto puro dos cinco agregados do ego. Suas cinco sabedorias são o aspecto puro das cinco
emoções negativas. Os cinco budas femininos são as qualidades elementais puras da mente, que
nós experimentamos como os elementos impuros do nosso corpo físico e meio ambiente. Os oito
bodhisatvas são o aspecto puro dos diferentes tipos de consciência, e suas contrapartes
femininas são os objetos dessas consciências.

Tanto no caso em que se manifesta a visão pura das famílias búdicas e sua sabedoria,
quanto no caso em que surge a visão impura dos agregados e emoções negativas, eles são
intrinsecamente a mesma coisa em sua natureza fundamental. A diferença reside em como os
reconhecemos, e se reconhecemos que eles emergem da base da natureza da mente como a sua
energia iluminada.
Tome como exemplo o que se manifesta em nossa mente comum como um pensamento de desejo; se
sua verdadeira natureza é reconhecida, ele surge, livre do apego, como “sabedoria do
discernimento”. O ódio e a raiva, quando verdadeiramente reconhecidos, surgem como claridade
similar à do diamante, livres do apego; esta é a “sabedoria do espelho”. quando a ignorância é
reconhecida, ela surge como vasta e natural claridade sem conceitos: é a “sabedoria do espaço
todo-abrangente”. O orgulho, quando reconhecido, é percebido como não-dualidade e igualdade: a
“sabedoria da equanimidade”. O ciúme, quando reconhecido, é libertado da parcialidade e do
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apego, surgindo como a “sabedoria-que-tudo-realiza”. Assim, as cinco emoções negativas emergem


como resultado direto de não reconhecermos a sua verdadeira natureza. Quando reconhecidas, são
purificadas e liberadas, mostrando-se como nada menos que a manifestação das cinco sabedorias.
No bardo do dharmata, quando você falha em reconhecer as luzes brilhantes dessas
sabedorias, o auto-apego invade sua “percepção”, tal como, segundo diz um mestre, uma pessoa
que está seriamente enferma, com febre alta, e começa a ter alucinações e ver toda espécie de
miragens. Assim, por exemplo, se você deixou de reconhecer a luz vermelho-rubi da sabedoria do
discernimento, ela surge como fogo, porque é a essência pura do elemento fogo; se você deixa
de reconhecer a verdadeira natureza da radiância dourada da sabedoria da equanimidade, ela
surge como o elemento terra, porque e a essência pura do elemento terra; e assim por diante.

Quando o apego ao eu penetra a “percepção” das manifestações do bardo do dharmata, esse é


o momento em que se transformam, pode-se dizer que até se solidificam, através disso, nas
diversas bases da ilusão do samsara.
Um mestre Dzogchen usa o exemplo do gelo e da água para mostrar como essa falta de
reconhecimento e o auto-apego se desdobram: a água é geralmente líquida, um elemento com
qualidades maravilhosas, que purifica e sacia a sede. Mas, quando congela, solidifica-se e
vira gelo. Do mesmo modo, sempre que surge o apego ao eu, ele solidifica tanto a nossa
experiência interior quanto o modo como percebemos o mundo à nossa volta. Todavia, assim como
ao calor do sol o gelo derrete e se faz água, com a luz do conhecimento revela-se a nossa
ilimitada sabedoria.

Agora podemos ver exatamente de que maneira, após o surgimento da Luminosidade Base e do
bardo do dharmata, o samsara surge como resultado de dois fracassos sucessivos em reconhecer a
natureza essencial da mente. No primeiro, não é reconhecida a Luminosidade Base, a base da
natureza da mente; se o reconhecimento houvesse acontecido, a liberação teria sido obtida. No
segundo, manifesta-se o aspecto energético da natureza da mente e uma segunda oportunidade
para a liberação se apresenta; se ela tampouco for reconhecida, as emoções negativas que
surgem começam a solidificar-se em diferentes percepções falsas, que juntas vão criar os
reinos ilusórios chamados samsara, e que nos aprisionam no ciclo de nascimento e morte. O todo
da prática espiritual, portanto, é dedicado a reverter diretamente o que eu chamaria de
progresso da ignorância, e a des-criar e des-solidificar aquelas falsas percepções
interligadas e interdependentes que levaram ao nosso aprisionamento na realidade ilusória que,
afinal, nós mesmos inventamos.

