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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE – UFS
DEPARTAMENTO DE LETRAS

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

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MARIA EMÍLIA BARRETO BARROS

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VOLUME 1

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MARIAMA[Digite texto] Página 1

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

ASSUNTO 1: AS CONCEPÇÕES DA LINGUAGEM

OBJETIVOS
Discutir acerca das concepções da linguagem; estabelecer a relação entre tais concepções e o ensino de
língua.

INTRODUÇÃO

Para iniciarmos o nosso curso sobre Fundamentos para o Ensino da Alfabetização, é importante
refletirmos sobre alguns conceitos acerca da linguagem; como ela tem sido estudada no mundo, desde
que o ser humano se conscientizou de seu uso e desde que ele começou a refletir acerca da relação
existente entre ele, a linguagem e o mundo. Dessa forma, entraremos em contato com alguns postulados
teóricos de alguns autores importantes para o nosso estudo. Fazemos tal abordagem por considerarmos
o conhecimento sobre tais concepções um pré-requisito para o ensino da escrita.
Como bem explica Koch (1995, p. 9–11), a linguagem humana tem sido apresentada a partir de
três concepções, quais sejam: representação do mundo e do pensamento; instrumento de comunicação;
forma de interação entre os sujeitos. De acordo com a primeira concepção, entende-se que o ser humano
representa o mundo para si através da linguagem. Explicando melhor, segundo essa concepção, a
expressão se constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. A língua,
nesse sentido, é apenas o reflexo do mundo e do pensamento humano (a língua é o espelho do mundo, tal
como postulavam os gregos – specullum1). Há regras a serem seguidas e a exteriorização do pensamento
depende muito mais de uma psicologia individual. Essa concepção advém do pensamento platônico,
cerca do século IV a. C.
Segundo essa concepção, o texto organizado não depende da imagem do leitor, da situação em
que se fala/se produz, mas de uma organização lógica individualmente articulada. Estabelece-se uma
relação direta entre pensamento, linguagem e mundo. Essa é, contudo, uma ilusão da ordem da
enunciação, pois essa relação não se dá linearmente. Há vários fatores que interferem nessa relação. A
essa concepção de linguagem está ligada a gramática normativo-prescritiva.
São muitas as consequências dessa concepção de linguagem. Uma delas é dizer-se que um(a)
estudante não “se expressa (fala / escreve) bem” porque não pensa. Na verdade, há muitos fatores
envolvidos nessa relação, e nós não podemos afirmar isso sobre ele(a) porque ele(a) não soube “se
expressar bem” naquele exato momento.
A segunda concepção trata a língua como mero instrumento de comunicação, em que o emissor
transmite uma mensagem para o receptor. Este tem a função de receber a mensagem. Segundo essa
concepção, a língua é entendida como um código, um conjunto de signos organizados de acordo com
regras, capaz de transmitir uma mensagem de um emissor a um receptor, veiculada por um canal. Como
há uma utilização social do código (emissor – receptor), este deve ser compartilhado por ambos os
componentes no processo de comunicação. Essa concepção advém dos postulados teóricos relacionados
à Teoria da Comunicação (século XX) e é assim representada:

CONTEXTO

MENSAGEM
EMISSOR RECEPTOR

CANAL

CÓDIGO

1 KRISTEVA, J. História da linguagem. Trad. Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Observemos o que Travaglia (1997, p. 22) nos ensina a esse respeito:


Essa concepção levou ao estudo da língua enquanto código virtual, isolado de
sua utilização – na fala [cf. Saussure] ou no desempenho [cf. Chomsky]. Isso
fez com que a linguística não considerasse os interlocutores e a situação de
uso como determinantes das unidades e regras que constituem a língua, isto
é, afastou o indivíduo falante do processo de produção, do que é social e
histórico da língua.

