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PARATEXTO - “Contos Noturnos” por Bianca Povoa

O livro
“Contos noturnos” é um livro escrito por André Beltrão, que também assina
as ilustrações ao longo deste. Além de escritor e ilustrador, André Beltrão
ministrou e mediou diversos eventos nas artes visuais, sendo Doutorando em
design pela PUC-Rio, Mestre em Design pela PUC-Rio (2017), especialista em
marketing pela Ibmec Rio (2004) e graduado em Desenho Industrial pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (1995). Pesquisador vinculado ao Lab3i,
da ESPM-RJ e colaborador do laboratório LIDE, da PUC-Rio. Diretor do Studio
Creamcrackers Ltda, agências de design, e professor nos cursos de Design da
ESPM Rio e do curso de Design da PUC-Rio. Coordenador da série Manual do
Freela da editora 2AB. No ano de 2011, André Beltrão foi premiado no Festival
Internacional Intercâmbio de Linguagens.
A obra aqui em questão reúne diversos contos infantojuvenis e traz à tona
textos que abordam a subjetividade humana, operando através de um alto grau
de fabulação, transitando entre a fantasia e a realidade, sem, no entanto, se
utilizar da fabulação como uma espécie de fuga da realidade em direção a um
mundo distinto. Aqui, tal qual fizeram constistas exímios como Eça de Queirós e
Edgar Allan Poe, o autor, por vezes, cria cenários fantásticos para abordar os
temas pertinentes à realidade, a nossa existência e o que está por trás dela.
A morte, a sexualidade, a transformação do corpo, a perplexidade diante do
mundo, as relações interpessoais, o convívio na cidade, a tormenta, o desânimo, a
melancolia, o absurdo ou mesmo a trivialidade da vida, são trabalhados num
universo perpassado ora pela ficção científica, a exemplo do conto “Conexões”, o
conto fantástico (Conto “IX”), o impressionismo (“Marie”) e o ultrarromantismo
ou o romantismo sombrio(“Eat me”) em uma escrita veloz que dialoga com a
percepção de tempo das novas gerações, muito atrelada ao multitasking e à
velocidade na assimilação de conteúdo, motivados pela temporalidade que os
stories do instagram, o tiktok, os tweets, etc, nos delegaram.
O livro é subdividido em três partes: “Contos noturnos” (com dezenove
contos ao todo; “Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando” (com
seis contos); e “Pessoas” (com dez contos). Na apresentação, o autor nos dá
pistas sobre seu livro, oferecendo ao interlocutor uma prévia e também, de certa
forma, uma sugestão de leitura. Os contos não são “noturnos” – como sugere o
título da obra – por que as narrativas se passam entre as 6 da tarde e as 6 da
manhã, e sim porque foram escritos nesse intervalo. Na verdade, segundo André
Beltrão: “os contos deste livro foram quase todos escritos de madrugada”. O autor
nos antecipa que sua insônia foi a motivação para elaboração de muitos textos,
dedicando, inclusive, sua obra aos insones.
No primeiro terço do livro – de título homônimo - percebemos em boa
parte dos contos um narrador que parece espiar a cena através de um olho
mágico. Ele fotografa a cena e a descreve com palavras, fazendo da literatura um
pequeno cinema, dirigindo a câmera para detalhes minuciosos que fazem parte
tanto da composição da cena no sentido material mais imediato, quanto no
sentido psíquico, das tensões e emoções de suas personagens. No conto “Eat me”,
talvez o ponto mais macabro do livro, num movimento que pode nos remeter às
“Noites na taverna” de Álvares de Azevedo, temos a relação entre duas pessoas
metaforizada pela ideia de que estão, literalmente, se comendo, deglutindo um a
carne e o sangue do outro, até que restam apenas os ossos. Essa figuração de
linguagem metafórica e hiperbólica são constantemente utilizadas pelo autor para
elaborar suas alegorias, ora melancólicas, ora carregadas de alegria.
O lirismo também é uma constante, uma vez que os contos e seus
componentes estão repletos de simbolismos, operando entre a experiência e o
sonho da experiência. O narrador externo descreve não só aquilo que pode ver,
mas também aquilo que imagina e infere do que vê e que não está explícito;
sendo assim, mesmo as afirmações mais categóricas acabam não assumindo um
tom soberbo, pois a significação está sempre em aberto, como um convite à
reflexão; desta maneira, o livro tem uma atuação interessante para leitores em
estágio intermediário, atuando como facilitador no que tange à formação de
leitores mais equipados, pois, através de uma linguagem simples, com vocabulário
acessível, trabalha com alto grau de imaginação e inventividade o diálogo interno,
psíquico, onírico e psicanalítico de seus personagens.
Na segunda parte do livro “Coisas que acontecem quando não tem ninguém
olhando” os contos assumem um tom de maior desconforto, uma certa
“decadência”. É interessante o jogo que se faz entre o título da segunda parte da
obra com o conteúdo dos contos nele contidos. Em um mundo onde a realidade
virtual nos mantém em permanente exposição de uma fração da nossa imagem (a
que escolhemos, a dedo, transmitir), mas quando ninguém está olhando,
assumimos a nossa face indesejável, a nossa face “podre” e “decadente”, uma
intimidade específica que, normalmente, não é a que se expõe no perfil do
Instagram.
