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CAMINHO TAOÍSTA

Vida valiosa

Gritos estridentes. Balbúrdias. Ecos excruciantes. Cadáveres empilhados em montanhas


imundas! Vimos tantas mortes ao nosso redor que se torna impossível não meditarmos na
efemeridade de nossas existências. Somos levados a questionar sobre a nossa vida, sobre os valores
relativos àquilo que é essencial. Como observa Laozi, autor do clássico taoísta Dao De Jing: “A fama
ou a vida: o que é o mais íntimo? A vida ou as posses: o que é mais valioso?”1 Sentimos uma dor
imensa ao assistir tantos corpos doentes, corpos fragilizados diante dos ataques fulminantes. Isso só
nos tornou mais sensíveis em relação ao fenômeno da vida. O que é verdadeiramente essencial?
Qual é o valor fundamental da minha existência?
Inquietos, indignados, e até bastante enfurecidos, protestamos contra a catástrofe do súbito
desaparecimento dos corpos! Mas será que, diante desse cenário tão desastroso, saberemos lidar com
o lado obscuro e sombrio da morte? Há instantes em que tudo parecia estar flutuando numa névoa
funesta e insidiosa. Meu corpo era atravessado por pulsações de ondas nefastas numa espécie de
devaneio cadenciado e indolente. Ossos e ouvidos estancados. Meu corpo parecia um navio à beira
de um naufrágio. Era como se todos os sons da cidade tivessem se exaurido num surdo rumor
melancólico! Irremediável sabor da morte, melodia estridente que entorpece a mente!
Intermitências destiladas no tremor da pele! Supressões de movimentos, de gestos e de palavras
quando todos temos de nos resguardar na nossa cela solitária. Entre o nada e o espasmo das mortes
alheias, onde encontrarei a pérola preciosa da vida?
Nesse estado intervalar de desfalecimentos, soterrado no meu quarto, submergi numa
angústia indefinida, numa correnteza estranha, como se nem pudesse mais apalpar meu próprio
rosto. Assim, arrastava-me quase num estupor indizível, desfalecido numa espécie de oblívio quase
místico! No entanto, eu ainda estava ali presente, sentado com as mãos trêmulas e languidamente
receosas do contato com os outros corpos que poderiam me contaminar! Dominado pelo medo,
afundei-me, de repente, na eternidade de uma angústia primeva, ancestral e originária.
Palpitava em mim o espírito do Vazio Originário Ancestral.
Como diz Laozi no capítulo 5 do Dao De Jing: “O espaço entre Céu e Terra não se parece
com um fole? Esvazia-se e não se encolhe. Move-se e ainda transborda.”2
Buscando capturar essa palpitação sutil, pus-me a escutar com mais concentração aquilo
que ressoava dentro dos meus órgãos. Pele intumescida, olhos crispados, senti que estava sendo
atraído para um frenesi vertiginoso, para o fluxo regurgitante dos primeiros clarões! Surdamente
nascia em mim um pensamento-relâmpago: “sou como esse vazio do fole”. Contudo, esse vazio não
é um nada insípido onde todas as coisas se dissolveriam. Esse vazio é a plenitude de todos os seres.
Podemos senti-lo dentro da mais profunda interioridade. Afinal, o que é o espírito face à morte, o
que é a vida face ao terror? Mesmo que todas as coisas venham a se deteriorar, desvanecendo-se na

1
Laozi, Dao De Jing, tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Editora Mantra, 2017, cap.44.
2
Laozi, cap.5.

1
morte, é provável que subsista algo imperecível? Esse ser eterno jamais sujeito às mudanças não seria
o vazio, a plenitude de um vigor transcendente?
Nesse momento em que se difundia em mim essa outra face do vazio, a morte aterradora,
enganchando-me pelo pescoço, gritava numa algaravia cínica: “Você é como uma veste imunda, flor
pálida, pedaço de carne mortal…” Então, assaltava-me a dúvida: “A fama é mais valiosa do que a
vida? Os bens externos são mais importantes do que a existência?” Uma voz desconhecida e íntima
me dizia que a vida era uma potência ilimitada da qual não estava consciente até então. A vida era
um vulcão de lavas profusas e ardorosas, um vórtice de faíscas e ondulações.
A vida é o valor mais precioso e insubstituível, pois se a perdermos, todas as outras coisas
perderão seu valor. Assim, comecei a contemplar com Laozi o mistério e a delicadeza dessa pérola
tão sutil. Sabia que o desgaste de todo nosso ser era provocado pela cobiça dos bens externos e da
fama ilusória. Esquecemos do que é valioso e do cultivo da potência da vida! Esquecemos de viver
de maneira moderada, evitando os bens supérfluos que nos levam ao grande desperdício! Os tempos
atuais nos levam a pensar se podemos retornar a uma vida mais equilibrada. Ao invés de se conduzir
na moderação, a maioria das pessoas deseja se apoderar dos bens externos ou afiar as suas próprias
habilidades com o objetivo de estar sempre à frente das outras. Em razão desse espírito de
competitividade, tornam-se arrogantes, presunçosas e gananciosas. Todo esse apego excessivo
prejudica o Sopro Vital e estanca o fluxo natural.
É por esse motivo que é necessário abandonarmos esse autoapego narcísico do Eu,
reduzindo o apego excessivo gerado por esse acúmulo desmedido que poderá consumir nosso ser.
Quando estivermos livres desse vício terrível, conquistaremos a nossa autossuficiência na
simplicidade. É por isso que o mestre taoísta Liezi no seu Vazio Perfeito dizia que “contemplar a si
mesmo é buscar a autossuficiência em nossa própria natureza. Assim, buscando autossuficiência
interior, realizamos uma viagem de caráter mais nobre. Buscando as coisas externas, estamos longe
dessa realização”3. A vida não consiste na satisfação desnecessária dos desejos materiais e sim no
cultivo da nossa essência vital. Assim, quando deixarmos de ansiar pela posse desenfreada de objetos
supérfluos, quando realmente cuidarmos de nossa vida no sentido mais amplo da palavra “vida”,
estaremos menos carentes, instáveis e enfraquecidos. A plenitude do ser e da vida nasce da
simplicidade de um modo de vida mais valioso e autêntico. É preciso que, após a nossa passagem na
“noite escura da alma”, cada instante de morte e desfalecimento possa ser transmutado e
transfigurado numa outra constelação sagrada, numa forma de vida exuberante.

3
Liezi, Vazio Perfeito, tradução de Chiu Yi Chih. Editora Mantra, 2020, p.121.

2
Visão da Totalidade

Como podemos cultivar o caminho em harmonia com a essência do Dao? Estamos tão
impregnados do orgulho e de ambições desmedidas que mal percebemos a sutileza de outros seres
infinitamente menores do que nós. Em nossa sociedade que hipervaloriza o mundo das aparências
geralmente subestimamos as coisas pequenas, considerando que são insignificantes e irrisórias,
porém, na concepção taoista, cada ser é valioso e significativo na sua singularidade. Vejamos como o
mestre Zhuangzi nos mostra a imanência do princípio do Dao nas coisas mais triviais.

- Onde se encontra o assim chamado Dao? - perguntou Dong Guozi


- O Dao está presente em todas as partes. - respondeu Zhuangzi
- Fale mais sobre um lugar.
- Está nas formigas.
- Por que num tão lugar tão inferior?
- Está na vegetação pantanosa.
- Por que tão inferior assim?
- Está nos estilhaços dos vasos.
- Por que tão ruim assim?
- Está no excremento.4

Como o Dao não cria distinções entre o pequeno e o grande, podemos considerá-lo como a
própria essência da totalidade que abarca todas as coisas. Essa grandeza transcendente considera que
todas as coisas são igualmente valiosas. Do ponto de vista da totalidade do Dao, não há nenhuma
coisa que seja inferior ou superior. Nesse sentido, Zhuangzi sublinha o caráter englobante,
ilimitado e generoso do Dao, cuja essência é tão vasta e grandiosa que até as fezes não estão excluídas
da sua onipresença! Assim, quem age e vive de acordo com a visão da totalidade se harmonizará
com cada ser desse imenso universo. É por isso que o sábio taoísta, contemplando a multiplicidade
heterogênea de todas as matizes e nuances, abraça os múltiplos aspectos desse Mar Ilimitado.
Apesar das inúmeras contingências da vida, ele consegue se manter num espírito de Harmonia (和
-hé) e Constância (常-cháng). Como diz Zhuangzi, ele é o Homem Nobre que age pela Não-Ação,
compreendendo que todas as coisas estão entrelaçadas na essência do Dao.

Um Mestre disse: “O Dao permeia tudo e sustenta todos os seres. É tão imenso e profuso como
um vasto oceano! Assim, o Homem Nobre deve cortar as ideias preconcebidas de sua mente. Agir por
meio da Não-Ação é ‘naturalidade’. Falar por meio da Não-Ação é Virtude. Um ser amoroso que
beneficia todas as pessoas é benevolente. Não diferenciar, porém, ver as semelhanças é grandioso.

4
Veja Fu Pei Rong (傅佩荣). Zhuangzijiedu 莊子解讀 (Zhuangzi com tradução, comentários e notas). Xinbei:
Shijiegongmingcongshu, 2017, p.339.

3
Conduzir-se de uma tal forma em que não haja distinção é ser generoso. Possuir várias coisas é
riqueza. Alcançar e conservar as qualidades da naturalidade é considerado como a Ordem. A
realização virtuosa é firmar-se no solo. Seguir o Dao é a perfeição. Não causar desgosto ao outro é a
completude. Se o Homem Nobre compreende essas treze coisas, por conseguinte, abraça a totalidade,
mostrando a grandeza de sua mente. Junto com ele, transcorre a plenitude de todas as coisas. Sendo
assim, ele esconde o ouro na montanha e as pérolas na profundeza. Não estima bens valiosos nem se
aproxima da abundância de riquezas. Não se alegra com a vida longa nem se entristece com a morte
prematura. Não considera a fama como glória nem se envergonha da pobreza. Não persegue o mundo
com vistas ao benefício de si mesmo, e tampouco se considera como o rei do mundo ocupando um lugar
de proeminência. Assim, sua iluminação é ver que todas as coisas retornam à Unidade, sendo que a
vida e a morte não são diferentes entre si.5

É fundamental perceber que essa intuição da totalidade pode ser cultivada e alcançada nas
práticas taoistas como Tai-Chi, Qi-Gong e meditação. Quando nos harmonizamos com o Todo,
sentimos que somos partes integradas na mesma essência cósmica. Ah! Quantas vezes na minha
meditação não me senti submerso nas ondas silenciosas de uma vastidão inesgotável! Vejo que assim
podemos nos libertar do sentimento de separatividade gerado pelo apego excessivo à nós mesmos, e
sobretudo, podemos abandonar as preocupações supérfluas e os temores desnecessários,
afastando-se das aflições que nos levam a uma visão parcial (偏见-piānjiàn).
Se o Dao é tão imenso e profuso como um vasto oceano, o segredo consiste na observação
atenta, na contemplação de todo fenômeno como se cada singularidade fosse a centelha do Todo!
Ah, se pudéssemos sentir que cada ser ínfimo pertence à Unidade, sentir que cada formiga, cada ser
animado ou inanimado, cada planta vista nas águas lamacentas se integra à essência da totalidade
(整体-zhěngtǐ)! É por essa razão que Laozi diz que é preciso retornarmos ao Vazio do Vale, cuja
imagem metafórica simboliza o Dao no seu estado de transcendência. Quando voltarmos ao estado
do Vazio do Vale, contemplaremos a essência da totalidade em suas múltiplas manifestações. Isso
não significa que atingiremos algo externo a nós, como se fosse um mundo situado numa dimensão
alheia. Ao contrário, significa que retornaremos à Natureza Autêntica da Virtude Originária (天
真本德-tiānzhēnběndé) de nossa própria essência. Em certos momentos de crise, é fundamental
que estejamos abertos à possibilidade de tal experiência. Por exemplo, durante a pandemia, senti um
certo estado de desânimo mesclado com a sensação de impotência diante das circunstâncias
adversas. Contudo, ao intensificar minha prática de meditação e de reflexão interna, experienciei
um outro estado completo de ser que transcende as limitações do meu ego. Gaston Bachelard, o
filósofo da fenomenologia poética, diz que há imagens de imensidão íntima que expandem o espaço
interior de nossa alma. Como observa no seu livro A Poética do Espaço:

5
Fu Pei Rong, p.174.

4
Dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço do que aquele que ele tem
objetivamente, ou melhor dizendo, é seguir a expansão do seu espaço íntimo. Para guardar a
homogeneidade, lembremos ainda que Joe Bousquet exprime assim o espaço íntimo da árvore: ‘O
espaço não está em parte alguma. O espaço está em si mesmo como o mel no favo.’ No reino das
imagens, o mel no favo não obedece à dialética do conteúdo e do continente. O mel metafórico não se
deixa encerrar. Aqui, no espaço íntimo da árvore, o mel é algo mais do que uma medula. É o ‘mel da
árvore’ que vai perfumar a flor. Ele é o sol interior da árvore. Quem sonha com mel, sabe bem que o
mel é um poder que sucessivamente concentra e irradia. Se o espaço interior da árvore é um mel, ele dá
à árvore ‘a expansão das coisas infinitas’.”6

Meu espaço interior desabrochava como um vale repleto de seres animados e inanimados
que pareciam flutuar em inúmeras formas: peixes, musgos, cogumelos, pássaros, besouros, abelhas,
orquídeas, larvas e tantas outras criaturas quase imperceptíveis que faiscavam numa efervescência
incomensurável! Era como um vale que, na sua imensidão, na sua fulguração difusa reverberava até
as entranhas do mundo!
Com as pausas prolongadas de reclusão em que ficamos mais isolados, é natural que a nossa
mente habituada às deliberações e planejamentos fique alvoroçada pelo fato de que esteja menos
impelida à exteriorização. Engrenada no mundo da eficiência, do autoaperfeiçoamento, do
progresso, da aceleração e do pragmatismo, nossa mente frenética sempre buscava alcançar algum
resultado. Parecia uma mosca zumbindo nas malhas da impaciência, tão perturbada, atormentada e
ansiosa que nada parecia satisfazê-la!
E, logo, agora que quase tudo parou!
No entanto, foi naquela meditação do espaço íntimo que senti o estado do Vazio do Vale…
Embora tenha sido abalado por aquela impotência inicial, fervilhava por dentro de mim
uma outra vida sutil e preciosa.
Embora fosse induzido a querer intervir no fluxo da vida, uma outra música fecunda se
entretecia nas frestas do tempo.

6
Bachelard, Gaston. Poética do Espaço, Martins Fontes, 1993, p.206.

5
Autocultivo

Em certos momentos da meditação em que eu perdia a noção de tempo, comecei a aceitar


que as coisas naturalmente são geradas sem serem apossadas e a compreender que as coisas se
transformam numa dinâmica que escapa de nosso controle. É nessa compreensão que, segundo
Laozi, retornamos à potência vital do recém-nascido cuja manifestação fundamental é o estado de
Naturalidade. Não estou dizendo que tenhamos de ser como “crianças” numa espécie de retorno ao
estado de infância, ou de renúncia ao mundo dos conflitos do mundo adulto. Trata-se do
movimento de “renascimento” onde podemos conhecer a claridade na obscuridade, reconciliando
as dualidades opostas e complementares. Nesse caso, somos convocados à prática da integração das
polaridades como o masculino e o feminino, polaridades que são princípios de manifestação do
Dao Indiferenciado. Para os antigos chineses, existem os princípios Yin e Yang, ou seja, os
princípios arquetípicos do Criativo luminoso, expansivo, impulsivo e agressivo representado pela
espada e do Receptivo escuro, retraído, dócil e suave representado pelo ventre/caverna. Então, a
regeneração consiste justamente em conciliarmos esses princípios dentro de nosso ser no sentido de
unificá-los com vista à transmutação interior. Mas tal unificação só ocorre na medida em que nos
harmonizamos com a Unidade do Dao.

Um Mestre disse: “O Dao é tão silencioso e límpido como uma profundeza abissal. Os metais e
as pedras não ressoariam se não fossem por causa do influxo do Dao. Assim, os metais e as pedras têm o
poder de ressoar, mas não ressoariam se não fossem tocados. Quem seria capaz de delimitar as
miríades de fenômenos?! Uma pessoa de virtude soberana pode passar despercebida por causa da
simplicidade de sua conduta e se envergonharia caso ficasse ocupada com os afazeres. Ela se enraíza no
princípio originário e seu conhecimento se alicerça no Espírito. Sua virtude se estende como uma vasta
campina e seu coração se abre à todas as coisas. Portanto, tudo que contrariasse o Dao não teria vida e
também a vida que não possuísse a Virtude não se iluminaria. Conservar o corpo e buscar o sentido da
vida, enraizando-se na Grandiosa Virtude e compreendendo o Dao, isso não seria como ser um rei da
Virtude? Ó vastidão! Assim, quando subitamente a pessoa é impelida por um movimento, todos os
seres a acompanham. É considerada como a pessoa de Virtude Soberana. Ao contemplar
profundamente o Dao nas trevas, ela escuta o inaudível. No meio da obscuridade, ela vê a luz. No
meio do silêncio, ela ouve a Harmonia. Portanto, o mistério cheio de mistérios é capaz de gerar todos os
seres, assim como o divino repleto de todo espírito pode gerar a Essência. Assim, o Dao está em
comunhão com todos os seres, sendo que somente seu Vazio é capaz de suprir as necessidades de cada ser.
O Dao constantemente move e conduz todos os seres à sua morada, tanto o grande como o pequeno,
tanto o longo como o curto, tanto o longínquo como o próximo.7

7
Fu Pei Rong, p.175-176.

6
Do ponto de vista da totalidade, não há essencialmente diferenças entre os opostos como
longo/curto e grande/pequeno. Não somente não existe essa separação como ainda as coisas mais
heterogêneas se complementam. O que ocorre é uma experiência de comunhão com a Unidade, um
processo de integração entre corpo e mente (dimensão interna) e entre nós e o mundo (dimensão
externa). É nesse sentido que segundo o mestre He Shang Gong, “quem governa o próprio corpo
modera suas emoções e desejos, sem contudo ferir o espírito (神-shén)”. Quem governa-se a si
mesmo, cultiva a harmonia entre corpo e espírito e preserva o Sopro Vital. Assemelha-se a um
pássaro intrépido que, dilatando as suas asas sedentas, alça o voo e viaja até os confins da terra sem
deixar de retornar ao seu ninho acolhedor...É como se pudéssemos ouvir a harmonia mais
longínqua e vislumbrar a luz nas trevas mais profundas sem deixar de retornarmos ao Vazio do Vale.

O Espírito do Vale nunca morre.


Chama-se Fêmea Misteriosa.

A porta da Fêmea Misteriosa


é a raiz do Céu e da Terra.

Incessante existência.
Inesgotável eficácia.8

Qual é o sentido do Espírito do Vale? Do ponto de vista simbólico, o Espírito do Vale é o


Vazio de potência vital que permeia o espaço situado entre as montanhas. Sendo vazio e sem-forma,
esse Espírito concede “espaço” para que todas as criaturas possam crescer e se desenvolver. É o
próprio Dao que dadivosamente concede a vida no sentido de propiciar o crescimento e o
desenvolvimento de todos os seres. Sendo esse vazio ilimitado, é como uma nascente de águas
infindáveis: a essência da vida que nunca morre. Laozi evoca-o como a Fêmea de Eficácia Misteriosa,
a Porta-Raiz do Céu e da Terra. É nesse momento que vislumbramos os brevíssimos lampejos de
Vida Imortal. O Princípio Imortal gera e transmuta os seres sem ser jamais modificado. É por isso
que na sua imortalidade suprema essa quintessência manifesta a plenitude da vida. No estado do
Vazio do Vale somos levados a contemplar a potência epifânica do Dao, essa força latente e
poderosa, energia de todas as energias, fulgor que transcende as nomeações, os rótulos, os signos e
as limitações de nossa mente mundana.
Liezi no seu livro Vazio Perfeito invoca essa imagem transcendente do Espírito do Vale já
utilizada pelo Laozi para simbolizar a imutabilidade, pois o que é imutável só poderá ser espiritual,
quintessencial, incorpóreo e informe. Ah! Se pudéssemos resguardar nossas energias nesse santuário
do vale, onde o Espírito (神-shén) é Informe ou Sem-Forma (无形-wúxíng)! Todos existimos e
subsistimos graças a esse Espírito, já que a existência de cada ser só será possível se houver esse

8
Laozi, cap.6.

7
espírito-vazio-plenitude-de-potência. Esse estado de Vazio é também um estado alterado de
consciência. Quando acontece esse fenômeno, passamos a “ver uma forma pequeníssima” assim
como a “ouvir um som extremamente sutil”, como nos relata Gang Cangzi, um dos personagens do
Vazio Perfeito9. É por essa razão que nesse estado de Vazio, nossa mente deixa de existir, nosso corpo
se suspende numa espécie de limbo indefinível, nossos ossos se tornam flácidos, nossos músculos se
derretem, nossos olhos ouvem, nossos ouvidos enxergam, todas as nossas reações ao mundo externo
se transmutam. Não possuímos mais o nosso próprio eu! Dissolvem-se os limites entre o interior e o
exterior. A lua e o sol se fundem. Uma floresta de ecos, uma avalanche de sons metálicos assomam
no horizonte. Ao invés de uma carência ou um sentido de negatividade, emergem os fluxos de uma
eficácia inesgotável (用之不勤-yòngzhībùqín)10. Nesse aspecto, é importante reconhecer essa
dimensão do Espírito, essa matriz energética infinita que procria todas as criaturas, nutrindo e
alimentando todas as manifestações do universo.
Na medida em que nos absorvemos na contemplação do Espírito do Vale, nossos seres
repousam no estado de simplicidade originária em que não há mais diferenciações entre claridade e
obscuridade, entre masculino e feminino, entre corpo e espírito. Nesse processo de unificação, se
pudermos harmonizar (assim como o sábio) todas as faculdades e sentidos sem suscitarmos
discórdias e estados dispersivos, e se a nossa mente e as nossas ações puderem se coordenar entre si
na sinfonia da Unidade Indiferenciada (一體無别-yītǐwúbié), estaremos cultivando o estado de
Não-Mente e de Não-Ação. É por isso que o sábio manifesta a eficácia da sabedoria da Não-Ação.
Mergulha no estado do Vazio do Vale. No profundo silêncio do seu ser, pratica a Constante Virtude
(常德-chángdé) do desapego e da humildade. Despoja-se das escórias do excesso e medita naquela
eficácia do Dao Constante (常道-chángdào).

Conhecer o masculino
e preservar o feminino:
eis o que é tornar-se o vale do mundo.

Tornar-se o vale do mundo


sem se afastar da Constante Virtude:
eis o que é retornar ao estado de recém-nascido.

Conhecer a claridade
e preservar a obscuridade:
eis o que é tornar-se o modelo do mundo.

Tornar-se o modelo do mundo,

9
Liezi, Vazio Perfeito (Editora Mantra), 2020, p.113.
10
Laozi, cap.6.

8
impecável, com a Constante Virtude:
eis o que é retornar ao Sublime Vazio.

Conhecer a glória
e preservar a humildade:
eis o que é tornar-se o vale do mundo.

Tornar-se o vale do mundo,


autossuficiente, com a Constante Virtude:
eis o que é retornar ao estado de simplicidade.

Portanto, a simplicidade é um instrumento


que o Sábio utiliza para se tornar regente,
pois assim não haverá discórdias na sua grandiosa regência.11

O centro mais recôndito desse estado de Constante Virtude é o estado originário de nossa
condição autêntica. Laozi nos fala do estado de simplicidade que não é um mero estado de
brutalidade, de grosseria ou de “primitivismo”, mas sim um estado de esplendor luminoso que
aparentemente parece inócuo. A palavra chinesa “simplicidade”(朴-pǔ) empregada por Laozi
significa aquela simplicidade rústica da madeira bruta que ainda não foi trabalhada, polida e
esculpida pelas mãos humanas. No lado esquerdo do ideograma chinês, vemos o radical “madeira”
(木-mù) que justamente compõe o significado da palavra. A imagem da “madeira bruta” subjacente
à ideia de simplicidade aparece na forma pictórica desse ideograma, e de certo modo, revela a
sabedoria do sábio que vive de modo simples, natural e autêntico na sua conduta ético-espiritual.
Essa metáfora torna visível a potência da simplicidade na medida mesma em que ao seu significado
se associa o sentido simbólico da pureza originária, o sentido daquele estado de recém-nascido que
ainda não sofreu as interferências da artificialização humana.
O sábio na sua simplicidade é como um recém-nascido que age sem sagacidade, sem desejo
falso de manipulação. Ao cultivar a Constante Virtude da Não-Ação, ele manifesta a sabedoria da
Naturalidade (自然之智-zìránzhīzhì) e reconcilia todas as oposições dualísticas. Ao se tornar o
vale do mundo, conquista a grandiosa regência da harmonia. Frequentemente as aflições que
padecemos são produtos das maquinações engenhosas de nossa mente artificiosa. Disputas,
conflitos e intrigas são provocadas pela sagacidade. São desarmonias que dividem e perturbam a
regência interna de nós mesmos. Por exemplo, se observarmos uma pessoa sagaz cheia de astúcia e
intenção manipuladora, perceberemos que ela age na artificialidade. Sob a máscara da falsidade, só
provoca distúrbios. Consciente dessas ilusões, o sábio escolhe viver na simplicidade. Enraíza-se no
centro do vazio do vale, sem cair na indulgência dos excessivos e falsos adereços.

11
Laozi, cap.28.

9
Na nossa cultura, fomos educados para que sejamos sempre os “vencedores”. Em geral,
detestamos permanecer abaixo como o vale, como o feminino ou a água que habita os lugares mais
imundos. Preferimos estar “acima’, agindo de modo orgulhoso e seguindo os nossos juízos parciais.
Entretanto, se quisermos viver na simplicidade, precisamos nos libertar das concepções equivocadas
de apego aos extremos, já que são excessos gerados pelo apego mental. Atualmente se observa um
certo endeusamento tecnicista que privilegia o pensamento estratégico, calculista e pragmático. O
que presenciamos é a exclusão da capacidade simbólica da imaginação e o predomínio de uma
espécie de racionalidade técnico-instrumental. Nesse sentido, na medida em que se proliferam cada
vez mais as maquinações, os artifícios, os dispositivos engenhosos de uma técnica fetichizada,
deixamos de exercer a liberdade do pensamento humano no que se refere às escolhas pessoais e
autênticas. Somos seres humanos com potencialidades valiosas. Uma máquina jamais substituirá a
sensibilidade humana. Se, no processo de artificialização, negligenciarmos as potencialidades da
dimensão humana e apenas acreditarmos no poder das máquinas, fatalmente cairemos nas malhas
reducionistas de um artificialismo massacrante. Entretanto, se agirmos de acordo com a
naturalidade, estaremos mais capazes de conviver com os outros seres de nosso planeta de maneira
equilibrada.
O autocultivo na simplicidade é cada vez mais necessário nesse momento da pandemia
junto com a consciência de que pertencemos à coletividade humana. É por isso que a atitude mais
adequada seria cultivarmos o cuidado de si sem perder de vista a importância da presença das outras
alteridades. Nessa relação de harmonia com os outros, é imprescindível que cultivemos também um
equilíbrio interno tanto no corpo como na mente diante dos estímulos excessivos das exterioridades
mundanas que poderiam desgastar as nossas energias mentais e físicas. Portanto, só agindo com
simplicidade e enraizados no centro do vale, nos tornaremos os mestres do cultivo da Virtude
Originária, os mestres daquela regência interior onde as faculdades da mente e os sentidos do nosso
corpo são unificados e reconduzidos à Suprema Harmonia.

10
O mundo é um vaso sagrado

Nada estanca o sortilégio das águas.

Na fímbria dos ossos


sou a sombra que segue o céu arborescente.

Ouço as plumas
o córrego e as vidas ínfimas
escorrendo no dulcíssimo resplendor.

Ó vastíssima efusão!

Quanto mais te persigo, mais te esquivas!

Tigresa de outras asperezas,


cornucópia velando o silêncio das mariposas.

Quanto mais te persigo, mais te esquivas!

Mar de pérolas na constelação suprema,


abismo que se alastra ao infinito!

Assim, perseguindo o Dao, embrenhei-me num labirinto cheio de meandros e curvas


incomensuráveis. Perplexo, exclamava: “Ó criatura ínfima, tu que és apenas uma chama efêmera, até
onde irás buscar o Dao? Desejas o mundo? Mas tu és o centro do mundo. Veneras o mar? Mas tu és
mais transparente que o mar. Meditas sobre a imensidão das montanhas? Mas tu és mais imensa
que as montanhas. Vês o quanto permaneces limitada na sua cega brutalidade? Por que persegues as
sombras evanescentes, se o teu espírito resplandece na Constância do Dao? Por que te arrastas até os
confins da terra, se tua essência a ti pertence e jamais será aniquilada pelas rajadas tempestuosas? És
insana buscando um ouro em minas estrangeiras, quando a verdadeira pérola resplende bem
próxima de ti. Se amas as riquezas do mundo mais do que essa pérola, não estarás mais perdida nas
teias de um sonho fugaz? Desejas dominar o mundo? Por que queres dominar os outros?

Desejar conquistar o mundo e nele intervir:


vejo que isso não se deve fazer.

O mundo é um vaso sagrado

11
e não deve ser manejado.

Quem nele intervém, fracassa.


Quem o retém, perde-o.

Portanto, as coisas ora conduzem, ora acompanham.


Ora se encrespam, ora se suavizam.
Ora se fortalecem, ora se enfraquecem.
Ora florescem, ora desfalecem.

Por isso, o Sábio evita desmedida,


extravagância e arrogância.12

Na visão taoísta, quando desejamos conquistar o mundo, tendemos a agir forçosamente.


No entanto, seria mais razoável que pudéssemos corresponder (因-yin) ao mundo e não intervir (为
-wéi) nele. Há uma diferença entre a ação baseada na correspondência e aquela outra baseada na
interferência. Nesse sentido, a ação mais adequada é respeitar e aceitar a natureza de cada ser.
Geralmente o ser humano tem o desejo ambicioso de querer se assenhorear das coisas, como se
pudesse dominá-las a qualquer custo visando o seu próprio lucro. Todavia, quem comete atos
excessivamente ambiciosos, provoca desequilíbrios e contraria o fluxo natural. É por isso que na
medida em que considerarmos o nosso mundo sagrado (神-shén), estaremos mais próximos de um
estado de ser originário, natural e autêntico. Se percebermos o mundo de modo holístico e dialético,
veremos que a ordem da totalidade natural abarca os aspectos mais contraditórios. Nessa
concepção, as coisas se complementam uma com a outra numa relação de reciprocidade: cada
elemento é considerado como parte organicamente interrelacionado com o seu elemento oposto na
unidade do Todo. Portanto, quem age sob o influxo dessa compreensão dialética-holística, não
privilegia um lado em detrimento do outro como tampouco contraria a ordem da Naturalidade
que perpassa o mundo fenomênico. Nessa perspectiva, os taoistas simplesmente sabem que é
importante retornarmos à Unidade do Dao. Na visão unificada da complementaridade, o ganho e a
perda, a alegria e a tristeza são momentos indissociáveis e essenciais à vida.
O taoísta-budista Su Zhe13 observa que, agindo pelo wúwéi, o sábio segue a Naturalidade
de cada coisa (因万物之自然-yīnwànwùzhīzìrán). No entanto, a maioria das pessoas age com
sagacidade, violando a ordem da Naturalidade que é intrínseca ao mundo na sua dimensão sagrada.
O sagrado é justamente o que constitui a Naturalidade de cada ser. Portanto, o contrário do sagrado
natural só poderá ser algo excessivo que infringe a ordem da totalidade unificada inerente à essência

12
Laozi, cap.29.
13
Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos
comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing:
Xinshijiechuban, 2016, p.100.

12
constitutiva de cada ser. Por isso, como o sábio que segue a Naturalidade, seria mais saudável que
evitemos a desmedida, a extravagância e a arrogância. É por isso que a desmedida (甚-shèn) passa a
ser prejudicial na medida em que se valoriza um aspecto da existência quando agimos sob o
condicionamento de uma atitude parcial. É quando vemos as coisas de maneira unilateral e
ignoramos a tessitura complexa do Todo. Nesse aspecto, é fundamental agirmos em consonância
com o Todo, atuarmos pela Naturalidade do wúwéi e cultivarmos uma relação harmoniosa com o
mundo. Se percebermos o caráter incongruente de certas regras prescritivas e arbitrárias,
perceberemos que a ação mais apropriada seria aquela que corresponde ao fluxo da Naturalidade.
Assim, seria inapropriado nos apegarmos (执-zhi) às coisas, já que estas ora se fortalecem, ora se
enfraquecem, ora se revelam sob um aspecto, ora se revelam sob um aspecto diferente. Se
meditarmos a respeito dessa inconstância, enfrentaremos as contingências da vida com uma atitude
mais serena e suave, e em certo modo, seremos menos perturbados pelas oscilações contrárias tais
como sucesso e fracasso, dor e prazer, ganho e perda, vida e morte. Agiremos simplesmente na
plenitude da Naturalidade, respeitando as mudanças que acontecem no mundo. Manifestando a
eficácia do wúwéi, corresponderemos aos fluxos dos acontecimentos sem que nenhuma coisa seja
contrariada e, sobretudo, compreenderemos que não há nenhum motivo para criarmos
perturbações na harmonia do Todo.

13
A forma da não-forma

No espelho da divindade
sua alma estremecia

No fundo das rochas


cintilava a sua face esculpida

Ilhas e flechas translúcidas


caíam como gotículas de opala

Aquilo que é paradoxal transcende os sentidos e escapa do entendimento. É como uma


imensa barbatana golpeando as correntezas da percepção! Tudo se esvai, a visão se turva e os
ouvidos se ensurdecem! Num intervalo que parece se estender por um século, mal conseguimos
enxergar as ruas e as pessoas que se desvanecem acima da névoa purpúrea. Langorosos vapores se
retesam, suspensos, lívidos, arrastados por algum espírito imemorial. O que é insólito busca o seu
próprio enrubescimento. Uma ínvia recrudescência se congela entre as clavículas. Não obstante,
não se vê nenhuma ferida ou fratura: somente algo resplandece na carapaça do sol, lampejo de ouro,
íris-de-reflexos-escaldantes!

Olhado sem ser visto:


seu nome é invisível.
Escutado sem ser ouvido:
seu nome é inaudível.
Tocado sem ser alcançado:
seu nome é intangível.
Eis os três atributos indefinidos,
confundidos na Unidade.

No alvorecer, não resplandece.


No entardecer, não escurece.
Ininterrupto, inominável,
assim é o retorno do não-existente.

Diz-se que é a forma da não-forma,


a imagem do não-existente, o indistinto.
Ao confrontá-lo, não vemos seu rosto.
Ao segui-lo, não vemos seu dorso.

14
Alcançando o Dao Imemorial,
pode-se conduzir a existência atual.
Conhecer o princípio ancestral:
isso se diz a lei do Dao.14

Em inúmeras ocasiões, percebemos as formas das coisas, porém, o que seria percebermos a
forma da não-forma? Como uma não-forma revelaria a sua forma concreta de modo a deixá-la
visível aos nossos olhos? Quando o mestre Laozi exprime o paradoxo de uma forma da não-forma,
já se percebe a insuficiência da nossa razão discursiva na tentativa de compreender o sentido do
paradoxo! A lógica ordinária conceberia a forma da forma, ou a não-forma da não-forma. Como
então haveria a existência de uma forma da não-forma? Será que, diante dessa presença tão absurda
e enigmática, teríamos de enxergar com outros olhos e ouvir com outros ouvidos? Presos às
correntes de nossas próprias limitações, buscamos exprimir o inexprimível, seja por meio da
linguagem discursiva, seja pela mera percepção sensorial. O que sucede é o fracasso na tentativa de
apreensão do desconhecido.
Somos barrados pela aporias e desilusões.
Todavia, persiste o desejo, a sede e a busca do desconhecido.
Inúmeros percalços ainda sobrevêm a fim de impedir a nossa caminhada. Agoniados,
exauridos, quase desistimos, mas eis que uma fresta de luz incide e insiste, tornando nosso desejo
menos voraz, menos violento. É quando a nossa mente se apazigua no círculo do silêncio e se
condensa em pequeníssimas esferas concêntricas. É quando cessamos a linguagem do discurso que
emerge o ser do Dao, cuja essência diáfana e eterna se manifesta na sua presença fenomênica.
No entanto, ainda que seja perceptível na imanência, seu fulgor indistinto transcende para
além das fronteiras do cognoscível e incognoscível. O ser do Dao resplandece invisível, inaudível e
intangível, repousando na Unidade da Transcendência. É como um astro flamejante, cuja epifania
jamais deixa rastros ao longo das suas aparições, uma vez que nunca se confina às delimitações, às
formas e aos contornos da matéria. Desse modo, se no alvorecer, não resplandece e no entardecer, não
escurece, esse ser considerado em sua condição intrínseca nunca poderia ser limitado pela sua mera
aparição fenomênica. Embora onipresente em todas as coisas, a sua substância não sofre as
limitações da fenomenalidade. Aparecendo em todos os fenômenos, escapa dos condicionamentos
do plano fenomênico. Ainda que se desvele na luz como um ser percebido, sua essência, por mais
que seja inexoravelmente incisiva, jamais será delimitável.
Por outro lado, ainda que seja transcendente, o Dao aparece e revela a sua face imanente.
Daí por que também possamos contemplar a forma da não-forma (无状之状
-wúzhuàngzhizhuàng), isto é, o próprio aparecer da autorrevelação do Dao na medida em que se
manifesta concretamente como uma forma existente que nutre e sustenta a vida de todo o universo.