Conforme essa perspectiva de entendimento da linguagem, aprender a língua é decodificar um


código. Tal concepção nega as características essenciais da linguagem: social, histórica e dialógica.
Critica-se tal concepção por conta de seu caráter estático e mecanicista, como se cada participante do
processo interativo só agisse em um momento específico, desconectado um do outro.
Finalmente, de acordo com a terceira concepção, a linguagem é entendida como uma forma de
ação, de inter-relação entre os falantes. É a partir dessa visão que a linguagem começa a ser percebida
enquanto atividade; os linguistas passam a atentar para as relações entre a língua e seus usuários e,
portanto, para a ação que se realiza na e pela linguagem. Esta é concebida como um lugar de interação
humana, de interação comunicativa. Tal concepção advém, principalmente, dos postulados teóricos de
Bakhtin (década de 1920). Esses postulados, entretanto, só foram divulgados no Ocidente,
principalmente, após a queda do Muro de Berlim (1989). Por conta dessa divulgação, propôs-se uma
revisão para o quadro da Teoria da Comunicação. Vejamos essa revisão abaixo2:

CONTEXTO

LOCUTOR – DISCURSO INTERLOCUTOR –


(SUJEITO) (SUJEITO)

CANAL

CÓDIGO

A linguagem concebida como uma forma de ação, de inter-relação entre os falantes implica o
estudo das manifestações linguísticas produzidas por indivíduos concretos em condições concretas de
produção. Como bem define Bakhtin (1999, p. 112), “[...] qualquer que seja o aspecto da expressão-
enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais de enunciação em questão, isto é,
antes de tudo pela situação social mais imediata”. Tal concepção de língua vai de encontro ao
estruturalismo e ao gerativismo chomskyano, uma vez que essas teorias analisam a língua quanto a seus
componentes abstratos, fora de qualquer contexto de uso.
Na perspectiva interacionista da linguagem, percebe-se a língua como um jogo entre sujeitos,
como um lugar de interlocução. Tanto o locutor quanto o interlocutor participam efetivamente desse
jogo, pois ambos são considerados sujeitos da ação. Tal consideração é válida nas duas modalidades da
linguagem verbal: a fala e a escrita. As teorias linguísticas associadas à terceira concepção de língua
sustentam que a construção do conhecimento se dá num jogo entre sujeitos, na construção do sujeito.

2 Ao propormos uma revisão desse quadro teórico, enfatizamos a relação entre os sujeitos. Essa relação, por sua vez,

não é estanque, pois os sujeitos estão, ao mesmo tempo, realizando o processo de significação. Além disso, na medida
em que propomos a permuta da mensagem pelo discurso, levamos em conta que não existe apenas uma transmissão
de informação. Segundo Orlandi (2002, p. 21): “[...] no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e
sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não meramente transmissão de informação [...]”.

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Isso porque tanto a criança quanto o adulto devem participar desse processo numa perspectiva de
mútua aprendizagem.
De acordo com as concepções aqui apresentadas, podemos perceber que o ensino, na maioria
das escolas, ainda está pautado nas duas primeiras concepções: a linguagem tida como expressão do
pensamento e a linguagem entendida como código/decodificação. Baseadas nessas duas perspectivas,
proliferam-se as ideias acerca da correção da linguagem, as concepções estruturalistas de texto,
corroborando as teorias da Linguística Imanente ou do Significante 3. Denomina-se Linguística
Imanente ou do Significante as correntes que trabalham somente com a estrutura da língua, a qual é
considerada como inerente ao objeto. Tais perspectivas de estudo, portanto, negam todos os aspectos
extralinguísticos que envolvem, por sua vez, os processos de interação entre os sujeitos.
E, na medida em que o ensino de língua está pautado nas duas primeiras concepções da
linguagem, o(a) professor(a) silencia os(as) estudantes, uma vez que exige deles(as) uma correção de
linguagem. Com efeito, nega o caráter dialógico da linguagem, comprometendo a interlocução entre os
sujeitos do processo de educação (estudante e professor).
Resumindo: nós estudamos as concepções de linguagem, a fim de nos situarmos em relação ao
ensino de língua. Vimos que são três as concepções da linguagem: 1) a linguagem tida como expressão
do pensamento. Nesse sentido, a língua é o espelho do mundo (specullum); 2) a linguagem entendida
como um código, e o receptor, para se comunicar com o emissor, tem que decodificar uma mensagem;
3) a linguagem percebida como uma forma de ação, de inter-relação entre os falantes. Na perspectiva
interacionista da linguagem, percebe-se a língua como um jogo entre sujeitos, como um lugar de
interlocução.
Em seguida, daremos continuidade aos nossos estudos introdutórios, observando como o ser
humano adentra o mundo a partir da linguagem. Traremos algumas discussões sobre a linguagem falada.
A partir de então, começamos a trilhar os caminhos da escrita, estudando o seu surgimento no mundo.