Tal como quando a Luminosidade Base despontou no momento da morte, aqui também no bardo do
dharmata a liberação não pode ser considerada ainda garantida. Porque quando a luz brilhante
da sabedoria resplandece, é acompanhada da manifestação de sons e luzes simples,
reconfortantes e suaves, menos desafiadores e abrangentes que ela. Essas luzes opacas -
acinzentadas, amarelas, verdes, azuis, vermelhas e brancas - são as nossas tendências
habituais inconscientes acumuladas por ódio, cobiça, ignorância, desejo, ciúme e orgulho.
Essas são as emoções que criam os seis reinos do samsara, respectivamente: os reinos do
inferno, dos fantasmas famintos, dos animais, dos seres humanos, dos semideuses e dos deuses.
Se não reconhecemos e estabilizamos em vida a natureza da mente do dharmata, somos
instintivamente atraídos para as luzes opacas dos seis reinos quando a tendência básica para o
apego, construída ao longo de toda a vida, começa a entrar em atividade e a despertar.
Ameaçada pela radiância dinâmica da sabedoria, a mente se retrai. As luzes aconchegantes, o
convite das nossas tendências costumeiras, seduzem-nos a um renascimento determinado por
aquela emoção negativa que domina nosso carma e nosso fluxo mental.
Vamos tomar um exemplo de manifestação de um dos budas pacíficos do Livro Tibetano dos
Mortos, que ilustrará todo esse processo. O mestre ou amigo espiritual dirige-se à
consciência do morto:

Ó fílho/fílha de uma família iluminada, ouça sem distração!


No terceiro dia emergirá uma luz amarela, que é apura essência do elemento terra.
Simultaneamente, do campo búdico do sul, de cor amarela, conhecido como “O Glorioso”, o Buda
Ratnasambhava aparecerá diante de você, com seu corpo amarelo e segurando em sua mão uma-jóia-
que-realiza-desejos. Ele está sentado em um trono sustentado por cavalos, e abraça Mamaki, a
consorte suprema. Em torno dele estão os dois bodhisatvas masculinos Akashagarbha e
Samantabhadra, e os dois bodhisatvas femininos Mala e Dhupa, de modo que seis budas aparecem
saindo da vastidão da luz de arco-íris.

A pureza inerente do skandha do sentimento – que é a “sabedoria da equanimidade”- uma luz