14
Laozi, cap.14..

15
Ou seja, embora seja a “não-forma”, ele não deixa de existir e estar onipresente em todas as partes (无
所不往-wúsuǒbùwǎng)15. Essa onipresença que, de acordo com Wang Bi, abarca todas as coisas,
essa onipresença é tão incomensurável que somos incapazes de analisá-la e mensurá-la. É por isso
que o Dao é indistinto (惚恍-hūhuǎng). Assim, o que significa a concepção da transcendência do
Dao nesse contexto? Quando se diz que ele é transcendente, isso quer dizer que ultrapassa as
condições espaço-temporais e as suas especificidades distintivas16, e ao mesmo tempo, as limitações
epistemológicas de nossa compreensão ordinária. Porém, seria equivocado interpretarmos a
não-forma como o Nada, como a inexistência. É que o Dao transcende tanto a existência como a
não-existência. Não seria muito razoável dizermos que ele existe ou que ele não existe, pensando
que é a forma ou a não-forma. Seria até difícil classificá-lo, enquadrando-o numa ideia de existência
ou de não-existência. Ou chamá-lo de “forma” ou “não-forma”. De maneira ambígua, Laozi diz que
é a “forma da não-forma”, juntando as palavras “forma” e “não-forma” numa mesma expressão
paradoxal.
Na realidade, o Dao não é uma coisa nem outra. Como algo inominável (无名-wúmíng),
transcende o paradigma da visão dualística que estabelece ideias de oposição como
existência/não-existência, ser/não-ser. É preciso destacar que essa expressão chinesa não-forma (无
状-wúzhuàng) é antecedida pela palavra wú (Vazio) e, então, pode ser traduzida como “destituída de
forma/vazia de forma”. É somente pelo fato de ser vazio e destituído de formas que o Dao pode
abarcar a totalidade de todos os fenômenos. É por isso que o movimento de transcendência não é
negativista ou de oposição à forma, mas o ser-plenitude que aceita todas as manifestações
fenomênicas. Temos aqui apenas a ideia de indeterminação do Vazio, e por essa razão, se o Dao é a
“forma da não-forma”, isso não necessariamente implica numa transcendência abstrata e inacessível,
mas, ao contrário, trata-se de uma dimensão da transcendência imanente e concreta da eficácia, e ao
mesmo tempo, da própria plenitude da indeterminação do Vazio. Assim, sendo transcendente, o
Dao é ininterrupto (绳绳-shéngshéng), o que evidencia o fato de que, embora não seja apreendido
pelos nossos sentidos ordinários, ele continua incessantemente presente, vivo e dinâmico,
atualizando-se desde os primórdios até os dias atuais. Ele é o tempo da eternidade sempre constante
e presente ainda que não consigamos enxergá-lo com os nossos olhos, um presente eterno que além
de ser inominável, a saber, não confinado às nomeações que possamos eventualmente lhe conferir,
no entanto, assume múltiplas formas na atualidade de cada manifestação. Segundo o sábio
comentador clássico He Shang Gong17, sendo sem-imagem (无色-wúsè), sem-som (无声-wúsheng)
e sem-forma (无形-wúxíng), o Dao jamais poderia ser limitado. Sendo essa Unidade

15
Wang Bi e Su Zhe, p.46.
16
Xiong, Wang Bang (王邦雄). Laozi daodejingxingxiandaidejiedu 老子道德經的現代解讀 (Laozi com
comentários e notas). Taipei: YuanShu, 2010, p.77.
17
Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os comentários do Senhor às Margens
do Rio / Laozi; tradução, notas, variantes e seleção de textos de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp,
2016, p.109-110.

16
Transcendente, a sua qualidade fundamental é ser todo-permeante, todo-abarcante. Eis aí algo
paradoxal: na medida em que é sem-forma e vazio, o Dao é capaz de manifestar todas as formas. É
em virtude de ser desprovido de determinação formal que pode ser considerado o princípio criador
e mantenedor de todos fenômenos. Nesse sentido, exprimindo de modo poético que é sem rosto e
sem dorso, ou seja, sem a face de frente e de trás, novamente Laozi está realçando o aspecto
paradoxal da invisibilidade, da indeterminação, e de certa forma, da não-apreensibilidade do Dao.
Mas seria totalmente impossível apreender algo só porque não possui rosto nem dorso, e também
não possui início nem fim? He Shang Gong18 diz que o sábio pode se harmonizar com tal princípio
através da prática da moderação das emoções (情-qíng) e dos desejos (欲-yù). Em outras palavras, é se
tornando vazio que o sábio por uma espécie de assimilação se aproxima da natureza vazia, informe e
transcendente do Dao.
É por isso que o Dao jamais se enquadra nas oposições do dia e da noite, da luz e da
escuridão em virtude de que ultrapassa as formas limitantes de nossa visão dualística e as imagens de
nossa percepção ordinária. Daí por que seja a Unidade na qual aqueles três atributos da
invisibilidade, da inaudibilidade e da intangibilidade se consumam numa mesma essência, cuja
natureza transcende os nossos sentidos e, sobretudo, as limitações de nosso ser cognoscente. Tal
Unidade, para o filósofo taoísta-budista Su Zhe (1039-1112), é a Natureza Originária (本性
-běnxìng), anterior a todas as divisões epistêmicas que os nossos sentidos produziram durante o seu
processo de contato com o mundo. É por isso que é fundamental que retornemos ao estado do Dao
Originário, à tal indiferenciação pura e indivisível. Todavia, esse retorno não é um movimento que
se dissolve, imergindo numa espécie de Nada Absoluto como muitos concebem de maneira
equivocada. Tampouco é o retorno a um lugar situado no além. Trata-se de um retorno ao estado
primordial, autêntico e sagrado, cuja essência é caracterizada como onipresença dinâmica e criadora
do cosmos, onipresença que é perfeição absoluta e indestrutível. Portanto, é o estado de plenitude,
abundância, permanência, eternidade não como algo dissociado do real, mas, ao contrário, como
imanente e presente na “existência atual”.
É ainda um tremendo desafio pensarmos como o Dao imemorial se atualiza concretamente
nas múltiplas formas do devir do mundo, isto é, manifesta a sua eficácia imanente nos fenômenos
da Existência. De fato, isso exige de nós uma séria meditação e não é por outra razão que Laozi
utiliza o verbo conhecer (知-zhī) referindo-se ao conhecimento de tal princípio ancestral. O mistério
consiste em conhecermos tanto a sua “ancestralidade” como a sua “atualidade” num paradoxo que
afronta os limites do cognoscível, pois na medida em que conhecermos a presença imanente do Dao
acolheremos também a sua transcendentalidade, ou seja, perceberemos que nada está fora do
círculo da sua onipresença, nada existe sem que Ele exista, pois em cada coisa se vislumbra a sua
imagem, e no fundo das rochas, contemplamos a sua face ruborizada, a sua luz inefável e a sua alma
ilimitada.

18
He Shang Gong, p. 110.

17
Correspondendo ao Dao do Céu

Um sopro efervescente me atravessa,


e num átimo, sou atirado
ao cume de um gigantesco bloco de gelo.

Sou como a península insuflada


pela plumagem das aves impassíveis.

Repentinamente se descortina dentro do meu coração um mundo repleto de


fosforescências. Se soubéssemos que dentro de nós flameja um fogo inextinguível, voaríamos aos
píncaros das cordilheiras como dragões da perseverança! Eis que num súbito movimento um sol
encrava as suas garras no dorso do tigre e ressoa a voz cristalina do hexagrama Céu:

Notas da mesma escala se correspondem;


Odores de mesma natureza se fundem.
A água flui em direção ao que é úmido,
O fogo se eleva em direção ao que é seco.
As nuvens seguem os dragões;
Os ventos seguem os tigres.19

Enquanto as colinas se contorcem em órbitas elípticas, o Céu e a Terra se acasalam e


derramam um suave orvalho. O semelhante é atraído pelo semelhante. Uma estranha conjunção se
engendra no ventre alquímico. Em pleno voo no céu, um dragão estende as asas da sabedoria e um
homem dilata os olhos rumo ao abismo selvagem.

O homem superior está em harmonia:


Na virtude, com o Céu e a Terra;
No brilho, com o sol e a lua;
No procedimento ordenado, com as quatro estações;
Na boa fortuna e no infortúnio, com os deuses e espíritos.
Pode preceder o Céu, mas não opor-se aos princípios do Céu.
Pode seguir o Céu ao alinhar-se com o tempo do Céu.
Se nem mesmo o Céu se opõe a ele,
Por que o fariam os homens?
E por que fariam os deuses e espíritos?20

19
Veja I Ching, Editora Martins Fontes (tradução para o inglês do mestre chinês Alfred Huang) 2012, p.33.
20
Alfred Huang, p.36.

18
É tempo de harmonizarmos com o Céu, com os seus tentáculos viçosos e rejuvenescidos! O
oráculo professa: “O Céu age com vitalidade e persistência. Assim, o homem superior conserva-se
cheio de vitalidade, sem cessar.”21 Eis a correspondência entre o Dao do Homem e o Dao do Céu.
Se o Céu abarca as quatro direções com o seu abraço ilimitado, o homem superior semelhante ao
Céu cultiva-se a si mesmo na sua força incessante. É por esse motivo que, se conhecermos a nós
mesmos, conheceremos a essência do Dao. Na perspectiva taoísta, como nos revela Laozi, quem se
conhece a si mesmo se torna iluminado e quem conhece a Constância do Dao alcança o brilho
interior da iluminação. Isso significa que a iluminação passa pelo processo de autoconhecimento (自
知-zìzhi) e pelo conhecimento da Constância (知常-zhicháng) que não é senão a atitude de quem
conhece o mundo sem sair de casa. Trata-se de um conhecimento sagrado e essencial que une o Dao
do Homem com o Dao do Céu (天道-tiāndào).

Conheça o mundo
sem sair de casa.

Contemple o Dao do Céu


sem olhar pela janela.

Quanto mais distante se avança,


tanto menos se conhece.

Por isso, o Sábio


conhece sem caminhar,
discerne sem ver,
realiza sem agir.22

Na visão taoísta, como compreendemos a contemplação do Dao do Céu23? Laozi nos diz
que essa contemplação não recorre a algo externo, mas sim se volta para a dimensão interna da
própria pessoa. A única ação necessária é olharmos para nós mesmos. Na medida em que
contemplarmos a nossa morada interior e aquietarmos a mente e os seus movimentos irrequietos,
encontraremos o silêncio mais profundo do templo sagrado. Esse templo não está em nenhum
21
Alfred Huang, p.24.
22
Laozi, cap.47.
23
Na terminologia taoísta, a palavra “Céu” se refere à ideia de Naturalidade (自然-zìrán), ou seja, àquilo
que por si mesmo é enquanto tal. Em outras palavras, o seu significado filosófico traz a ideia de um modo de
ser constitutivo de cada coisa, cuja essência aflora, desenvolve-se e cresce sem que sofra interferência ou
coação externa para que ela venha a ser. Laozi utiliza a mesma palavra “Naturalidade” no seu clássico Dao De
Jing. Cf. Veja os capítulos 17, 25 e 64 na minha tradução. A palavra “Céu” se refere ao Princípio da
Naturalidade (自然-zìrán).

19
lugar externo, mas em nós mesmos. Então, na medida em que praticamos a meditação, começamos
a ouvir uma música inaudível. É necessário que tenhamos cuidado para que nesse momento não
venhamos a ser distraídos pelo próprio fluxo dos pensamentos confusos. É importante ampliarmos
nossa sensibilidade para a escuta do Dao Constante(常道-chángdào)24, permanecendo nesse
recolhimento para que possamos sentir o ritmo de nossa própria respiração e as melodias de uma
música quase insonora. Assim, quando as cordas de nosso coração começarem a reverberar numa
ressonância mais sutil, começaremos a compreender o paradoxo de Laozi: “Quanto mais distante se
avança, tanto menos se conhece.”
O verdadeiro conhecimento reside na dimensão da interioridade. Para alcançá-lo, basta que
estejamos atentos em relação à nossa natureza (性-xìng), escutando a pulsação de nosso coração, o
ritmo de nossos pensamentos, o mar tempestuoso de nossas emoções. Embora haja tantas marés de
turbulência, há uma música levíssima e harmoniosa que circula nas profundezas de nossa mente. E
o sábio é aquela pessoa capaz de escutá-la. Seu corpo sensível ouve essa música quase imperceptível
sem utilizar os seus ouvidos físicos. Ele conhece a essência de cada coisa, porém sem recorrer aos
cinco sentidos e às faculdades ordinárias da mente. É por isso que se diz que o sábio conhece sem
caminhar, discerne sem ver, realiza sem agir. Porém, essa Não-Visão e essa Não-Ação não são uma
negação, uma espécie de renúncia ao mundo, mas um certo desapego em relação ao excesso de
artificialidades. Além disso, o sábio age no mundo sem nenhum desejo de apego em relação à sua
ação. Não busca recompensa nem cria expectativas. Refugiado em si, recolhe-se na sua intimidade e
realmente vê o Dao na sua imanência mais profunda. Onde poderia se encontrar a essência do Dao
senão na sua própria natureza interna? Qualquer expediente a que recorresse se tornaria um mero
subterfúgio ilusório que o desviaria de sua própria essência. Longe de buscar o Dao na superfície
do mundo, o sábio se abriga na morada íntima do seu próprio ser.
De modo análogo, ao invés de perseguirmos as coisas externas a ponto de nos perdermos na
infinidade de tantas aparências ilusórias, seria mais plausível que cultivássemos nosso centro interior
e retornássemos ao Vazio do Dao. Como dizia Wang Bi, o filósofo da Escola do Mistério (226-249
d.C.), se o Vazio do Dao é a Unidade Absoluta Originária da qual vieram todas as coisas, basta que
contemplemos esse princípio transcendente-imanente em nossa natureza íntima. Desse modo,
conheceremos a essência de todos os fenômenos e a essência de nossa natureza como sendo
constituídas pela mesma substância sagrada, e sobretudo, perceberemos a natureza de cada ser
naquilo que possui de essencial25. Portanto, na medida em que abandonamos as aparências
superficiais que povoam esse mundo tão tumultuado, nossa visão interior começará a ser despertada

24
Traduzi por Dao Constante a expressão 常道(chángdào), o que Laozi concebe como o princípio eterno e
criador que cria e rege o universo, princípio imutável, indestrutível e impessoal. Esse princípio é anterior e
ancestral (no sentido cosmológico e ontológico) a todas as manifestações fenomênicas. Convém observar essa
ideia de eternidade e permanência como bem traduziram Giorgio Sinedino (“Dao Permanente”) e Mario
Sproviero (“eterno curso”) em suas traduções brasileiras.
25
Wang Bi e Su Zhe, p.158.

20
de modo que cultivaremos a autocontemplação genuína e, ao mesmo tempo, deixaremos de
interferir excessivamente no curso natural das coisas. Ascenderemos ao Céu como o Sábio Dragão
da Virtude Misteriosa sem ser arrastado pelas exterioridades supérfluas do mundo. Superando as
limitações confusas de nossa mente e evitando o apego às coisas mundanas, estaremos próximos do
conhecimento verdadeiro de nossa Natureza Originária (本心-běnxīn).

21
Nutrindo o Sopro Vital

Numa das histórias cheias de ambiguidade e paradoxo contadas pelo mestre Liezi no seu
Vazio Perfeito, presenciamos a eficácia imanente do poder transcendente do Dao no próprio corpo
de um praticante taoísta. Somos surpreendidos pelo fato de que um corpo pode realizar certas ações
perigosas sem que nada lhe aconteça. É como se, por um lapso de tempo, a pessoa pudesse abolir o
seu modo de ser ordinário e fosse capaz de penetrar num estado diferenciado de existir onde tanto a
mente como o corpo transcendem as condições espaço-temporais. Ultrapassando o plano profano
da existência condicionada, ele imerge na dimensão do sagrado e regressa à sua natureza primordial,
alcançando uma condição ontologicamente superior que é plenamente harmoniosa com a essência
suprema do Dao.

Liezi perguntou a Guan Yin: “O Homem Superior caminha no fundo das águas e nunca se
afoga. Pisa no fogo sem receio de se queimar. Caminha sobre todas as coisas e jamais sente medo. Por
favor, me diga como ele consegue alcançar essa dimensão!”
Guan Yin esclareceu: “É pelo fato de ele preservar o Sopro Vital Puro e não em virtude de
adquirir alguma espécie de inteligência, arte, determinação ou coragem. Ah! Deixe-me lhe esclarecer.
Tudo aquilo que tem aparência, imagem, som e cor é uma coisa, mas por que uma coisa se distingue de
uma outra? Qual é a sua primeira característica? A diferença está na forma. Mas as coisas são
geradas por aquilo que não tem forma e todas as suas transformações se consumam no Vazio.
Alcançando a dimensão desse Princípio Último, como a pessoa sofrerá as limitações externas? Quem
permanece na sua própria natureza, jamais ultrapassando o domínio da Naturalidade e ainda se
refugiando na Lei da Constância, flui com liberdade na realização última de todas as coisas. Ele
unifica sua natureza, cultiva seu Sopro Vital (气-qì), abraça sua Virtude e se harmoniza com a
natureza de todo o Universo. Então, se esse Homem Superior resguarda a Naturalidade e nunca
prejudica seu Espírito, como as coisas poderão agredi-lo? É como um bêbado que cai da carruagem.
Embora tenha caído de modo abrupto, ainda assim não estará morto. Seus ossos e articulações são
iguais aos de outros homens, porém, como ele nunca sofre prejuízo, é uma pessoa diferente em virtude
de seu Espírito se conservar na completude. Por outro lado, com o indivíduo que dirige a carruagem o
mesmo não acontecerá, e por isso, ao cair, ele reagirá de maneira completamente diferente. Entretanto,
no coração do Homem Superior não penetra a percepção da vida e da morte, do medo e do temor, e por
isso, quando ele se encontra diante das coisas, não se atemoriza. Se, no estado de embriaguez, alguém
poderá resguardar seu Espírito, como não seria capaz de resguardá-lo por meio da Naturalidade? É
por essa razão que o Sábio se refugia na Naturalidade e as coisas jamais conseguem prejudicá-lo.” 26

A arte taoista busca a reconexão com o Sopro Vital (气-qì) presente nos nossos órgãos
corporais. Isso significa que por meio do processo de harmonização entre corpo e espírito nutrimos

26
Liezi, p.45.

22
essa energia vital poderosa. Na medida em que cuidamos da preservação e refinamento desse Sopro,
nosso corpo flui no estado de suavidade de um recém-nascido. É por isso que o Homem Superior
age no estado de Não-Mente(无心-wúxīn)27 e se desapega das preocupações excessivas, dos temores
e das expectativas mundanas. Se a nossa mente não abrigar mais nenhuma artificialidade nem forçar
a si mesma para agir, ela também será capaz de manifestar em si a eficácia da Não-Ação. Isso porque
a Virtude Misteriosa atua em nós de modo que as coisas naturalmente sejam geradas sem serem
apossadas, isto é, sem que haja interferência excessiva na natureza originária das coisas. Neutraliza-se
então o sentimento de possessividade. É a partir daí que compreendemos que o nosso Espírito
conectado com o Dao jamais será abalado pelas limitações suscitadas pelas circunstâncias, já que a
nossa mente impregnada pela eficácia daquela Virtude Misteriosa do Dao permanece livre e
tranquila meditando no estado de Naturalidade. Conscientes de que as próprias coisas trazem
consigo a sua potência natural e o seu desenvolvimento autopoiético, bebemos das águas
revigorantes do recém-nascido e nos resguardamos na Natureza Originária. Desabrochando em
nós a pérola de jade, ou seja, a essência sagrada do Dao, comungamos com a natureza do universo e
conquistamos a harmonia interior onde nada poderá prejudicar nosso Espírito (神-shén).
Por isso, agindo no mundo e preservando a nossa completude, testemunhamos em nós a
ação daquela Virtude Misteriosa que faz com que o Homem Superior caminhe no fundo das águas
sem se afogar e que no seu coração não penetre a percepção dualística. Assim, graças a tal eficácia,
ele pode cair da carruagem sem que seu corpo seja machucado. Tal proeza só é conquistada pelo
fato de que ele está vazio. Ao se esvaziar de suas intenções, pensamentos e sentimentos, ele se livra
das suas próprias limitações. Na medida em que não age para si mesmo, o Homem Superior se
autorrealiza na autenticidade. Ao realizar-se a si mesmo de maneira genuína, ele consuma não a
realização de seus interesses egóicos, mas a dimensão mais nobre da Naturalidade do wúwéi. É
evidente que o grande problema se encontra no apego humano e na noção de um Eu egocêntrico.
De maneira análoga, se deixarmos aflorar esse poder da Virtude Misteriosa, alcançaremos o estado
de Não-Mente onde os nossos desejos, sentimentos, pensamentos e crenças ficam livres do cárcere
do egocentrismo. Desse modo, integrando-nos com o universo, não somente evitaremos a disputa
com os outros, como ainda diante das pessoas e situações, agiremos sem pensarmos exclusivamente
nos nossos próprios interesses pessoais. É somente nessa condição de desprendimento que
viveremos uma vida impecável digna de um Homem Superior.

27
No seu comentário à tradução do Vazio Perfeito do chinês antigo para o chinês moderno, Zhuang Wan
Shou afirma que na expressão “O Sábio se refugia na Naturalidade”, Liezi exprime a atitude de cultivar o
estado de Naturalidade da Não-Mente, seguindo o Princípio Absoluto (自然无心,委顺至理也). Cf.
Shou, Zhuang Wan (莊萬壽). Lieziduben 列子讀本 (Liezi com comentários e notas).Taipei:
Sanminhshuju, 2010.

23
Contemplação

Quando fechamos as portas de nossos sentidos e nos recolhemos no silêncio,


contemplamos nosso verdadeiro tesouro interior. Não vemos nada de desordenado, nada de
tumultuado, pois tudo está sereno, em quietude e harmonia. O vórtice dos pensamentos, das ações
e dos sentimentos cessa sua agitação. Quando nos encontramos nesse estado, nasce em nós uma
efusão maravilhosa; dessa efusão emerge um deleite extasiante, do deleite nasce uma doçura inefável
que se irradia por todo o corpo. Contemplamos certos fenômenos (“filhos”), mas o fazemos para
aprofundar no autoexame e na contemplação da essência interior do Dao (“mãe”). Assim,
percebemos que não somos apenas uma mera exterioridade aparente, mas uma profundidade
ilimitada tal como o próprio abismo ancestral de todos os seres.

Há um princípio agindo como mãe do mundo.


Quando se conhece a mãe, conhecem-se os filhos.
Quando se conhecem os filhos, retorna-se para preservar a mãe.

Assim, ao se desvanecer o corpo, não haverá risco.

Cerrando suas entradas, fechando suas portas,


ao se desvanecer o corpo, não haverá como se afligir.

Abrindo suas entradas, dilatando seus transtornos,


ao se desvanecer o corpo, não haverá como se socorrer.28

A mãe do mundo é o princípio do Dao que constitui a totalidade cósmica. É por isso que se
conhecermos essa matriz originária, conheceremos os filhos; por outro lado, se conhecermos essa
essência, conheceremos também as suas manifestações fenomênicas. É esse conhecimento que nos
permite retornar ao estado de pureza originária. Contudo, para realizarmos tal retorno, é preciso
uma reeducação dos sentidos. Para Laozi, isso significa cerrar as entradas (塞其兑-sèqíduì), ou seja,
conservar os nossos cinco sentidos para que as diversas imagens desse mundo caótico não venham a
atormentar a nossa mente. Na medida em que praticarmos constantemente a meditação, nos
desvencilharemos da perturbação mental provocada pelo apego às coisas externas. He Shang Gong29
ressalta que as “entradas” são os olhos que veem excessivamente ou a boca que fala de maneira
excessiva. Quando cedemos às necessidades dos desejos de modo intemperante, ficamos cada vez

28
Laozi, cap.52.
29
Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os comentários do Senhor às Margens
do Rio / Laozi; tradução, notas, variantes e seleção de textos de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp,
2016, p.378.

24
mais “escravizados” e submetidos à exterioridade dos bens supérfluos. Quando esquecemos de
cultivar o que é essencial, dilatamos os transtornos (济其事-jìqíshì) e prejudicamos a nós mesmos. É
nesse sentido que se contemplarmos as coisas pequenas, simples e sutis como nos sugere Wang Bi30,
estaremos em sintonia com a Iluminação (明-míng) cuja essência mesma é a conexão essencial com
o Dao.

30
Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos
comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing:
Xinshijiechuban, 2016, p.174.

25
Moderação

A filosofia taoísta preconiza o princípio da moderação (啬-sè) que traz os benefícios à saúde,
reduzindo os desgastes, os desequilíbrios e as instabilidades emocionais. Amando o Espírito (精神
-jingshén), diminuímos o uso excessivo dos órgãos dos sentidos corpóreos e evitamos as distrações
da divagação mental-discursiva. Praticando a arte do estado de wúxin (Não-Mente) e de wúwéi
(Não-Ação), vivemos uma existência mais integrada com a dimensão espiritual. A palavra chinesa
“moderação” empregada no contexto taoísta significa “cuidado e valorização daquilo que é
essencial” (爱惜-àixi) no sentido de “frugalidade” (俭省-jiǎnshěng) e de precaução contra o
desperdício da energia físico-mental que ocorre quando há a excessiva interferência da mente e da
ação forçosa31.
Imaginemos uma pessoa que trabalha excessivamente, sem repouso e descanso, preocupada
apenas com os afazeres exteriores e mergulhada em conversas mundanas. Desfrutando de prazeres
momentâneos, essa pessoa sempre está falando mal das outras pessoas e ostentando o brilho falso da
sua inteligência. Ora se desanima com uma situação, ora se enaltece numa alegria desmesurada.
Volúvel, insegura, oscila entre aborrecimento e regozijo. Nunca para de resmungar contra as
próprias circunstâncias. No entanto, ao invés de se conscientizar de seus estados de inconstância, ela
prefere continuar sendo guiada pelos comandos externos, ou se sentindo vítima como uma
marionete presa numa bolha estática. Conformada às situações que lhe aparecem, sente-se coagida
pela roda da fortuna e jamais se conscientiza da volubilidade de seu próprio estado de ser. Esse
círculo vicioso de emoções, sensações e pensamentos inconstantes só a levam a denegrir o valor da
vida e do conhecimento. Se examinarmos de maneira objetiva a vida da maioria das pessoas,
veremos o quanto é tolhida por artificialismos, hábitos mecanizados, incongruências, marés de
dissabores e contradições desmedidas. Uma mixórdia total! Por exemplo, num determinado
momento ela deseja fazer isso, mas, num outro momento, já muda de ideia e abandona o desejo
inicial. Tudo nela se torna volátil, inconsistente num estilo de vida marcado por tantas flutuações.
É por esse motivo que nada de sólido e vigoroso florescerá num terreno tão movediço!
Nesse sentido, o exercício da moderação no dia a dia passa a ser uma prática de meditação ativa e
consciente. Não adianta praticarmos duas ou três horas de meditação sentada se depois no dia a dia
acusamos os outros. Não adianta praticarmos uma hora de Tai Chi, mas, em seguida, inflamados
pelo fogo da arrogância, menosprezamos as outras pessoas. Não adianta rezarmos ou venerarmos
uma determinada divindade, mas, quando nos encontramos com os outros, ficamos agitados pelo
medo, desconfiança, raiva e ressentimento. Tais inconsistências não raro acontecem e mesmo até
quando a nossa vida transcorre em situações favoráveis.

31
Yi, Wu Hong (吴宏一). Laozixinshi 老子新释. (Nova interpretação de Laozi). Taipei: Yuanliu, 2017,
p.296.

26
Para governar as pessoas e servir ao Céu,
não há nada como a moderação.

Somente com a moderação age-se em concordância.


Agir em concordância é acumular a Virtude.

Estimando o acúmulo da Virtude,


não há nada que não se possa conquistar.

Se tudo é conquistado,
então não haverá limitações.

Não se conhecendo limitações,


então se pode adquirir o reino.

Com a mãe do reino, é possível perdurar.


Isso se diz a raiz profundamente plantada:
o Dao da Vida Perene e da Visão Duradoura.32

Para praticarmos a naturalidade do Dao (“Céu”) e estarmos em harmonia com o mundo,


precisamos cultivar a moderação no dia a dia no que diz respeito às nossas sensações, pensamentos,
sentimentos e crenças. Laozi sugere a prática de acumular a Virtude (积德-jidé) que não é senão
cuidar e nutrir a energia originária do recém-nascido num processo de amadurecimento. Assim,
trata-se de um cultivo constante, de uma prática disciplinada onde retornamos ao estado de silêncio
consciente e meditamos diariamente sobre a inconstância de nossos pensamentos e sentimentos de
modo que não mais estejamos apegados a eles. Somente sob essa prática constante de purificação,
sentiremos aflorar pouco a pouco a potência da Virtude Originária cuja força vital fomos perdendo
ao longo de nossa existência. Essa Virtude Misteriosa é o próprio wúwéi na sua eficácia cotidiana no
momento em que agimos com atenção, com a plena consciência do corpo e da mente, sem
querermos interferir demasiadamente nas pessoas e nos acontecimentos. Ora, quem age com
desatenção e excesso de interferência, obstrui o fluxo natural e provoca distúrbios desnecessários. É
evidente que a principal causa dessa atitude surge da busca gananciosa pelos bens externos, como
riqueza, fama ou qualquer outra satisfação mundana. A nossa mente não sossega enquanto não
obtém aquilo que deseja. Por exemplo, se examinarmos uma pessoa que a todo momento deseja
vencer e derrotar os outros, perceberemos como é insano e prejudicial esse comportamento
desmedido. Contudo, se essa mesma pessoa puder diminuir o desejo de competitividade, agirá com
mais Naturalidade e estará menos atormentada.

32
Laozi, cap. 59.

27
Portanto, se agirmos com Virtude, pouco a pouco desaparecerão as dificuldades. Estando
mais flexíveis, concederemos liberdade de ação ao próprio desenvolvimento natural das coisas. E,
agindo no estado de wúxin e wúwéi, o mundo fluirá conosco num estado harmonioso. Isso porque,
cultivando a essência originária do Dao, retornamos à Mãe Nutridora de todas as coisas. É assim
que perduramos numa vida longeva (长久-chángjiǔ), uma vez que, assemelhando-se ao Dao do
Céu e ao Dao da Terra que não vivem apegados a si mesmos, nutrimos uma existência próspera e
revitalizante. É como se passássemos a beber das águas revitalizantes da Fonte Originária. Nesse
sentido, a prática da moderação permite a união do Dao do Homem (人道-réndào) com o Dao do
Céu (天道-tiandào). Em última instância, significa que quando nos integramos com a energia
espiritual da Naturalidade do Céu, meditamos em harmonia com o Princípio do Dao Constante a
tal ponto que desvanecem as ervas daninhas e as perturbações causadas pela inconstância humana33.
Sentimos cada vez mais a abundância de tesouros no domínio de nosso reino interno, e sobretudo,
com a arte da moderação, a Constância do Dao se faz cada vez mais presente no dia a dia. Uma
quietude interna e inabalável emanará de nosso coração enraizado no Dao da Vida Perene e da
Visão Duradoura (长生久视之道-chángshēngjiǔshìzhīdào).

33
Assim se exprime Wang Bi alertando para as ervas daninhas que surgem no terreno do cultivo. Cf. Wang Bi
e Su Zhe, p.196.

28
Abrace a simplicidade do sábio

Das brasas evanescentes


ressurge minha fronte austera:
ígnea serpente margeando a encosta.

Como nada mais me contivesse,


eu era apenas a concha aérea e vazia.

Podemos viver de maneira mais simples? Com o predomínio da cultura do dispêndio


excessivo, o estado de ser da simplicidade (朴-pǔ) se torna um modo eficaz de reduzir as nossas
superfluidades. É nesse sentido que Laozi nos diz que a santidade e a inteligência, a Benevolência, a
Retidão, a astúcia e o ganho são consideradas condições insuficientes para nos harmonizarmos com
a essência do Dao. Se desejamos vivenciar o Dao basta agirmos na simplicidade e evitarmos o
excesso dos desejos. A santidade, a inteligência, a Benevolência e a Retidão se tornaram valores
artificiais e adereços adicionados à reputação de um indivíduo. É por isso que, além de serem
condições extrínsecas e superficiais, podem gerar ainda apegos desnecessários que impedem o fluxo
da Naturalidade.

Quando abandonarem a santidade e a sagacidade,


o povo será cem vezes beneficiado.

Quando abandonarem a Benevolência e a Retidão,


o povo regressará ao amor filial.

Quando abandonarem a astúcia e o ganho,


não haverá roubos e nem assaltos.

Essas três sentenças refinadas não bastam,


pois, é preciso incluir as tais condições:
contemplar a pureza, abraçar a simplicidade,
diminuir os interesses e moderar os desejos.34

É por isso que Su Zhe e Wang Bi35 sublinham que a artificialidade provocada pelas virtudes
confucianas da Benevolência (仁-rén) e Retidão (义-yì) se torna um empecilho na manifestação da
simplicidade natural que já se encontra no interior de nossa Natureza Originária. Mas por que

34
Laozi, cap.19.
35
Wang Bi e Su Zhe, p.63-65.

29
ocorre essa crítica à artificialidade causada pelas virtudes confucianas? Segundo Wang Bang
Xiong36, Laozi está criticando a figura do falso virtuoso presente nos seguidores posteriores de
Confúcio que diluíram o ensinamento do mestre em receitas normativas a serem seguidas de
maneira rígida, artificial e forçada. Essa figura que se dissimula por trás da máscara da virtude se
apropria dos valores da santidade (圣-shèng) e da sagacidade (智-zhì) com o objetivo de obter
reconhecimento social, fama e poder. É evidente que se alguém quiser ostentar uma falsa identidade
diante dos outros, incorrerá numa espécie de ação artificial/forçosa gerada pelo apego (执着
-zhízhúo) e que tem como causa fundamental a ação da interferência mental (有心-yǒuxīn). Nesse
caso, as qualidades de “santidade” e de “sagacidade” são como uma falsa auréola de virtude que faz
com que um indivíduo se torne excessivamente orgulhoso de si mesmo. Por consequência, esse
indivíduo se torna cada vez mais artificial, presunçoso e egocêntrico.
Ainda nos dias atuais vivemos sob a lógica compulsiva da ostentação e da artificialização das
relações humanas. É fundamental que nos afastemos das manobras astuciosas que se camuflam por
detrás da falsa santidade e da sagacidade. Assim, na medida em que regressamos à pureza do amor
autêntico, libertarmo-nos das amarras do apego e da artificialidade. Se cultivarmos a contemplação
da pureza (见素-jiànsù) e a moderação dos desejos (寡欲-guǎyù), manifestaremos a filialidade
natural em que não haverá mais nenhum fingimento forçoso. É nesse aspecto que os taoístas
compreenderam que a mentalidade artificiosa se apega ao reconhecimento social a partir de uma
falsa construção identitária. Isso acontece quando a nossa mente, criando uma imagem ilusória de si
mesma, se enclausura numa máscara de benevolência e, ao mesmo tempo, exibe a sua exterioridade
superficial. É esse artificialismo que também suscita o apego à astúcia e ao ganho que, por sua vez,
somente nos levam a agir numa lógica de competitividade e de acumulação de riquezas supérfluas.
A Benevolência e a Retidão são virtudes sociais do confucianismo criticadas nesse contexto, porque
se engessaram em valores convencionais e artificiais, estando longe de serem manifestações da
Naturalidade do Dao. É evidente que Laozi não está desvalorizando a Benevolência e a Retidão em
si mesmas, mas está criticando o apego a essas virtudes. Assim, se abandonarmos a inteligência
calculista e a bajulação baseada na relação de troca de favores, retornaremos ao estado de wúwéi (无
为-Não-Ação), ou seja, ao estado de Naturalidade. Consequentemente, ao nos afastarmos do
egoísmo e moderarmos nossos desejos, estaremos mais próximos do estado de madeira
não-trabalhada que é a pureza da Mente Originária. Na medida em que purificarmos a mente e os
sentidos do corpo, evitando o egocentrismo e a busca das coisas supérfluas, estaremos mais
próximos da essência da simplicidade em harmonia com a pureza originária da vida e do Dao.

36
Xiong, Wang Bang (王邦雄). Laozi daodejingxingxiandaidejiedu 老子道德經的現代解讀 (Laozi com
comentários e notas).Taipei: YuanShu, 2010, p.95-97.