ASSUNTO 2: COMPETÊNCIAS COMUNICATIVAS BÁSICAS

OBJETIVOS
Identificar como ocorre a aquisição da linguagem falada; reconhecer as fases do surgimento da escrita,
discernindo cada uma delas; perceber as dificuldades por que passam os(as) alfabetizandos(as) ao
serem expostos(as) ao sistema escrito do português.

INTRODUÇÃO

Esta exposição tem como objetivo a construção do seu conhecimento em relação à linguagem
(falada e escrita). Inicialmente, à luz da Psicolinguística, observamos como o ser humano adquire a
linguagem. Esta, por seu turno, é um reflexo do grupo social em que o indivíduo vive e com o qual
interage. Apresentamos três teóricos. Em relação à linguagem falada, introduzimos o pensamento de
Albano (1990), importante linguista nessa área, refletindo como o ser humano adentra no mundo. Com
Cagliari (2001) e Kato (2003), por sua vez, procedemos a uma breve abordagem sobre o surgimento da
escrita.

Ouvir/falar

3 O adjetivo Imanente está assim definido no Dicionário Eletrônico de Houaiss (2009): adjetivo de dois gêneros: 1
que está inseparavelmente contido na natureza de um ser ou de um objeto; inerente. Ex.: o sentimento religioso é
i. à consciência individual. 2 Rubrica: filosofia. Que permanece no âmbito da experiência possível, agindo na
captação da realidade através dos sentidos (no kantismo, diz-se de conceitos ou princípios cognitivos). 3 Rubrica:
filosofia. [Referente à dimensão concreta, material, empírica da realidade].

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Segundo as concepções de linguagem estudadas, observamos que, há muito tempo, discute-se


como o ser humano começou a falar e, consequentemente, qual a natureza da língua. Como registrado
anteriormente, para cada concepção defendida, há uma determinada abordagem de língua. Além disso,
como estamos lidando com um objeto de estudo cujas investigações, apesar de serem remotas, são
bastante recorrentes, estamos sempre expostos a ele. Ou seja, é impossível fugirmos de um mundo
letrado. A escrita está em toda parte! Mas não escrevemos desde o nosso nascimento, ao contrário da
fala, à qual somos submetidos desde então.
Para a Psicolinguística, à luz de Kato (2003), a linguagem é a capacidade que o ser humano tem
de se comunicar através de uma língua natural 4. Isso significa que o indivíduo adquire a linguagem
através de uma ou mais línguas naturais, dependendo de sua capacidade em interagir como falante e à
medida que é colocado em contato com outros falantes dessas línguas. Descobriu-se que crianças,
quando retiradas do meio social (as chamadas crianças-lobo), não conseguem adquirir a língua natural
por não estabelecerem interação com o meio. Foi a partir do descobrimento de Gennie (criança-lobo,
encontrada na Califórnia) que os psicolinguistas puderam afirmar que há uma idade crítica, depois da
qual o indivíduo não pode naturalmente adquirir a língua 5.
Como abordado anteriormente, a linguagem do indivíduo é um reflexo do grupo social em que
vive e com o qual interage. Para Albano (1990, p. 20), “[...] chega-se à linguagem tocando a fala de ouvido
[...]. Tocar de ouvido significa, pois, confeccionar um símbolo com recursos concretos ou quase
concretos.” Essa estudiosa afirma ainda que, no caso de um vocabulário inicial se desenvolver viso-
manualmente, a “fala” pode ser substituída por “gesto significativo”, ficando a sensomotricidade
linguística entendida nos mesmos termos. Ultrapassa a “normalidade” discutida por alguns teóricos e a
acima mencionada. Isso é válido quando tratamos, principalmente, de indivíduos que apresentam
problemas auditivos.
A autora defende também que o indivíduo é o sujeito do seu conhecimento, ao mesmo tempo em
que aponta para a existência de uma auto-organização linguística, o que limita o papel da subjetividade.
E acrescenta que há quatro condições para o desenvolvimento da linguagem. São elas:
1. o interesse subjetivo por ela, ou seja, a disposição de brincar com as condutas que a aproximam;
2. a existência de um sistema sensoriomotor que permite a brincadeira;
3. a inserção no meio onde a linguagem faça parte da rotina;
4. a presença de uma língua.