amarela, deslumbrante e adornada com tiglés de luz grandes e pequenos, fulgurante e clara,
intolerável aos olhos, irradiará até você a partir do coração de Ratnasambhava e sua consorte,
penetrando o seu coração de tal modo que os olhos não suportam encará-la.
Exatamente ao mesmo tempo, junto com a luz de sabedoria, uma luz azul opaca representando
o reino humano virá em sua direção e penetrará em seu coração. Então, levado pelo orgulho,
você, fugirá aterrorizado da intensidade da luz amarela, mas ficará encantado com a
obscurecida luz azul do reino humano, apegando-se então a ele.
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Nesse momento, não tema a penetrante luz amarela em toda a sua deslumbrante radiância, mas
reconheças como sabedoria. Deixe que seu Rigpa repouse nela, relaxado e à vontade, num estado
livre de qualquer atividade. Tenha confiança nela; tenha devoção e anseie por ela. Se a
reconhecer como a natural radiância do seu próprio Rigpa, mesmo que não tenha devoção e não
tenha feito a necessária oração inspiradora, todos os corpos dos budas e raios de luz irão se
fundir inseparavelmente com você, que atingirá então o estado búdico.
Se não a reconhecer como a radiação natural do seu Rigpa, então reze por isso com devoção,
pensando; “Esta é a luz da compassiva energia do Buda Ratnasambhava. Tomo refúgio nela”.
Porque de fato o Buda Ratnasambhava está vindo para guiá-lo por entre os terrores do bardo, e
é o catalisador da sua energia compassiva, feito de raios de luz. Assim, encha seu coração de
devoção por ele.
Não se encante com a opaca luz azul do reino humano. Essa é a sedutora trilha das
tendências habituais que você acumulou através de um orgulho intenso. Se estiver apegado a ela
você cairá no reino humano, onde provará a dor do nascimento, da velhice, da doença e da
morte, perdendo a oportunidade de sair do pântano do samsara. Essa (opaca luz azul) é um
obstáculo bloqueando o caminho para a liberação. Não olhe para ela, portanto, mas abandone o
orgulho! Abandone as tendências habituais que acarreta! Não se apegue (à opaca luz azul)! Não
anseie por ela! Sinta devoção e anseie pela luz amarela que irradia e leva ao deslumbramento,
centrando sua total atenção no Buda Ratnasambhava e dizendo esta oração:

Ai de mim!
Quando por intenso orgulho eu vagar no samsara,
Possa o Buda Ratnasambhava mostrar-me o caminho
Da radiante trilha de luz que é a “sabedoria da equanimidade” ,
Possa a suprema consorte Mamaki caminhar atrás de mim;
Possam eles me ajudar pelo perigoso caminho do bardo,
E levar-me ao perfeito estado búdico.

Dizendo essa prece de inspiração com profunda devoção, você se dissolvera numa luz de
arco-íris no coração do Buda Ratnasambhava e de sua consorte, tornando-se um Buda Sambhogakaya
no campo búdico do sul, conhecido como “O Glorioso”.

Essa descrição do aparecimento do Buda Ratnasambhava conclui explicando que, através dessa
“demonstração” oferecida pelo mestre ou amigo espiritual, a liberação é certa, ainda que as
forças da pessoa morta possam estar enfraquecidas. No entanto, mesmo depois dessa “mostra”
ser repetida muitas vezes, diz o Livro 7ibetano dos Mortos que há aqueles que, devido ao seu
carma negativo, não reconhecerão nem vão ganhar a liberação. Perturbados por desejos e
obscurecimentos, e aterrorizados pelos diferentes sons e luzes, eles fugirão. Assim, no “dia”
seguinte, o Buda que virá, Amitabha, o Buda da Luz Ilimitada, com seu mandala de deidades,
aparecerá em todo o esplendor de sua deslumbrante luz vermelha, manifestando-se junto com a
esvaecida, sedutora e amarela trilha de luz dos fantasmas famintos, que é criada a partir do
desejo e da mesquinhez. E assim, o Livro Tibetano dos Mortos apresenta a manifestação de cada
uma das deidades pacíficas e iradas, uma por vez e de modo similar.
Muitas vezes me perguntam: “As deidades aparecem a uma pessoa do Ocidente? Em caso
positivo, aparecem sob formas familiares aos ocidentais?”
As manifestações do bardo do dharmata são chamadas “espontaneamente presentes”. Isso
significa que elas são inerentes e incondicionadas, existindo em todos nós. Seu aparecimento
não depende de qualquer avanço espiritual que tenhamos conseguido; só seu reconhecimento
depende. Não são exclusivas dos tibetanos; são uma experiência universal e fundamental, mas o
modo como são percebidas depende do nosso condicionamento. Uma vez que são por natureza
ilimitadas, têm a liberdade de se manifestar de qualquer forma.
Portanto as deidades podem tomar formas com que estamos mais familiarizados em nossa vida.
Por exemplo, para praticantes cristãos as deidades podem surgir como o Cristo ou a Virgem
Maria. Geralmente, todo o propósito da manifestação iluminada dos budas é ajudar-nos, e assim
podem assumir a forma mais apropriada e benéfica para nós. Mas seja lá qual for aquela que
assumam, é importante reconhecer que não há qualquer diferença na sua natureza fundamental.