30
Penetrando no Vazio

O livro do Imperador Amarelo diz: “Quando uma forma se move, não gera uma forma, mas
uma sombra. Quando um som se agita, não gera um som, mas um eco. O que não se move não gera o
Nada, mas a Existência. Tudo que tem forma se desvanece. Não obstante, o Céu e a Terra se
desvanecerão? É evidente que o Céu e a Terra chegarão ao fim tanto como nós. Mas o fim é definitivo?
Eu não sei. O Caminho (Dao), em sua condição originária, completa seu percurso retornando ao que é
sem-princípio e penetrando no Vazio. O que possui vida retorna àquilo que é sem-vida. O que possui
forma retorna àquilo que é Informe. Mas o que não possui vida não é, em sua condição originária,
‘uma coisa sem-vida’. O que não possui forma não é, em sua condição originária, ‘uma coisa informe’.
De acordo com a lei natural, a vida humana deverá chegar ao fim. Desse modo, o que é suscetível à
morte necessariamente findará, tanto como o que é suscetível à vida jamais deixará de nascer e viver.
Se alguém deseja que a vida perdure eternamente, estará totalmente iludido. Pois, assim como o
Espírito pertence ao Céu, os ossos pertencem à Terra. De maneira análoga, aquilo que é esparso e puro
pertence ao Céu, enquanto o que é denso e impuro pertence à Terra. Quando o Espírito e o corpo se
separarem, ambos retornarão à sua Verdadeira Condição. Eis o que quer dizer a palavra ‘Espírito’,
cujo significado é Retorno à Verdadeira Morada. O Espírito retornará à sua origem enquanto os ossos
retornarão à sua raiz e, nesse sentido, como poderíamos afirmar ainda a existência de um Eu?"37

A partir desse trecho, Liezi nos mostra que todas as formas de vida nascem e morrem. Ele
constata que aquilo que possui forma (形–xíng) deve chegar ao fim (必归终者也
-bìguīzhōngzhěyě). De maneira análoga, a existência humana também chegará ao fim de acordo
com o princípio inexorável da vida. É imprescindível refletirmos sobre essa necessidade natural que
se manifesta em todos os fenômenos. Entretanto, se todas as coisas surgem e desaparecem e nada
perdura para sempre, a única coisa que jamais perece é o Dao (道). Nesse sentido, contemplando o
curso natural das coisas, percebe-se que a vida e a morte pertencem à ordem ou ao princípio (理–li)
do próprio Dao, e que também o corpo e o espírito retornam (归-guī) à sua condição verdadeira
(真–zhēn). Após a separação entre corpo e espírito, o primeiro retorna à Terra e o segundo retorna
ao Céu.
É por isso que não há o motivo de nos apegarmos à existência de um Eu limitado, particular
e perecível, visto que haverá o retorno ao Vazio do Vale, cuja imagem metafórica simboliza o Dao
Constante no seu estado de transcendência. No entanto, como sabemos, não se trata de um
movimento de recusa do plano da imanência, uma espécie de negação da vida e do mundo, o que
chamamos frequentemente de uma concepção niilista. Ao contrário, trata-se de um modo de vida
baseado no princípio da simplicidade, associado com a prática da contemplação e da moderação.
Mesmo sabendo que o corpo físico é uma forma perecível, isso não significa que necessariamente
tenhamos de menosprezá-lo. É que no processo do autocultivo espiritualizamos o corpo e

37
Pág.19 do Vazio Perfeito.

31
corporificamos o espírito de modo a alcançarmos a harmonização entre corpo e espírito numa
dimensão elevada de ser.
Nesse sentido, Liezi não valoriza nem subestima o corpo físico. É evidente que o corpo não
é a única realidade absoluta. Isso porque os mestres taoístas cultivam o cuidado do corpo em
conexão profunda com o seu próprio Espírito e a essência do Dao. Sabem que alcançarão, após a
morte do corpo físico, uma outra dimensão imortal onde um novo corpo imutável surgirá devido
ao seu processo de cultivo do Sopro Vital (气-qì) em estreita correlação com a natureza vasta e
eterna do Espírito (神-shén). É evidente que essa comunhão com o estado supremo do Dao e com o
Espírito Sagrado implica no retorno à condição do “recém-nascido” cheio de potência vital. Esse
estado de recém-nascido não é um estado de infância literalmente falando, ou uma espécie de estado
mental pueril, mas sim um estado de Vazio-Plenitude de potência. O recém-nascido significa a
essência da plenitude vital que é a força da Existência presente em todos os seres, ou seja, a face
imanente do Dao, aquilo mesmo que é a força essencial do movimento dinâmico da vida. Se nos
assemelharmos ao recém-nascido cheio dessa eficácia da Virtude, ou seja, se cultivarmos o estado de
ser da Naturalidade, enraizando-se no estado harmonioso do wúxin (Não-Mente) e do wúwéi
(Não-Ação), todas as falsas barreiras erguidas entre os seres vivos simplesmente desaparecerão e
assim nem haverá mais ameaças e desejos de prejudicar os outros. Consequentemente, nem mesmo
correríamos o risco de sermos atacados. É na medida em que desejamos ultrapassar o nosso domínio
autêntico, querendo se comparar com os outros, disputando e confrontando-os que possibilitamos
o surgimento de situações indesejáveis nas quais eles facilmente podem nos atacar.
Nesse momento, podemos refletir sobre a razão pela qual somos impedidos de retornar ao
estado de recém-nascido. Por que esse bloqueio acontece? Penso que essa é uma pergunta crucial
para começarmos a identificar quais são os obstáculos que barram nosso caminho, os espinhos que
prejudicam a mente e o corpo, ou seja, quais são as barreiras epistemológicas e mentais que
obstruem o nosso processo de “retorno” ao Dao. Ao meditar sobre essa questão, penso que, dentre
inúmeras observações do mestre He Shang Gong, há uma que me parece extremamente valiosa. O
ponto essencial está na expressão “visão do mistério” (玄览-xuánlǎn) do capítulo 10 do Dao De
Jing que já nos remete ao significado profundo daquilo que diz He Shang Gong38: “O sábio deve
acolher o Dao em silêncio e buscá-lo com o espírito”. Portanto, a forma adequada para nos
aproximarmos do Dao é o silêncio praticado durante a meditação sentada, pois nem os cinco
sentidos nem a razão são meios suficientes para alcançarmos a dimensão do Dao Inominável. Assim,
na medida em que praticamos de modo mais frequente essa meditação no silêncio, mais nos
sintonizamos com o estado de ser do recém-nascido. É esse o estado autêntico do Dao, onde sempre
estávamos e estaremos, pois, trata-se de um estado não-ordinário de consciência onde não há mais
racionalização nem a percepção limitada dos órgãos sensoriais.
De acordo com Wang Bang Xiong, esse estado seria a plenitude da Harmonia (和-hé) e da
Constância (常-cháng), onde como seres em renovação permanecemos num estado de equilíbrio do

38
He Shang Gong, p.110.

32
Sopro Harmônico do Vazio. Esse estado primordial, autêntico e originário de ser é a essência inata,
natural, luminosa e autoexistente que existe como pérola preciosa no coração de todos os seres.
Vê-se aí uma semelhança com o Budismo Chan, pois como dizia o mestre do Budismo Chan, Yong
Jia (séc.VII d.C.), autor do clássico O canto da Iluminação (证道歌-zhèngdàoge)39: “Se
compreendermos o corpo de Buda, não existe mais nada. Fonte originária, nossa própria natureza é
o puro e verdadeiro Buda (法身觉了无一物, 本源自性天真佛-fǎshēnjuéliǎowúyīwù.
běnyuánzìxìngtiānzhēnfú).” Em outras palavras, quando acontecer a epifania revelando nossa
verdadeira natureza (性-xìng), não haverá mais nenhum dualismo entre forma (色-sè) e vazio (空
-kong), visto que não ocorrerá nenhuma discriminação mental, e simplesmente perceberemos que a
forma fenomênica é vazia e o vazio é a forma fenomênica. Como observa o mestre Deshimaru:

Não existe, portanto, dualismo entre shiki (fenômeno) e ku (vazio). O próprio fenômeno é
verdade, nosso próprio corpo torna-se cósmico. Se nosso corpo não existisse, não poderíamos realizar a
vida cósmica, materializá-la como fenômeno. Sem uma prática através do nosso corpo, não podemos
alcançar o estado de Buda. Se os homens não existissem, não haveria necessidade de Deus ou de Buda.
Por isso, não devemos procurar esses conceitos no além, no outro mundo. Eles existem aqui e agora, no
nosso corpo e no nosso espírito. Durante o zazen (meditação), você é Deus ou Buda: não pense com o
cérebro, com a consciência, mas com o corpo inteiro.40

Durante a meditação, alcançamos - mesmo que por alguns instantes - o estado do Vazio,
onde nosso corpo se une com a totalidade cósmica do Dao. Em lampejos fulgurantes, sentimos que
o Dao pulsa dentro do santuário do nosso corpo onde sempre esteve e estará presente nesse estado
primordial não-nascido e não-morrido. Ele é o corpo eterno, o corpo imortal de nossa condição
originária. Transfigurado pela visão do mistério, esse corpo funde em si as oposições entre sujeito e
objeto, entre o ser transcendente e o mundo imanente, isto é, todas as dicotomias possíveis da
realidade. Eis aí a Unidade autêntica inominável que os mestres taoístas chegam a saborear na
plenitude da sabedoria natural. Nesse longo processo de cultivo da Constância, quando a nossa
mente e o corpo não quiserem mais ferir o Sopro Vital (气-qì), deixaremos de sentir a necessidade de
competir com os outros. Quando praticamos a meditação no silêncio e na plenitude da pura
essência, realizamos a dimensão da harmonia interior, aquela união alquímica entre corpo e
espírito. Tal atividade alquímica se refere à nossa autêntica transformação no sentido de evitarmos a
dispersão nas coisas externas, o apego às ações artificiais, às disputas e às rivalidades supérfluas. Por
outro lado, se nos desgastarmos em atividades excessivas, estaremos nos afastando do estado do
Vazio e correndo o risco de uma morte prematura. Isso porque, segundo Liezi, a mente humana
apegada às aparências externas desgasta continuamente a sua essência vital ao invés de cultivá-la e

39
Yoka Daishi (Yong Jia), Shodoka - O canto do satori imediato, tradução e comentários do mestre
Deshimaru Roshi, de Chiu Yi Chih. Editora Pensamento, 1978, p.20.
40
Yoka Daishi, p.21-22.

33
refiná-la no processo de meditação alquímica. Em outras palavras, no seu apego excessivo, a mente
dispersiva leva o indivíduo a perder a conexão com o estado de Naturalidade, provocando
rapidamente o seu definhamento precoce. Portanto, é somente nessa conexão com o Princípio do
Espírito que retornaremos à potência vital do recém-nascido cuja manifestação mesma é o estado de
Naturalidade (自然-zìrán).

34
Seguindo o Decreto do Céu

A verdadeira meditação reside no processo de autoconhecimento. É nessa atividade de


autoconhecimento que se revela nosso eu autêntico. Deixamos de nos apegar à exterioridade do
mundo e começamos a nos desprender daquela ação forçosa que apenas deseja intervir nas coisas de
modo totalmente artificial. Daí por que o wúwéi se torna a nossa autêntica naturalidade. Vejamos
um exemplo muito nítido dessa ação do wúwéi numa história contada pelo mestre Liezi:

Confúcio estava contemplando as cascatas em Lu Liang. As águas caíam de uma grande


altura e a corrente espumosa salpicava por todos os lados. Embora houvesse tartarugas, crocodilos e
peixes que impediam alguém de nadar ali, ele percebeu que havia um homem nadando. Imaginou
que estivesse querendo se matar e pediu ao seu discípulo que fosse até lá para salvá-lo. No entanto,
aquele homem já havia nadado por uma longa distância. Com cabelos longos atirados para trás, ele
até cantava, aproximando-se das margens.
Chegando perto dele, Confúcio comentou: “As águas de Lu Liang são altíssimas, com duzentos
metros, e a corrente espumosa salpica por todos os lados. É impossível nadar nesse lugar com
tartarugas, crocodilos e peixes. Vi você nadando, pensei que estivesse sofrendo a ponto de se matar, e
então, pedi ao meu discípulo que fosse até lá para salvá-lo. Você saiu das águas e cantava com os cabelos
atirados para trás. Logo, pensei que fosse um Espírito, porém, vendo-o, percebi que era uma pessoa. Por
favor, gostaria de saber se há um método (Dao) para nadar?”
“Não. Não sigo um método.” – respondeu-lhe o homem. “Começo adaptando-me à Condição
Originária, vou seguindo e me harmonizando com a natureza das águas, e por fim, realizo-me com o
Decreto do Céu. Assim, posso afundar junto com a queda turbilhonante das águas e emergir com a sua
ascensão. Desse modo, sigo o Caminho (Dao) da água sem o esforço da minha vontade: eis o meu
caminho!”
Novamente Confúcio perguntou-lhe: “O que significa adaptar-se à Condição Originária,
seguir e se harmonizar com a natureza das águas, e por fim, realizar o Decreto do Céu?” Por fim, o
homem disse: “Ao nascer na terra, caminho em paz com a terra: eis a Condição Originária; ao
harmonizar-me com as águas, sigo em paz com as águas: assim é a Natureza Originária. Não sei a
razão disso: assim é o Decreto do Céu.”41

Observem que a personagem que segue o Caminho da água sem o esforço da vontade age
de acordo com a Naturalidade, ou seja, sem o modo de interferência mental que obstruiria os fluxos
do Dao. Esse conhecimento do Caminho não é um mero entendimento, mas uma compreensão
profunda de nossa Natureza Originária. Assim, alcançamos a plenitude da autorrealização quando
deixamos de agir com imposição e nos harmonizamos com a essência do universo. A história traz
uma força simbólica no sentido de mostrar que é possível a nossa integração com a essência do

41
Página 57-59 do Vazio Perfeito.

35
universo. Como seria possível que alguém pudesse nadar no meio de crocodilos, peixes e tartarugas
sem correr nenhum risco de morte? O segredo como nos revela Liezi consiste na harmonização
completa com a natureza de cada coisa com a qual nos encontramos em uma dada situação. Ao
invés de prejulgarmos uma pessoa ou um evento, seria mais apropriado que contemplássemos
aquilo mesmo que se revela diante dos nossos olhos. Com uma presença mais íntegra e imersa na
conjuntura, seguiremos com maior fluidez o caminho da naturalidade, isto é, aquilo que os taoístas
simplesmente chamaram de Dao ou de Decreto do Céu (天命-tianmìng).
O mais paradoxal é que tal Decreto do Céu é tanto transcendente como imanente. Embora
esteja continuamente presente em todas as coisas, ele transcende e escapa às nossas tentativas de
defini-lo. Assim, devido ao seu aspecto de transcendência, nunca esgotaremos a compreensão de sua
essência através de nossos órgãos sensoriais ou de nossa linguagem conceitual. Sendo independente e
indestrutível42 na sua dimensão transcendente, ele é o Informe do qual se originaram todas as
formas concretas do mundo. Ao escapar de quaisquer limitações formais, esse Dao Informe
dificilmente será demarcado pelas categorias mentais de nossa construção intelectual e tampouco
poderá ser completamente apreendido pelos nossos sentidos físicos. Isso traz uma implicação
filosófica importantíssima para a compreensão da visão taoista. Em virtude de sua independência e
de seu caráter de ser absolutamente ausente de determinação, esse Princípio jamais poderá ser
delimitado por uma forma ou nome particular, e por isso, sua essência mesma consiste em ser uma
incógnita inominável. Daí por que o personagem de Liezi confessa que não possui um método,
evitando uma explicação racionalista sobre a eficácia do Dao manifestada no mundo.
No seu mistério, o Dao não é apenas o Vazio Inominável como também é a Existência de
todos os fenômenos. Tanto o Vazio (Transcendência) como a Existência (Imanência) constituem
esse mesmo Princípio do Dao. Em outras palavras, se o Dao possui essa ambivalência de ser a
dimensão imanifesta e virtual da Essência, e a um só tempo, a dimensão manifesta e fenomênica da
Existência, se quisermos experimentá-lo na sua imanência, precisamos nos desprender dos limites
fixos de nossa identidade, assim como também dos hábitos e condicionamentos de nossa mente.
Somente desse modo penetraremos pouco a pouco na vastidão de sua potência ilimitada e
contemplaremos o devir imperceptível do ser da Naturalidade.
No seu aspecto incognoscível, o Dao é o Vazio ilimitado e potente considerado como uma
fonte imperecível. É a essência da vida que nunca morre, a Fêmea Misteriosa no sentido de uma
fonte vital nutridora cuja força metafísica é gerar e propagar a vida de modo abundante. Para o
mestre Wang Bi43, o vazio em sua natureza de silêncio é inominável e indefinível pela nomeação.
Laozi o chama de Fêmea Misteriosa, a Porta-Raiz do Céu e da Terra cuja metáfora, como diria o
mestre Su Zhe, é ser a raiz originária feminina dotada de função vital e nutridora. É o próprio Dao
que na sua condição de fonte criadora atua com eficácia infinita. É nesse momento que somos

42
独立不改(dúlìbùgǎi) é a expressão que encontramos no capítulo 25 do Dao De Jing de Laozi, quando
vemos que o Dao é solitário (independente) e indestrutível.
43
Wang Bi e Su Zhe, p.21

36
levados a meditar no Princípio Imutável que transmuta os seres sem ser jamais transmutado. É que
na sua imortalidade absoluta essa quintessência resguarda em si a plenitude da vida infinita. Por
meio dessa característica de imutabilidade somos induzidos a contemplar a presentificação da
vastíssima potência do Dao, força latente e infindável que transcende as nomeações, os rótulos, os
sentidos e as limitações de nossa compreensão ordinária.
Não é por outra razão que o mestre Liezi chama a atenção para o fato de que podemos
seguir em harmonia com o Decreto do Céu (天命-tianmìng). Observa-se aqui a ênfase na confiança
no Destino ou Decreto do Céu como um modo de ser que não se baseia mais na concepção
diferenciadora entre o que é (是-shì) e o que não é (非-fēi): ao invés de uma mera aceitação passiva,
descortina-se um modo de ser autêntico e vivo. Portanto, se estivermos em harmonia com a
Natureza Originária tanto interna como externamente, seguiremos simplesmente com confiança e
naturalidade a Ordem (理-lǐ) total, vasta e genuína da realidade do próprio Dao. Não se trata de um
relativismo inconsequente, mas de uma compreensão holística de que há uma dimensão da
realidade que transcende as nossas conceituações dualísticas e os nossos condicionamentos
epistemológicos.

37
A eficácia da Não-Ação

Quando nos harmonizamos com o Decreto do Céu, seguimos os fluxos da Naturalidade e


agimos no wúwéi (Não-Ação), o que não significa que permanecemos passivos, inativos e
resignados. É que o modo de ser do wúwéi é a própria eficácia imanente da Naturalidade. Em outras
palavras, a própria Não-Ação manifesta uma eficácia concreta, um poder efetivo e real. Daí por que,
na análise de Wang Bi44, sendo a própria Não-Ação, o Dao é a Naturalidade (自然-zìrán) cuja
natureza mesma é a simplicidade com que age no sentido de pacificar (“moderar”) os desejos e as
discórdias que porventura venham a ocorrer sob o efeito da lógica de dominação. Nesse momento,
surge-nos uma questão fundamental: como podemos manifestar a potência do wúwéi? O próprio
Laozi nos esclarece:

O Dao é a Constante Não-Ação,


porém nada deixa por fazer.

Se príncipes e reis pudessem resguardá-lo,


todos os seres por si mesmos se transformariam.

Se, na transformação, eles desejarem agir,


eu os pacificarei com a simplicidade inominável.

Na simplicidade inominável não há desejos.


Na serenidade desprovida de desejos,
o mundo por si mesmo se sustenta.45

Como observa Wang Bang Xiong46, o Vazio é a Não-Ação (无为-wúwéi) e o seu “nada
deixar por fazer” é a eficácia de sua própria essência. No estado de wúwéi, o Dao manifesta a eficácia
ilimitada de nutrir todos os seres sem desejo de dominação. Com efeito, se no plano ético-político,
os governantes seguirem esse princípio da Naturalidade, todos nascerão, se desenvolverão e se
transformarão por si mesmos (自化-zìhuà) em plena liberdade. Caso eles desejarem agir com
artificialidade, isto é, desejarem conquistar com desejo (欲-yù) e força (强-qiáng), então será possível
pacificá-los e conduzi-los ao estado de não-desejo (无欲-wúyù). Com a simplicidade inominável, o
próprio sábio é capaz de remover todas as impurezas dos apegos relacionados às crenças parciais, ao
poder, à fama e aos bens supérfluos. Laozi não está negando a necessidade de possuirmos os bens

44
Wang Bi e Su Zhe, p.122.
45
Laozi, cap.37.
46
Wang Bang Xiong, p.165.

38
externos, mas o excesso de apego da mente a tais bens. Não se trata de supressão ou repressão dos
desejos (negativismo), mas de moderação.
É que por meio do cultivo do desapego aos excessos alcançamos uma outra dimensão mais
valiosa, uma outra plenitude que floresce no caminho do retorno à nossa raiz vital. Nesse retorno à
raiz, acontece a epifania do silêncio sem desejos, a profunda iluminação, ao mesmo tempo que
outro fenômeno paradoxal: o mundo por si mesmo se sustenta (自定-zìdìng). Em outras palavras, o
mundo por si mesmo fluirá na dimensão da Naturalidade sem ser forçado. Nesse caso, o mundo por
si mesmo se pacifica (自然安定-zìránāndìng). Percebemos que o mundo se autoproduz e se
autodesenvolve seguindo o princípio da Naturalidade, princípio esse que é intrínseco a todos os
seres, manifestando-se como a eficácia imanente da Virtude Misteriosa. É essa mesma Virtude
Misteriosa que gera sem o sentimento de apego, numa espécie de eficácia poderosa que age sem agir,
atualizando no real aquilo que estava na sua virtualidade latente. Vislumbra-se aí precisamente a
eficácia que emana da essência transcendente do Vazio do Dao Constante, já que uma das
características fundamentais da ambivalência do Dao é o fato de ele ser tanto Vazio como
Existência, isto é, tanto a Transcendência como a Imanência.

39
Manifestando a virtude do desapego

Em ti mesma reverberam a muda floresta dos unicórnios,


a intrépida algidez da lua e os olhos alados da Vigília.
No seu leito desprezível escorrem os fulgores da orquídea,
as intumescências das águas e o sangue-veludo das algas.
Forjado no mesmo fogo do poço violáceo da Amargura,
seu corpo flagela os nervos dos astros e as asas atrofiadas da loucura.

Quando observamos a mente humana, percebemos que ela é condicionada pela sua visão
parcial (偏见-pianjiàn), ou seja, ela discerne e avalia os fenômenos de acordo com as suas valorações
discriminativas. A mente segmenta, diferencia e julga segundo os seus critérios parciais. Com esse
ato discriminante, ela cria um sistema de valores e se apega a um dos aspectos do que julga ser o
“melhor”. Nesse sentido, o filósofo Zhang Mo Sheng ressalta que Laozi percebe as limitações
condicionantes causadas pelos aspectos contraditórios (矛盾-máodùn) da realidade, porém, apesar
de tais oposições existirem, elas podem ser integradas (统一tǒngyī) numa visão absoluta (绝对
-júeduì) e não relativa (相对论-xiāngduìlùn).47 É por isso que, na visão absoluta da
Unidade-Totalidade, deixaremos de nos apegar a um dos extremos, já que estas oposições resultam
da conceituação mental e do apego humano. Na medida em que manifestamos a virtude do
desapego, abandonamos cada vez mais aquela tendência de privilegiar um dos lados da realidade em
detrimento do outro. Se compreendermos que as oposições são partes complementares e
não-excludentes entre si, ou seja, são elementos inerentes à totalidade unificada, pouco a pouco
removeremos os nossos juízos e conceitos baseados numa visão unilateral.

Quando se reconhece o belo como belo, nasce o feio.


Quando se reconhece o bem como bem, este deixa de sê-lo.

A Existência e o Vazio se geram um pelo outro;


O difícil e o fácil se completam;
O longo e o curto se comparam;
O alto e o baixo se dependem;
O som e a voz se harmonizam;
O antes e o depois se seguem um ao outro.

Por isso, o Sábio age através da Não-Ação


e pratica o ensinamento sem falar.

47
Laozi, A sabedoria de Laozi / Laozidezhihui 老子的智慧 (com texto original de Laozi e comentários de
Zhang Mo Sheng). Taipei: Xinchaoshe, 2009, p.55.

40
Assim, todos os seres atuam sem nenhuma intervenção.
Geram sem se apoderar e realizam sem depender.

Cumprida a obra, o Sábio não se apega.


Não havendo apego, nada se perde.48

Comentando esse capítulo 2 do Dao De Jing, Su Zhe49 explica que a mente mundana
negligencia que tais oposições são mutuamente interdependentes entre si. O conceito de “bem” só
se sustenta porque existe o conceito de “mal”, e porque ambas existências se apoiam uma na outra
em relação de reciprocidade. Na medida em que afirmo que há algo como uma coisa bela, é porque
também estou pressupondo a existência de uma coisa feia. Através do ato de negação e de recusa de
uma coisa feia, estabeleço a definição do belo. Um conceito só existe relativamente a um outro. Não
existe o conceito de bem isoladamente como algo subsistente em si e por si. O conceito de bem
somente se sustenta a partir de uma relação com o seu contrário. É por isso que o alto e o baixo, o
longo e o curto, a Existência e o Vazio só adquirem sentido de existência numa relação de
interdependência. Portanto, não seria conveniente nos fixarmos num dos extremos se realmente
compreendêssemos que os opostos não se excluem, mas se complementam entre si. Daí por que
seria mais plausível que cultivássemos o estado de wúxin (Não-Mente) que incorpora e aceita as
oposições, agindo com desapego tal como o sábio que age pelo wúwéi (Não-Ação). Se o sábio age
pelo wúwéi, isso significa que ele age sem aquela vontade artificial de querer interferir
excessivamente no fluxo natural. Quando ele se desapega do próprio ato de ocupar (居-ju) uma
posição no sentido de defender uma determinada crença, ele diminui o excesso dos pensamentos e
emoções e, consequentemente, reduz o seu apego à turbulência mental.
Portanto, libertando-se das distinções dualísticas e removendo a interferência mental (干扰
-gānrǎo), o sábio realiza as ações de acordo com o princípio da Naturalidade. Na medida em que
evita as ações forçosas, ele se livra do desejo ilusório de manipulação e dominação, e assim manifesta a
virtude do desapego. É preciso compreender que tanto o sábio como o próprio Dao são vistos
como o wúwéi que se desdobra na manifestação das coisas sem interferência excessiva. Portanto,
como podemos nos desapegar das limitações cognitivas que nos impedem de ver a unidade da
totalidade do Dao? Se o Dao é o Todo-Uno Unidade que abraça todas as multiplicidades do
mundo, é necessário que tenhamos a compreensão de que as contradições dos fenômenos da vida
pertencem à essência de uma mesma realidade, visto que o problema não está numa determinada
crença que sustentamos, mas sim na obstinação excessiva, no apego e na fixação a uma ideia fixa, na
medida em que, por exemplo, afirmamos que “algo” é belo e assim ficamos identificados com esse
ponto de vista.

48
Laozi, cap.2.
49
Wang Bi e Su Zhe, p.8.

41
Iluminação Sutil

caminhando na borda do crepúsculo


velando a face da solidão
todas as pedras se despertaram
ao redor da árvore-de-esmeralda.

Como vimos, a mente humana se apega a um dos polos extremos das contradições
(infelicidade/felicidade, ganho/perda). E esse apego é causado pela falta de moderação nos
pensamentos, sentimentos, ações etc. Assim, o ganho e a perda em si mesmos não são
acontecimentos bons ou ruins, uma vez que dependem de um contexto de avaliação, de juízos e de
crenças mentais subjetivas. Por exemplo, se nos movermos exclusivamente para o ganho e
rejeitarmos a perda, ficaremos enredados nas malhas ilusórias do pensamento dualístico e relativo. É
como se apegássemos a um lado da existência, desconhecendo que, no fundo, ela é constituída na
sua totalidade por uma variedade de fenômenos, nuances e aspectos múltiplos. É por esse motivo
que Laozi sugere o caminho da Iluminação Sutil (微明-wēimíng), isto é, um modo de
compreensão mais ampliado que implica no entendimento de que podemos viver no mundo com
desapego a um dos lados dessa oposição.

Quando se deseja retrair, é preciso expandir.


Quando se deseja enfraquecer, é preciso fortalecer.
Quando se deseja rejeitar, é preciso enaltecer.
Quando se deseja retirar, é preciso ofertar.

Eis o que é a Iluminação Sutil.

Suavidade e brandura vencem força e rigidez.


Um peixe não deve sair das profundezas das águas.
Armas afiadas não devem ser exibidas aos homens.50

Esse movimento cíclico e dialético (retração/expansão, enfraquecimento/fortalecimento)


implica na ideia de uma relação interdependente entre ambas oposições. Contudo, seria equivocado
interpretar tal relação de interdependência como uma relação de causalidade em que para se
alcançar um determinado efeito (“retração”) seria preciso implementar uma determinada ação
causal (“expansão”). É que ocorre nessa visão dialética um fenômeno que extrapola o âmbito da
causalidade natural dos fenômenos físicos. Para percebermos essa relação de complementaridade,
precisamos praticar aquilo que o filósofo Zhang Mo Sheng chama de “observação aguçada” (细细

50
Laozi, cap.36.

42
体察-xìxìtǐchá)51 através da qual percebemos os fenômenos sutis da realidade com as suas feições e
nuances pouco discerníveis. É uma espécie de contemplação refinada que exige uma compreensão
mais abrangente. Não se trata apenas de compreender que, para atingirmos algum resultado Y,
deveríamos praticar uma determinada ação X. Tal concepção de ação está fundamentada num
cálculo estratégico onde deliberadamente agiríamos com vistas à obtenção de certos resultados. É
evidente que certas ações intencionais podem ser consideradas num sentido benéfico, porém,
quando excessivamente motivadas, podem acarretar efeitos prejudiciais. É por isso que, se as nossas
ações forem exclusiva e excessivamente condicionadas por um certo utilitarismo, os perigos que daí
resultam são o enrijecimento e a perda da Naturalidade do wúwéi e, por consequência, a atitude
ostensiva, externa e artificiosa, o que mostra o quão longe ainda essa atitude se encontra diante da
autossuficiência interior.
Por isso, um ser humano que busca ser autêntico - tal como um peixe que se abriga nas
profundezas das águas - vive num enraizamento profundo com a essência da Naturalidade e cultiva
o estado de suavidade. Longe da ostentação, do engessamento e do narcisismo egóico, previne-se
contra as ações unilaterais rigidamente cristalizadas. Para tanto, observa que todo fenômeno segue
um curso de ascensão e declínio: após atingir o seu ápice, todo fenômeno retorna ao ponto
contrário e inicial. Nesse sentido, não se enrijece numa postura artificial e rígida: não ostenta as
armas tais como o conhecimento, a inteligência, a erudição e tampouco se apega à arrogância
temerária.
Nesse aspecto, a verdadeira potência consiste em agirmos na suavidade (柔-róu) e não na
violência da força (强-qiáng). Numa perspectiva política, o exibicionismo das armas intimida o
povo com punições severamente pesadas e desencadeia uma série de ações contraproducentes. Esse
é um sinal de arbitrariedade e não de verdadeira força. Com efeito, o que está em jogo nessa crítica à
ostentação da violência é aquela ação forçosa da artificialidade que, na sua desmedida, excede e
interfere de modo inapropriado. A própria Natureza nos revela que se algo cresce, se desenvolve e
chega até ao ponto máximo de seu desenvolvimento, depois pouco a pouco se deteriora e se
desvanece. Todas as coisas atingem sua culminância, mas logo perdem a sua força assim que chegam
ao seu clímax. É por isso que se agirmos com força violamos o princípio da Naturalidade. Portanto,
sendo guiados pela Iluminação Sutil e atuando com suavidade (柔-róu), compreenderemos que as
coisas estão sempre passando pelas constantes mutações e se alternando numa regularidade cíclica:
ora se contraem, ora se expandem, ora se enfraquecem, ora se fortalecem. É compreendendo esse
ritmo natural e buscando o desapego aos extremos que evitaremos a interferência desnecessária no
fluxo da ordem do mundo e simplesmente corresponderemos à natureza de cada coisa (唯因物之性
-wéiyīnwùzhīxìng).52

51
Wang Bi e Su Zhe, p.130.
52
Idem, p.120.

43
Suavidade

Somos as éguas dóceis que seguem suavemente os movimentos do Cavalo Celeste.


Com paciência e humildade, perseveramos e correspondemos ao Supremo Dao do Céu.

Podemos agir seguindo o princípio da suavidade (柔-róu) que manifesta a potência


misteriosa do Dao. Segundo Laozi, aquilo que é o mais suave poderá penetrar naquilo que é o mais
sólido. Imaginemos a água que suavemente se infiltra no cimento e consegue destruí-lo. Do ponto
de vista filosófico, esse exemplo mostra que o mais suave, a saber, o Vazio Transcendente penetra na
solidez das coisas imanentes. Laozi nos diz que a água possui a capacidade de ir e vir em todas as
partes sem distinguir o alto e o baixo. “Sem disputa, a água beneficia todos os seres, habita os sítios
que a multidão detesta e, por isso, é semelhante ao Dao…”53 Essa mesma eficácia da suavidade que
tem o poder de atravessar certos lugares incomuns se revela na medida em que alcançamos o
Supremo Vazio onde diminuímos a cobiça de nossos desejos e a busca desenfreada pelos bens
transitórios como poder, honra e fama. Na medida em que deixamos aflorar a eficácia potente do
Sopro Vital em todas as partes, naturalmente não haverá mais nenhum bem sólido ao qual
pudéssemos nos apegar, uma vez que nos sentiremos harmonizados com um bem mais precioso
que é a essência da nossa energia vital.
É por essa razão que Su Zhe54 observa que o sábio, agindo a partir da suavidade do wúwéi,
manifesta toda a eficácia potente da sua ação. Em outras palavras, se não desejarmos mais se
apoderar das coisas, manifestaremos a eficácia da suavidade. Pois, quanto menos exercermos o
autoapego, menos teremos aflições. E quanto mais manifestarmos a Não-Linguagem (不言-bùyán),
mais estaremos atuando com a plena eficácia do desapego, tal como o sábio que pratica o
ensinamento sem falar. A Não-Linguagem não é negação da palavra, mas somente o desapego ao
uso excessivo das palavras. Eis por que são poucos aqueles que, agindo pela Não-Linguagem e
Não-Ação, cultivam o estado de wúxin e, ao mesmo tempo, manifestam a eficácia do Dao constante
que age sem deixar nada por fazer.
É nesse sentido que Laozi observa que “os rígidos e fortes caminham para a morte”, ou seja,
aqueles que ignoram o princípio da suavidade acabam agindo forçosamente e provocando sua
própria destruição. Em contrapartida, “os suaves e brandos caminham para a vida”, porque, ao
agirem de acordo com a Naturalidade, manifestam a potência sutil do wúwéi e cultivam a essência
vital na sua existência. Portanto, quem cultiva a suavidade segue o princípio da vida e quem valoriza
a rigidez avança para o terreno da secura, da frouxidão e da morte. Para evitar o enrijecimento, o
sábio retorna ao estado originário da Vida/Destino. Quando se revitaliza na Fonte Originária da
Vida, ele concede vida e liberdade a si mesmo e aos outros, cultivando o amor, a moderação e a
humildade. Do ponto de vista ético, isso significa que podemos cultivar uma atitude de respeito e

53
Laozi, cap.8.
54
Wang Bi e Su Zhe, p.241.

44
de consideração pelos outros, pois uma atitude contrária ao princípio da suavidade seria quando
alguém nega o valor do outro, suscitando conflitos e desentendimentos a ponto de produzir apenas
a deterioração da vida humana.

Quando vivem, os seres humanos são suaves e brandos.


Quando morrem, são rígidos e fortes.

Quando vivem, as ervas e árvores são suaves e frágeis.


Quando morrem, são secas e murchas.

Assim, os rígidos e fortes caminham para a morte.


Os suaves e brandos caminham para a vida.

Por isso, a arma forte se aniquila.


A árvore forte se esfacela.

Os fortes e grandes desfalecem.


Os suaves e brandos se elevam.55

A imagem de uma árvore enrijecida é utilizada por Laozi para mostrar o quão danosa é a
conduta de uma pessoa arrogante, seja quando fica vaidosa com as suas próprias capacidades, seja
quando se ensoberbece por ter recebido elogios. Na sua rigidez, essa árvore correrá o risco de ser
cortada facilmente pelo machado do lenhador (Dao) e até mesmo sofrerá prejuízos em razão da sua
própria cegueira. Ao contrário, se formos como uma árvore branda e suave, seremos mais flexíveis,
dóceis e humildes. Essa é a conduta de quem se esvaziou de sua vontade caprichosa e conquistou o
seu auto-domínio. É por isso que uma atitude ética correta é evitar as lisonjas que poderiam nos
tornar orgulhosos, uma vez que tal cegueira perniciosa só conduz à ignomínia, à destruição e à
morte. Daí por que são as coisas suaves e delicadas que possuem a verdadeira força enquanto as
coisas duras e aparentemente robustas se esfacelam e correm o perigo da deterioraçaõ. Em outro
momento, Laozi também utiliza a imagem simbólica da água para revelar a eficácia concreta da
suavidade.

Nada é mais brando e suave do que a água.


Nada é capaz de vencê-la no ataque ao rígido e forte.
Nada consegue modificá-la.

Brandura vence força.

55
Laozi, cap.76.

45
Suavidade vence rigidez.

No mundo, todos conhecem isso,


porém, ninguém é capaz de praticar.

Portanto, diz o Sábio:

“Quem assume a impureza do reino é o senhor da terra.


Quem assume os males do reino é o rei do mundo.”