E resume tal teoria da seguinte forma: “Em suma, toca-se a fala de ouvido, pondo-se o sistema
da vocalização – audição, já familiar, a serviço das primeiras explorações do símbolo” (ALBANO, 1990,
p. 41). O ser humano adentra o mundo a partir da audição ou visão e da fala ou gestos.

Com as primeiras competências, constrói significados, formula hipóteses sobre o que significa um
enunciado, enquanto o está ouvindo/vendo; desenvolve estratégias: conhecimentos linguísticos,
conhecimento de mundo, numa constante tentativa de formular uma representação interna. É preciso,
portanto, recorrer a muitos níveis de conhecimento e habilidades na trajetória aparentemente simples e
fácil de ouvir e entender.

4 A noção de língua natural opõe-se à de língua artificial. Esta, por sua vez, não é falada por nenhuma comunidade
de fala. Neste caso, podemos exemplificar a língua esperanto, criada para ser utilizada internacionalmente; não
existe nenhuma comunidade de fala dessa língua. Observe o verbete esperanto em Houaiss eletrônico (2009):
substantivo masculino, língua artificial criada pelo médico e estudioso de línguas polonês Ludwig Lazar Zamenhof
(1859-1917), por volta de 1887, para ser língua de comunicação internacional [Possui gramática muito simples e
regular e utiliza as raízes das línguas europeias mais faladas, além de raízes latinas e gregas.]
5 Sugerimos-lhe que assista ao filme “O Enigma de Kaspar Hauser” para entender melhor as questões referentes à

criança-lobo.

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Constatamos, assim, a importância do falar e do ouvir, na medida em que tais competências


contribuem para a construção da leitura de mundo, imprescindível para a construção do(a) educando(a)
como sujeito do processo de educação.

A Escrita no Mundo

Como anteriormente mencionado, a comunicação, de maneira geral, é uma necessidade natural