É interessante observar que, marcado pela noite, muitos dos contos são
atravessados por uma atmosfera melancólica, as vezes até macabra como o
próprio autor diz. Alguns contos assumem tom dramático, de uma situação da
vida entre o drama e a superação, trazendo temas pertinente à autorreflexão.
A noite, a lua, a influência da lua sobre a água; a água que há em nós, a
influência do satélite terrestre sobre a água que há em nós, símbolo das emoções
correntes, que afluem ou se represam. Em determinado momento, o eu-lírico
materializado na forma de um menino sonha; noutro, vislumbra-se um ser do
futuro.
Como dito anteriormente, o autor constantemente nos conduz a espaços
imagéticos fantasiosos para nos ilustrar algo da vida prática e objetiva, usa o
recurso da magia não apenas para usufruir de seu espaço enquanto imagem, mas
dá imagem enquanto produtora de sentido, capaz de despertar reflexões sobre o
mundo real, a aproximação através do fantástico vem como uma consciência
suplementar para a assimilação de aspectos mais profundos de nossas existências.
“Pensando bem sua vida estava um lixo”, essa é a fala de um dos eu-líricos
do livro, um bom marcador para indicar que aqui os personagens não alimentam
um otimismo anestesiado sobre a vida, mas uma certa conexão com a realidade
difusa do mundo, uma montanha russa de emoções que muitas vezes insiste em
permanecer na parte baixa do circuito.
Na terceira parte do livro, intitulada “Pessoas”, o autor retrata a vida de
pessoas diversas, variando entre a narrativa em primeira pessoa como em “Um
homem assado” ou em terceira pessoa como em “Um homem guardado”. André
Beltrão permanece numa toada similar aos capítulos anteriores, se utilizando da
comicidade, do mágico e do inusitado para compor, com sensibilidade e destreza,
a cena que se propõe a narrar. No conto “Pessoas por aí” parte I e II, já ao fim do
livro, encontramos condensada boa parte do que o livro, de maneira geral, parece
propor, com um olhar espião que vai trafegando por entre histórias e pessoas, a
partir de uma atmosfera cômica e fantasiosa. Em “Profissões: uma heroína
dadaísta” temos, possivelmente, a experiência mais radical no nível da linguagem,
uma elucubração que dialoga com o dadá, o surrealismo e o absurdo; no entanto,
é importante lembrar, em se tratando desta obra, que o voo e o salto imaginativo
nunca perdem de vista a realidade do chão concreto.
BOX
O gênero literário do livro
"Contos Noturnos" é um livro que traz o gênero conto amparado pelos seus
gêneros modernos "fantástico" e "horror".
O gênero conto é uma obra de ficção assentado em narrativas curtas, que
apresenta elementos que o constituem tais quais: narrador, foco narrativo (a
posição que o narrador assume para relatar os acontecimentos), personagens,
ponto de vista e enredo.
Passíveis de larga flexibilidade, os contos podem se aproximar dos gêneros poesia
e crônica. No entanto, em "Contos Noturnos", onde os contos são espécies de
curta-metragens-experimentais, o enredo, assim como o desfecho ou a
ascendência do texto em direção a uma catarse não são uma lei por aqui. O
processo de observação, o olhar do narrador conduzindo a imaginação (olhar
interno) do leitor, que é conduzido através de cores, cheiros, sons e movimentos
que se mesclam assinalando, então, o flerte com os gêneros modernos citados:
fantástico e horror.
O horror se apresenta, em princípio, como sendo uma vertente do fantástico e
contendo também elementos da ficção científica. Ao se tornar uma configuração
específica de narrativa, o horror tem sua definição alicerçada entre o final do
século XVIII e toda a extensão do século XIX, sendo ressignificado no século XX
pelos autores Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft.
Já o fantástico se centra em elementos não existentes ou não reconhecidos na
realidade, amealhando personagens e situações igualmente inexplicáveis e
estranhos.
Os gêneros literários
Antes de entender os gêneros literários, vamos pensar no que define um texto
literário e um texto não-literário. Comecemos pensando na função de cada um: o
literário nos leva à função estética enquanto o não-literário, à utilidade. Ou seja, a
literatura nos convida à ficção, ao entretenimento, à arte, enquanto a escrita não-
literária nos traz a informação, o convencimento, as explicações.
A linguagem literária é mais subjetiva, enquanto a não-literária, objetiva.
Musicalidade, figuras de linguagem e criatividade estão presentes no texto
literário, enquanto no não-literário está a clareza. Enquanto a literatura é muito
baseada na imaginação de quem escreve (inspirando quem lê), a não-literatura se
baseia mais nos fatos.
Há três grandes divisões entre os gêneros literários: o lírico, o narrativo e o
dramático. O gênero lírico se caracteriza por textos poéticos de caráter
sentimental, que traz emoções do poeta. O gênero narrativo (que já foi chamado
de épico) traz uma história e personagens situados em um tempo e um espaço. Já
o dramático se encontra nos textos teatrais que são encenados.
Essa divisão de gêneros foi proposta pelo filósofo grego Aristóteles, que viveu três
séculos antes de Cristo, na Antiguidade Clássica. Para Aristóteles, o gênero lírico é
como a palavra cantada, o épico (ou narrativo) é a palavra narrada, enquanto o
dramático é a palavra representada.

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