Palavras corretas parecem contraditórias.56

Como enfatiza Wang Bi57, a potência da água é tão especial e invencível que nenhuma coisa
pode alterá-la. É por isso que Laozi no capítulo 36 dizia que “suavidade e brandura vencem força e
rigidez”. Com efeito, é preciso estarmos atentos para agirmos de acordo com a especificidade de
cada situação, aprendendo com a qualidade flexível da água para que não venhamos a nos enrijecer
em posturas e hábitos cristalizados. É que a força da água reside justamente no fato de que é capaz
de ir até os lugares que a maioria dos seres detestam, ou seja, ela possui a grandeza de “assumir a
impureza do reino”. É baseando-se nessa sabedoria de suprema compreensão da água que também
o sábio governante deveria governar o seu reino. Contrariando a lógica comum, a visão taoista
mostra que o princípio do Vazio desdobra a sua eficácia na materialidade imanente da Existência de
todos os seres. Em outras palavras, traduzindo essa visão metafísica para o âmbito ético-prático, isso
significa que, incorporando a suavidade da água, podemos cultivar o Vazio em harmonia com a
ordem da totalidade, e nos tornamos mais capacitados para enfrentar as dificuldades, os perigos e os
males do mundo.
É fundamental perceber que as coisas possuem seu uso devido à eficácia do Vazio e não
apenas à sua constituição material como observa Wang Bi. É o Vazio que concede existência à elas.
Assim, o Vazio considerado como o aspecto transcendente do Princípio Originário é a lei de todas
as coisas na medida mesma em que estas retornam à sua essência primordial. Então, se as coisas
quiserem existir na sua materialidade, precisam regressar à potência do Vazio no estado de
suavidade (弱-rùo). Su Zhe58 ressalta que o silêncio é o estado originário do nosso ser e o
movimento também é o nosso estado quando nosso ser segue o curso natural do Dao. Nesse
sentido, se as coisas não estiverem nesse estado de suavidade (silêncio do Vazio), elas não emitiriam
sons nem manifestariam suas formas. Geralmente as pessoas não valorizam esse estado de suavidade,
de repouso e de silêncio, e sobretudo, ignoram que é esse estado do Vazio que gera e mantém a

56
Laozi, cap.78.
57
Wang Bi e Su Zhe, p.245.
58
Wang Bi e Su Zhe, p.138.

46
concretude (具体-jùtǐ) de todas as coisas. Mal percebem que o ser de cada coisa existe graças à ação
de suavidade do Dao no seu movimento de eficácia inesgotável. Daí por que se Laozi concebe que a
Existência provém do Vazio, isso significa que ele está se referindo à manifestação concreta da
essência metafísica do Dao. De modo análogo, do ponto de vista humano, isso significa também
que o ser humano somente se autorrealiza na existência se puder cultivar o estado de desapego, ou
seja, se puder retornar à condição originária do Vazio, já que essa condição é primeira e anterior à
Existência. Essa compreensão metafísica da precedência do Vazio sobre a Existência se concretiza na
eficácia imanente em virtude da própria prática do desapego quando o sábio se esvazia e alcança a
sua verdadeira condição. Compreendemos agora o verdadeiro motivo pelo qual o sábio não se
apega aos méritos de suas obras. É que quanto mais ele se esvazia, mais realiza a plenitude da sua
existência na medida em que age na suavidade de acordo com o Princípio Originário do Dao. Por
isso, como sublinha I Ching, a suavidade é uma das virtudes essenciais do homem superior que faz
com que ele possa acolher todas as criaturas, correspondendo ao fluxo da Naturalidade de todo
universo.

Perfeita é a grandeza do Corresponder:


Ela produz todos os seres
E aceita a fonte vinda do Céu.

Corresponder, em sua riqueza, sustenta todos os sres;


Sua virtude está na harmonia sem limites.
Sua capacidade é larga; seu brilho, imenso.
Por meio dela, todos os seres chegam ao pleno desenvolvimento.

A égua é uma criatura de essência terrena.


Seu movimento da Terra desconhece fronteiras.
Dócil e submissa, favorável e perseverante.

O homem superior compreende o estilo de vida da égua:


Assumir a liderança gera confusão,
Ela perde o caminho.
Ao seguir e corresponder,
Ela encontra o curso normal.59

É preciso cultivar o caminho da suavidade (柔-róu) em atitude de aceitação. Ao seguir e


corresponder (顺-shùn) ao fluxo do Dao Constante, o homem superior enriquece sua virtude e age
na retidão; ao falar e agir, é moderado e humilde. Evitando a luta excessiva, conserva-se na beleza

59
Alfred Huang, p.41.

47
interior de acordo com o Dao da Terra, cuja ação é beneficiar todos os seres, permanecendo no
estado de humildade feminina. Sem nenhum ressentimento, apego e rivalidade, cumpre as ações
com a perseverança e a docilidade de uma égua. Esse hexagrama Corresponder (坤-kun)
complementa o hexagrama Iniciar (乾-qian) a tal ponto que já nos revela o funcionamento de um
processo dialético de unificação das oposições. Se o hexagrama Iniciar é a plenitude da força Yang,
esse hexagrama Corresponder é a plenitude da força Yin, e ambos se complementam numa relação
harmoniosa. Como sublinha Laozi: “Conhecer o masculino e preservar o feminino: eis o que é
tornar-se o vale do mundo”60.
Assim, somos convocados à prática da harmonização das polaridades como o masculino e o
feminino, polaridades que são princípios de manifestação do Dao Indiferenciado no mundo dos
fenômenos. Então, a questão fundamental consiste justamente em conciliarmos esses princípios
dentro de nosso ser no sentido de unificá-los com vista à transformação alquímica. Nesse sentido,
somos como as éguas dóceis que seguem suavemente os movimentos do Cavalo Celeste. Com
paciência e humildade, perseveramos e correspondemos ao Supremo Dao do Céu. Atualizamos a
força energética do Corresponder que é corresponder com humildade, flexibilidade e docilidade sem
disputar com os outros seres. Eis o que seria a virtude da humildade que atua de modo
compreensivo e atencioso, agindo sem nenhuma disputa. Mas isso não significa fraqueza, e sim a
firmeza na realização do bem de todos. Como observa Laozi:

Suprema Bondade é como a água.

Sem disputa, a água beneficia todos os seres,


habita os sítios que a multidão detesta
e, por isso, é semelhante ao Dao:
vive com bondade na terra,
ama com bondade como um rio profundo,
doa com bondade no amor,
fala com bondade na confiança,
governa com bondade na ordem,
age com bondade na eficácia
e realiza com bondade no momento propício.

Assim, sem disputa, não há ressentimento.61

Com efeito, o hexagrama Corresponder possui a mesma eficácia da água cuja Suprema
Bondade favorece a perfeição de todos. Tal como a água, esse Princípio de Correspondência age
com bondade não porque visa um resultado premeditado pela vontade ou porque busca com sua
60
Laozi, cap.28.
61
Laozi, cap.8.

48
doação uma recompensa em troca. Sua ação não é baseada no auto-benefício e no egocentrismo,
mas sim na compreensão dócil e humilde que beneficia todos os seres sem se apegar a esse ato de
bondade. Observa-se que, sem se alimentar de falsas expectativas, o homem superior cultiva sua
conduta baseada nessa eficácia do Corresponder, atuando de maneira constante e harmoniosa de
modo a sustentar todos os seres.
Portanto, o Corresponder, manifestando a sua virtude acolhedora, chega até os lugares mais
distantes e ainda assim preserva o brilho de sua sabedoria ilimitada. Não se apega e tampouco rejeita
nada. Isso se deve à eficácia da humildade da égua: agir sem pensar em si. Por não ter um "Eu"
dominador e auto-centrado, ele se doa e se adapta às diversas situações, mudando a sua forma de
ação acordo com o meio em que se encontra. É por isso que age sem disputa, visto que não se apega
à identidade de um Eu que busca atribuir algum sentido de mérito às suas ações bondosas. De
maneira similar, assim como a água, a terra e a égua, se agirmos de acordo com a eficácia da
suavidade, agiremos com menos sentimentos de rivalidade (战-zhàn). Isso ocorrerá quando
cultivarmos a nossa potencialidade receptiva e feminina, não exigindo nada dos outros nem nos
vangloriando de nossa própria conduta virtuosa. Assim, sem criar nenhum conflito com os outros,
quem ainda poderá nos prejudicar? Portanto, se em nossos atos, palavras e atitudes, pudermos
cultivar uma atitude flexível, viveremos a plenitude da própria vida sem que haja o esforço excessivo
de interferir na ordem natural de cada ser e, sobretudo, seremos capazes de nos harmonizar com a
Naturalidade da própria essência do Dao.

49
Superando a visão dualística

Do fundo do edifício se contorciam os astros coléricos. Impávidos e insolentes, espalhavam-se


como insetos vorazes que aguilhoavam as pálpebras. Um enxame de mastros metálicos avançava sobre
os semáforos enquanto as lâminas sulfúricas perfuravam a inclemência das mulheres. Ombros,
protuberâncias e clavículas se acumulavam no meio da multidão. Uma névoa imunda se condensava
nos nervos! No meio da escadaria, alaridos azucrinantes se arrastavam numa petrificação inaudita!
Entre o sol e a vidraça, um chifre rubro e selvagem reverberava com o marulho repulsivo da cobiça
Meu corpo embalsamado sob as placas gélidas das ventosas se retesava cada vez mais sob a altivez
escamosa das máquinas. Nádegas, olhos, pescoços e cinturas se misturavam numa mixórdia
estonteante! Um crepitar de lírios-de-fulvas-hélices ainda transpirava dos poros do seu crânio. O que
mais refulgia nesse cinismo de ruminações e imprecações?

Embora esteja habitando esse mundo convulsivo, o sábio taoísta medita e age de acordo
com a sua Natureza Originária, transcendendo as oposições do mundo relativo tais como alegria e
tristeza. Segue o fluxo dos fenômenos e acolhe tanto o movimento como o repouso, tanto a boa
fortuna como o infortúnio, e permanece sereno sem ser alterado pelas condições instáveis que lhe
sucedem. Transcendendo tais oscilações, ele compreende que tanto a alegria quanto a tristeza, tanto
a dor quanto o prazer pertencem à ordem do universo. Contudo, essa transcendência não é uma
espécie de negação do mundo (atitude niilista); ao contrário, trata-se de um modo de compreensão
e aceitação daquilo que sucede na ordem natural do Decreto do Céu. Como já observamos, o
Decreto do Céu (天命-tian mìng) é a vastíssima totalidade que escapa de nossa racionalidade, de
nossos conceitos e palavras e até mesmo do domínio de nossa mente ordinária. É por isso que, se
cessarmos o fluxo mental dos pensamentos, abandonaremos o excesso da discursividade lógica e nos
entregaremos a uma nova sintonia com a Natureza Originária e a essência do cosmos.
Nesse estado originário de transcendência das oposições, ao invés de valorizarmos uma coisa
em detrimento da outra, seguiremos o Decreto do Céu e cultivaremos a harmonia dos contrários -
aquilo que Jung e Mircea Eliade chamavam de “conjunção dos opostos”, ou seja, o que
Lautréamont, precursor do Movimento Surrealista e autor dos Cantos de Maldoror já dizia sobre a
beleza singular que inesperadamente emerge no “encontro fortuito entre uma máquina de costura e
um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecção”, ou como Pierre Reverdy evocava a respeito da
força poética numa imagem que aproximasse realidades diferentes, sendo tanto mais forte essa
imagem quanto mais distantes forem essas realidades - de modo que, em tal estado de suspensão da
lógica, nascerá uma compreensão ampliada da realidade. Com efeito, os taoístas experienciam esse
estado sutil e misterioso no silêncio e os surrealistas em certos estados de sensação do maravilhoso,
em certas fissuras que se dilatam nas fronteiras da realidade profana. Em outras palavras, quando
são transcendidas as normas censuradoras do Eu consciente e as nossas mentes se libertam das
cadeias construtivas da racionalidade egocêntrica, a vida se torna uma correnteza indivisível

50
recheada de variações intensivas e durações plurívocas. Assim, transcender a vida e a morte, o
sofrimento e o prazer e todas as oposições significa, em última instância, contemplar o mundo
numa visão de totalidade, e ao mesmo tempo, agir no mundo com aceitação e desprendimento.
Nesse sentido, quem desconhece a Natureza Originária - que é totalmente distinta da
mente ordinária do Ego -, fica disperso, enfraquecido e desconectado de si. Permanece amarrado às
malhas opressivas da sua lógica mental, tal como um camelo impotente, estagnado, carregando um
peso insuportável (Nietzsche)! Assim, diante das múltiplas pulsações, a sua força vital decresce cada
vez mais, e a sua vida se torna um mero fardo de afetos negativos, lamacentos e ressentidos, ou um
mero sonho idealista inatingível. A morte também se torna um fenômeno aterrorizante e
profundamente doloroso. Extraviando-se na perseguição de bens externos, em busca de poder,
fama e outras coisas supérfluas, esse ser semi-morto, quase como uma aranha encapsulada nas suas
próprias teias, acaba se perdendo e se autodestruindo. Com a chegada da morte, é evidente que
haverá uma imensa angústia pelo fato de que durante toda a vida ele apenas desperdiçou sua energia
vital numa busca insensata de exterioridades inautênticas. Não obstante, se ele cultivar o Espírito
(神-shén) no corpo, mesmo que o seu corpo venha a perecer, será-lhe revelada a Natureza
Originária eternamente fulgurante e imortal. Nem a dor da morte nem a doença o perturbarão,
uma vez que ele já nem estará apegado às efêmeras contingências.
Desse modo, essa ampliação da consciência o conduz ao conhecimento de si e à
autossuperação interior, o que não quer dizer que ele se torne um “solipsista” fechado em si mesmo.
É que quem vence a si mesmo, quem conquista seu eu autêntico jamais será prejudicado e
desgastado pelas forças exteriores. Isso porque quem utiliza a sua energia vital para se iluminar
jamais desejará intervir forçosamente no mundo, seja tentando impor “artificialmente” uma
mudança na situação, seja sendo dominado pelas eventualidades mundanas.
Se pudermos conhecer a nós mesmos de modo autêntico, saberemos ser autossuficientes e
cultivaremos uma existência mais plena. Chegaremos a reconhecer a imortalidade da Natureza
Originária de nosso ser, porque, no fundo, essa Natureza nunca nasceu nem sofrerá destruição.
Embora tenhamos de atravessar por inúmeras vicissitudes, essa pérola eterna jamais se extinguirá,
visto ser uma essência genuína que ultrapassa todas as limitações e diferenciações dualísticas do
mundo contingente. O pensamento budista na tradição do Budismo Chan incorporou essa ideia de
Natureza Originária. De maneira semelhante, no Sutra do Huineng (638 d.C.-713d.C), um dos
mais famosos sutras do Budismo Chan, o caminho da meditação se realiza pelo autocultivo (自性自
度–zìxìngzìdù). Quando Huiming pergunta ao mestre Huineng sobre o Darma (ensinamento de
Buda), esse responde-lhe que, se refletirmos e contemplarmos a nós mesmos, veremos que o Darma
se encontra bem próximo de nós. Ou seja, a Natureza Originária, inata e inerente a todos os seres já
é a plenitude do estado búdico. É imanente em toda forma fenomênica, mas se encontra em estado
obscurecido, ocultado e encoberto pelo véu da ignorância. Quando outro mestre Yin Zong
pergunta ao Huineng sobre o aspecto fundamental de seu ensinamento, esse simplesmente admitiu
que, ao longo de toda existência, “olhava a própria natureza de si mesmo” (見性–jiànxìng).

51
Seguindo os ensinamentos de Bodidarma que foi o primeiro patriarca do Budismo Chan na
China, Huineng preconiza o Darma da mente única (一心–yīxīn) que considera nossa Mente
Originária (本心–běnxīn) o próprio ser de Buda. Essa natureza búdica é a consciência originária
ensinada pelos mestres do Budismo Chan. Portanto, o ponto fundamental do cultivo taoísta é
contemplarmos nossa Mente Originária e percebermos que ela é pura, livre e perfeita, a causa de
todos fenômenos, pois o mundo fenomênico externo só existe porque ela existe. Desse modo, toda
atividade da meditação (禅–chán) consiste em observar a natureza da mente e desembaraçá-la de
todo pensamento equivocado (妄念不生–wàngniànbùshēng). Junto com a meditação é necessária
também a concentração (定–dìng) que consiste em olhar nossa própria natureza, alcançando um
estado de consciência em que não sejamos modificados pelos oito ventos das circunstâncias como
proveito, fracasso, calúnia, fama, elogio, ridicularização, sofrimento e alegria.
Assim, quando Huineng nos desperta para o caminho da grande sabedoria e expõe a
possibilidade de alcançarmos nossa verdadeira natureza (真性–zhēnxìng), no fundo, ele revela
apenas nossa essência, nosso estado de pureza absoluta. É a essência pura em sua condição de
imutabilidade que transcende as limitações espaço-temporais e os transtornos provocados pelos
cinco agregados. Através da sabedoria podemos contemplar esses agregados (forma, sensação,
percepção, formação mental e consciência) e compreender que eles mesmos são vazios, isto é,
destituídos de substancialidade. Quando não formos mais afetados pelas aflições causadas pelos
cinco agregados, alcançaremos o estado de não-pensamento(無念–wúniàn), de não-memória (無憶
-wúyì) e de desapego (無着–wúzhuó). Na verdade, não nos apegaremos nem renunciaremos (不取
不捨–bùqǔbùshě), pois, nesse estado de não-pensamento, não nos apoiaremos mais nas concepções
da mente condicionada (無妄念–wúwàngniàn). Deixando de projetar nossos juízos discriminativos
sobre as coisas, seremos como espelho que está em profundo silêncio e que, mesmo sem se mover,
reflete e ilumina todas as coisas. É como se habitássemos nesse estado de não-dualidade, nessa
dimensão que transcende as noções de identidade e de diferença, alcançando a unidade na
multiplicidade e a multiplicidade na unidade, ou seja, cultivando a sabedoria da unidade (一般若–
yībōrě). Vejamos como isso acontece numa história do Vazio Perfeito:

Zhao Xiangzi estava guiando um exército de soldados numa viagem de caça na Montanha
Central. Durante a caminhada na densa vegetação, ele queimava as árvores para iluminar o
caminho, enquanto as labaredas se alastravam por todos os lados. De repente, um homem que tinha
saído do interior de uma rocha, começou a subir e descer numa espessa névoa de fumaça e cinzas. Os
homens de Zhao Xiangzi imaginaram que fosse um espírito. Atravessando as chamas, o homem
avançou suavemente e saiu dali como se nem houvesse passado pelo caminho. Espantado, Xiangzi
deteve-o e observou-o calmamente. Percebeu que sua aparência era humana no que dizia respeito ao
aspecto físico, à cor e aos orifícios de sua cabeça. Parecia um ser humano também por causa da sua voz
e respiração.

52
Então, Xiangzi perguntou-lhe: “Qual é o método (Dao) pelo qual você é capaz de penetrar no
interior da rocha? De que modo você consegue atravessar o fogo?”
“O que você chama de rocha? O que você chama de fogo?” – replicou o homem.
“Aquilo de onde você saiu é uma rocha. Aquilo que você atravessou é o fogo.” – respondeu
Xiangzi.
“Eu não sei de nada.” – disse o homem.
Quando ouviu essas palavras, o marquês Wen do Estado de Wei perguntou à Zixia, discípulo
de Confúcio: “Que tipo de homem é aquele?”
Zixia respondeu: “De acordo com que ouvi do meu mestre, ele está totalmente em harmonia
com todos os seres, e portanto, estes jamais poderão feri-lo e criar-lhe obstáculos. Eis por que ele é capaz
de atravessar o metal e a rocha ou caminhar na água e no fogo.”
Em seguida, o marquês Wen perguntou: “Por que você mesmo não realiza isso?”
“Não sou capaz de remover toda minha mente e abandonar a razão. Mesmo não sendo capaz
de realizá-lo, ainda assim posso falar sobre isso.”- disse Zixia.
Então, o marquês perguntou novamente: “Por que Confúcio não pode realizar isso?”
“O mestre é capaz, porém não tem desejo de realizar esse tipo de façanha.” – respondeu Zixia.
Depois de ouvir essas palavras, o marquês Wen ficou muito contente.62

É nesse sentido que observamos que certos mestres budistas, xamãs e sábios taoístas
alcançam o estado não-dualístico onde não são mais limitados pelas definições binárias e contrárias
como vida/morte, prazer/dor, existência/não-existência. Somente assim se tornam capazes de
atravessar o fogo ou sair de uma parede rochosa como se nem houvesse obstáculo físico para as suas
ações. Conseguem realizar tais façanhas maravilhosas porque transcenderam as limitações da mente
e abandonaram a razão a ponto de só estarem em harmonia com o fluxo da Naturalidade e agirem
através do desapego da Não-Ação (无为-wúwéi). Não pretendem agir forçosamente, pois sabem
que a vontade de conquistar o mundo pressupõe o desejo de interferência mental.
Como ressalta Wang Bi63, podemos corresponder (因-yin) ao mundo, mas não intervir (为
-wéi) nele. Podemos fluir com o mundo sem se apegar às suas formas. Os taoístas criticam a ideia de
que o homem seja o dono da Natureza (daí a atualidade das suas concepções), como se pudesse
explorá-la para seu autobenefício pessoal. Nessa mesma perspectiva, Su Zhe64 diz que se o sábio
segue a Naturalidade de cada coisa (因万物之自然-yīnwànwùzhīzìrán), não deseja exercer
nenhuma modificação impositiva sobre a natureza singular e originária de cada manifestação
fenomênica. Isso porque a maioria das pessoas frequentemente age, pensa e manipula a realidade,
baseando-se numa lógica de dominação. Recorrendo à inteligência astuciosa e visando a sua própria
vantagem pessoal, intervém e infringe a ordem da Naturalidade que é intrínseca ao mundo na sua

62
Liezi, p.61.
63
Wang Bi e Su Zhe, p.99.
64
Idem, p.100.

53
dimensão sagrada. Na cosmovisão taoísta, o que é sagrado é justamente o que constitui a
Naturalidade de cada ser. É por isso que de maneira tão emblemática Laozi declara: “O mundo é
um vaso sagrado e não deve ser manejado. Quem nele intervém, fracassa. Quem o retém, perde-o.”
O sábio taoísta realiza simplesmente a plenitude da Naturalidade, considerando e respeitando a
vontade particular de cada criatura e age suavemente de acordo com o estado de cada ser. Assim,
correspondendo pela eficácia da Não-Ação, ele flui com todo os seres sem que nenhum deles seja
violado.

54
Não-Linguagem e Não-Saber

Passados dez anos, após aprender com seu Mestre Hu Qiu e cultivar amizade com Bohun
Wuren, Liezi retornou para morar numa cidade da região sul. Inúmeras pessoas seguiam os
ensinamentos de Liezi, porém ele ainda achava que poucos o seguiam; por isso, diariamente discutia
com elas, de modo que nada escapava aos seus ouvidos.
Embora tivesse morado por vinte anos nessa cidade e fosse vizinho de Nan Guozi, o próprio
Liezi nunca o convidara para um encontro. Quando se cruzavam no caminho, ambos nem se olhavam
entre si, por isso, seus discípulos pensavam que eles eram inimigos.
Um homem que vinha do Estado de Chu perguntou a Liezi: “Por que o senhor hostiliza Nan
Guozi?”
Liezi respondeu: “Nan Guozi expressa plenitude em seu semblante. Sua mente é vazia, seus
ouvidos não ouvem, seus olhos não veem e sua boca não fala. Entretanto, não há nada que sua mente
não conheça. Além disso, seu corpo jamais se transforma. Sendo assim, por qual motivo eu iria
visitá-lo? Mesmo assim, podemos fazer-lhe uma visita.”
Logo, Liezi escolheu quarenta discípulos para acompanhá-lo. Assim que viram Nan Guozi,
este parecia imóvel como uma escultura. Era impossível falar com ele, já que seu Espírito não estava
unido ao seu corpo. Do mesmo modo, assim que os discípulos de Liezi viram também o seu próprio
Mestre, o seu Espírito também parecia separado do corpo de tal maneira que nem era possível falar
com ele. Nesse instante, Nan Guozi apontou subitamente para um discípulo de Liezi que estava no
último lugar da fila e começou a repreendê-lo, revelando um comportamento inflexível e ortodoxo.
Espantados, os discípulos voltaram para casa com sentimentos de dúvida nas feições.
Em seguida, Liezi ponderou: “Aquele que é orgulhoso deveria ser moderado nas suas palavras
e aquele que conhece muito também deveria moderar a fala. Utilize a Não-Linguagem como sendo
linguagem e o Não-Saber como sendo conhecimento. A Não-Linguagem é nada dizer. O Não-Saber é
nada conhecer. Porém, ambos são também linguagem e conhecimento. Como não há nada que não se
fale e não se conheça, por que razão vocês ficariam espantados ao saber que Nan Guozi agiu dessa
maneira?”65

Nessa história, percebemos como o mestre Nan Guozi manifesta a eficácia da Naturalidade
do wúwéi, isto é, como manifesta a potência do Vazio do Dao. Embora no encontro com Liezi, Nan
Guozi não chegue a cumprimentá-lo e a conversar com ele amigavelmente, isso não significa que
fossem inimigos um do outro como os seus discípulos supuseram. Justamente por não recorrer às
palavras, as ações de Nan Guozi acabaram sendo julgadas de maneira equivocada, o que mostra que
a mente humana apegada à linguagem verbal interpreta os fatos de acordo com os seus critérios
parciais e limitados.

65
Liezi,p.117.

55
Quando Nan Guozi e Liezi se encontram no estado de Vazio em que seus Espíritos estão
fora do corpo, os discípulos de Liezi ficam apreensivos. O narrador não nos diz o que estava
exatamente pensando um dos discípulos que foi repreendido. Podemos supor que ele estava tão
preso à linguagem e apegado às aparências superficiais dos mestres que os ignorou e até mesmo os
desrespeitou apenas porque eles “não falavam” e pareciam “distraídos”, como se fossem meras
esculturas sem nenhuma vida. O paradoxo desses mestres é que justamente estavam concentrados e
atentos num estado meditativo do Vazio.
Entretanto, é nessa plenitude da potência da mente vazia (心虚-xinxu) que Nan Guozi
consegue penetrar no pensamento mais íntimo do discípulo de Liezi, chegando a censurá-lo devido
à sua conduta de arrogância e imoderação. É nesse sentido que compreendemos o ensinamento
segundo o qual se diz que é preciso ser moderado na fala e no conhecimento. Ou seja, é importante
não avaliarmos as coisas pelas meras aparências externas, mas utilizarmos a eficácia da
Não-Linguagem (无言-wúyán) e do Não-Saber (无知-wúzhi) que são as manifestações da eficácia
do próprio Vazio (无-wú) do Dao. Os mestres taoistas parecem ser destituídos de poder, fala e
conhecimento como se fossem pessoas tolas, mas, no fundo, o que ocorre é justamente o contrário:
eles são dotados de sabedoria, linguagem e conhecimento, manifestando a potência da eficácia do
Dao.
É que a mente humana funciona na oscilação entre polaridades que constituem o mundo
dualístico e relativo, operando por meio de discriminações, passando de um extremo a outro e
jamais alcançando aquilo que Laozi já falava sobre a “Comunhão Misteriosa”, aquele estado de
integração com o Todo Pleno e Uno. Tal estado só se revela no momento em que não há mais
diferença entre o eu e o mundo, entre o observador e o observado. É por isso que nessa dimensão de
conhecimento Liezi sugere que se “utilize a Não-Linguagem (无言-wúyán) como sendo linguagem
e o Não-Saber (无知-wúzhi) como sendo conhecimento.” Não obstante, isso não significa que ele
esteja negando o conhecimento e a linguagem em si mesmos. É fundamental que nos
desapeguemos do uso excessivo da lógica discursiva de tal modo que também nos libertemos das
limitações oriundas da mente ordinária. É que quando diminuímos a atividade mental e sensorial,
nos recolhemos na dimensão da interioridade e minimizamos as distrações supérfluas que nos
escravizam. Ou seja, Liezi nos mostra que Nan Guozi atinge uma dimensão profunda de existência
que se harmoniza com a própria essência do Dao, essência que é tão inefável e profunda que nem as
nossas palavras conseguem descrevê-la. Encontramos no mundo certos indivíduos superficiais que
apenas tagarelam e discorrem sobre o Dao: são extremamente “competentes” no estudo e
pragmáticos no saber-fazer, mas ainda não puderam saborear a profundidade da sabedoria genuína.
Possuem muitos conhecimentos baseados na lógica da produtividade eficiente. Contudo, quem
conhece e age verdadeiramente no Dao alcança a moderação e se desapega do seu conhecimento dia
após dia, e consequentemente, desfruta de maneira mais plena o valor do conhecimento. Portanto,
quem se ilumina no Dao, transcende as palavras. Essa visão taoísta é semelhante àquela apresentada
pelo Bodhidharma nos seus Ensinamentos:

56
Quem se desperta é o espírito iluminado. Responder, perceber, erguer as sobrancelhas e piscar os
olhos, mover as mãos e os pés, todas essas ações se originam da natureza mesma do espírito iluminado.
Tal natureza é a sua mente, e sua mente é o buda. E o buda é o Caminho. E o Caminho é o Chan
(Zen). Porém, Chan é apenas uma mera palavra. É incompreensível tanto para as pessoas mundanas
como para os sábios. A visão direta da Natureza Originária: eis o que é o Chan. Se não tivermos a
visão dessa Natureza Originária, então não haverá o Chan. Se ficarmos falando de mil sutras e
milhares de shastras e não tivermos visto a Natureza Originária, nossos ensinamentos serão apenas
mundanos e não de compreensão búdica. O Supremo Caminho é profundo. Não pode ser exprimido
em palavras. De que servem as escrituras e ensinamentos? Se alguém tiver contemplado a Natureza
Originária, mesmo que não tenha conhecimento de nenhuma palavra, e se tiver visto a sua própria
natureza, então se tornará um buda. A essência sagrada é primordial e pura. Nela não há impureza.
Tudo aquilo que puder ser falado é apenas a manifestação da essência da mente humana. Tanto a
manifestação como a essência são, na sua condição originária, vazias. Nenhum nome ou palavra
poderão alcançá-las e tampouco as Doze Partes das Escrituras.
O Caminho é originalmente perfeito. Não precisa de aperfeiçoamento. É insonoro, informe,
sutil e difícil de ser visto. É tal como se alguém bebesse água e sabe se é quente ou fria, mas não consegue
explicar para os outros. Aquilo que o Tathagata conhece transcende a percepção dos homens e deuses.
Como os seres mundanos não o conhecem, então se apegam às formas. Não compreendendo que a
própria mente é originariamente vazia, ocorre o apego às formas errôneas e então se perde o Caminho.
Se soubermos que todos os fenômenos se originam da mente, não haverá necessidade de apego. Se
houver apego, é porque ainda não atingimos o conhecimento. Quando tivermos contemplado a
Natureza Originária, as Doze Partes das Escrituras se tornarão meras palavras inúteis. Os mil sutras
e milhares de shastras nasceram somente da mente iluminada. E, se no meio das palavras já tivermos
compreendido, para que então servirá a doutrina? O Princípio Último transcende as palavras. As
doutrinas são palavras e não o Caminho. O Caminho é, em si mesmo, sem palavras. As palavras são
ilusões. São como pavilhões, palácios e carruagens, como bosques, parques e jardins arborizados. Não
busque satisfação nessas coisas, já que elas são causas dos renascimentos. É preciso que tenhamos
consciência disso quando estivermos próximos do momento da morte. Se não nos apegarmos às formas,
removeremos os obstáculos. Um lampejo de dúvida na mente fará com que sejamos ludibriados pelos
demônios. O corpo de darmakaya é primordial e puro. Contudo, como estamos iludidos devido à
influência de certas condições cármicas, permanecemos no estado de inconsciência. Em razão disso,
padecemos do carma. Por isso, quem se regozija nas ilusões não é livre. Somente quando tivermos
contemplado o corpo e a mente na condição originária, permaneceremos em estado de pureza.”66

Assim como Bodhidharma, Liezi e Laozi sabem que somente quando transcendermos a
linguagem estaremos no caminho da compreensão genuína. É necessário transcendermos os nomes

66
Veja “Ensinamentos de Bodhidharma” (minha tradução em pdf), p.12 e ss.

57
e as formas limitantes da linguagem para que sejam superadas todas as espécies de mediação. Desse
modo, quando estivermos com uma abertura de espírito para uma visão direta da essência de nossa
Natureza Originária sem qualquer apego às formas das palavras, estaremos mais próximos de uma
comunhão íntima com a essência do Dao. Como diz Laozi no capítulo 48:

Agir no estudo é crescer a cada dia.


Agir no Dao é decrescer a cada dia.

Decrescer e decrescer até alcançar a Não-Ação.


Através da Não-Ação, tudo se realiza.

Conquista-se o mundo sem transtorno.


Com transtorno, não se conquista o mundo.67

Como comenta Wang Bang Xiong68, agir no estudo é empenhar-se na aprendizagem do


autocultivo no sentido do desenvolvimento humanista-confuciano. No entanto, esse empenho
pode se tornar um apego à erudição. Por outro lado, agir no Dao leva à diminuição do apego mental
ao estudo, apego que em excesso provoca uma espécie de acumulação negativa. É por isso que, de
acordo também com He Shang Gong69, é preciso que moderemos os sentimentos e os desejos (損情欲
-sǔnqíngyù). Quando cultivamos o Dao, aproximamo-nos do estado de Não-Mente (wúxin),
Não-Saber (wúzhi), Não-Ação (wúwéi) e Não-Desejo (wúyù).
Se a mente contemplar-se a si mesma, ela repousará no estado de silêncio límpido e vazio.
Portanto, como diz Wang Bi70, através desse retorno ao Vazio manifestamos a eficácia do wúwéi.
Como mesmo diz Laozi, se agirmos pelo wúwéi, evitaremos as perturbações e os transtornos. Por
isso, sem transtornos (无事-wúshì), o mundo estará em paz e se sustentará por si mesmo. Isso
porque se o sábio governante pratica o wúwéi, o povo por si mesmo se equilibra naturalmente. Na
perspectiva da filosofia do wúwéi, se desejarmos agir forçosamente, causaremos perturbações, uma
vez que as ações forçosas se originam da hipervalorização do conhecimento mental (心知-xīnzhī).
Assim, quanto mais houver esse acúmulo excessivo (“crescer”) de ações forçosas, mais haverá
prejuízo à dinâmica vital da naturalidade. Ao contrário, se pudermos reduzir e reduzir até
condensar o nosso saber num único conhecimento essencial, retornaremos à nossa Natureza
Originária. Agindo sem apego e imposição, permaneceremos no estado de serenidade e,
consequentemente, todos os seres também permanecerão no estado natural. Como não
disputaremos com os outros, alcançaremos um estado de pureza onde nossa compreensão se
tornará mais ampla e luminosa.
67
Laozi, cap.48.
68
Wang Bang Xiong, p.217.
69
He Shang Gong, p.356.
70
Wang Bi e Su Zhe, p.161.

58
Complementaridade das oposições

Finda a tempestade, um carvalho


renasce por detrás do véu da aurora,
e um anjo de vértebras marinhas
regressa às cavidades rugosas.

Vivemos sob o domínio da impermanência. Ora sentimos uma alegria inexprimível, ora
uma angústia tenebrosa. Perturbados por diversos estímulos, assemelhamo-nos a um mar de
convulsões. Abalados por inúmeros sentimentos como ódio, inveja, tristeza, vaidade, júbilo,
ressentimento e amor, mal sabemos como nos guiar nessa viagem tão conturbada. Navegamos de
um extremo a outro nesse mar de incertezas. Somos ainda assaltados por uma avalanche de
circunstâncias que escapam de nosso controle. Nada é capaz de nos satisfazer plenamente. Embora
haja tanta inconstância na vida, continuamos perseguindo de maneira desenfreada os falsos
contentamentos para aplacar as nossas insatisfações. É como se estivéssemos nos afogando numa
correnteza de ondas da qual somos incapazes de nos libertar. Contudo, podemos examinar o modo
pelo qual seria possível enfrentarmos essas adversidade através da observação de Yang Zhu numa das
histórias de Liezi:

Meng Sun Yang perguntou ao Yang Zhu: “Há pessoas que estimam a vida e protegem o corpo
de modo que buscam evitar a morte. Isso é possível?”
“É impossível evitar a morte.” - respondeu Yang Zhu.
“Então, é possível viver por um tempo mais longo?” – perguntou Meng Sun Yang.
“Também é impossível. Não é estimando a vida que se pode conservá-la. Não é protegendo o
corpo que se consegue preservá-lo. Além disso, por que motivo desejaríamos prolongar a vida? Nossos
sentimentos de amor e ódio, o perigo e a segurança de nossos membros físicos, a alegria e a dor do
mundo, as mudanças do destino e as desordens do governo nunca foram diferentes tanto nos
primórdios como nos tempos atuais. Já ouvimos, vemos e experienciamos todas as coisas. Se uma vida
de cem anos já nos deixa aborrecidos, por que motivo desejaríamos suportar mais sofrimentos por um
tempo maior?” – disse Yang Zhu.
Meng Sun continuou: “Desse modo, uma morte prematura não seria preferível à vida
longeva? Podemos pisar nas facas pontiagudas, penetrar nas águas ardentes e nos entregar à morte
prematura.”
Yang Zhu disse: “Não é bem assim. Enquanto você estiver vivo, é preciso abandonar as
preocupações e seguir a Naturalidade. Realize todos seus desejos e espere pela morte. Quando estiver
próximo o momento da morte, abandone suas preocupações e siga a Naturalidade. Aja de maneira

59
plena a fim de realizar a completude em todas as ações. Sem aflições e seguindo a Naturalidade, por
que teríamos de nos preocupar se teremos uma morte prematura ou tardia?”71

Nesse diálogo entre Yang Zhu e Meng Sun, “nossos sentimentos de amor e ódio, o perigo e
a segurança de nossos membros físicos, a alegria e a dor do mundo” e todas as outras oposições do
mundo dualista são noções projetadas pela mente humana na medida em que, ao se deparar com os
eventos externos, cria sobre eles uma determinada interpretação e, portanto, uma avaliação
subjetiva de acordo com os seus critérios, gostos e caprichos, os quais, por sua vez, decorrem de
certas cristalizações de hábitos, experiências e crenças pessoais. É a mente subjetiva do indivíduo
com todo o seu contexto histórico-pessoal que atribui valor às experiências. Nesse sentido, os
fenômenos se tornam bons ou ruins, felizes ou infelizes pelo fato de que são interpretados de
acordo com os juízos valorativos criados pelos nossos pensamentos. É provável que aquilo que
considero valioso não o seja para uma outra pessoa, e isso acontece justamente em função da
diversidade de juízos, crenças, hábitos, experiências e concepções que variam de indivíduo para
indivíduo. Há diversas visões de mundo, as quais nem sempre são condizentes umas com as outras.
Ademais, mesmo num indivíduo a sua visão de mundo varia conforme as mudanças ocorridas na
vida. É evidente que se os conceitos derivam de nossas interpretações subjetivas limitadas, o que
realmente compreendemos quando somos confrontados com um determinado aspecto do mundo
fenomênico? Com efeito, segundo Liezi, aquilo que na aparência fenomênica se mostra como
“morte prematura” ou “morte tardia”, na verdade, não é nem uma coisa nem outra. Trata-se
simplesmente da maneira pela qual avaliamos subjetivamente a realidade, mas, decerto, a própria
realidade escapa de nossas conceituações, pois ela é mais vasta e incognoscível.
É nesse sentido que o mestre Liezi nos sugere o caminho do desapego em relação às
preocupações e aflições mentais. Somos condicionados pelas nossas crenças e juízos limitantes que
sempre são determinados pelas oposições do mundo dualístico. Não obstante, a visão filosófica de
Liezi não é relativista, visto que ele propõe uma compreensão metafísica do Princípio Imutável do
Dao no sentido de uma Unidade Transcendente-Imanente e, sobretudo, a prática de uma conduta
de aceitação condizente com essa Suprema Ordem Natural conhecida como Decreto do Céu (天命
-tianmìng). Nesse contexto, o sábio taoísta compreende essa Suprema Ordem (tal como na visão do
I Ching) e age de acordo com a sua Natureza Originária (本性-běnxìn), transcendendo as
oposições do mundo relativo tais como alegria e tristeza, boa-fortuna e infortúnio, vida e morte. Ele
segue o fluxo dos fenômenos e acolhe tanto o movimento como o repouso, tanto o ganho como a
perda. Moderado e constantemente enraizado no seu centro interior - o que não quer dizer que seja
indiferente e insensível às circunstâncias - , ele age no mundo, mas não se enreda nas teias insidiosas
e instáveis que lhe sucedem. Transcendendo tais oscilações, ele compreende que tanto a alegria
quanto a tristeza, tanto a dor quanto o prazer pertencem à ordem (理-lǐ) do universo. Contudo,
essa transcendência não é uma espécie de negação do mundo (atitude niilista); ao contrário, trata-se

71
Liezi, p.225.

60
de um modo de compreensão daquela realidade total e vasta do Decreto do Céu que escapa da
racionalidade conceitual-linguística e até mesmo do domínio de nossa mente ordinária. É por isso
que, se moderarmos o fluxo mental dos pensamentos, abandonaremos o excesso da discursividade
lógica e nos entregaremos a uma nova sintonia com a Natureza Originária e a essência do cosmos,
conquistando a liberdade autêntica em harmonia e não em conflito com a ordem cósmica natural.
É possível contemplarmos a beleza da harmonia na conjunção das realidades mais opostas
na medida em que presenciamos uma interação recíproca e dinâmica. Por exemplo, no hexagrama
Ornamentação (贲-bì), o I Ching nos mostra que há um movimento de reciprocidade entre as
linhas maleáveis e firmes engendrando a harmonia, a ornamentação e a beleza interior.