RECONHECIMENTO

Explica-se no Dzogchen que, do mesmo modo que uma pessoa não reconhecerá a Luminosidade
Base sem uma verdadeira realização da natureza da mente e uma experiência estável da prática
do Trekchö, sem a estabilidade do Tögal é muito difícil que alguém reconheça o bardo do
dharmata. Um praticante que tenha atingido a realização da prática do Tögal, e que aperfeiçoou
e estabilizou a luminosidade da natureza da mente, já chegou em vida a um conhecimento direto
das mesmas manifestações que emergirão no bardo do dharmata. Essa energia e luz, assim, estão
dentro de nós, embora no momento estejam ocultas. Mas quando o corpo e os níveis mais densos
da mente morrem, elas são naturalmente liberadas, e o som, a cor e a luz da nossa verdadeira
natureza resplandecem.
Contudo, não é somente através do Tõgal que esse bardo pode ser usado como uma
oportunidade para a liberação. Praticantes do budismo tântrico relacionarão as manifestações
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do bardo do dharmata com a sua própria prática. No Tantra, o princípio das deidades é um modo
de comunicação. É difícil relacionar-se com a presença de energias iluminadas se elas não têm
forma ou base para comunicação pessoal. As deidades são entendidas como metáforas, que
personificam e captam as infinitas energias e qualidades da mente de sabedoria dos budas.
Personificá-las na forma de deidades torna possível ao praticante reconhecê-las e se
relacionar com elas. Através do treino em criar e reabsorver as deidades na prática da
visualização, ele descobre que a mente que percebe a deidade, e a própria deidade, não são
separadas.
No budismo tibetano o praticante terá um yidam, isto é, a prática de um buda ou deidade
específica com quem tem uma forte ligação cármica, que é para ele uma encarnação da verdade,
que invoca como a essência da sua prática. Em lugar de perceber as manifestações do dharmata
como fenômeno externo, o praticante do Tantra vai relacioná-las com sua prática yidam, unindo-
se e fundindo-se com elas. Uma vez que em sua prática reconheceu o yidam como a radiância
natural da mente iluminada, está preparado para ver as manifestações com esse reconhecimento,
deixando-as surgir como a deidade. Com essa percepção pura, o praticante reconhece o que quer
que apareça no bardo como nada além de manifestação do yidam. Então, através do poder de sua
prática e da bênção da deidade, ele ou ela ganhará a liberação no bardo do dharmata.
É por isso que na tradição tibetana aconselha-se o leigo e o praticante comum não
familiarizados com a prática do yidam a levar em consideração toda manifestação que surja,
reconhecendo-a imediatamente como Avalokiteshvara, o Buda da Compaixão, ou Padmasambhava, ou
Amitabha - aquele com que tiver se familiarizado mais. Resumindo, o modo como você tenha
praticado em sua vida será exatamente o modo pelo qual tentará reconhecer as manifestações do
bardo do dharmata.
Outra maneira reveladora de olhar para o bardo do dharmata é vê-lo como dualidade sendo
expressa em sua forma mais pura. Mostram-se a nós os meios de liberação, mas simultaneamente
somos seduzidos pela chamada dos nossos hábitos e instintos. Experimentamos a pura energia da
mente e sua confusão, a um só e mesmo tempo. É quase como se fôssemos incitados a tomar uma
resolução escolher entre uma e outra. Não é preciso dizer, no entanto, que até o fato de
termos ou não essa escolha é determinado pelo estágio e perfeição alcançados em nossa prática
espiritual ao longo da vida.
O LIVRO TIBETANO DO VIVER E DO MORRER – Sogyal Rinpoche

Textos compilados, e organizados por Flávio Capllonch Cardoso.

www.shunya.com.b

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