dos seres humanos, pois é através dela que expressamos nossas ideias dentro do grupo social no qual
estamos inseridos. O intercâmbio de ideias nos permite um conhecimento mais amplo da realidade que
nos cerca. Com a comunicação escrita ocorre o mesmo processo. Por conta disso, é de suma importância
que façamos uma breve abordagem sobre o surgimento dela e a sua função na vida do ser humano, uma
vez que a escrita se tornou um instrumento de comunicação universal e, por isso, indispensável ao
desenvolvimento e progresso humano.
Sob uma perspectiva psicolinguística, Mary Kato (2003), ao trabalhar com a natureza da
linguagem e suas implicações, parte da premissa de sua real função na vida do indivíduo. Propõe um
olhar sobre a história da escrita, a qual se manifestou na Pré-História, através de desenhos
(posteriormente representação da arte) e de pictogramas, que a princípio não possuíam relação direta
com a fala, mas que gradativamente passaram a representá-la. O desenvolvimento da escrita, então,
evidencia de fato a necessidade de o ser humano se expressar pelos caminhos mais diversificados
possíveis, com o propósito de pôr em prática suas aspirações no meio ao qual pertence.
É importante sabermos que o momento mais relevante no progresso da escrita para sua
composição atual (como a conhecemos hoje) circunda a noção da palavra, da sílaba e do som para a
obtenção da escrita alfabética (século X A.C). Foi nesse tipo de escrita que os gregos inseriram a vogal
após a consoante, passando da escrita silábica para a escrita alfabética (inclusão das vogais, até então
inexistentes). A escrita alfabética é, dessa forma, considerada uma descoberta, “[...] pois, quando o homem
começou a usar um símbolo para cada som, ele apenas operou conscientemente com o seu conhecimento
da organização fonológica de sua língua” (KATO, 2003, p.16). No entanto, apesar de tentar representar
a fala, a escrita alfabética não é genuinamente fonética, isto é, não identifica fielmente os sons da fala. Ela
obedece a uma convenção ortográfica.
Cagliari (2001), por seu turno, argumenta que a história da escrita é vista sob a perspectiva de
três fases, quais sejam: a pictórica, a ideográfica e a alfabética. Eis cada uma das fases abaixo explicitadas:

1. Fase pictórica – escrita através de desenhos ou pictogramas (inscrições antigas). Exemplos: cantos Ojibwa da
América do Norte, escrita asteca, história em quadrinhos. Pictogramas não são associados a um som, mas à
imagem do que se quer representar. Consistem em representações bem simplificadas dos objetos da realidade.
2. Fase ideográfica – escrita através de desenhos especiais chamados ideogramas. Esses desenhos foram, ao longo
de sua evolução, perdendo alguns dos traços mais representativos das figuras retratadas e tornaram-se uma
simples convenção da escrita. Escritas ideográficas mais importantes: egípcia (hieroglífica), mesopotâmica
(suméria), as escritas do mar Egeu (cretense) e chinesa/ japonesa.
3. Fase alfabética – uso de letras (originadas dos ideogramas), perderam o valor ideográfico, assumindo uma nova
função de escrita: a representação puramente fonográfica. O ideograma perdeu seu valor pictórico e passou a ser
simplesmente uma representação fonética. A escrita alfabética apresenta um inventário menor de símbolos e
permite a maior possibilidade combinatória de caracteres na escrita.

Cagliari (2001) ainda faz algumas observações sobre a escrita no mundo. Primeiramente, é
importante registrar que a escrita, seja ela qual for, sempre foi uma maneira de representar a memória
coletiva, religiosa, mágica, científica, política, artística e cultural. Dessa forma, a partir da descoberta da
escrita, a memória coletiva dos povos passou a ter outros meios de materialização. Além disso, também
é importante salientar que nem todos escrevem da esquerda para a direita e de cima para baixo, como
nós, embora este seja um modo muito comum entre os sistemas de escrita.

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No que diz respeito à escrita da língua portuguesa (doravante LP), apesar de ser fundamentalmente alfabética, tendo
como base a letra, verificamos que não há uma harmonia perfeita entre os sons da fala e os símbolos ortográficos. A
relação entre as letras e os sons da fala é muito complicada, pois a escrita não é espelho da fala. É possível ler o que
está escrito de diversas maneiras. Há recursos especiais na escrita: duas letras para representar um som; letras que
não têm som algum na fala, mas estão presentes na escrita; uma mesma letra pode estar relacionada com diferentes
segmentos fonéticos; um mesmo segmento fonético pode ser representado por diferentes letras. A LP é basicamente
fonêmica e parcialmente ideográfica, pois, quando escrevemos em português, usamos letras, sinais diacríticos
(acentos agudo, grave, circunflexo, til). Além desses, utilizamos os sinais de pontuação, muitas vezes, extremamente
importantes em relação à produção do sentido.