(...) O maleável desce e adorna o firme.


Portanto, há prosperidade e tranquilidade.
O firme ascende e adorna o maleável.
Portanto, um pequeno favor; há para onde ir.
Esta é a ornamentação do Céu.72

Assim, quanto mais compreendermos a complementaridade das oposições, mais estaremos


precavidos contra as preocupações supérfluas, pois são elas que, em última instância, desencadeiam
uma série de apegos prejudiciais ao equilíbrio de nossa mente e corpo. Como o sábio não se apodera
de uma posição fixa, não se apega às posturas unilaterais. Pois o próprio ato de sustentar uma
posição desencadeia em nossa mente um esforço, uma persistência em defender um ponto de vista,
implicando sempre num apego que se empenha arduamente em preservar a nossa visão, que por sua
própria natureza é parcial e suscetível de erro. A atitude sábia é não nos envolvermos com essa
espécie de ilusão, já que, para manter esse ponto de vista, somos induzidos a disputar com
argumentações, o que requer de nós grande dispêndio de energia. Isso porque na medida em que
permanecemos mais apegados, desgastamos cada vez mais nossa vitalidade energética. No fluxo dos
acontecimentos, as oposições nunca permanecem imutáveis. Ao contrário, elas se interagem e até
mesmo se transformam uma na outra, o que mostra claramente que seria equivocado nos
apegarmos exclusivamente a um lado do fenômeno. Sem nos restringirmos a tais juízos parciais,
como poderíamos agir de maneira menos contenciosa e com uma atitude mais condizente com a
visão da Totalidade?
Como comenta Wang Bi73, as oposições dualistas são produtos da mente humana na
medida em que ela julga e conhece os fenômenos de acordo com os seus juízos discriminativos. A
mente opera com uma lógica binária. Com essa atitude que divide e classifica, ela acaba criando
uma escala de valores e tende a se apegar a um dos aspectos da realidade. Nesse sentido, quanto mais
cultivarmos o desapego, mais deixaremos a possessividade e evitaremos aquela tendência de sempre

72
Alfred Huang, p.198.
73
Wang Bi e Su Zhe, p.7.

61
sobrevalorizar um dos lados em detrimento do outro. De maneira análoga, o comentador Su Zhe74
esclarece que os homens geralmente desconhecem que tais oposições como bem/mal, belo/feio são
apenas mutuamente dependentes e relativos um ao outro, uma vez que o conceito de “bem” só se
sustenta porque existe o seu contrário. Quando reconheço o bem, é porque também reconheço e
identifico a existência do mal. Um só existe em relação ao outro. Não existe o conceito de bem
isoladamente. Assim o bem não existe em si e por si. Da mesma maneira, o alto e o baixo, o longo e
o curto, a Existência e o Vazio e as outras oposições. Portanto, não seria conveniente nos fixarmos
num dos extremos se realmente compreendemos que os opostos não se excluem, mas se
complementam entre si. Daí por que seria mais plausível que nos distanciemos daquela visão
parcializante (偏见-piānjiàn) e, consequentemente, do espírito de rivalidade que essa última suscita
em nossas mentes. Se cultivarmos o estado de Não-Mente (无心-wúxīn) que incorpora e aceita as
oposições, estaremos agindo com sabedoria do desapego tal como o sábio que age pelo wúwéi
(Não-Ação). Quando Laozi diz que o sábio age pelo wúwéi, isso significa que ele age sem aquela
artificialidade de querer intervir no fluxo natural das coisas. Na medida em que evita as ações forçosas
(有为-yǒuwéi), ele se desapega daquela possessividade causada pela mente, possessividade que se
caracteriza pelo desejo de dominação. Desse modo, como podemos também nos desapegar dos
hábitos e condicionamentos? Seremos capazes de nos livrar das velhas e falsas ilusões? Desse modo,
seria possível agirmos sem nos apegarmos e nos identificarmos com um dos extremos dessa visão
dualística? Como seria agirmos em estado de liberdade e autenticidade? No clássico da literatura do
Budismo Chan, “O Portal sem portões” do mestre chinês Mumon Ekai (无门慧开
-wúménhuìkāi-1183-1260), há uma história que nos conduz à superação do pensamento
dualístico:

Joshu perguntou a Nansen: “Qual é o caminho?”


Nansen disse: “A vida diária é o caminho.”
Joshu perguntou: “Ele pode ser estudado?”
Nansen disse: “Se você tentar estudá-lo, estará muito longe dele.”
Joshu perguntou: “Se eu não estudar, como saberei que ele é o caminho?”
Nansen disse: “O caminho não pertence ao mundo da percepção, nem pertence ao mundo da
não-percepção. A cognição é uma ilusão e a não-cognição é sem sentido. Se você quer alcançar o
verdadeiro caminho que está além de qualquer dúvida, coloque-se num estado de liberdade
semelhante ao céu. Você não chama isto nem de bom nem de não-bom.”
Com estas palavras Joshu iluminou-se. Comentário de Mumon: Nansen pôde derreter as
dúvidas congeladas de Joshu imediatamente quando Joshu fez as perguntas. No entanto, duvido que
Joshu tenha alcançado o sentido daquilo que Nansen falou. Ele precisou de mais trinta anos de estudo.
Na primavera, centenas de flores; no outono, uma lua cheia;
No verão, uma brisa refrescante; no inverno, a neve lhe acompanhará.

74
Wang Bi e Su Zhe, p.8.

62
Se coisas inúteis não se detêm em sua mente, qualquer estação é boa para você.”75

Princípio da Unidade

Sob as levíssimas exalações


e escavando o dorso das efígies,
um camaleão soterrado
emerge nos olhos relampejantes do Abismo.

Estamos acostumados em nossa cultura a enxergar a realidade de maneira binária e


polarizada. Por exemplo, se algo é belo não poderá ser feio, se é verdadeiro jamais será falso, se é
certo nunca estará errado. Tais são os aspectos mais comuns da lógica de não-contradição que
perpassam a linguagem, a ação e, de modo geral, toda a nossa estrutura identitária. Entretanto,
embora haja esses aspectos completamente distintos e contraditórios, é possível ainda assim
conhecer a Unidade (一-yi) que se encontra por detrás de sua aparente oposição. Para alcançar a
visão da Unidade, é preciso que pratiquemos o cultivo do desapego aos pontos extremos, já que
geralmente nos apegamos a uma faceta da realidade e ignoramos a outra.

O curvo se completa.
O retorcido se endireita.
O vazio se plenifica.
O velho se renova.
O escasso conduz à aquisição.
O excesso conduz à ilusão.

Por isso, o Sábio abraça a Unidade


e se torna o modelo do mundo.

Sem se ostentar, fulgura.


Sem se enaltecer, ilumina-se.
Sem se orgulhar, possui mérito.
Sem se vangloriar, perdura.

Assim, somente sem disputa,


ninguém disputará com ele.

A velha máxima: “O curvo se completa”,

75
Histórias Zen: uma coleção de escritos zen e pré-zen. Editora Teosófica, 1999, p. 111-112.

63
como poderia ser uma fala vazia?76

De acordo com Laozi, as polaridades contrárias (“curvo/completo”, “retorcido/reto”) se


dependem mutuamente e até mesmo se transformam uma na outra. Em sua época, os confucianos
se apegavam à Benevolência e à Retidão e os legalistas ao método severo das punições. Por isso,
Laozi nos exorta a abandonar simplesmente esse apego. Assim, na nossa vida, encontramos tais
“curvas tortuosas” que são importantes para a nossa “completude”. Na medida em que nos
deparamos com certas circunstâncias “tortuosas” (difíceis), seria mais razoável que pudéssemos
aceitá-las através de um processo de unificação de modo que possam ser harmonizadas numa
perspectiva mais integrada. É que a realidade não pode ser considerada de modo unívoco. Se
analisarmos um único aspecto e ainda nos apegarmos à tal visão unilateral, perderemos a visão do
fluxo da totalidade. O filósofo Henri Bergson77 também admitia que havia uma só totalidade
indivisível como sendo a corrente da Vida. É apenas devido à abstração que dividimos e
fracionamos o Todo. Portanto, quando aceitarmos a existência dos aspectos contraditórios,
aceitaremos tanto o curvo como o completo, tanto o vazio como o cheio, tanto velho como o novo.
Assim que admitirmos a coexistência de tais aspectos, perceberemos que todo ser se curva e depois
se completa, se esvazia e depois se plenifica. Reconhecendo as mutações que ocorrem entre esses
aspectos, compreendemos também que os fenômenos como a vida e a morte, o ganho e a perda
pertencem ao movimento do Grande Dao. Como Unidade que abarca todas essas facetas
antagônicas, o Dao é o movimento cíclico de transformações de que fala o I Ching. Nesse sentido,
compreendendo a Lei da Mutação e, ao mesmo tempo, a regularidade ordenada desse movimento
natural, acolhemos a Unidade e nos sintonizamos com o Todo. Ainda que não tenhamos
compreendido essa Lei do Dao no sentido de uma inteligibilidade racional, se ao menos tivermos
reconhecido a sua eficácia no processo imanente das mutações, perceberemos que as coisas se
sucedem não de maneira aleatória como se fossem destituídas de sentido. Há uma ordem de
alternância cíclica e regular de eventos que acontecem, mas que não são “inteligíveis” do ponto de
vista de nossa lógica racional. Então, quando tivermos intuído a essência dessa Lei, jamais nos
sentiremos injustiçados ou prejudicados pelas pessoas ou situações adversas. Quando Laozi diz que
o excesso conduz à ilusão(多则惑-duozéhùo), é preciso entender que se apegarmos a um dos lados
da vida, por exemplo, se nos apegarmos à alegria excessiva, é evidente que quando ficarmos tristes,
sentiremos o impacto da tristeza como se fosse uma “injustiça” contra a nossa existência. Tal apego
gera somente aflições mentais que prejudicam o corpo e o espírito. Daí por que se cultivarmos um
certo desprendimento em relação a esses extremos, veremos que tanto o escasso como o excesso,
tanto a perda como o ganho são apenas duas polaridades coexistindo dentro da mesma Unidade do
Todo.

76
Laozi, cap.22.
77
Veja suas obras A evolução criadora e Matéria e memória.

64
Como observa Wang Bang Xiong78, nossa caminhada na vida nunca segue uma direção
unidirecional, como se fosse uma linha reta que só avançasse inexoravelmente para a frente. Há fases
em que surgem curvas, atalhos e desvios diante dos quais seria preferível nos curvarmos e recuarmos
tal como age o sábio. Desse modo, ao cultivarmos uma atitude mais flexível, dissolveremos o nosso
autoapego e nos adaptaremos às situações. Através do cultivo do estado do wúxin e do wúwéi,
diminuiremos a disputa gerada pela ânsia de interferir no curso do mundo. Em última análise,
como também sugere Su Zhe79, é necessário que, diante de tantas situações contrárias, busquemos
uma certa moderação, evitando a hipervalorização de certos aspectos dualísticos da existência
humana e, sobretudo, a arrogância de nossas visões parcializadas. Portanto, na medida mesma em
que abraçarmos a Unidade, evitaremos o desejo de competição e conheceremos a nossa Natureza
Originária, retornando ao Princípio do Dao da Totalidade que engloba as faces mais conflitantes,
díspares e múltiplas da realidade.

Desde os primórdios alcança-se a Unidade.

O Céu, alcançando a Unidade, torna-se puro.


A Terra, alcançando a Unidade, torna-se silenciosa.
Os espíritos, alcançando a Unidade, tornam-se vivos.
Os vales, alcançando a Unidade, tornam-se completos.
Todos os seres, alcançando a Unidade, tornam-se viventes.
Os príncipes e reis, alcançando a Unidade, tornam-se leais ao mundo.

Eis o que sucede:

Se o Céu não se tornar puro, poderá se desintegrar.


Se a Terra não se tornar silenciosa, poderá se desmoronar.
Se os espíritos não se tornarem vivos, poderão se estancar.
Se os vales não se tornarem completos, poderão se dissipar.
Se todos os seres não se tornarem viventes, poderão se aniquilar.

Assim, o Homem Nobre se enraíza na humildade,


tanto como o alto se enraíza no baixo.
Os príncipes e reis se consideram solitários, desamparados e desvirtuosos.
Isso não seria considerar a humildade como princípio?
Portanto, alcançando a glória, o Homem Nobre jamais se glorifica.

78
Wang Bang Xiong, p.109.
79
Wang Bi e Su Zhe, p.77.

65
Nunca deseja reluzir como jade, mas ser rústico como pedra.80

O Dao é a Unidade Transcendente, princípio originário que causa a existência de todos os


seres, e ao mesmo tempo, a sua essência imanente. Segundo Wang Bang Xiong81, o Dao é o Uno
enquanto os outros seres como o Céu e a Terra (o universo) são o Múltiplo. Para Wang Bi82, todas
as coisas são engendradas pela Unidade do Dao. Contudo, é lamentável que as pessoas esqueçam
dessa Unidade buscando as manifestações externas. Utilizando-se de meios e artifícios, elas se
orgulham excessivamente do que realizam e ignoram o princípio da Unidade. Não percebem que
todas as coisas dependem da Unidade do Dao para existirem, já que tal Unidade é a própria Virtude
que concede essência ao ser de cada coisa. A Unidade é a Virtude do Dao – o próprio Dao
enquanto manifestação concreta - na medida em que não está dissociada da essência do Dao.
Segundo He Shang Gong83, tal Unidade é o próprio wúwéi como potência vital cuja eficácia é a
emanação imanente (“filho do Dao”) do Princípio do Dao.
Embora em seu aspecto imanente e concreto essa Unidade seja pequena, na verdade, ela é
extremamente grandiosa. Wang Bi observa que ela é como o Mestre (主-zhǔ) ou o Ancestral (宗
-zong), o princípio sem o qual todas as coisas deixariam de existir. Sem a existência dessa Unidade,
as coisas se deteriorariam e se desmoronariam. No domínio das ações humanas, as pessoas se
desgarram dessa Unidade Originária porque se apegam e se dissipam nas trivialidades, ludibriadas
pela sua auto-imagem de orgulho artificial. Reivindicando o seu mérito sobre as ações,
negligenciam a presença efetiva da potência criadora do Dao. Nesse sentido, compreendemos a
razão pela qual Laozi exorta os príncipes e reis a governarem o mundo baseados na Naturalidade do
wúwéi e na Unidade do Dao. Assim, surge a questão de como seria a ação ético-política em
conformidade com o princípio do Dao. Para Laozi, caso ajam na humildade, os reis e príncipes se
tornarão tal como a água que chega a habitar até mesmo os lugares que a maioria das pessoas rejeita.
Assim, em virtude de não se considerarem “elevados” e “valiosos”, os sábios governantes podem
adquirir e manifestar a Virtude do Dao. Porém, aqueles que perseguem o poder, a riqueza e a fama
só produzem resultados negativos e contrários àquilo que eles mesmos desejavam.
Portanto, o que Laozi está nos dizendo é que se perseguirmos os bens supérfluos, ficaremos
cada vez mais frustrados e insatisfeitos. Seria preferível que cultivássemos uma raiz mais sólida no
interior de nosso ser como aquela dimensão genuína da simplicidade (pedra), ao invés de sermos
enganados pela qualidade superficial do falso brilho da arrogância e da ostentação (jade). Desse
modo, é fundamental que cultivemos o wúwéi cuja eficácia deriva da Unidade Originária do Dao.
Do ponto de vista metafísico, sabemos que o Dao como princípio unificador sustenta a estrutura
física do mundo, e do ponto de vista ético-político, manifesta-se no mundo por meio das ações
nobres dos reis e príncipes humildes.
80
Laozi, cap.39.
81
Wang Bang Xiong, p.181.
82
Wang Bi, p.134.
83
Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho, p.295.

66
Os antigos e sublimes mestres do Dao
eram sutis, prodigiosos, sábios, misteriosos,
profundos e incompreensíveis.

Não sendo compreendidos,


eis que somente poderão ser descritos.

Cautelosos como ao atravessar as águas do rio invernal!


Prudentes como a temer os vizinhos!
Respeitosos como os hóspedes!
Evanescentes como gelo fundente!
Inocentes como madeira bruta!
Imensuráveis como os vales!
Insondáveis como as águas turvas!

Quem poderá silenciar e suavemente se tornar luminoso?


Quem poderá se mover e suavemente viver com serenidade?

Quem preserva o Dao não deseja ficar cheio de si.


Não se saturando, poderá realizar a secreta renovação.84

Os mestres genuínos se resguardam na humildade. Sem serem escravizados pelas aparências


externas, recolhem-se no âmago de sua natureza constante. Nutrindo-se da essência do Dao em seu
estado interior, eles se parecem com bambus leves, flexíveis, enraizados no solo mais fecundo e
luminoso. Assim como o mistério do Dao, são seres de natureza sutil e misteriosa, e por isso mesmo,
incompreensíveis. De maneira poética, Laozi descreve-os como se fossem uma madeira bruta ainda
não esculpida, simbolicamente dotados de uma pureza originária (“inocentes”). Tal como o vazio
misterioso do Vale Montanhoso, repousam no estado do Vazio. São como as águas turvas e
insondáveis. Como diz Wang Bang Xiong85, nessa qualidade de profundidade, esses seres,
comungando com a essência do Dao, saem do estado de escuridão de maneira suave e se tornam
luminosos. Do estado de repouso emergem e se movem com serenidade, gerando as manifestações,
tal como o próprio Dao na sua potência ilimitada. Assim, esses mestres emergem do estado de Vazio
para o estado de Existência, manifestando a potência vital de eficácia inesgotável.
Por isso, não são orgulhosos. Parecem que são simples, turvos e velhos, porém, são
luminosos, límpidos, novos e revigorados. É perceptível o estilo de ambivalência com que Laozi se

84
Laozi, cap.15.
85
Wang Bang Xiong, p.81

67
expressa, contrariando as expectativas dos eruditos e a pragmática mundana do senso comum. Por
exemplo, quando todos pensam que uma pedra é mais vantajosa do que a lama, porque é mais dura
e mais valiosa do que ela, Laozi nos diz justamente o contrário. É a lama suja que é mais preciosa.
Nesse aspecto, Laozi revela na sua sabedoria outra maneira de ver as coisas, outra forma de estar no
mundo, outro modo de percepção. É nesse sentido que Wang Bi86 compreende que podemos
depreender da natureza dos mestres taoístas a presença de uma qualidade sublime: eles são
plenamente capazes de se sintonizar com o Dao e por isso manifestam a suprema naturalidade do
wúwéi, ou seja, ora são capazes de agir em silêncio, ora são capazes de silenciar em movimento.
Manifestam tanto a qualidade transcendente da invisibilidade do Vazio como a qualidade imanente
da eficácia da Existência. Nesse contexto, o silêncio e o movimento são aspectos dialéticos
complementares. Para o senso comum, eles seriam irreconciliáveis, porém, para esses mestres, a luz e
a escuridão se interrelacionam num todo harmônico. Misteriosamente a natureza originária desses
supremos mestres se revela como a natureza da água. Assim, como a água, eles tanto podem se
misturar com o mundo como podem se conservar puros e límpidos como um cristal fulgurante, já
que cultivam o Dao e jamais se deixam arrastar pelas contingências mundanas.
Ora, de acordo com Su Zhe87, esses mestres retornam à sua Natureza Originária cuja
essência é a plenitude do vazio presente na metáfora do centro do vale: sendo como a imensidão
vazia dos vales, eles são tão amplos que abarcam a totalidade de todas as coisas (tal como a natureza
do Dao). Além disso, em virtude de serem como as águas turvas, as suas mentes alcançam uma tal
profundidade que jamais se esgotam. Dada essa amplitude ilimitada, eles se harmonizam com a luz
e se fundem com o pó, isto é, ainda se relacionam de maneira harmônica com o mundo sem se
enrijecerem numa espécie de inflexibilidade físico-mental. É por isso que são sempre revitalizados:
sua natureza originária se conserva e, ao mesmo tempo, se renova a todo momento, pura, vibrante e
plenamente cheia de vida. Eis o que seria a “secreta renovação”. Portanto, é cada vez mais necessário
que cultivemos o desapego, a serenidade, a prudência, a inocência e a revitalização, tal como esses
mestres afinados com o Grande Dao. Desse modo, estaremos sempre revitalizados e harmonizados
com a essência da própria Fonte Vital.

86
Wang Bi, p.50.
87
Su Zhe, p.50-51.

68
O segredo da arte taoísta

Numa das histórias de Zhuangzi, presenciamos o processo de harmonização interior


praticado pelos mestres taoístas. A história relata que um mestre entalhador de madeira é capaz de
construir belíssimas armações de madeira onde são pendurados os sinos. Essa é uma metáfora do
autocultivo interno taoísta que revela o modo com que podemos nos aprofundar na relação com a
nossa Natureza Originária.

Havia um mestre entalhador de madeira que usava a madeira para construir armações com
o objetivo de pendurar os sinos. Suas construções impressionavam as pessoas a ponto de considerarem
que eram trabalhos realizados pelos espíritos. Então, o príncipe Lu perguntou ao mestre:
- Qual é o segredo de sua arte?
- Sou apenas um entalhador. Como teria algum segredo? Apesar disso, só tenho uma coisa a
dizer. Antes de fazer a armação dos sinos, não desperdiço meu Sopro Vital. Faço o jejum da mente
durante três dias. Após três dias de purificação, nem penso mais na obtenção de recompensas e
honrarias. E, durante mais cinco dias de jejum, esqueço dos elogios, das críticas e de todas as
artimanhas. Passando por mais sete dias de jejum, esqueço do meu próprio corpo. Nesse momento, não
penso em fazer nada na corte imperial e me concentro somente na arte. Deixo todas as preocupações
alheias, e depois quando estou nas montanhas da floresta, observo a natureza essencial da madeira.
Ao encontrar a forma mais apropriada da madeira que corresponda à armação, ponho minhas mãos
à obra. Se não tiver essa chance, prefiro não fazer nada. Isso é agir naturalmente de acordo com o
princípio da Naturalidade. Eis a razão pela qual dizem que minha arte é a obra dos espíritos!88

De modo geral, as pessoas aprendem diversas técnicas, porém somente o domínio técnico é
insuficiente. Ainda é necessário um trabalho, um autocultivo no sentido de um conhecimento
aprofundado da natureza de cada coisa. Para os taoístas, esse aprofundamento não é visto como
aprendizado de saberes acumulados, mas mergulho na nossa própria Natureza Originária. Por isso,
o mestre entalhador, antes de conhecer a natureza das coisas externas, pratica a meditação na sua
própria natureza interna. É nesse sentido que mais do que acumulação, esse processo é purificação,
jejum, redução dos apegos e obstáculos mentais que impedem a imersão de si consigo mesmo.

Agir no estudo é crescer a cada dia.


Agir no Dao é decrescer a cada dia.

Decrescer e decrescer até alcançar a Não-Ação.


Através da Não-Ação, tudo se realiza.

Conquista-se o mundo sem transtorno.


88
Fu Pei Rong, p.289.

69
Com transtorno, não se conquista o mundo.89

Nesse capítulo 48 do Dao De Jing, Laozi nos auxilia a compreender o segredo da arte
taoísta. Como comenta Wang Bang Xiong90, quem age no estudo se esforça na aprendizagem
acumulativa no sentido do aprimoramento humanista-confuciano que, por sua vez, pode gerar um
apego ao conhecimento. Por valorizarem os estudos, os confucianos poderiam ocasionalmente se
apegar à erudição livresca. Por outro lado, quem age no Dao diminui o apego mental ao estudo,
apego que em excesso provoca uma espécie de bloqueio em relação ao fluxo da Naturalidade. É por
isso que, de acordo com He Shang Gong91, é preciso que moderemos os sentimentos e os desejos (損情
欲-sǔnqíngyù). Assim, quando cultivamos o Dao, aproximamo-nos do estado de silêncio, do jejum
da mente e do esquecimento do ego. Simplesmente deixamos que a mente repouse no estado de
silêncio límpido e vazio, retornando à contemplação.
É assim que através desse cultivo individual tal como praticado pelo entalhador de madeira
manifestamos a eficácia do wúwéi que consiste na plena atenção no estado de Vazio. Ora, sabemos
que é pelo Vazio que a Existência se realiza. Nesse sentido, Wang Bi92 observa que na medida em
que cultivamos e agimos no Dao, retornamos ao estado do Vazio. Como mesmo diz Laozi, se
agirmos pelo wúwéi, evitaremos as perturbações e os transtornos. Por isso, sem transtornos (无事
-wúshì), o mundo estará em paz e se sustentará por si mesmo e, ainda porque se o sábio governante
pratica o wúwéi, o povo por si mesmo se equilibra naturalmente. Na perspectiva da filosofia do
wúwéi, se desejamos agir forçosamente, causaremos perturbações, uma vez que as ações forçosas se
originam do conhecimento mental (心知-xīnzhī). Assim, quanto mais houver esse acúmulo
excessivo (“crescer”) de ações forçosas, mais haverá prejuízo à dinâmica vital da naturalidade. Ao
contrário, se pudermos, de acordo com Su Zhe93, reduzir os excessos mentais e praticar esse jejum de
esvaziar as preocupações supérfluas até condensar o nosso saber num único conhecimento essencial,
retornaremos à nossa Natureza Originária e, agindo sem apego, sem imposição, permaneceremos
no estado de serenidade e, consequentemente, todos os seres também permanecerão no estado
natural. Como não disputaremos com os outros, alcançaremos um estado de pureza onde nossa
compreensão se tornará mais ampla e luminosa. No mesmo teor filosófico, diz o pensador Hong
Ying Ming (1572-1620 d.C.) em seu livro Raízes da Sabedoria:

89
Laozi, cap.48.
90
Wang Bang Xiong, p.218.
91
He Shang Gong, p.356.
92
Wang Bi e Su Zhe, p.161.
93
Wang Bi e Su Zhe, p.161.

70
Ao nadar na água, o peixe esquece que está na água. Ao voar no vento, o pássaro esquece que
está no ar. Se compreendermos esse princípio, poderemos transcender as coisas externas e desfrutar do
prazer da Naturalidade (天然-tiānrán)94

É esse esvaziamento que permite a conexão com a Naturalidade, ou seja, com aquilo que
por si mesmo se desdobra de maneira autopoiética sem nenhuma coação externa. Hong Ying Ming
emprega a expressão “天然” (tiānrán) com o mesmo sentido equivalente ao “自然” (zìrán), termo
já usado por Laozi, Wang Bi, Liezi e Zhuangzi. Como comenta o mestre Sheng Yin, embora todo
ser humano esteja no mundo sofrendo as influências provocadas pelas cadeias externas, ele
desfrutará da bem-aventurança misteriosa da Naturalidade (天然妙机的乐趣
95
-tiānránmiàojīdelèqù) caso consiga superar tais perturbações. Hong Ying Ming enfatiza que se
cultivarmos a Natureza Originária da mente, poderemos ver o desabrochar da eficácia da
Naturalidade em nossa vida.

Quem é enredado pelos seus desejos sentirá a existência como algo penoso. Quem é livre ao
conhecer a sua Natureza Verdadeira (性真-xìngzhen), desfrutará do prazer da existência. Ao
compreender a tristeza causada pelas perturbações dos sentidos, a mente ordinária será dissolvida.
Após a compreensão da beatitude da Natureza Verdadeira, o mundo sagrado surgirá naturalmente
(自瑧-zìzhen)96.

94
Hong Ying Ming (洪应明). Caigentan shijianghua 菜根谭讲话 (Raízes da Sabedoria com tradução,
comentários e notas do mestre Sheng Yin). Tainan: Xiangguangcaisezhibanshe, 1993, p.317.
95
Idem, p.318.
96
Idem, p.323.

71
Naturalidade

A mente sem nenhum vestígio de cobiça é como floco de neve fundido no forno ou bloco de gelo
derretido sob o sol ardente. Naturalmente surge na mente uma paisagem vastíssima tal como a lua
fulgurando no céu ou como seu reflexo na superfície das ondas.97

Nesse outro trecho de Hong Ying Ming, vemos a importância de uma mente pura,
luminosa, livre das perturbações dos desejos e da cobiça, pois são estes empecilhos que nos afastam
do estado de Naturalidade. Como esclarece Wu Jia Ju:

Quando o ser humano é indulgente com os seus desejos, isso se parece com um dia obscurecido
pelas nuvens. Quando de repente nascem os pensamentos errôneos, perdemos a Natureza Originária
(本性-běnxìng) e nos tornamos escravos dos desejos.98

Com efeito, é necessário compreender que os desejos em si não são positivos nem negativos.
O problema nasce quando somos escravizados por eles, quando os nossos pensamentos se inclinam
para o apego aos desejos. Daí por que o excesso dos desejos e o seu consequente apego sejam os
obstáculos mentais que obscurecem e encobrem a Natureza Originária. Em outro aforismo, Hong
Ying Ming descreve poeticamente o que seria o estado de pureza da Mente Originária:

Quando na mente silenciosa não há mais ondas e sentimos em toda parte a presença de
árvores e colinas verdejantes, é possível conservarmos a excelência da virtude na Natureza Originária.
Em todo lugar veremos os peixes saltarem nas águas e a paisagem auspiciosa das águias voando em
pleno céu.99

É que a nossa mente pode ser alterada pelas mudanças externas devido à ausência de
autocultivo. Nesse contexto, como observa o mestre Sheng Yin, se cultivarmos a mente no seu
estado originário de silêncio, chegaremos a apreciar a presença dos fenômenos externos como se
fossem paisagens de quietude e alegria, mas se cultivarmos a agitação da mente, veremos o
surgimento de ondas tumultuosas.100 Podemos perceber que esse taoísmo poético de Hong Ying
Ming revela a essência autêntica de nossa condição originária. Essa revelação da essência é
acompanhada pela manifestação do estado autêntico de Naturalidade. De modo análogo, Laozi
também dizia:

97
Hong Ying Ming (洪应明). Caigentan 菜根谭 (Raízes da Sabedoria com tradução, comentários e notas
de Wu Jia Ju e Huang Zhi Min) Taipei: Sanmingshuju, 2014, p.322.
98
Idem, p.322.
99
Mestre Sheng Yin, p.315.
100
Idem, p.315

72
Por isso, o Sábio só deseja não desejar.
Nunca estima os bens valiosos.
Aprende a desaprender.
Revertendo os vícios da multidão,
sem intervir, ele favorece a naturalidade de todos os seres.101

Somente compreenderemos o valor do retorno ao estado de Naturalidade na medida em


que pudermos cultivar o desapego em relação ao excesso dos desejos. Se uma pessoa, agindo
caprichosamente pelos seus desejos, quiser intervir e se apossar de algo, fracassará, ou como dizia He
Shang Gong102, estará agindo forçosamente e contrariando a Naturalidade. Se analisarmos a
conduta humana, veremos que a maioria das pessoas excede na satisfação de seus próprios interesses
e, por esse motivo, se apega a um aspecto da realidade. Por consequência, esse apego provoca
descontentamento, egoísmo e imoderação. Entretanto, ao agir na Naturalidade, o sábio apenas
deseja não desejar, libertando-se dos excessos e se desapegando das artificialidades. Como sublinha
He Shang Gong103, ele evita as ilusões mentais em relação aos bens externos, aprende com a
Naturalidade e não com os artifícios do conhecimento (智诈-zhìzhà). Pratica o autocultivo e
preserva em si o Dao genuíno. Se a multidão valoriza os ramos e esquece da raiz, valoriza as flores e
não os frutos, o sábio se volta para o que é a raiz, ou seja, para o que é verdadeiramente essencial.
Desprovido de quaisquer intenções forçosas, pratica o desapego e oculta o seu brilho na
simplicidade (质朴-zhípú), evitando o luxo, a ostentação e o orgulho (奢泰盈满-shētàiyíngmǎn).
Portanto, seria plausível que abandonássemos os artificialismos de modo que possamos agir
de acordo com o fluxo da Naturalidade. Eis o que seria o exercício da liberdade e da singularidade
sem deixar de lado a nossa integração com a totalidade cósmica. Estamos longe daquela ideia de
liberdade baseada na autonomia egocêntrica típica de uma mentalidade excessivamente
individualista, a saber, daquela noção de liberdade de um sujeito confinado na sua própria
subjetividade. Aqui a plena liberdade somente aflora se cultivamos o nosso estado de Naturalidade,
isto é, aquilo que somos por si mesmos de modo autêntico. Esse estado não significa a liberação dos
instintos primários, mas um autocultivo constante que busca a harmonia interna e a sua respectiva
integração com o universo. O exercício de liberdade e de Naturalidade não exclui uma relação
harmoniosa com os outros seres. Seremos livres sem deixarmos de pertencer a essa grandiosa
tessitura cósmica de Unidade Harmônica que inclui a interação de todos os seres. Ao invés de
criarmos mais conflitos e disputas com os outros, procuraremos favorecer aquilo é intrinsecamente
essencial à Natureza Originária de cada ser, e sobretudo, respeitando e acolhendo o modo singular
de ser, considerando que cada ser coexiste com outros seres dentro da vasta totalidade do Dao.

101
Laozi, cap.64.
102
He Shang Gong, p. 457.
103
Idem, p.459.

73
Concedendo liberdade a todos os seres

Roldanas mordazes!
Dúvidas amargas!
Dédalos de vozes esfaqueando o ar!

Com arroubos incontidos, o seu peito se comprimia.


Ondas rumorosas vomitavam uma poeira ardente.

Na sua condição transcendente de Vazio, o Dao é o Princípio Imutável, a Constância


Inominável (常无名-chángwúmíng) que dificilmente pode ser compreendido pela linguagem.
Porém, é no seu estado de simplicidade que os mestres taoístas perceberam a ambivalência daquilo
que é pequeno e aparentemente insignificante. É que, embora seja pequeno, simples e rústico, o
Dao possui uma eficácia ilimitada.

O Dao é a Constância Inominável.

Embora seja pequeno em sua simplicidade,


ninguém no mundo consegue subjugá-lo.

Se príncipes e reis pudessem resguardá-lo,


todos os seres por si mesmos se submeteriam104.

Segundo Wang Bang Xiong105, quando age pela Naturalidade com plena eficácia, o Dao
concede aos seres a ação livre e por isso estes também poderão agir na Naturalidade como se
estivessem habitando na sua morada originária, como hóspedes livres (自在自得-zìzáizídé) fluindo
em equilíbrio natural. Se príncipes e reis pudessem se conservar no estado de simplicidade e
naturalidade do Dao, toda a realidade fenomênica (“todos os seres”) se mostrará como
desdobramento da eficácia imanente do Dao. Como o Dao age pelo desapego da Não-Ação, nem
chegamos a sentir a sua atuação. É a sua simplicidade que em estado de desapego favorece o
desenvolvimento natural de todos os seres sem que haja nenhuma imposição. A ação do Dao se
manifesta como a eficácia da Virtude Misteriosa, cuja ação sutil e misteriosa consiste em gerar sem
se apoderar, em agir sem dominar.

Em núpcias, o Céu e a Terra escorrem suave orvalho


e, sem ser comandado, o povo se equilibra por si mesmo.106

104
Laoz, cap.32.
105
Wang Bang Xiong, p.148.
106
Laozi, cap.32.

74
No trecho acima, Laozi mostra que o Céu e a Terra enquanto manifestações do Dao
favorecem a liberdade de todos os seres e ainda lhes concedem o suave orvalho (“nutrição”) para a
conservação da vida. Em seguida, ele ainda observa que devido à essa eficácia imanente da
Naturalidade o povo se equilibra por si mesmo (自均-zìjūn) sem sofrer nenhum constrangimento, e
por isso, se desdobra numa dinâmica autêntica e autoprodutiva. O Dao age intrinsecamente como
princípio imanente na produção de cada ser. É importante lembrar que o próprio Dao é a
Não-Ação (无为-wúwéi)107, o próprio fluxo da Naturalidade, como aquilo que por si mesmo se
gera, se transforma e se desenvolve sem a interferência alheia. Assim, o princípio da Constância que
rege a ordenação do universo é a força autopoiética da Naturalidade que se manifesta em cada ser
fenomênico. Eis o que seria o princípio de Autogeração (自生-zìsheng)108. É por isso que se os
príncipes e reis pudessem respeitar e cultivar em si esse princípio de Autogeração, todas as coisas se
desenvolveriam e se transformariam por si mesmos autopoieticamente. Isso porque, ao invés de
interferirem na natureza específica de cada ser, eles simplesmente aceitariam a imanência da
autopoiesis do Dao em cada ser vivo, reconhecendo a dimensão da sua singularidade irredutível e
compreendendo que cada ser se desenvolve no seu próprio fluxo autocriativo. Entretanto, o
problema se acentua com o processo de complexificação da linguagem humana no sentido de que
quando se proliferam os nomes (名-míng) se estabelecem convenções artificiais baseadas na
imposição de prescrições restritivas.

Principiando a ordem, surgem os nomes.


Existindo os nomes, é preciso saber cessar.
Sabendo cessar, nada estará em risco.109

Com efeito, os artificialismos se multiplicam em virtude da hierarquização das funções, dos


valores e das normas que fragmentam e dividem cada vez mais a Unidade Originária do Dao. Nesse
sentido, como podemos nos afastar dessas superficialidades causadas por esse formalismo
normativo? O grande desafio é retornarmos ao estado de liberdade que está intrinsecamente
presente na nossa Natureza Originária, cuja raiz autêntica se encontra na própria onipresença do
Dao imanente em todos os seres.

Conserve a Grande Imagem e o mundo fluirá.


Fluirá com imenso equilíbrio sem causar prejuízo.
Músicas e iguarias estancam o peregrino110.

107
Veja o cap.37 onde Laozi diz: “O Dao é a Constante Não-Ação, porém nada deixa por fazer…”
108
Wang Bang Xiong, p.148.
109
Laozi, cap.32.
110
Laozi, cap.35

75
Se no mundo externo há estímulos (“músicas e iguarias”) que distraem a mente e dispersam
a nossa energia vital, podemos nutrir essa energia partir do movimento de interiorização. Contudo,
isso não deve ser visto como evasão ou fuga da realidade, mas como reconexão com o nosso ser
interno profundo. Na medida em que voltarmos o olhar para a interioridade de nosso ser sagrado,
estaremos fluindo com Naturalidade no estado de harmonização (“imenso equilíbrio”). Quando
estivermos harmonizados com o nosso centro interno, o mundo refletirá também a nossa harmonia
interior. Sem sermos arrastados pelos influxos do mundo externo, saberemos cultivar o refúgio no
Dao (“Grande Imagem”), fluindo com simplicidade na dimensão do silêncio onde não há como
prejudicar a si e aos outros. É por isso que, como ressalta Wang Bang Xiong111, se retornarmos à
nossa Naturalidade (回归自然-huíguīzìrán) que é o nosso estado autêntico originário,
perceberemos claramente a presença imanente do Dao. Nisso reside justamente a própria conquista
da liberdade (自在自得-zìzàizìdé) onde sem ser comandado, o povo - que simbolicamente são os
nossos pensamentos, sentimentos e desejos - se equilibra por si mesmo (自均-zìjūn). Nesse sentido,
não haverá mais desarmonias causadas pela ação artificiosa e tampouco as arbitrariedades oriundas
da prepotência humana, uma vez que a verdadeira liberdade ocorre na medida em que agimos na
Naturalidade (自然-zìrán) de acordo com o fluxo autopoiético do Grande Dao.

111
Wang Bang Xiong, p.149.

76
Retorno ao Dao

Diante do cinismo generalizado e de tantas catástrofes causadas pela crise atual, como seria
possível experienciar a essência do Dao? Essa é uma questão fundamental. Somente com o meu
espírito cultivado no estado do Vazio experienciarei a eficácia do Dao. Conservando o Sopro Vital e
cultivando a Naturalidade, o mundo também fluirá no estado de harmonia, retornando à sua
nascente primordial. Esse retorno é a reatualização ritualística do Tempo Sagrado em que os
homens regressam à condição ontológica do começo do mundo (Mircea Eliade). Em diversas
culturas tradicionais, observa-se a prática de certos ritos cuja recitação solene do mito da Criação do
Mundo se constitui como “regeneração” onde as pessoas podem novamente revigorar os fluxos
vitais da sua existência. Tal processo de retorno é a revitalização do ser a partir de uma reconexão
com o Tempo Mítico.
Assim, ao reatualizar a Grande Imagem Mítica do Dao, o homem se reconstrói a si mesmo
numa espécie de renascimento simbólico. Essa Grande Imagem do Dao é o arquétipo (Jung) que,
do ponto de vista cosmogônico, passa a ser concebido como a imagem transcendente do sagrado
numinoso, a grande imagem que não possui uma forma parcial limitada. Embora seja informe, essa
imagem arquetípica é excelente na sua Virtude Misteriosa, pois atua concretamente com eficácia
ilimitada. Como esclarece Wang Bi112, o Dao é capaz de abarcar todas as coisas pelo fato de que é
“sem-forma” e “sem-consciência”, isto é, não apresenta gostos, inclinações e juízos parciais (不偏不
彰-bùpiānbùzhāng) no sentido de que não privilegia uma coisa em detrimento de uma outra. Não
traz as marcas dualísticas de nossa identidade egocêntrica, aquela parcialidade dos juízos limitados.
É nesse aspecto que jamais será delimitado e nem criará diferenciações. Como transcende as
oposições, as formas e os fenômenos do mundo relativo dualístico, ele se revela como a Unidade
Primordial Originária. Eis o motivo pelo qual Laozi nos sugere que “O retorno é o movimento do
Dao. / A suavidade é a sua eficácia. / Todos os seres emergem da Existência. / A Existência nasce do
Vazio.113
É empregada aqui a palavra retornar/retorno (反-fǎn) para caracterizar o movimento cíclico
do Dao. De acordo com Wang Bang Xiong114, embora o Dao chegue às partes mais longínquas, ele
sempre retorna ao ponto originário, isto é, sempre retorna a si mesmo. Esse mesmo movimento de
ida e volta constitui a virtude do Dao que não somente vai ao mais longínquo como também
retorna ao estado primevo da Suprema Harmonia. Em outras palavras, o que Laozi sublinha são as
características da Totalidade e Unidade do Dao, visto que tudo retorna à Unidade Transcendente
que, por sua vez, não exclui o plano sensível, material e concreto das manifestações. Esse retorno das
coisas manifestas e visíveis ao seio da Unidade Transcendente somente se torna possível porque o
Dao não tem a pretensão de se colocar à frente de todas as coisas nem possui o desejo de dominação.

112
Wang Bi e Su Zhe, p.117.
113
Laozi, cap.40.
114
Wang Bang Xiong. p.185.

77
Eis o que é a Suprema Unidade da Harmonia. É nessa atitude despretensiosa que se encontra a
eficácia da suavidade, a saber, o segredo da unificação, da aceitação e da inclusão. Como não possui
a identidade egóica, o Dao não exclui, mas aceita e unifica. É pelo fato de agir a partir da essência do
estado da suavidade e do Vazio que todas as coisas seguem o Dao no seu movimento de retorno.
Assim, as coisas possuem sua “existência”, sua utilidade, seu poder de ação graçasà eficácia
do Vazio e não apenas à sua constituição material como observa Wang Bi115, já que é o Vazio que
concede existência à elas, pois o Vazio é considerado como o aspecto transcendente do Princípio do
Dao, a lei de todas as coisas na medida mesma em que estas retornam à sua essência originária.
Então, se as coisas quiserem existir na sua materialidade, precisam regressar à essência do Vazio no
estado de suavidade (弱-rùo). Su Zhe116ressalta que o silêncio é o estado originário do nosso ser e o
movimento também é o nosso estado quando nosso ser segue o curso natural do Dao. Se as coisas
não estiverem nesse estado de suavidade (silêncio do Vazio), não emitiriam sons nem manifestariam
suas formas. No entanto, geralmente se ignora a condição originária do silêncio, o estado do Vazio
que gera e mantém a concretude (具体-jùtǐ) de todas as coisas. É que o ser de cada coisa existe
somente graças à ação de suavidade do Dao no seu movimento de eficácia inesgotável. Se todos os
seres emergem da Existência e a Existência nasce do Vazio, isso significa que há uma relação de
interdependência que se estende das manifestações fenomênicas da Existência até a essência
propriamente metafísica do Dao.

Convergem trinta raios ao centro da roda,


mas a eficácia da carruagem surge do Vazio.

Usa-se argila para modelar o vaso,


mas a eficácia do vaso surge do Vazio.

Cinzelam-se portas e janelas para a casa,


mas a eficácia da casa surge do Vazio.

Por isso, a Existência gera o proveitoso


e o Vazio produz a eficácia.117

Percebemos assim que alguns exemplos concretos da vida prática empregados por Laozi
como a carruagem, o vaso e a casa evidenciam o princípio metafísico de que a Existência provém do
Vazio, ou seja, o fato de que a eficácia mundana das coisas existentes do mundo tem como sua causa
fundamental a eficácia misteriosa e metafísica do Vazio. Por exemplo, se um copo é proveitoso (利
-lì), ele só o é porque dentro dele há um espaço vazio. Assim, podemos também pensar num quarto
cuja eficácia está no seu espaço vazio. Se o quarto estiver abarrotado de mobília e outros utensílios, é

115
Wang Bi e Su Zhe, p.138.
116
Idem, p.138.
117
Laozi, cap.11.

78
evidente que o quarto perderá sua eficácia (用-yòng). Sem a eficácia do Vazio as coisas perderiam a
sua existência e a sua utilidade. Nesse sentido, não devemos deixar de contemplar o Dao somente
porque ele apresenta o aspecto inacessível e transcendente. Embora seja transcendente, o Dao
nunca cessou de atuar com sua presença imanente. É como um fogo ardendo incessantemente, um
mar luminoso e onipenetrante. Segundo Wang Bi118, o Vazio é a imensa potência que abrange todas
as coisas porque ele é a causa que produz a dinâmica do movimento de todos os fenômenos
concretos. Todas as coisas existentes dependem fundamentalmente da eficácia do princípio do
Vazio. Tal relação metafísica entre Existência e Vazio permeia também o domínio ético-político,
onde, por meio do cultivo do Vazio, o sábio governante realiza a obra sem apego. Em vários
momentos do Dao De Jing, Laozi observa que se um governante ficasse com muito orgulho de si,
seria preferível que reduzisse esse apego excessivo.

Assim, o Sábio recua e ainda prevalece;


retira-se e ainda permanece.
Portanto, agindo sem egoísmo,
não estará realizando-se a si mesmo?119

É por isso que, recuando e se esvaziando de si mesmo, ele poderia governar o reino com
todo o apoio popular. Semelhante ao Dao, seria como um fole de potência inexaurível. Pode se
esvaziar e ainda não se encolher, sempre movente e ilimitado.

O espaço entre Céu e Terra


não se parece com um fole?

Esvazia-se e não se encolhe.


Move-se e ainda transborda.120

Ou como a Fêmea Misteriosa que gera com inesgotável eficácia121. Ao invés de se desgastar
com o excesso de palavras e discursos, seria mais apropriado se conservar no vazio do seu centro
interior122, visto que só sendo Vazio, a sua eficácia nunca se esvai123. Do ponto de vista humano, isso
significa que alcançaremos a autorrealização no mundo se pudermos cultivar o estado de desapego,
retornando à condição originária do Vazio, já que essa condição é primeira e anterior à Existência.
Desse modo, o poder eficaz do Vazio se atualiza na imanência quando nos esvaziamos e nos

118
Wang Bi e Su Zhe, p.37.
119
Laozi, cap.7.
120
Laozi, cap.5.
121
Laozi, cap.6.
122
Laozi, cap.7.
123
Laozi, cap.4.

79
desprendemos do acúmulo de nossos desejos, pensamentos e emoções. É pelo fato de não se apegar
aos méritos de suas obras que o sábio nada perde e ainda realiza a plenitude da sua existência.
É preciso lembrar o que Laozi já dizia sobre a relação entre a Existência e o Vazio em que
um se engendrava pelo outro numa relação de mútua interdependência (cap.2). É evidente que a
multidão das pessoas apenas percebe o lado superficial da realidade, a saber, a dimensão concreta,
sólida e existente das coisas (a roda, a janela, o vaso na sua exterioridade física). Mal se percebe que o
proveito (利-lì) que obtemos das coisas existentes só é possível porque antes existe esse vazio interno,
esse vazio cheio de potência. É necessário que contemplemos o mistério do Vazio transcendendo a
visão limitada, materialista e sólida da realidade. Entretanto, isso não significa que deixaremos de
contemplar o mundo das aparições mundanas. Ainda que possamos contemplar o Vazio na sua
dimensão transcendente, não deixaremos de contemplar as manifestações visíveis e concretas da
Existência fenomênica. É possível que através da contemplação dos fenômenos materiais possamos
gradualmente contemplar o mistério transcendente do Vazio do Dao. Ou talvez seja provável que
possamos contemplar instantaneamente as duas realidades como sendo a mesma e única essência,
uma vez que ambas contemplações caminham juntas e se integram no processo do cultivo
alquímico. É nesse sentido que podemos contemplar as coisas finitas da Existência concreta tanto
como o Vazio na sua essência infinita. Dessa forma, por que não seria até mesmo possível
vislumbrarmos em cada ser vivo os lampejos do mistério e indizível sagrado?

80
Despertando com o Brilho Divino

No fundo de um galpão uma turba de crianças histéricas se esfrega contra a parede. E, no


lado oposto, um bando de músicos alucinados golpeia as cortinas. Embora ainda assistisse com
impotência a toda a cena, uma ânsia indefinida fervilhava na minha mente. Em brevíssimos
lampejos, vi meu cérebro borbulhando como um palco deserto. Havia uma outra cena indizível onde os
homens e os animais se entremesclavam, como se estivessem se preparando para uma viagem ao mar.
Por onde se ofuscava o sol, vi outros corpos crivados de chagas, outras paisagens e túneis inimagináveis.

A concepção de Brilho Divino (神明-shénmíng) é essencial para compreendermos a


filosofia taoísta. He Shang Gong, nos seus comentários ao Dao De Jing, observa que existe uma
harmonia originária entre os Sopros Yin e Yang que pode ser cultivada dentro de nosso corpo. Esse
fluxo harmonioso se encontra no espaço entre o Céu e a Terra, isto é, no espaço físico da
manifestação fenomênica tanto como no espaço interior de nosso corpo. É por isso que “se as
pessoas forem capazes de moderar seus desejos e impulsos, moderar seu apetite por iguarias de sabor
raro e purificar seus cinco recipientes124, o brilho dos espíritos vitais fará neles suas morada”.125 Esse
Brilho Divino necessita de cultivo interior para que não seja ferido ou prejudicado por uma vida
intemperante. É por isso que precisamos ser moderados em relação aos desejos, buscando sempre a
harmonia interna originária que nos revitaliza a cada momento de nossa vida.

Cinco cores cegam a visão.


Cinco tons ensurdecem a audição.
Cinco sabores corrompem o paladar.

Corridas e caçadas enlouquecem o coração.


Bens valiosos desviam a ação humana.

Por isso, o Sábio


realiza pelo ventre e não pelos olhos:
afasta aquilo e alcança isto.126

Nesse trecho, vemos a crítica de Laozi ao excesso de estímulos externos que entorpecem,
brutalizam e perturbam nossos sentidos. Por exemplo, se ficamos excessivamente voltados para as

124
Os cinco recipientes são os nossos cinco espíritos vitais como 1) Espírito (神-shén), 2) Alma (魂-hún), 3)
Corpo (魄-pò), 4) Consciência (意--yì) e 5) Vontade (志-zhì) que correspondem respectivamente aos cinco
órgãos do corpo como coração, fígado, pulmões, rins e baço.
125
He Shang Gong, p.48.
126
Laozi, cap.12.

81
coisas visíveis externas, nossos olhos correm o risco de ficarem “cegos”. He Shang Gong127 diz que
podemos ser dominados pela mente cobiçosa (心貪-xīntān) e pelos desejos de nossa vontade (意欲
-yìyù) e assim causarmos grandes prejuízos ao Brilho Divino. É por essa razão que o sábio deseja
nutrir o Brilho Divino (養神明-yǎng shénmíng) através da moderação da sua vontade e do cultivo
do espírito puro (精神-jīngshén) que habita dentro de seus órgãos internos como coração, pulmão,
rins, baço e fígado. O sábio acalma a mente no silêncio (安静-anjìng). Ao invés de deixar a essência
vital extravasar para fora, ele se concentra no ventre (no seu ser interno/autêntico/essencial) e nutre
a Natureza Originária (養性-yǎngxìng). Portanto, o cultivo interno é justamente cuidar do Sopro
Vital Harmônico (和氣-héqì), evitando desgastes desnecessários ao corpo e ao espírito.
Esse desgaste só acontece, porque, como diz Wang Bi128, nos submetemos às contingências
externas, as quais, em excesso, arruinam a saúde e o equilíbrio de nossos sentidos e órgãos vitais. Na
leitura de Su Zhe129, devido à negligência em relação ao cuidado do corpo, ficamos à mercê do
domínio dos objetos externos. E na medida em que estiverem apegados aos bens ilusórios do poder,
da riqueza e da fama, os sentidos humanos sofrerão uma crescente deterioração e o indivíduo ficará
enredado pelas atividades ambiciosas (“corridas e caçadas”). Portanto, é preciso parar essa busca
desenfreada. No cultivo interior, o sábio se afasta das coisas supérfluas, se desapega dos bens
externos e retorna à sua realidade essencial originária. Assim, agindo pela Não-Ação e
consolidando-se na serenidade, ele cultiva a moderação, enfraquece a ambição dos gananciosos e
conduz as pessoas ao estado de wúwéi (Não-Ação) e de wúyù (Não-Desejo), promovendo assim a
harmonia interior e a plenitude da vida. Portanto, o cultivo do Brilho Divino se torna um caminho
extremamente indispensável no processo de iluminação.

Quem contempla o pequeno se ilumina.


Quem conserva o suave se fortalece.

Usufruindo da luz, retornando à Iluminação,


não haverá perda e dano ao corpo.

Isso é seguir a Constância.130

Esse processo de iluminação acontece na medida mesma em que cada aspecto da vida ganha
uma nova coloração. É como se olhássemos o mundo com sensibilidade refinada e cada um de seus
aspectos se revelasse com uma característica singular. Por isso, o ato de contemplar o pequeno e
conservar a suavidade nos leva ao autoconhecimento que, por sua vez, nos permite retornar ao

127
He Shang Gong, p.95-97.
128
Wang Bi e Su Zhe, p.39.
129
Wang Bi e Su Zhe, p.39-40.
130
Laozi, cap.52.

82
brilho interno (反其光明于内-fǎnqíguāngmíngyúnèi)131 junto com a moderação da inteligência,
das habilidades e de outras qualidades de nosso caráter. Desse modo, ficaremos mais atentos para
que não sejamos arrogantes a ponto de ofuscar o brilho das outras pessoas com o brilho ostensivo
de nossa luz (arrogância).

Seremos como os pássaros de olhos contemplativos que perscrutam todas as regiões da Terra.
Voaremos com o Vento fulgurante e ergueremos as mãos alvoroçadas. Assim, com sinceridade e
reverência, observando a própria vida, seguiremos os rastros do Dao do Céu.

Em outras palavras, se contemplarmos a Natureza e os fenômenos do mundo, tal como nos


sugere o hexagrama Contemplação do I Ching, agiremos como “pássaros de olhos atentos”,
translúcidos e visionários. E se seguirmos o caminho da suavidade e da moderação, evitaremos o
desgaste desnecessário de nosso corpo e espírito. Como destaca He Shang Gong132, contemplar o
interior (内视-nèishì) é preservar o brilho divino que habita nossos cinco órgãos internos, tomando
cuidado para que nosso espírito vital (精神-jingshén) que anima esse brilho divino não se disperse
na exterioridade. Em última análise, se não abusarmos de nossos órgãos sensoriais de modo
excessivo, desenvolveremos cada vez mais a prática da moderação de acordo com a Constância (常
-cháng) e o caminho da Iluminação. Daí por que esse cuidado em relação à preservação do brilho
divino seja tão valioso para nosso autoconhecimento.

Quem conhece os outros é inteligente.


Quem conhece a si mesmo é iluminado.

Quem vence os outros possui força.


Quem vence a si mesmo é potente.

Quem sabe ser autossuficiente é rico.


Quem age com força tem vontade.

Quem não perde sua morada permanece.


Quem morre sem fenecer se torna imortal.133

A verdadeira busca de autoconhecimento (自知-zìzhi) é também autossuperação (自我超越


-zìwǒchāoyuè), onde o eu autêntico se ilumina e deixa de se apegar às futilidades. Quando nos
reconectamos com o nosso eu autêntico, deixamos de intervir nas coisas de maneira artificial. A

131
He Shang Gong, p.380.
132
Idem, p.380.
133
Laozi, cap.33.

83
eficácia da Não-Ação passa a ser visto como a nossa autêntica atividade de compreensão iluminadora
(明-míng). Segundo Wang Bang Xiong134, esse conhecimento de si mesmo não é mero
entendimento, mas compreensão essencial de nossa Natureza Originária Autêntica (天生本真
-tiānshēngběnzhēn). Assim, compreendemos por que “quem conserva o suave se fortalece”, visto
que quando o ser humano alcança a plena autossuficiência no estado de suavidade, ele deixará de
agir com imposição (强行-qiángxíng). Nada o deixará insatisfeito, visto que já se abrigou na morada
originária do Dao, tornando-se assim como o “vale do mundo” e autossuficiente com a Constante
Virtude, cultivando o estado de simplicidade natural. Não obstante, se ele se desconectar da raiz da
Naturalidade Originária, da luz de sua Fonte Vital, ele ficará vagando a esmo, exausto e perdido.
Logo, a vida perene se tornará uma mera fantasia sem sentido e a morte um fenômeno angustiante.
Desencaminhando-se na busca insaciável de bens supérfluos, ele se afastará cada vez mais da
morada autêntica. Com a chegada da morte, é evidente que haverá uma imensa angústia pelo fato
de que durante toda a vida ele desperdiçou a energia do seu corpo e espírito numa perseguição
ilusória. Entretanto, caso tenha cultivado o que é autêntico, mesmo que o seu corpo venha a
perecer, sua mente originária continuará radiante e imortal.
Como observa Wang Bi135, quem vence a si mesmo jamais será escravizado pelas forças
exteriores. Isso porque quem utiliza a sua energia vital para se iluminar nem desejará intervir
forçosamente no mundo, seja agindo com arbitrariedade, seja sendo governado pelas influências
externas. Ao conhecermos a nós mesmos de modo autêntico, tornamo-nos autossuficientes e
autênticos. Seremos como os pássaros de olhos contemplativos de nossa Natureza Originária. Essa
Natureza Originária é imortal, porque, no fundo, nunca nasceu nem morrerá. Embora tenhamos
de atravessar por inúmeras vicissitudes e acidentes infelizes, a Natureza Originária jamais sofrerá
quaisquer danos, já que é uma essência eterna fulgurante que transcende todas as diferenciações
dualísticas do mundo contingente.

134
Wang Bang Xiong, p.154.
135
Wang Bi e Su Zhe, p.112.

84
Mergulhando na não-dualidade

O que parece ser o sucesso na verdade não é sucesso. O que parece ser o fracasso também não é
fracasso. A ilusão surge na medida em que concebemos a existência do sucesso ou do fracasso e, assim,
ignoramos o processo de todas as transformações. No fundo, tampouco existe a ilusão. Não é necessário
nos afligirmos com a infelicidade causada pelas circunstâncias externas nem nos alegrarmos com a
felicidade provocada por nós mesmos. Saber agir e cessar de acordo com o momento adequado é algo
que ultrapassa os limites do conhecimento humano.
Quem nutre confiança no Destino não possui a mente que estabelece diferenças entre o eu e o
mundo. Em vez de distinguirmos entre o eu e o mundo, seria preferível que fechássemos os olhos e
ouvidos tal como se permanecêssemos de costas para as profundezas do fosso que protege nossa cidade.
Desse modo, seria possível evitarmos uma queda iminente causada pela vertigem. Eis por que se diz
que a vida e a morte são determinados pelo Destino e a riqueza e a pobreza dependem das
circunstâncias. Quem se enfurece contra a morte prematura ou contra a pobreza não conhece o Destino.
Porém, quem se defronta com a morte sem ser abalado pelo medo e enfrenta a pobreza sem
preocupação tem conhecimento do Destino e se adapta às circunstâncias.
Há pessoas de muita inteligência que mensuram o benefício e o prejuízo. Avaliam a verdade e
a falsidade. Preveem e adivinham os sentimentos humanos. Elas consideram sempre o ganho e a perda
como apropriados à cada situação. Por outro lado, há pessoas de pouca inteligência que não mensuram
o benefício e o prejuízo. Nunca avaliam a verdade e a falsidade. Jamais preveem e adivinham os
sentimentos humanos. Na verdade, haverá alguma diferença entre mensurar e não mensurar, entre
avaliar e não avaliar, entre prever e não prever? Por isso, somente no momento em que pudermos
mensurar as coisas tanto como deixarmos de mensurá-las, estaremos plenamente realizados e não
haverá nenhuma perda. Eis por que não há uma realização absoluta e tampouco uma perda
completa, já que tanto a realização como a perda sucedem naturalmente por si mesmas.136

Nessa história do Vazio Perfeito, Liezi busca uma visão da não-dualidade que transcenda as
oposições criadas pela nossa mente. Quando a mente discerne um determinado objeto, ela o avalia
conforme seu juízo de gosto. Ela oscila de um extremo a outro num estado de transitoriedade
permanente, num fluxo de pensamentos, sentimentos, percepções e sensações tão heterogêneas que
parece ser atraída por um turbilhão de forças antagônicas. No entanto, é ela mesma que produz tais
conceitos dicotômicos como certo/errado, ganho/perda, vida/morte, benefício/prejuízo e assim se
prende às suas próprias ilusões. Desse modo, tais conceituações valorativas moldam realidades como
se fossem valores existentes em si mesmos, quando, na verdade, são apenas projeções de nossos
juízos mentais.

136
Liezi. Vazio Perfeito, Editora Mantra, 2020, p.201.

85
A ilusão nasce da concepção subjetiva de nossa mente (心-xīn) e não propriamente do
mundo existente. Na tradução do seu livro do chinês antigo para o moderno, Zhuang Wan Shou137
sublinha que Liezi atribui a causa de tal ilusão à nossa concepção mental e subjetiva (主觀的觀念
-zhǔguāndeguānniàn) que cria o fato de que algo é ou existe, quando, na verdade, ele apenas parece
ser (像-xiàng). Com efeito, no texto original, as palavras chinesas usadas por Liezi se referem no
plano semântico tanto ao sentido de “semelhança” (a ideia de algo que se assemelha a uma outra
coisa) como ao sentido de “aparição” enquanto “fenômeno”, “figura exterior”, como por exemplo,
o aspecto físico e exterior do nosso semblante. Portanto, um evento ou uma coisa não passa de uma
espécie de aparência fenomênica cuja realidade não é suficientemente substancial, embora possa
aparentemente se assemelhar ao que é verdadeiro. Em outras palavras, na medida em que surge nas
nossas percepções e nos aparece como tal na mente, um fenômeno nos induz a acreditar que ele
existe. É por isso que somos ludibriados pela sua “aparição”. Todavia, a sua existência ou não
existência dependerá fundamentalmente de nossas crenças e concepções mentais. Não é a forma
real em si da coisa que me leva a acreditar nela. Ao contrário, quanto mais acredito que ele existe
enquanto “sucesso” ou “fracasso”, mais o fenômeno me aparece como realidade em si. “No fundo,
tampouco existe a ilusão”, como Liezi explica. “Não é necessário nos afligirmos com a infelicidade
causada pelas circunstâncias externas nem nos alegrarmos com a felicidade provocada por nós
mesmos.”
De certo modo, a felicidade e a infelicidade são noções projetadas pela mente humana na
medida em que, ao se deparar com os eventos externos, cria sobre eles uma determinada
interpretação e, portanto, uma avaliação subjetiva de acordo com os seus critérios, gostos e
caprichos, os quais, por sua vez, decorrem de certas cristalizações dos hábitos, experiências e crenças
pessoais. É a mente subjetiva do indivíduo com todo o seu contexto histórico-pessoal que atribui
valor às experiências e confere sentido de felicidade/infelicidade àquilo que lhe acontece. Nesse
sentido, os fenômenos se tornam bons ou ruins, felizes ou infelizes pelo fato de que são
interpretados de acordo com os juízos valorativos criados pelos nossos pensamentos. É provável que
aquilo que considero felicidade não o seja para uma outra pessoa, e isso acontece justamente em
função da diversidade de juízos, crenças, hábitos, experiências e concepções que variam de
indivíduo para indivíduo. Há inúmeras concepções de felicidade, as quais nem sempre são
condizentes umas com as outras. Ademais, mesmo num indivíduo o conceito de felicidade varia
conforme as mudanças ocorridas na vida. É evidente que se os conceitos de felicidade/infelicidade
derivam de nossas interpretações subjetivas limitadas, o que realmente compreendemos quando
somos confrontados com um determinado aspecto do mundo fenomênico? Com efeito, aquilo que
na aparência fenomênica se mostra como “felicidade” ou “infelicidade”, na verdade, não é nem uma
coisa nem outra. Trata-se simplesmente da maneira pela qual avaliamos subjetivamente a realidade,
mas, decerto, a própria realidade escapa de nossas conceituações, pois ela é mais vasta e

137
Cf. Zhuang Wan Shou (狀萬夀). Lièzǐ dúběn列子讀本 (Liezi com tradução e notas). Taipei:
Sanminshuju, 2009.

86
incognoscível. Tal ordem de natureza desconhecida é o Decreto/Destino (命-mìng) cuja natureza se
revela incomensuralvemente obscura para o nosso horizonte epistemológico. Não somos capazes de
compreendê-lo de maneira adequada devido à limitação de nosso conhecimento.

Eis por que se diz que a vida e a morte são determinadas pelo Destino e a riqueza e a pobreza
dependem das circunstâncias externas. Quem se enfurece contra a morte prematura ou contra a
pobreza não conhece o Destino. Porém, quem se defronta com a morte sem ser abalado pelo medo e
enfrenta a pobreza sem preocupação tem conhecimento do Destino e se adapta às circunstâncias.138

No entanto, vida e morte, riqueza e pobreza não dependem exclusivamente das


conceituações subjetivas, já que também são fenômenos que decorrem do Destino, a saber, do
próprio Dao que subjaz e permeia toda a vastidão do universo. Por isso, é tão incompreensível, tão
irredutível à nossa compreensão. É impossível compreender o Destino através do uso da mente, da
inteligência ou dos cinco sentidos. As pessoas guiadas pela sua mente limitada julgam os fatos de
sua existência e se equivocam nos seus juízos valorativos, visto que consideram ser possível
apreender algo que é de natureza totalmente inapreensível.
Nesse sentido, tanto aqueles que julgam de acordo com os critérios de benefício/prejuízo
como aqueles que nem sequer buscam tal avaliação acabam não sendo muito distintos entre si.
Avaliar a verdade e a falsidade, mensurar o benefício e o prejuízo são operações de nossa
conceituação mental. Ora, tanto avaliar como não avaliar decorrem também da nossa valorização ou
desvalorização: são atitudes que se definem numa relação de oposição e só existem no mundo
conceitual e relativo da mente ordinária. Portanto, avaliar e não avaliar, mensurar e não mensurar
não diferem absolutamente entre si, visto que carecem de uma substancialidade real. Ambas
atitudes são igualmente limitadas. Com efeito, é a nossa mente dualística que escolhe se deseja
avaliar ou não avaliar. E, se dentro de tal âmbito restrito, ela decide avaliar ou não avaliar, agirá
sempre de acordo com os critérios do que lhe é benéfico e prejudicial. Todas as suas ações jamais
escapam de tais conceitos mentais que apenas se condicionam um ao outro na contraposição: assim
como o que chamamos de “alto” somente é “alto” em oposição ao que é “baixo”, do mesmo modo
o que é “benéfico” somente se define e existe em oposição ao que é “prejudicial”. Tais noções
forjadas pela mente ordinária se apoiam uma na outra numa relação de mútua e relativa
interdependência. Nesse caso, se desconhecemos essa ordem incognoscível do Destino, seria
preferível que fôssemos menos obstinados em sustentar as crenças de certo/errado ou de
ganho/perda. Assim, seria melhor que mantivéssemos uma atitude de observação daquilo que
fenomenologicamente ocorre no mundo do que sustentarmos uma crença confusa a respeito de
algo que nem sequer compreendemos. É claro que isso não nos levará a uma visão fatalista e
pessimista. Trata-se justamente do contrário: como não há certeza absoluta de que haja uma
realização completa ou uma perda completa, ou em outras palavras, como não há uma “essência

138
Idem, p.203.

87
substancial” do que seja o “ganho” ou a “perda”, já que ambos são suscetíveis de formulações
arbitrárias e subjetivas, então seria mais apropriado seguirmos com Naturalidade o fluxo dos
acontecimentos e agirmos com confiança naquilo que surge naturalmente por si mesmo.

Quem nutre confiança no Destino não possui a mente que estabelece diferenças (二心-érxīn)
entre o eu e o mundo. Ao invés de distinguirmos entre o eu e o mundo, seria preferível que fechemos os
olhos e ouvidos tal como se permanecêssemos de costas às profundezas do fosso que protegem nossa
cidade. Desse modo, seria possível evitarmos uma queda iminente causada pela vertigem.

Portanto, é necessário frisar que essa mente que estabelece diferenças entre o eu e o mundo
é a mente dualística, porque na expressão “mente que estabelece diferenças”, a ideia fundamental se
encontra precisamente na junção de dois ideogramas chineses “èr” (二-èr) e “xīn” (心-xīn), que
significam respectivamente “dois/dualidade” e “mente”, compondo aí o significado de mente
dualística, a saber, aquela que opera na discriminação dos fenômenos em termos de oposição. Ora,
se não existem efetivamente uma diferença entre o “eu” e o “mundo” e se tal distinção é apenas
produto da atividade da mente dualística, para que continuaríamos ainda apegados a tais conceitos
arbitrários? Assim, se a mente é responsável pela criação de tais diferenciações, basta que nos
desapeguemos de tal atividade discriminativa.

88
Habitando nas profundezas

Um boneco desmanchado
Uma prateleira fustigada
Uma clarineta dilatando as fronteiras
enquanto os escorpiões de ouro se despregam atrás das estantes.

Pelos desvãos escuros,


ainda consigo ouvir as escamosas contrações
daquele menino de pálpebras cintilantes
emergindo pouco a pouco das ondas assombrosas da Morte.

Mesmo que o Dao seja indistinto, insondável e transcendente, ainda assim ele nos concede a
essência vital, pois no Vazio se manifesta a eficácia imanente da Virtude. Wang Bi139 diz que o Dao é
o princípio do Vazio ao qual todas as formas da Suprema Virtude retornam. Ele é indistinto e
informe, porém é o fundamento que subjaz a todas as manifestações fenomênicas. É por esse
motivo que o Vazio é o próprio princípio da Vida para o qual todos os seres retornam como se
regressassem à sua morada essencial. O Dao enquanto esse princípio de Unidade habita dentro da
natureza humana e nunca esteve fora dela. É por isso que ainda que seja sutil e transcendente, o
Dao é verdadeiro, já que “na sua profundeza obscura habita a essência vital”. É devido a tal essência
vital que todas as coisas são geradas. É por isso que He Shang Gong140 observa que o Dao doa a
essência vital às coisas e todos os seres passam a existir. Nossa existência nesse mundo se deve ao
princípio do Dao. Como o Dao é tanto o indistinto, “a forma da não-forma” quanto a existência
dos seres, então ele assume a ambivalência de ser ora um estado de silêncio, ora um estado de
movimento. Em outras palavras, ele se revela tanto na sua dimensão transcendente (形上
-xíngshàng), como na sua dimensão imanente (形下-xíngxià) como bem destacou Yang Tang
Ping141.

As formas da Suprema Virtude


emanam tão somente do Dao.

Enquanto existência,
o Dao é insondável e indistinto.

139
Wang Bi e Su Zhe, p.73.
140
He Shang Gong, p.167.
141
Yang Tang Ping e Wang Chao Hua. Laozi 老子 (Laozi com tradução, comentários e notas). Beijing:
Zhonghuashuju, 2017, p.81.

89
Insondável, indistinto!
No seu íntimo existe a imagem.

Indistinto, insondável!
No seu íntimo existem os seres.

Na sua profundeza obscura


habita a essência:
essa essência tão genuína
em cujo íntimo existe a confiança!

Desde os primórdios até o presente,


seu nome não se desvanece
e se vislumbra o princípio de todas as coisas.

Como conheço a origem de toda existência?


Por meio do Dao.142

Na medida em que ocorre o movimento de emanação da Existência, o Dao se desdobra na


eficácia da Virtude. Nesse sentido, a Virtude é o próprio Dao na sua eficácia imanente. Podemos
dizer que a Virtude é a forma expressiva do Dao enquanto este último é o seu conteúdo. A Virtude
precisa do Dao para que haja efetivamente a produção da eficácia (用-yòng) assim como o Dao
precisa da Virtude para que ocorra a manifestação da sua transcendência. Ora, esse aspecto
imanente da Virtude é compreendido como a união/interação entre os Sopros Yin e Yang
constituindo a Existência (有-yǒu) fenomênica de todas as dez-mil coisas. O paradoxo desse
fenômeno reside justamente em que, embora o Dao tenha a característica da Transcendência
(indistinto), ainda assim se manifesta nas ações virtuosas do sábio e em todos os aspectos dos
fenômenos mundanos. Nesse sentido, o sábio é aquele que é capaz de perceber no estado de
indistinção a essência genuína atemporal que transcende as oposições de bem/mal, verdadeiro/falso,
certo/errado. Ele possui a consciência de que sempre o Dao habitou nas profundidades da sua
mente tal como uma joia límpida irradiando o seu esplendor fulgurante, “essa essência tão genuína
em cujo íntimo existe a confiança”. É a partir dessa profunda e inabalável intuição que se vislumbra
o princípio eterno do Dao. Nesse sentido, basta que contemplemos esse Princípio
Transcendente-Imanente na nossa existência, na nossa respiração, no nosso pensamento, nas
profundezas da nossa mente, na nossa vida interior, na nossa pele, no movimento de nossa
caminhada, no estado de plenitude de cada instante para que sintamos a origem de todo mistério da
Vida.

142
Laozi, cap.21.

90
Harmonia entre corpo e espírito

Yang Bu perguntou ao seu irmão mais velho Yang Zhu: “Há dois irmãos que vivem na
sociedade. São semelhantes na idade, na riqueza, no talento, na aparência física, porém se distinguem
entre si no que diz respeito ao tempo de vida, à posição, à fama e ao reconhecimento. Sinto-me confuso
diante desse fenômeno.”
Seu irmão Yang Zhu respondeu: “Gostaria de expor-lhe uma máxima dos antigos da qual eu
guardo a lembrança. Aquilo que foge de nossa compreensão, mas existe na realidade, pode ser
chamado de Destino. Atualmente há pessoas ignorantes de mente confusa e desordenada. Agindo de
modo arbitrário, ora realizam as coisas, ora não realizam. Como um dia sucede ao outro e não há
ninguém que conheça sua causa, eis o que se chama Destino. Nutrir confiança no Destino é não
diferenciar entre vida longeva e morte prematura. Nutrir confiança na Ordem Genuína é não
distinguir entre ser e não-ser. Nutrir confiança na Mente é aceitar condições favoráveis e adversas.
Nutrir confiança na Natureza é não ser guiado pela paz e pelo perigo. No fundo, é tão fundamental
cultivar a Confiança como não a cultivar: eis o que seria a verdadeira autenticidade. Para onde
devemos ir e realizar as coisas? Por que existem a tristeza e a alegria? Por que razão agir ou não agir?
Como o livro do Imperador Amarelo dizia: O homem da suprema realização permanece em repouso
como se estivesse morto e se move nas suas ações com prudência. Ele não sabe por que está em repouso
nem o motivo de não estar em repouso. Não sabe por que se move e tampouco o motivo de não estar em
movimento. Ele nunca modifica ou conserva seus sentimentos e atitudes apenas para se adaptar aos
pontos de vista das pessoas ordinárias. Em conformidade com o Destino, ele ora vem ora vai, ora entra
ora sai, seguindo sua própria natureza. Quem seria capaz de impor obstáculos no seu caminho?143

Num diálogo entre dois irmãos Yang Pu e Yang Shu contado por Liezi, percebe-se que há
fenômenos que são irredutíveis à nossa compreensão. Há fenômenos que se sucedem numa vasta
realidade incognoscível e que jamais serão reduzidos às nossas crenças limitadas. Liezi chama essa
realidade inefável de “Destino” por simples convenção, pois em si mesmo ela é indizível. Com
efeito, a atitude mais adequada seria rompermos com a operação discriminativa da mente dualística
que distingue as coisas de acordo com suas normas subjetivas e arbitrárias. Enfatiza-se aqui a
confiança no Destino (命-mìng) como um modo de ser que não se ancora mais na concepção
diferenciadora entre o que é (是-shì) e o que não é (非-fēi): ao invés de uma mera aceitação passiva,
descortina-se um modo de ser da verdadeira autenticidade, um modo de ser que acompanha e segue
com confiança e naturalidade aquilo que se dá por si mesmo. Isso se assemelha ao que Laozi diz no
capítulo 16: “Retorno ao destino é Constância. Conhecer a Constância é Iluminação”. É o modo
de estar harmonizado com a Ordem (理-lǐ) genuína da realidade, isto é, com o próprio Dao. Não se
trata de postura relativista e inconsequente, mas de compreensão holística de que há uma dimensão
da realidade que transcende as conceituações dualísticas e os condicionamentos epistemológicos.

143
Liezi, p.197.

91
Nesse sentido, o homem superior (至人-zhìrén) transcende as oposições do mundo relativo.
Ao agir no mundo, ele segue o fluxo dos fenômenos e acolhe tanto o movimento como o repouso,
mas sem ser alterado pelas condições instáveis que lhe sucedem. Transcendendo tais oscilações,
compreende que tanto a alegria quanto a tristeza, tanto a dor quanto o prazer pertencem à
totalidade do Dao. Aqui a transcendência não é negação do mundo; ao contrário, trata-se de um
modo de compreensão e aceitação daquilo que sucede na ordem natural do Destino. Como diz
Liezi, nutrindo confiança no mundo, viveremos com mais autenticidade. Cultivando a confiança,
seremos mais capazes de superar as inúmeras contingências da vida. É por essa razão que Liezi nos
conduz a uma compreensão mais ampliada em relação às situações contingentes de nossa existência.
É preciso tanto se mover silenciosamente como se silenciar através do movimento. Nesse estado de
transcendência das oposições, ao invés de valorizarmos uma coisa em detrimento da outra,
cultivaremos a harmonia dos contrários. Assim, transcender a vida e a morte, o sofrimento e o
prazer e todas as oposições significa, em última instância, contemplar o mundo de modo dinâmico
e, ao mesmo tempo, agir no mundo com liberdade, aceitação, desapego e consciência iluminada.

Quem se plenifica de Virtude


assemelha-se ao recém-nascido.

Insetos venenosos não o aguilhoam.


Animais ferozes não o apanham.
Aves de rapina não o atacam.

Com ossos frágeis e tendões flexíveis,


ele agarra com firmeza.

Desconhecendo a cópula de macho e fêmea,


seu falo se ergue como a plenitude da essência.

Grita o dia inteiro e não fica rouco:


é a própria plenitude da harmonia.

Assim, conhecer a harmonia é Constância.


Conhecer a Constância é Iluminação.

Fortificar a vida é infelicidade.


A intenção que intervém no Sopro Vital é dureza.

No ápice da rigidez, as coisas definham.


Isso se diz: não seguir o Dao.

92
Quem não segue o Dao, em breve findará.144

Desse modo, transcendendo as oposições dualísticas, podemos chegar a uma existência mais
plena, cultivando a essência vital (精-jing). É evidente que nesse processo de cultivo cada ser
humano terá seu ritmo de aprendizagem e assimilação. Hoje em dia prevalece na nossa sociedade a
ideia de que tudo que aprendemos por meio do acúmulo de conhecimento devemos aplicá-lo nas
nossas ações imediatamente. Se, por exemplo, um indivíduo com seus valores capitalistas entra em
contato com a cultura antiga da filosofia da Yoga, ele já pensa em como aplicar aquele saber
tradicional no mundo modernizado. Ao incorporar um conhecimento que provém de outro
sistema cultural, o indivíduo busca acomodar aquele universo singular ao seu sistema de valores, ao
invés de compreender primeiro que aquela tradição possui uma história peculiar de ensinamentos,
modos de transmissão, assimilação e compreensão da realidade. É como se quisesse transplantar as
ondas do mar para seu aquário de estimação. As ondas do mar são vastas, selvagens, profundas e
múltiplas, enquanto o seu aquário é limitado, raso, domesticado e fechado. Essa mentalidade
baseada na racionalidade técnico-instrumental ignora a dimensão humana subjetiva com o seu
tempo de assimilação interna. Com a sua ideologia instrumental capitalista desconsidera o aspecto
humano-subjetivo-individual de cada ser humano naquilo que ele tem de singular. Além disso, esse
discurso racionalista e instrumentalizante visa somente a lucratividade, o excesso de acumulação de
saberes/informações e o falso pragmatismo da eficiência. Valoriza o ritmo acelerado, a aplicação
técnica, o bom desempenho da performance, o trabalho compulsório, a rentabilização e a
idealização da felicidade. É por isso que induz ao excesso de consumismo, de individualismo e de
autogratificação efêmera dos prazeres dos sentidos através do culto às imagens espetacularizantes
que têm como função capturar os nossos desejos. Assim, essa ideologia artificializante da imagem
impõe seus valores, seus critérios de gosto, sua visão de mundo.
Nesse sentido, percebemos como a visão taoista pode ser compreendida como uma crítica
àquela conduta que se sustenta na artificialidade. Essa conduta busca a felicidade na exteriorização
supérflua, na ostentação momentânea, na extravagância luxuriosa e no dispêndio excessivo. Em
contrapartida, utilizando a imagem poética do recém-nascido, Laozi nos leva a refletir sobre um
outro modo de ser e perceber a realidade. O recém-nascido possui a plenitude da essência vital que é
a força da Existência presente em todos os seres, ou seja, a face imanente do Dao cuja força essencial
constitui o movimento dinâmico da vida. Se cada um de nós se assemelhar ao recém-nascido cheio
dessa eficácia da Virtude, ou seja, se cultivar o estado de ser da Naturalidade, enraizando-se no
estado harmonioso do wúxin (Não-Mente) e do wúwéi (Não-Ação), todas as falsas barreiras
erguidas entre os seres vivos simplesmente desaparecerão e assim nem haverá mais ameaças e desejos
de prejudicar os outros.

144
Laozi, cap.55.

93
De acordo com Wang Bang Xiong145, como o recém-nascido alcança a plenitude da
Harmonia (和-hé) e da Constância (常-cháng), ele simplesmente age no seu estado natural que é o
estado de equilíbrio do Sopro Harmônico do Vazio. Esse estado primordial, autêntico e originário
de ser é a beleza inata, natural, luminosa e autoexistente que reside no coração de todos os seres.
Geralmente, depois de toda uma vida cultivada na Constância do Dao, os mestres taoistas chegam a
saborear a plenitude da sabedoria natural no auge de sua velhice. Em outras palavras, nesse longo
processo de cultivo da Constância, quando a mente e o corpo não quiserem mais ferir o Sopro Vital
(气-qì), não sentiremos mais a necessidade de competir com os outros e de ferir ninguém, e
portanto, nem temeremos mais a ameaça dos “animais venenosos”. Alcançaremos a plenitude da
pura essência e realizaremos a dimensão da harmonia interior, aquela união alquímica entre corpo e
espírito. Essa atividade alquímica se refere à nossa autêntica transformação no sentido de evitarmos
a dispersão nas coisas externas, o apego às ações artificiais, às disputas e às rivalidades supérfluas.
Portanto, preservaremos a nossa energia psico-física se cultivarmos esse trabalho alquímico interno.
Porém, se desejarmos fortificar a vida (益生-yìsheng), isto é, interferir no desenvolvimento natural
do Sopro Vital, acabaremos desgastando a nossa Essência Vital e estaremos correndo o risco de uma
morte prematura. Isso sucede porque a mente humana apegada às aparências externas desgasta
continuamente a sua essência vital ao invés de cultivá-la e refiná-la no processo de alquimia e de
retorno ao estado de ser recém-nascido. Ou seja, no seu apego excessivo, perde a conexão com o
estado de Naturalidade, com a essência do Dao e assim avança rapidamente para o definhamento.

145
Wang Bang Xiong, p.251.

94
Comunhão Misteriosa

Num diálogo entre Hong Meng e Yun Jiang contado no capítulo Abrindo os males,
Zhuangzi nos leva a pensar no processo de transcendência associado à transmutação corpórea. O
corpo é elemento necessário nesse processo de transmutação espiritual, mas jamais algo a que
tenhamos de nos apegar. No processo de integração ao Todo, é necessário desapegar-se do corpo e
da identidade do eu para que haja uma autêntica transmutação de si:

Hong Meng disse: ‘Viajar por toda parte, mas sem saber o que buscar. Mover-se livremente
sem saber para onde ir. Quem viaja desse modo se torna livre e contempla o ilimitado. De que mais eu
precisaria saber?’
Yun Jiang acrescentou: ‘Eu também me movo à vontade e o povo me segue. É desse modo
apropriado e necessário que governo o povo. Por isso, todo povo depende de mim nesse momento. Espero
que possa obter a sua instrução’.
Hong Meng observou: ‘Perturbar o princípio da Naturalidade, contrariar a Constância das
dez-mil-coisas e agir pela artificialidade geram fracasso. A multidão dos animais selvagens se dispersa
e os pássaros suspiram de tristeza em todas as noites. Os desastres se espalham entre os insetos. Eis o que
é a falha de seu método de governar o povo.’
‘Então, como devo proceder?” - perguntou Yun Jiang.
“Ah! Quanto sofrimento! Seria melhor que você voltasse para casa.’ - respondeu Hong Meng.
“Foi tão difícil encontrá-lo. Espero ser instruído.’ - respondeu Yun Jiang.
Então, Hong Meng explicou: ‘Cultive a sua mente (心養- xīnyǎng), aja apenas pela
Não-Ação (无为-wúwéi) e todas as dez-mil-coisas se transformarão por si mesmas (自化-zìhùa).
Desapegue-se (堕-dùo) do seu corpo (形体-xíngtǐ). Abandone sua sagacidade, esqueça as coisas
externas e se unifique com o Sopro da Naturalidade. Dissolva os pensamentos e dilate seu espírito. Na
vastidão, seja como se nem tivesse espírito. As dez-mil-coisas são múltiplas, mas cada uma retorna à
sua raiz. Ao retornar à raiz, nenhum dos seres conhece a razão de ser desse fenômeno, mas, apesar
disso, ainda não se afasta da raiz. Porém, assim que conhecer o motivo, então se afastará de sua raiz.
Não queira conhecer o nome nem examinar a verdade disso. As dez-mil-coisas se desenvolvem por si
mesmas (自生-zìsheng).’
Yun Jiang disse: ‘O Céu me concedeu um estado perfeito, ensinou-me a eficácia misteriosa do
silêncio. Agora já encontrei a resposta que estava buscando.’ Por fim, Yun Jiang se ajoelhou em respeito
e, levantando-se, despediu-se.146

146
Rong, Fu Pei (傅佩荣). Zhuangzijiedu 莊子解讀 (Zhuangzi com tradução, comentários e notas). Xinbei:
Shijiegongmingcongshu, 2017, p.166-167.

95
Segundo o comentador Fu Pei Rong147, quando o personagem Hong Meng diz para “se
mover livremente sem saber para onde ir”, esse movimento reflete o estado de ser não-intencional,
ou seja, o estado de Não-Mente (无心-wúxīn). Um indivíduo livre agirá pela Não-Ação de acordo
com a Naturalidade, ou seja, de acordo com a percepção de que cada ser se desdobra num processo
autopoiético. Zhuangzi considera que é fundamental que haja o desapego ao corpo, aos
pensamentos e às ações baseadas na artificialidade, pois assim poderemos nos unificar com a
essência do Dao numa interrelação com todas as dez-mil-coisas. É nesse sentido que se seguirmos a
Naturalidade, agiremos de acordo com a onipresença eterna do Dao Transcendente nas
manifestações fenomênicas do mundo. Perceberemos que, com o cultivo da Naturalidade,
conquistaremos a liberdade e a singularidade sem deixar de lado a nossa integração com a totalidade
cósmica. Não estaremos mais presos àquela ideia de liberdade baseada na autonomia egocêntrica
típica de uma mentalidade excessivamente individualista, àquela noção de liberdade de um sujeito
confinado na sua própria subjetividade. Ao contrário, alcançaremos a plena liberdade, agindo na
Naturalidade e sendo o que somos de modo autêntico. Portanto, ser livre não significa deixar de se
relacionar com os outros seres, adquirindo a autonomia no isolamento. É na integração com essa
grandiosa tessitura cósmica que deixaremos de criar as separações entre nós e o mundo e assim
seremos capazes de assumir a nossa autenticidade na Unidade Harmônica que inclui a interrelação
de todos os seres.

Quem conhece não fala.


Quem fala não conhece.

Cerrar as entradas, fechar as portas,


abrandar o afiado, desenlaçar os nós,
unir-se com a luz, fundir-se com o pó,
eis o que é a Comunhão Misteriosa.

Por isso, esta não pode ser alcançada


com intimidade ou afastamento;
não pode ser alcançada com ganho ou prejuízo;
não pode ser alcançada com nobreza ou infâmia;

Eis a razão de ser a mais nobre do mundo.148

147
Idem, p.167.
148
Laozi, cap.56.

96
Como observa Wang Bang Xiong149, aquele que conhece a dimensão profunda do Dao é o
mestre sublime e antigo descrito no capítulo 15 do Dao De Jing, cuja natureza é tão profundamente
indizível como a própria essência do Dao. Ele é tão profundo que nem as nossas palavras
conseguem descrevê-lo. Por outro lado, há seres humanos superficiais que apenas discorrem sobre o
Dao. É que existem indivíduos que apenas agem no estudo e se aprimoram no conhecimento, mas
ainda não praticam a sabedoria. Apenas possuem muitos saberes baseados no uso do seu intelecto
calculista. Contudo, quem conhece e age no Dao alcança a moderação e decresce a cada dia, fala
pouco e vivencia mais plenamente de acordo com o Dao. Como esclarece Wang Bi150, quem se
ilumina no Dao resguarda sua própria natureza e jamais se dispersa. Desata os nós causadores da
discórdia, da intriga e da guerra. Se ele se torna mais nobre no mundo e intimamente conectado
com a essência da Fonte Vital, não haverá nada que possa prejudicá-lo.
Justamente o sentido do Dao transcende as palavras e, como ressalta Zhuangzi no trecho
citado acima, é pouco visível para aquelas pessoas de pouca realização, já que as palavras floreadas
acabam por escondê-lo. É fundamental que possamos transcender o nível discursivo e alcançar a
dimensão da inefabilidade da não-linguagem. Para tanto, é necessário praticarmos a meditação de
“cerrar as entradas e fechar as portas”, o que implica em não deixarmos que os estímulos externos
invadam e “corrompam” os nossos cinco sentidos, perturbando a nossa mente. Assim, quando
cultivamos o desapego, abrandamos o excesso de nossa sagacidade e desenlaçamos os nós das nossas
apreensões. Eis o que seria a Comunhão Misteriosa (玄同-xúantóng) com o brilho divino do Dao.
Se quisermos ser proeminentes diante dos outros e ostentarmos o brilho ofuscante da inteligência,
estaremos prejudicando os nossos relacionamentos com os outros. Quando alguém se sente muito
orgulhoso e exibe as suas qualidades, é provável que os outros se sintam incomodados diante de
tanta arrogância. No fundo, esse orgulho excessivo prejudica o seu próprio Sopro Vital. Por isso,
basta “abrandarmos o afiado”, diminuindo o apego às habilidades, à inteligência, aos nossos méritos
no sentido de que possamos realizar o caminho do conhecimento genuíno e da sabedoria sem que
seja negligenciado o cultivo da Constância. É somente no estado de transcendência que ultrapassa o
plano da dualidade caracterizada pelas polaridades dicotômicas (“intimidade-afastamento”,
“ganho-prejuízo”, “nobreza-infâmia”), ou seja, no estado de superação de todas as distinções
geradas pelo apego humano que alcançamos a dimensão da Comunhão Misteriosa e manifestamos
a eficácia da Virtude Misteriosa (玄德-xúandé) da Não-Ação.

Os antigos e sublimes mestres do Dao


não nutriam a perspicácia do povo,
mas a sua simplicidade.

É difícil governar o povo

149
Wang Bang Xiong, p.255.
150
Wang Bi e Su Zhe, p.187.

97
quando há excesso de sagacidade.

Assim, governar com sagacidade é usurpar o reino.


Governar sem sagacidade é prosperar o reino.

Quem conhece os dois modelos


e sempre escolhe o ideal,
possui a Virtude Misteriosa.

A Virtude Misteriosa é insondável,


longínqua, avessa às coisas comuns
e, conduz, por fim, à Suprema Harmonia.151

Nessa perspectiva, quem segue a Virtude Misteriosa considera a natureza de cada ser em
conformidade com o Vazio Originário do Dao. É por isso, segundo Laozi, o sábio vive no modo da
simplicidade. A simplicidade é o estado de wúwéi e do wúxin onde ele conquista a sua
autossuficiência e retorna à sua pureza originária. Por outro lado, a sagacidade é a artificialidade do
cálculo e do planejamento. Todavia, essa simplicidade não é um estado de ignorância ou de
ingenuidade como o homem ordinário pensaria. Trata-se do elemento fundamental na proposta de
Laozi para a conduta do sábio governante: a simplicidade aflora quando se retorna ao estado do
recém-nascido.
Por isso, segundo Wang Bang Xiong152, deve-se evitar o excesso de sagacidade que cria
distúrbios na sociedade. É a sagacidade que estimula a busca excessiva da riqueza, da fama, do poder
e de outros bens supérfluos e até mesmo nos leva a adotar as maquinações capciosas com o objetivo
de adquirir ganhos pessoais. Ora, como destaca He Shang Gong153, o sábio abandona os artifícios e
falsidades (巧伪-qiǎowěi) e segue a Suprema Harmonia que é seguir a ordem do Céu (顺天理-shùn
tiānlǐ), a saber, a ordem da Naturalidade do Dao. Nesse sentido, a felicidade da sociedade é
alcançada na medida em que se realiza a Suprema Harmonia(大顺-dàshùn). E o que é a Suprema
Harmonia? É justamente o estado do Vazio na sua profundidade insondável, já que nem pode ser
nomeado tal como o próprio Dao inominável, mas que pode ser experienciado no retorno ao
silêncio. Ora, esse estado de silêncio é a grande quietude na qual o sábio penetra tal como
experienciasse o processo de retorno das coisas que vai da Existência ao Vazio, retorno esse que
caracteriza a eficácia da Virtude Misteriosa do Dao. Daí por que a Suprema Harmonia seja avessa às
coisas mundanas, já que significa o caminho do Retorno à Origem.

151
Laozi, cap.65.
152
Wang Bang Xiong, p.298.
153
He Shang Gong, p.465.

98
Em outras palavras, como comenta Wang Bi154, quando se cultiva a moderação dos desejos,
alcança-se a simplicidade e, consequentemente, a naturalidade. É nesse sentido que sem a
sagacidade e sem o uso dos artifícios engenhosos (巧诈-qiǎozhà) poderá ser evitada a infelicidade do
povo. Além disso, quem alcança o estado de simplicidade cultiva a dimensão do Não-Saber e
resguarda o princípio do Dao e, portanto, conduz o povo ao caminho da Virtude Misteriosa. É por
isso que nesse governo as pessoas agem na Naturalidade e usufrui da prosperidade.

154
Wang Bi e Su Zhe, p.213.

99
Humildade

Um grilo cantando num pátio desolado.


Duas garrafas insones sob a penumbra.
E, rumorejando entre nuvens,
a artilharia de anjos decaídos.

Não sabemos quanto tempo já se passou,


porém, as mãos pareciam desabrochar
como flores exultantes sob a brisa de outono.

Agir na Naturalidade e no wúwéi é manifestar a eficácia do estado da Não-Mente e se


desapegar dos julgamentos comparativos a respeito do que seja pequeno/grande, muito/pouco,
belo/feio etc. Por exemplo, numa situação quando a mente humana se sentiu prejudicada, ela se
inclina a agir retribuindo o mal com sentimento de ira e maldade. Isso acontece porque estava
apegada à uma situação vantajosa e, quando então lhe sucede a “perda”, considera que foi cometido
um “mal” contra os seus interesses. No fundo, o que chamamos de “ganho/perda”,
“vitória/derrota”, “progresso/retrocesso”, “prosperidade/ruína” - eventos que nos acometem a cada
momento - não é senão o reflexo de nossos juízos mentais gerados pelo apego a um determinado
aspecto da realidade que escolhemos segundo os nossos parâmetros subjetivos. Na maioria das
vezes, avaliamos, julgamos, apreciamos as coisas de acordo com aquelas convicções parciais.
Alimentados pelo autoapego e pela excessiva importância que atribuímos a nós mesmos, tudo que
enxergamos cai sob o prisma de nossas lentes estreitas, e por isso, quando alguém nos critica ou nos
provoca, parece que fomos atacados por algum inimigo invasor. Não obstante, quando superarmos
tais influências exteriores agindo pela Não-Ação, agiremos sem apego e sem o menor ressentimento.

Aja através da Não-Ação,


faça sem se ocupar,
saboreie o sem-sabor.

Contemple a plenitude do ínfimo.


Retribua ao ódio com virtude.155

Dessa forma, Laozi nos sugere uma mudança de ponto de vista para que não sejamos tão
apegados aos nossos juízos e representações limitantes, pois geralmente concedemos um peso maior
às coisas grandiosas e difíceis, negligenciando aquilo que é pequeno e fácil.

155
Laozi, cap.63.

100
Planeje o difícil a partir do fácil.
Realize o grande a partir do pequeno.

Obras difíceis devem ser realizadas com simplicidade.


Obras grandiosas devem ser feitas com minuciosidade.

O Sábio nunca se enaltece e realiza sua grandeza.

Promessas irrefletidas devem ser pouco confiáveis.


O muito fácil pode encerrar inúmeras dificuldades.

Por isso, o Sábio pondera o difícil e nada se torna difícil.156

Então, a partir de uma ponderação mais sábia, podemos perceber a relevância do que seria
realizar o grande a partir do pequeno. Sábio é aquele que considera com prudência todas as coisas
que são pequenas e fáceis de serem realizadas. Nunca se orgulha alardeando-se de que sabe
realizá-las. Somente por não se considerar grandioso é que ele realiza a sua grandeza tal como age o
próprio Dao. Eis o que seria a eficácia da Não-Ação, uma vez que o sábio jamais ignora as coisas
pequenas e enxerga em cada circunstância aquilo que poderia vir a se tornar problemático. Ele age
humildemente através das pequenas obras. Como analisa Wang Bang Xiong157, a Não-Ação do
sábio o leva a agir sem fazer aquela diferenciação entre as coisas pequenas e grandiosas, visto que
ambas são partes do mesmo processo e igualmente preciosas para a realização. Assim, como observa
Wang Bi158, a excelência do governo consistirá numa vida de simplicidade baseada na Virtude
Misteriosa e no cultivo do silêncio e do wúwéi que precisamente ultrapassa essas distinções
valorativas. É por isso que He Shang Gong159 sublinha que uma coisa grandiosa poderá se tornar
pequena e vice-versa. Eis o que é o Dao da Naturalidade (自然之道-zìránzhīdào). Por isso, ao
compreender essa lei da Mutação subjacente à ação da Naturalidade, o sábio se torna humilde e
vazio de si (谦虚-qiānxū) e cumpre a sua tarefa sem nenhuma artificialidade (无所造作
-wúsuǒzàozuò).
Para refletirmos sobre essa ação da humildade, lembremos do hexagrama Começo (屯-zhu)
do I Ching que simbolicamente representa a fase inicial de qualquer atividade. Todo início é repleto
de obstáculos em virtude da manifestação das formas individuais que se originam das interações
harmoniosas do Iniciar e do Corresponder, respectivamente dos dois primeiros hexagramas. No
entanto, mesmo que haja essa situação insegura, se pudermos perseverar na retidão de nossa
vontade, respeitando os outros, compreenderemos que é possível superar todas as dificuldades. É

156
Idem.
157
Wang Bang Xiong, p.288-289.
158
Wang Bi e Su Zhe, p.207.
159
He Shang Gong, p.451.

101
por isso que somos como as folhas minúsculas da grama brotando da terra. Embora haja nuvens
perigosas que impeçam nosso florescimento, aprendemos a ser fiéis no amor e na retidão como
donzelas castas à espera do matrimônio. Mesmo que haja nuvens e trovões assinalando a iminência
de uma situação perigosa, utilizaremos a virtude da prudência de modo que possamos valorizar as
pequenas coisas que realizamos. Como enfatiza Hou De Sun160, o trigrama superior da Água
representa as adversidades, os perigos e os desafios que enfrentamos no início de toda atividade, e
como ainda estamos na fase inicial de desenvolvimento, ainda somos muito “jovens”. Daí a
necessidade de um planejamento prévio como comenta Alfred Huang: “Antes de brotar, a raiz
precisa penetrar profundamente. Os sábios aprenderam com a natureza que antes de colocar
qualquer plano em prática é importante colocar tudo em ordem.”161
Quando iniciamos alguma coisa, geralmente somos impelidos por um desejo ambicioso. É
por isso que em todo início de um sonho, relacionamento, trabalho e projeto, devemos começar
realizando as coisas mais elementares. Se pudermos planejar e organizar as coisas de maneira
simples, afastando as ambições e os desejos infrutíferos, mesmo que estejamos diante de situações
extremamente adversas, ainda assim saberemos agir ponderando com cuidado para que não seja
desperdiçado nosso empenho. Se estivermos preparados, aguardando com paciência (“fiéis ao
matrimônio”) e perseverança como donzelas que aguardam a chegada do esposo, seremos capazes
de suportar a dor da espera, do trabalho, do sangue e das lágrimas, já que os sofrimentos, as
angústias e as fatalidades sempre são passageiras. Ainda que haja diversas atribulações que tenhamos
de enfrentar, todo começo traz um grande potencial e se apresenta como um momento auspicioso
de renovação e de mudança.

160
Hou De Sun (厚德孫) Letianzhiming 樂天知命 (I Ching com tradução, comentários). Taipei:
Tianxiayuanjian, 2011, p.37.
161
I Ching, Editora Martins Fontes (tradução e comentários do mestre chinês Alfred Huang) 2012, p.59.

102
A virtude da não-disputa

Não és sequer um nome


nem um eco distante
sob as perpétuas diluições.

Nada resiste às intempéries,


e, em breve, terás de suspirar
sobre o leito de teu próprio túmulo.

Ao refletirmos sobre o sentido da humildade, surge a necessidade de meditarmos também


sobre o hexagrama Disputa (訟-Sòng) que é composto pelo trigrama Céu cujo movimento é
ascendente e pelo trigrama Água cujo movimento é descendente. Como ambos movimentos do
Céu ascendente e da Água descendente se desdobram em direções opostas, isso significa que surge a
discórdia e, por isso, o hexagrama se chama Disputa. A disputa nasce de dois pontos de vista
antagônicos, de crenças e juízos aos quais as pessoas se apegam de maneira arbitrária. Como há
disputa, precisamos evitá-la através da atitude da imparcialidade. É preciso termos cuidado para que
não nos apeguemos às atitudes rígidas. Antes de suceder o conflito, sempre é possível buscarmos a
conciliação através da ação do “grande homem” imparcial. Basta evitarmos atitudes impositivas e
precipitadas, praticando a moderação para amenizar as desavenças.
Como comenta Hou De Sun,162 com a mente em harmonia (协调之心-xiétiáozhixin), os
conflitos poderão ser neutralizados, contanto que estejamos agindo de acordo com justiça tal como
sugere o ideograma Gong (公-gong) que aparece compondo o lado direito do ideograma Song
(Disputa). Para dissolver os nós de certas situações embaraçosas, precisamos nos adaptar,
compreendendo as diferenças entre pontos de vista heterogêneos, recuando e agindo com cuidado
para evitar confrontos desnecessários.

Bons comandantes não ostentam bravura.


Bons guerreiros não se encolerizam.
Bons vencedores não competem com os inimigos.
Bons líderes permanecem abaixo dos homens.

Isso se diz a virtude da não-disputa.


Isso se diz o poder de liderar as pessoas.
Isso se diz a antiga e sublime sintonia com o Céu.163

162
Hou De Sun, p.47.
163
Laozi, cap.68.

103
Para Laozi, ser um bom comandante não é se vangloriar da sua própria força, mas agir no
estado de Não-Mente e de Não-Ação. Um bom guerreiro não se enraivece porque não se apega ao
espírito de competitividade. Quem é um bom vencedor não disputa nem reage às investidas do
inimigo. É por essa razão que os verdadeiros líderes são humildes. Como comenta Yang Tang
Ping164, a virtude da não-disputa (不争之德-bùzhēngzhīdé) manifesta a sabedoria do wúwéi e a
eficácia do Vazio do Dao, amenizando a atitude de rigidez por meio da qual as coisas começam a
definhar.
Como diz Wang Bi165, os bons comandantes não são imprudentes nas suas ações, mas
observam atentamente as situações sem suscitar sentimentos de ódio e rivalidade. Se desejarem se
colocar acima dos outros, não serão mais dignos de exercer a liderança. É somente “estando abaixo
dos homens” que um líder autêntico poderá agir com imparcialidade, amor e humildade. É
somente sendo vazio, humilde e magnânimo que ele poderá efetivar na imanência a sabedoria
transcendente do amor que o Céu concede a todos os seres, pois, como ressalta Su Zhe166, quem age
temerariamente só causa malefícios. Frequentemente os seres humanos desejam estar acima dos
outros, mas essa atitude prepotente é afastada pelo sábio. Por exemplo, as destruições causadas pelo
conflito bélico geralmente decorrem de interesses gananciosos. É por isso que o sábio não se envolve
em tais ações capciosas e autoritárias, pois sabe que não condizem com a Suprema Harmonia, ou
seja, com a Lei da Naturalidade (Dao do Céu).

Há um provérbio no uso das armas:

“Não ouso ser o anfitrião, mas ser o hóspede.


Não ouso avançar uma polegada, mas recuar um pé.”

Isso se diz: mover-se sem avançar,


repelir sem erguer os braços,
afugentar sem competir,
conquistar sem se armar.

A maior desgraça é desprezar o inimigo.


Desprezar o inimigo é perder meus tesouros.
Por isso, no confronto vence o compassivo.167

164
Ping, Yang Tang (汤漳平). Laozi quanshuquanzhuquanyicongshu. 老子全书全注全译丛书(Laozi
com tradução, comentários e notas). Beijing: Zhonghuashuju, 2017, p.266.
165
Wang Bi e Su Zhe, p.221.
166
Idem, p.219.
167
Laozi, cap.69.

104
Na visão de Laozi, ao invés de desejarem dominar os outros através da força impositiva, seria
preferível que as pessoas neutralizassem as discórdias (“afugentar sem competir”), permanecendo
sóbrias e humildes. A humildade é a atitude de quem se coloca abaixo tal como os mares para os
quais convergem todos os rios. No entanto, longe de ser uma tática dissimulada de estratégia bélica,
essa ação expressaria a potência do desapego responsável pela realização do equilíbrio. Não se trata
de uma ação deliberadamente utilitarista como se quiséssemos adotar a humildade com o propósito
de alcançar outros fins escusos.
Daí por que um grande reino seja um rio em declive, agindo com modéstia e respeito.
Como sabemos que na guerra ocorrem represálias e situações espinhosas, seria preferível
minimizarmos aquela atitude de desprezo em relação ao inimigo, uma vez que isso provoca uma
reação contrária de ódio. Segundo Wang Bi168, o movimento de ação sem avançar e sem competir
significa a ação de não confrontar. Contudo, mesmo que aconteça um conflito belicoso, os seres
humanos deveriam se respeitar e valorizar uns aos outros. Portanto, vimos que um bom vencedor
jamais manifesta o desejo de rivalizar, pois, em harmonia com o Dao do Céu, age sob a virtude da
não-disputa. Se a guerra desencadeia mortes desnecessárias e desastrosas, gerando apenas
sofrimentos, será preciso o cultivo da compaixão para que todas as pessoas sejam consideradas na
sua dignidade. Por exemplo, é necessário respeitarmos a realização dos ritos fúnebres diante de
inúmeras mortes ocorridas. Jamais Laozi foi favorável ao militarismo e à violência. Assim, a melhor
forma de nos preservarmos e cultivarmos o equilíbrio na vida é agirmos no estado de suavidade em
consonância com a Naturalidade, uma vez que a suavidade sempre é preferível à brutalidade da
força.

Quem auxilia o Senhor dos Homens através do Dao


não utiliza a força das armas diante do mundo,
porque esta ação provoca represálias.

Onde está acampado o exército, nascem espinhos.


Após imensas batalhas, irrompem os anos tenebrosos.

O Homem Bondoso alcança os frutos


e, sabendo cessar, não ousa conquistar com força.

Alcança os frutos sem orgulho.


Alcança os frutos sem vanglória.
Alcança os frutos sem arrogância.
Alcança os frutos por necessidade.
Alcança os frutos sem brutalidade.

168
Wang Bi e Su Zhe, p.223.

105
No ápice da rigidez, as coisas definham.
Isso se diz: não seguir o Dao.
Quem não segue o Dao, em breve findará.169

As ações de violência produzem um efeito nocivo de represália que prejudica o próprio


agente que as comete. Por isso, Laozi evoca a imagem nefasta da devastação: “onde está acampado o
exército, nascem espinhos. Após imensas batalhas, irrompem os anos tenebrosos”. Já sabemos as
consequências que são a destruição, a ruína e a morte. É por isso que, na análise de Wang Bang
Xiong170, o Homem Bondoso alcança os frutos sem o uso da temeridade, já que não tem a intenção
de conquistar com força, provocando o genocídio. A coragem que Laozi evoca nesse contexto não é
a temeridade de uma ação destrutiva. Ao contrário, é a coragem do estado de eficácia do wúxin e do
wúwéi que se revela sem nenhum traço de arrogância.
Nesse aspecto, a guerra jamais deve ser motivada pelo orgulho, vanglória e arrogância, mas
pela necessidade de uma situação inexorável. A guerra movida pela ganância acarreta naquele que a
realiza uma certa obstinação em dominar o mundo. A partir daí o ser humano se desgasta e perde a
conexão com a fonte do Dao e viola a Naturalidade da Vida. Com muita perspicácia, Wang Bi171
analisa a palavra guǒ (果) que significa filosoficamente a ideia de “intenção”: usar as armas tem o
objetivo de solucionar as dificuldades, porém, se um indivíduo quiser intencionalmente ostentar as
suas forças, cairá na ilusão do orgulho e causará danos irreversíveis. Todas as ações baseadas no uso
das armas violam a lei da Naturalidade e por isso precisamos retornar ao wúwéi para que sejam
evitadas as tragédias desumanas. Do mesmo modo, Su Zhe172 critica esse desejo ambicioso de
conquistar com força, porque na medida em que age de maneira arrogante, pretendendo ser
“masculino” e provocando os outros desequilíbrios com o seu orgulho desmedido, o ser humano
cai numa situação de completa perdição. Suas ações baseadas na artificialidade e na força somente o
levam cada vez mais a cometer abusos e, sobretudo, a interferir na ordem da Naturalidade, violando
a natureza de cada ser e atentando contra a própria essência da Vida.

Armas belíssimas não são instrumentos propícios.


São coisas que todos detestam!
Quem possui o Dao não se empenha nelas.

Em sua casa, o Homem Nobre honra o lado esquerdo.


Mas, ao utilizar as armas, honra o lado direito.
Armas não são instrumentos propícios.
169
Laozi, cap.30.
170
Wang Bang Xiong, p.140.
171
Wang Bi e Su Zhe, p.103.
172
Wang Bi e Su Zhe, p.103.

106
Não são instrumentos do Homem Nobre.

Sendo necessário utilizá-las,


ele age com quietude e sobriedade.
Vence sem encontrar o prazer na guerra.
Porém, caso venha a sentir o prazer
e a satisfação em matar as pessoas,
não alcançará seu propósito no mundo.

Em situações propícias, honra-se o lado esquerdo.


E, em situações nefastas, honra-se o lado direito.
Assim como se cumpre nos ritos fúnebres,
o segundo general deve postar-se no lado esquerdo
e o primeiro general postar-se no lado direito.

Quem matou as pessoas deve lastimar


com dor e tristeza as inúmeras mortes.
Após a vitória da guerra, cumpre-se o rito fúnebre173.

As armas não são instrumentos propícios (不详之器-bùxiángzhiqì) para Laozi, porque


justamente contrariam a sua concepção de governo e de sociedade onde se preconiza a eficácia da
Naturalidade do wúwéi. Como esclarece Wang Bang Xiong174, quem age com um desejo insaciável
de matar as pessoas, comete um erro gravíssimo do ponto de vista ético, visto que apenas gera
morticínio que dificulta a consolidação da harmonia do reino sob os auspícios da paz e da
prosperidade. Com efeito, é evidente que o uso das armas na guerra se tornou apenas uma técnica
de dominação hegemônica sobre os outros territórios, um sintoma da cobiça humana na batalha
cega e doentia pela conquista do poder. Do ponto de vista simbólico, quem se engaja num estado
belicoso perde o estado de Naturalidade. É nesse sentido que um governo de si e um governo do
reino (simbolicamente significando o cuidado de si e dos outros) implica num autocultivo baseado
na filosofia do wúwéi e, portanto, a guerra jamais seria considerada uma atividade de um Homem
Nobre.
É evidente que o sábio jamais empregará a violência e tampouco terá algum prazer com as
mortes alheias, sendo que age virtuosamente em harmonia com a essência do Dao. Como já
explicou Laozi no capítulo 29, quem deseja conquistar o mundo e nele quiser intervir, fracassará.
Quem estiver agindo com prepotência e orgulho, sairá prejudicado na sua própria ação. É por isso
que quem age no Dao jamais se empenhará no uso dos armamentos e a guerra só sucederá em caso

173
Laozi, cap.31.
174
Wang Bang Xiong, p.144-145.

107
de extrema e última necessidade, e por isso, quando ocorrer o luto, devemos ainda manter o respeito
pelas pessoas mortas, cumprindo-se os ritos fúnebres.

108
Libertando-se da sagacidade

Lágrimas e faróis escorraçados. Acima das cornijas de uma antiga biblioteca, sussurram as
espinhosas rajadas. Uma cúpula de ossos se pulveriza numa réstia de sinos azuis. Uma vertigem se
sucede após outra, e um pássaro se dissolve no fundo do mar.

Atualmente observamos uma crescente utilização de dispositivos de controle na nossa


sociedade através da inserção das tecnologias digitais. Esse fenômeno se infiltra por todos os cantos
de nossa vida privada a tal ponto que nos torna visíveis uns aos outros. Essa hipervisibilidade é uma
característica do mundo contemporâneo onde cada vez mais perdemos o espaço da interioridade e
da intimidade. Graças a tal exteriorização forçada, somos compelidos a viver como se estivéssemos
sempre diante dos olhos alheios, sendo vigiados e vigiando os outros. Por trás desse processo de
exposição exacerbada, ocorre um definhamento de nossa capacidade de escuta interna. Além disso,
com tal maximização dos estímulos externos e a consequente fragmentação de nossa percepção,
ficamos vulneráveis a toda e qualquer situação, como expectadores passivos de um megaevento
onde mal conseguimos agir de maneira autêntica. Nessa sociedade de espetáculo (Guy Debord),
todos agem com sagacidade com vistas à manipulação, dissimulando intenções e fabricando
opiniões. Chegamos a ironizar até aqueles que propõem uma concepção originária da natureza
humana segundo a qual o ser humano é puro e inocente. É como se não pudéssemos mais imaginar
uma outra forma de existir senão aquela que se forja no meio das insidiosas artimanhas da lógica de
mercantilização, as quais, por sua vez, incitam apenas o acúmulo de bens para a gratificação dos
prazeres e interesses individualistas. É nesse contexto que sentimos a atualidade do pensamento
crítico de Laozi em relação à sagacidade (智-zhì) e aos artifícios engenhosos (伎巧-jìqiǎo) que
permeiam as nossas ações mesquinhas e frívolas. Nesse sentido, quando critica o uso das armas,
Laozi também critica a mente humana que depende desses meios cavilosos para atingir seus
objetivos egoístas.

(...) Quanto mais interdições no mundo,


mais pobre será o povo.

Quanto mais armas afiadas,


mais a desordem crescerá nas famílias e nos reinos.

Quanto mais artifícios engenhosos,


mais haverá irregularidades.

Quanto mais leis e decretos estabelecidos,


mais haverá criminosos.

Portanto, o Sábio diz:

109
eu não agindo, o povo por si mesmo se transforma.
eu me silenciando, o povo por si mesmo se retifica.
eu sem transtornos, o povo por si mesmo se enriquece.
eu sem desejos, o povo por si mesmo se simplifica.175

O essencial na filosofia taoista é o fato de seguirmos a Naturalidade, visto que somente


dessa maneira atuaremos com a eficácia concreta do wúwéi. Os artifícios e estratagemas baseados na
sagacidade, além de serem considerados recursos abusivos, são fundamentalmente contrários ao
fluxo da Naturalidade. Assim, quem age pela Não-Ação(无为-wúwéi) e sem desejos (无欲-wúyù)
segue o princípio da Naturalidade, respeitando a singularidade e a liberdade de cada ser humano.
Em contraposição ao estado natural, as dissimulações, as trapaças, as hipocrisias se disseminam
como dispositivos estratégicos vinculados à uma estrutura sutil de dominação/interdição. A lógica é
simples: quanto mais houver a implementação de decretos e leis que são modos artificiais de
regularização, mais haverá “transtornos” e “irregularidades”. Pois, quanto mais agirmos com Ação
Forçosa, produziremos menos liberdade e mais artificialidade. Seria mais sensato que houvesse
menos arcabouços artificiais para que sejam evitadas tantas normatizações, arbitrariedades e
obstruções ao exercício da liberdade humana (Rousseau).

Abandone o estudo e não haverá tormento.


Aceitação e reprovação Qual a diferença?
Bem e mal! Como se distinguem?
Afligem-me os temores dos seres humanos!
Ó vasta desolação do mundo!

Extasiada, a multidão se deleita nos grandes sacrifícios,


como se subisse os morros na festa da primavera.
Apenas eu estou sozinho em repouso, apático,
como recém-nascido que ainda não sorriu.
Exausto, sem saber para onde retornar!

Todos possuem em excesso.


Só eu vagueio solitário como um errante!
Ó meu coração estúpido e confuso!
Todos são ofuscantes.
Só eu sou turvo.

Todos são astuciosos.

175
Laozi, cap.57.

110
Só eu sou melancólico,
sereno como oceano,
vento sem destino.

Todos agem com desígnios.


Só eu sou teimoso,
rústico e diferente,
pois reverencio a Mãe Nutridora.176

Como diz Laozi, a grande massa dos indivíduos (moral de rebanho de Nietzsche) age com
desígnios baseados numa lógica utilitarista onde o que interessa é o valor lucrativo. Desse ponto de
vista, todos se tornam astuciosos, sagazes e artificiosos a ponto de considerarem apenas as suas
próprias vantagens individuais. A realidade contemporânea é atravessada pelo excesso de
individualismo narcisista em que o homem vive numa espécie de solipsismo (caverna de Platão),
contemplando a sua própria imagem fabricada e artificial (persona de Jung). O discurso da
autonomia de um sujeito racional universal (Kant) que busca uma síntese entre as demandas
coletivas e a contingência dos interesses egoístas é sustentado apenas como um adorno que
embeleza, uma auréola superficial e insossa sem nenhuma ancoragem na vida real. De fato, o que
sentimos é que a todo momento somos confrontados com o paradoxo do absurdo (Samuel Beckett)
onde não sabemos quem somos, onde estamos e para onde vamos. É como se estivéssemos sendo
precipitados num vórtice de simulacros, espectros e aparências fugidias, em que, segundo Wang
Bang Xiong177, nossa visão subjetiva limitada (主观的偏见-zhǔguāndepiānjiàn) se aferra
irremediavelmente às convenções e valorações respaldadas pela aceitação ou reprovação dos outros.
É evidente que muitos de nós já nem alimentamos aquela sede insaciável de “verdade”
(vontade de verdade de Deleuze) nessa época de tanta descrença e ceticismo. Desiludidos,
incrédulos, seguimos o mero movimento da fugacidade. No entanto, ainda somos incapazes de
reconhecer a nossa insignificância humana, e oscilando entre uma espécie de ilusionismo mental e
relativismo niilista, buscamos apaziguar a nossa angústia, o nosso fosso ontológico por meio de
fármacos e receitas simplórias. Contudo, se abandonarmos todos esses disfarces, essas máscaras
idealizantes que nos encapsulam, o que vislumbraremos nesse horizonte tão tenebroso? Somos
agentes autônomos ou vítimas dos eventos aleatórios? Navegando num mar de ondas
tempestuosas, não sabemos se continuamos pilotando o mesmo navio ou renunciamos a ele
(trocando por um outro), e até mesmo se seria melhor saltarmos definitivamente para fora do navio.
De certo modo, todos esses temores e tormentos humanos (“a vasta desolação do mundo”)
resultam do processo discriminativo da mente que cria falsas distinções onde permanecemos

176
Laozi, cap.20.
177
Wang Bang Xiong, p.99.

111
atolados em tantas recriminações, lamúrias e apreensões. Porém, como ultrapassaremos esse modo
de pensamento?
Para Wang Bi178, quando Laozi concebe o estado de ser “turvo”, isso se refere ao fato de ser
cultivado o estado de Naturalidade do recém-nascido cuja qualidade intrínseca é agir pelo wúwéi
(Não-Ação) e pelo wúyù (Não-Desejo). Assim, na medida em que fala do estado confuso de seu
coração, Laozi reconhece um estado de espírito que não é mais condicionado pelas diferenciações
limitantes de um modo de pensar parcializado. É a partir desse momento que se abandona a
intemperança, o desmando e certos condicionamentos de nossos desejos e apegos. É evidente que,
se somos ainda suscetíveis ao medo da perda de vários bens como riqueza, prestígio, fama e poder,
isso demonstra apenas que persistimos no apego a tais ilusões, deixando de cultivar o estado
autêntico de Naturalidade. É por isso que He Shang Gong179 diz que a multidão age forçosamente
motivada pela imoderação de seus desejos impulsivos, enquanto o sábio Laozi age pelo wúwéi. A
multidão iludida ostenta seus conhecimentos supérfluos e vive numa existência dispendiosa.
Somente Laozi cultiva a simplicidade no sentido de que não incorre em extravagâncias e busca uma
vida equilibrada.
Assim, o sábio aceita compreensivamente todas as coisas, enquanto a maioria das pessoas se
restringe aos juízos e crenças de sua visão limitada. Aparentemente um sábio como Laozi parece um
estulto, mas na verdade é uma pessoa sábia. Pois, enquanto a maioria ignora a essência do Dao e se
apega às coisas triviais, ele considera o Dao como sua Fonte Nutridora. Enquanto ele é simples e
inocente, os outros são imoderados que apenas buscam coisas externas. Enquanto ele parece ser
estúpido e vagabundo, os outros agem de maneira sagaz e maquiavélica. Se ele é turvo e melancólico,
os outros se mostram perspicazes e arrogantes (“ofuscantes”). Portanto, o mundo interior do sábio
se revela como uma fonte de felicidade tal como aquela serenidade profunda do mar, como aquela
vastidão selvagem do vento. Se a sua natureza permanece enraizada na essência da Mãe Nutridora,
como o sábio se sentiria assolado pelas aflições insignificantes? Na verdade, ele é um ser insólito, um
recém-nascido que repousa no seio da Mãe Primordial.

Quando se abandona o Supremo Dao,


surgem a Benevolência e a Retidão.

Sobressaindo a inteligência e a sagacidade,


surgem as maiores hipocrisias.

Quando se desarmonizam as afeições familiares,


surgem os deveres filiais

178
Wang Bi e Su Zhe, p.67-69.
179
He Shang Gong, p.155.

112
Ocorrendo a desordem nos reinos,
surgem os ministros leais.180

Podemos nos perguntar a razão de existirem tantos manipuladores e hipócritas que se


utilizam da sagacidade, aqueles escribas e fariseus, falsos virtuosos e eruditos semelhantes aos
sepulcros caiados criticados por Jesus Cristo. Laozi nos diz que esse fenômeno ocorria porque se
percebia cada vez mais a perda da conexão com a essência do Dao e, por isso, a perda da
Naturalidade. Na ausência da Naturalidade, surgiam pessoas dotadas de engenhosidade mental que
eram exímias no uso de estratagemas e artimanhas. Com o desenvolvimento social, as normas foram
sendo estabelecidas e consolidadas de acordo com as convenções das instituições. As pessoas se
afastaram do Dao em busca de outros bens externos de sorte que atribuíram mais valor à fama, ao
poder e às honrarias.
O resultado desse processo é a grande hipocrisia (大伪-dàwěi) que cada vez mais se infiltrou
na sociedade por meio da crescente valorização daquelas virtudes confucianas da Benevolência (仁
-rén) e da Retidão (义-yì) ou por meio da institucionalização de leis severas e punitivas. É evidente
que Laozi não está negando o valor de tais virtudes em si ou o ensinamento de Confúcio, mas a
cristalização dessas virtudes em regras impositivas que mutilam e desvirtuam a nossa essência
autêntica. Em outras palavras, a rigidez de certas normas prescritivas destrói nosso modo de ser
natural, e assim, ao invés de nos conduzir ao estado de autenticidade, nos leva ao estado de
dissimulação. Como consequência desse processo de artificialização, observa-se a degenerescência de
toda a sociedade. É por isso que Wang Bang Xiong181 diz que a causa fundamental é a
artificialidade humana (人爲造作-rénwèizàozuò). Sabemos que, na crise ética em que a sociedade
estava mergulhada, os próprios confucianos propunham a prática da Benevolência e da Retidão.
Todavia, o que os taoistas constatavam é que essas virtudes adotadas como normas de
conduta ética se tornavam meras prescrições restritivas, as quais, ao invés de promoverem as afeições
familiares, apenas criavam mais deveres filiais inautênticos. Com o passar do tempo, os deveres
perdiam a sua eficácia, visto que as próprias relações familiares já se dissolviam e se transformavam
numa farsa generalizada. É provável que a solução não resida na imposição da moralidade da
Benevolência e da Retidão, mas num retorno autêntico à essência do Dao Constante. Portanto, na
medida em que vivermos numa relação harmoniosa com a Natureza, voltaremos a ser o que que já
somos enquanto partes de uma totalidade orgânica. Contemplando a pureza de nossa Natureza
Originária, estaremos mais próximos do verdadeiro autocultivo interno que nada mais é do que o
cuidado de si consigo mesmo.

180
Laozi, cap.18.
181
Wang Bang Xiong, p.91.

113
Perenidade

Uma cascata de antenas serpenteava pelas estrias convulsivas de uma pele escrofulosa. Sob os
poros viam-se as ilhas indivisíveis de centáuricas plagas: minha voz ecoando outras sinfonias, meu
navio de efervescências desalinhando-se com os dínamos da ventania noturna. É um pouco do frêmito
de um violoncelo avançando sem subterfúgios e se infiltrando nas emanações fuliginosas que se
desvanecem na fronte maciça da lua, um pouco daquela fulguração de crepúsculo esverdeado se
espalhando em colunas dissolutas e em clamores raríssimos sob a cordilheira das espumas invioláveis.

Se cultivarmos o estado do Supremo Vazio(虚极-xují) e o Silêncio (静-jìng) de maneira


vigorosa, contemplaremos a nós mesmos e o mundo. Como espelhos translúcidos, refletiremos em
nossa natureza a essência divina de todos os seres. Assim, se cada ser puder retornar à condição
originária (各复归其根-gèfùguīqígēn) do Grande Dao, ele será capaz de integrar o plano da
Multiplicidade na Unidade Transcendente da Vida/Destino (命-mìng), e assim conseguirá
comungar com a simplicidade da inocência (天真-tiānzhēn) como observa Wang Bang Xiong182.

Alcançando o Supremo Vazio,


resguardo-me em vigoroso silêncio.

Contemplo a manifestação
e o retorno de todos os seres.

No florescer em profusão,
cada ser retorna à sua raiz.

Retornar à raiz é o silêncio.


Diz-se que é o Retorno ao Destino.

Retorno ao Destino é Constância.


Conhecer a Constância é Iluminação.

Não conhecer a Constância é agir mal.


Conhecer a Constância é Amplitude.

Amplitude é Justiça.
Justiça é Totalidade.
Totalidade é Céu.

182
Wang Bang Xiong, p.84.

114
Céu é Dao.

O Dao é a Perenidade.
Ao se desvanecer o corpo,
nada estará em risco.183

Ao longo dos meus anos de prática do Tai-Chi e meditação com leitura/ensino do Dao De
Jing, esse capítulo traz um ensinamento importantíssimo que é valioso para os dias atuais. O que
Laozi nos ensina é que deveríamos retornar ao Princípio da Vida, pois somente nesse movimento de
retorno à Natureza Originária, revela-se o caminho da Constância (常-cháng), ou seja, a essência do
Dao Constante (常道-chángdào). Como disse no capítulo 1, Laozi concebe o Dao Constante como
o Princípio Originário do Universo. Podemos nos perguntar: qual é o sentido do Dao Constante?
Para Laozi e os taoístas, trata-se da força transcendente do Dao que é capaz de produzir as
mudanças, as diferenças e as múltiplas formas da natureza, mas que em si mesmo jamais sofre
alterações. É por isso que Dao é solitário/independente (独立-dúlì) e constante/não-mutável (不改
-bùgǎi)184. Ou seja, a essência metafísica do Dao transcende as limitações e condições
espaço-temporais: é informe/sem-forma (无形-wúxíng) e insonoro/silencioso (无声-wúshēng) como
já nos ensina Wang Bi185. Na visão filosófica do taoísmo, quando dizemos que as coisas têm forma
(形-xíng), compreendemos que elas estão limitadas pelas condições espaço-temporais, uma vez que
nascem, crescem, se desenvolvem, se deterioram e morrem. Entretanto, somente o Dao é constante,
indestrutível, perfeito e completo em si, transcendendo a esfera de nossos sentidos físicos. Ora, se
vivemos no plano da dualidade das formas, distinguimos o calor e o frio, o bem e o mal, o belo e o
feio, o ganho e a perda e dificilmente saímos desse domínio. É por essa razão que Laozi sugere que
quando praticamos o cultivo do Supremo Vazio alcançamos um lampejo dessa experiência
indivisível que vai além da esfera do dualismo. Isso implica numa conexão com a perenidade do
Dao, com a Fonte Originária da Vida. O Dao Perene gera as dez-mil coisas e cria as miríades de
transformações, porém em si mesmo ele jamais se transforma!
Eis aí um paradoxo: o Dao rege os fluxos das mutações, a alternância das quatro estações, o
ritmo cíclico da vida, atuando com a sua onipresença imanente em todos os fenômenos, mas ele
mesmo se conserva idêntico na sua natureza indestrutível. Como vimos, mesmo sendo de essência
transcendente (体-tí), ele possui a eficácia (用-yòng) de manifestar incessantemente a sua força no
âmbito da criação, conservação e renovação da vida. O Dao é Vazio (虚-xu) e Existência (有-yǒu)
simultaneamente. É transcendente (Vazio), e ao mesmo tempo, imanente (Existência). Somos nós
que estamos mergulhados na ignorância e geralmente não conseguimos reconhecê-lo. Basta que
reconheçamos esse Princípio de todas as coisas para que vislumbraremos igualmente a verdade da

183
Laozi, cap.16.
184
Laozi, cap.25.
185
Wang Bi e Su Zhe, p.84.

115
nossa essência (自我的真实-zìwǒdezhēnshí). É que na dimensão eterna e profunda da essência
somos todos iguais, porque a essência do Dao já nos acompanha desde os primórdios. Como revela
Laozi no capítulo 14, se alcançarmos o nosso Dao Imemorial, saberemos como conduzir a existência
atual (执古之道,以御今之有-zhígǔzhīdào, yǐyùjīnzhīyǒu). Isso é tão simples, e não obstante,
muitas vezes esquecemos desse princípio ancestral. É como se nos tornássemos tão volúveis, tão
extraviados de tal modo que ficamos vagueando a esmo sem uma casa para se abrigar. Nossa mente
se agita e se dispersa em meio às inúmeras forças externas que nos desviam do que é essencial.  É por
isso que Laozi nos chama a atenção para lembrarmos de nossa origem e, nesse caso, a
autorrealização não é senão o caminho de retorno ao Princípio Imemorial, o retorno à Essência
Originária que já habita profundamente dentro de nós mesmos.
Na medida em que cultivamos o estado de Vazio em conexão com a Essência Originária,
percebemos que os nossos pensamentos não possuem uma existência permanente. Ora emerge um
pensamento, ora surge outro. Todos os pensamentos se sucedem na inconstância e nenhum deles se
conserva. Nossos hábitos nos levam a pensar que são sempre os mesmos pensamentos. Mas essa
impressão ilusória nasce por causa do nosso apego e fixação. É nesse momento que precisamos
examinar o fluxo de nossos pensamentos e observar se realmente é um fluxo inconstante ou um
bloco estático. Durante a meditação, perceberemos que todo e qualquer pensamento desvanece no
Vazio. Um determinado pensamento ou sentimento em si nada possui de substancial. Eis que então
percebemos que em toda a Existência o que aflora é o Vazio de todas as coisas, o Vazio do
pensamento, do sentimento e de todos outros fenômenos. Porém, ainda durante a meditação,
outro fenômeno paradoxal se revela: o Vazio em si não é algo que subsiste de modo permanente
como um “pensamento” ou um “estado de ser” nem algo efêmero e inexistente. Em estado
profundo de meditação, sentimos que ocorre tanto a sucessividade efêmera de instantes
descontínuos como o fluxo permanente de um Tempo Indivisível. Tanto um aspecto quanto um
outro são apenas dois lados da mesma moeda, tanto o Vazio Transcendente como a Existência com
suas manifestações dualísticas são duas faces do mesmo Rosto Originário.
No fundo, quem separa ou liga um instante a outro é a nossa mente. Tanto a sucessividade
descontínua como a indivisibilidade contínua são modos de perceber que em si não são falsos nem
verdadeiros. É nesse instante que deixa de fazer sentido saber o que é constante ou inconstante, o
que é verdadeiro ou ilusório, o que existe ou não existe. Cessa toda especulação e,
consequentemente, toda aflição mental. Se fluirmos no aqui e agora com naturalidade,
penetraremos na dimensão luminosa do Mistério Indizível onde sentimos que somos apenas
centelhas da Suprema Luz da Harmonia. Não somos mais constantes ou inconstantes, não somos
mais ou menos que ninguém, não somos mais o pensamento ou a emoção, ou qualquer outra
essência substancial. Não importa o que somos ou deixamos de ser. Simplesmente somos aquilo
que já éramos, assim como é uma árvore, um rochedo ou um pequeno inseto. Somos aquilo que por
si mesmo é (自然-zìrán). Não sentimos mais nenhuma necessidade de nomear (definir) e de saber o
que nos acontece. Simplesmente respiramos e somos o fluxo do Sopro Vital. No Sopro há a

116
Existência tanto como o Vazio. É ali que a Vida nasce e renasce, pois todas as coisas se transformam.
Desse modo, somos o Vazio tanto como a Existência de todas as coisas, a Luz e a Escuridão do fluxo
desse Mistério.
Se praticamos o cultivo do Vazio e do Silêncio, ficamos cada vez menos envolvidos pelas
superficialidades. Observamos atentamente os acontecimentos no seu processo natural e agimos de
acordo com as situações, com o cuidado de seguirmos o fluxo da Naturalidade. Eis o que é a
eficácia da Não-Ação. Passamos a agir sem nos fixarmos em nossos próprios pensamentos, desejos,
caprichos, sentimentos e volições. Tal atitude não significa passividade, indiferença ou inação (“não
fazer nada”), como se os acontecimentos fossem meros produtos da casualidade. Ao contrário,
trata-se de agirmos no estado de Não-Mente (无心-wúxīn) sem apego (执着-zhìzhúo) e sem ignorar
as circunstâncias de um contexto mais ampliado.
A prática da Não-Ação possibilita que nosso ser esteja em harmonia com a essência da
totalidade do Dao, livrando-nos do apego, da artificialidade e da ignorância. O cultivo do Caminho
não é adquirimos mais conhecimento, fama, riqueza e bens externos, como se esses fossem os fins
supremos da nossa existência. Pois, se agirmos dessa forma, essa ação continuará sendo a ação de
uma mente que deseja intervir de acordo com seus caprichos e fins arbitrários. Daí a necessidade do
ato de meditar que não quer dizer ficar estático numa espécie de mortificação. É que a meditação
provoca uma reviravolta radical. Laozi fala do ato de contemplar (观-guan) que é como se fosse um
ato de ver, mas não no sentido físico. Trata-se de uma visão direta (直观-zhíguan), de uma
experiência de visão cuja verdade só adquire seu valor para aqueles que praticam a contemplação. A
própria palavra “experiência” já nos remete ao domínio do empírico, e portanto, é extremamente
reducionista. Não se trata de uma vivência ou de uma experiência no sentido empírico como se
houvesse algo de natureza empírica que se contrapusesse a algo mais intelectivo, abstrato e
não-empírico. A própria palavra “contemplação” também é limitada, porque sugere a ideia de
distanciamento, de não-ação, de passividade ou algo parecido, como se estivéssemos olhando a
realidade de maneira distanciada ou como se essa contemplação fosse algo oposto à “ação”. Esse
estado de ser contemplativo é mais um estado de espírito onde somos banhados internamente pela
luz da iluminação e do silêncio que não é senão a própria compreensão de que estamos conectados
ao fluxo do mistério do Dao.
É só nesse momento que sentimos que nossa essência é profunda, grandiosa e ilimitada de
modo que até abraçamos todos os seres tal como o Dao abraça o universo. Tal amplitude (容-róng)
nos permite aceitar todas as dez-mil coisas (容受万物-róngshòuwànwù) e é justamente essa
aceitação que nos aproxima da perenidade (久-jiǔ) do Dao sem que tenhamos mais o medo da
morte e de outras contingências pelas quais teremos de atravessar durante a nossa vida. É por isso
que se continuarmos perseguindo exclusivamente os bens supérfluos do mundo, nos afastaremos
cada vez da morada autêntica. Com a chegada da morte, é evidente que estaremos atormentados,
pois, ao invés de termos cultivado essa conexão genuína, o que cultivamos foi apenas algo
transitório e inútil. Em outras palavras, se estivermos ainda apegados a tais trivialidades, mal

117
estaremos cuidando da nossa morada interna, a saber, daquela essência constante e perene do Dao
que refulge dentro de nós. Por consequência, sentiremos a morte como um fenômeno
terrivelmente medonho e absurdo.

Do nascimento até a morte,


três entre dez são os caminhantes da vida;
três entre são os caminhantes da morte;
três entre dez são os que avançam para a terra da morte.

Por qual razão?

Eles vivem excessivamente a vida.

Dizem que aquele que cultiva bem a vida,


caminha sem se defrontar com tigres e rinocerontes,
ingressa na luta sem sofrer com armas e couraças.

O rinoceronte não tem onde enterrar seu chifre.


O tigre não tem onde encravar suas garras.
As armas não têm onde enfiar suas lâminas.

Por qual razão?

Nesse homem não há a terra da morte.186

Geralmente nos apegamos excessivamente à vida e rejeitamos a morte. Porém, do ponto de


vista do Dao, a vida e a morte são interdependentes e coexistem na harmonia do Todo. A única
atitude apropriada é a do sábio que cultiva bem a vida, assim como quem ama e cultiva as coisas
essenciais. Como ele não se apega à fama, à riqueza e ao poder, ele jamais sofre o ataque violento de
outros seres (“caminha sem se defrontar com tigres e rinocerontes”). Na visão de Laozi, como
comenta Wang Bi187, os animais ferozes como tigres e rinocerontes jamais conseguem prejudicar o
sábio, uma vez que esse último nunca alimenta o sentimento de apego. Na ausência de apegos,
como não há mais gratificação dos desejos voltados para a exterioridade, ele se preserva a si mesmo
no seu centro vital.

186
Laozi, cap.50.
187
Wang Bi e Su Zhe, p.168.

118
Como diz Su Zhe188, quem avança para a morte fere a si mesmo devido ao contato com as
formas externas do mundo. Porém, o sábio não caminha nessa direção, uma vez que retorna sempre
ao estado do Vazio e jamais desperdiça a sua força vital. De maneira análoga, cuidaremos de nossa
vida se praticarmos, como observava Wang Bang Xiong189, o estado de wúwei e os inúmeros modos
de desapego: o desapego ao conhecimento, o desapego à ação e o desapego aos desejos. Isso significa
que podemos cuidar bem do Brilho Divino (神明- shénmíng) presente no nosso corpo e espírito,
como dizia He Shang Gong190, de sorte que não sejamos vítimas do perigo das forças destrutivas
(“armas, rinocerontes e tigres”) que somente trazem consigo os malefícios da “terra da morte”.

Se eu tivesse conhecimento verdadeiro


e seguisse em acordo com o Supremo Dao,
ainda assim temeria o extravio.

O Supremo Dao é suave e plano,


mas os homens gostam de desvios:
excedem-se na construção dos palácios,
enquanto os campos ficam desolados
e os celeiros permanecem vazios;
vestem-se com trajes refinados,
carregam espadas afiadas,
enfastiam-se com bebidas e comidas
e ainda se apropriam de bens supérfluos

Eis o que se chama a grande rapina,


a própria negação do Dao!191

Além disso, é fundamental perceber que o caminho do Grande Dao é simples e suave,
porém a maioria das pessoas gosta de se desviar em atalhos complicados. Isso acontece quando a
mente humana se esforça em agir e interferir, criando mais distúrbios, perturbações e obstáculos
desnecessários. Como comenta Wang Bang Xiong192, se as pessoas praticassem o wúwéi e o
ensinamento do Dao com desapego, simplesmente estariam mais harmonizados com o caminho da
simplicidade. Segundo Wang Bi193, quando desejamos agir com “atalhos” e artifícios engenhosos
que não nos proporcionam nenhuma percepção real do que seja a essência do autêntico,

188
Idem, p.169.
189
Wang Bang Xiong, p.227.
190
He Shang Gong, p.368.
191
Laozi, cap.53.
192
Wang Bang Xiong, p.242.
193
Wang Bi e Su Zhe, p.177.

119
afastamo-nos cada vez mais do caminho do Dao e, devido ao excesso de ações “supérfluas”,
prejudicamos a nós mesmos e aos outros. Ficamos acorrentados à “grande rapina, a própria negação
do Dao”. O que observamos na sociedade atual é que as pessoas são habilidosas para embelezar a
superfície das coisas por meio de artimanhas, tergiversações e falsos estratagemas, mas, segundo Su
Zhe, o sábio é justamente aquele ser autêntico no sentido de que nele se manifesta a essência da
pureza e da simplicidade do Dao. Enquanto o vulgo desconsidera o princípio do Dao para buscar as
coisas superficiais, o sábio se resguarda na essência preciosa da vida e da Naturalidade. É por isso
que se seguirmos a trilha da sabedoria, evitaremos toda espécie de artificialismo. No Vazio Perfeito,
o mestre Liezi nos leva a refletir sobre o valor de seguirmos o princípio da suavidade como atitude
que minimiza o desejo de dominação presente na Ação Forçosa e na Artificialidade. É no
autocultivo da moderação, da suavidade e do autoconhecimento que estaremos fluindo com a
potência da Vida.

No mundo, há um Caminho (Dao) pelo qual uma pessoa sempre poderá dominar e há um
caminho pelo qual nunca poderá dominar. O Caminho pelo qual se pode sempre dominar se chama
Suavidade e o caminho pelo qual nunca se pode dominar se chama Força. Ambos são facilmente
conhecidos, porém os homens ainda não têm esse conhecimento. Por isso, os antigos diziam que a pessoa
forte deseja superar os outros, enquanto a pessoa suave deseja superar a si mesma. A pessoa que deseja
dominar os outros quando encontrar alguém mais forte estará em risco. Contudo, a pessoa que deseja
dominar a si mesma nunca estará em risco. Quem domina seu corpo através da Suavidade poderá
assumir o mundo. Os antigos diziam que quem não utiliza a Força para vencer os outros será capaz de
vencer a si mesma. Assim, quem não utiliza a Força para assumir o mundo será capaz de assumir o
mundo.
Yu Zi disse: “Se você deseja ser firme, deve preservar a Suavidade. Se você deseja ser forte, deve
resguardar a Brandura. Preservando a Suavidade, você será capaz de ter firmeza. Resguardando a
Brandura, você será capaz de ter Força. Observando esse cultivo da Suavidade você poderá conhecer a
origem da felicidade ou infelicidade. As pessoas fortes dominam as pessoas brandas, porém quando
aquelas encontram outras mais fortes, elas podem ser dominadas. Aquele que é suave poderá sempre
dominar e sua Força será imensurável. Por isso, Laozi dizia: A arma forte se aniquila e a árvore forte
se esfacela. Os suaves e brandos caminham para a vida. Os rígidos e fortes caminham para a
morte.”194

Portanto, se realmente valorizarmos e cuidarmos da essência da Vida que habita em nossas


profundezas, deixaremos de nos apegar às coisas externas, à riqueza excessiva, à imoderação, ao
orgulho, à inveja, ao espírito de competitividade, ao sentimento de arrogância, ao desejo de
dominar as pessoas e o mundo em que vivemos. Somente a partir desse autocultivo estaremos
agindo como o sábio taoísta de acordo com o Princípio Supremo da Naturalidade do Dao.

194
Liezi, p.73.

120
Yang Zhu disse: “O ser humano se assemelha à forma do Céu e da Terra. Contém a natureza
dos Cinco Elementos. É o mais inteligente dentre as criaturas. No entanto, no ser humano, suas garras
e dentes são insuficientes para protegê-lo. Sua pele e carne são insuficientes para resistir aos inimigos
externos. O ser humano nem sempre é capaz de correr para fugir dos perigos. Não tem pelos e plumas
suficientes para proteger-se contra o frio ou o calor. Ele depende de outras coisas externas para cultivar
sua vida e pode fazer uso da inteligência em vez da mera força bruta. Por isso, o valor do conhecimento
baseado na inteligência reside no fato de que ele é precioso para se preservar a própria vida, enquanto
a força bruta é vil quando utilizada para ferir os outros. Assim, eu não sou proprietário do meu corpo.
Uma vez que estou vivo, não posso senão preservar a minha vida. As coisas externas também não são
minhas posses. Contudo, mesmo que eu as tenha, não é necessário que eu as dispense. É evidente que o
corpo é o princípio da existência e as coisas externas são úteis também para a cultivarmos. É necessário
preservar a nossa vida, mas não podemos considerar o corpo como sendo de nossa propriedade. Embora
não possamos dispensar as coisas externas, também não podemos considerá-las como sendo nossos
próprios bens. Se desejamos nos apoderar das coisas externas e do nosso corpo, estaremos de modo
obstinado considerando como sendo nosso bem particular aquilo que pertence ao mundo em geral.
Somente o Sábio compreende essa verdade! Somente o virtuoso considera o corpo e as coisas externas
como pertencentes ao mundo! Eis o que seria a sublime sabedoria!”195

195
Liezi, p.237.

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Chiu Yi Chih (邱奕智) é chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, professor de filosofia chinesa
clássica e de mandarim (leitura instrumental) no Centro Cultural de Taipei e nos cursos online de Taoísmo.
Filósofo, poeta e tradutor de obras clássicas como “Dao De Jing” de Laozi , “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte
da guerra” de Sun-Tsu, publicados pela Editora Mantra. Praticante de Tai Chi e meditação. Mestre em
Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em Letras (Grego Clássico-Português/USP). Publicou um livro de
poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011) e um outro de ensaios filosóficos “Metacorporeidade”
(Córrego-2016). Pesquisa a obra taoista de Zhuangzi, Guanzi, Huainanzi, os Sutras do Budismo Chan. Em
breve, será publicado o seu livro de poemas “Osso Vazio” (Editora Contravento). Atualmente está
traduzindo “Ensinamentos de Bodhidharma”. Visite seu site www.mandarimtaoismo.com

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