Destarte, é importante estarmos atentos para as dificuldades por que os(as) nossos(as)
alfabetizandos(as) irão passar quando forem expostos(as) à escrita do português. Daí a necessidade de
o/a alfabetizador/a ser paciente no processo de alfabetização. Isso porque, como observamos, na
medida em que a criança/o adulto aprende a escrever, ela/ele está resgatando, de certa forma, todo o
processo de construção de escrita no mundo. Com efeito, não podemos ignorar esse fato, mas
compreendê-lo, relacioná-lo e, principalmente, saber situar em que fase de construção da escrita a
criança/o adulto se encontra.
Resumindo: fizemos um percurso em relação à aquisição da linguagem, desde o ouvir/falar até
como a escrita foi descoberta pela humanidade. Finalmente, observamos a escrita do português, que é
considerada fundamentalmente alfabética, mas vimos que, ao escrevermos em português, laçamos mão
de uma escrita ideográfica também. Disso decorre a necessidade de desenvolvimento de habilidades
nos(as) nossos(as) alfabetizandos(as), durante o processo de alfabetização. Tal abordagem, por sua vez,
é de extrema importância para a construção do nosso conhecimento, enquanto futuros(as)
alfabetizadores(as).
A seguir discutiremos sobre as diferenças entre a fala e a escrita, observando as dificuldades
inerentes ao processo de alfabetização, haja vista a existência das diversas escritas no mundo.

ASSUNTO 03: DIFERENÇAS ENTRE A FALA E A ESCRITA

OBJETIVOS
Discutir a autenticidade das diferenças entre a fala e a escrita, a partir do advento dos chats; refletir
sobre a dificuldade que os(as) estudantes podem apresentar durante o processo de alfabetização, dada
a diversidade de formas de escrita em circulação.

INTRODUÇÃO
Como mencionado, falar e escrever exigem estímulos distintos para a sua aquisição,
consequentemente, há diferenças entre ambas. Tais diferenças, por sua vez, são causadas pela condição
e pelo contexto. Isso é o que nos ensina Kato (2003), segundo a qual a existência dessas diferenças está
relacionada à variável social e psicológica, ao grau de letramento, ao estágio de desenvolvimento
linguístico. Afora esses aspectos, ainda à luz de Kato (2003), elencamos algumas diferenças entre essas
duas modalidades, a respeito das quais podemos questionar, na medida em que surge a “conversa
escrita”, cujo suporte é o computador. E, nesse caminho, apresentamos algumas idiossincrasias do ato
de escrever a partir dos postulados teóricos de Cagliari (2001), tentando refletir sobre as dificuldades
às quais são submetidos(as) os(as) nossos(as) estudantes nessa fase de aprendizagem.

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Diferenças entre a fala e a escrita

Por a fala e a escrita serem modalidades diversas e possuírem estímulos distintos, auditivo e
visual respectivamente, são atribuídas a elas diferenças que, numa análise mais profunda, constatamos
que são causadas pela condição e pelo contexto da produção da linguagem, pois as duas modalidades
desfrutam da mesma gramática que rege suas estruturas menos ou mais complexas. Isso significa que,
apesar de serem usadas em contextos diferentes, a fala e a escrita possuem uma mesma estrutura
gramatical. Kato (2003) faz referência a variantes responsáveis pelo equívoco ou falta de esclarecimento
mediante tal situação, dentre as quais: a variável social e psicológica, grau de letramento, estágio de
desenvolvimento linguístico.
A variável social e psicológica diz respeito à utilização de códigos e à forma dessa utilização na
comunicação pelos grupos sociais. À primeira vista, conclui-se que as classes socioeconomicamente
privilegiadas dispõem do código elaborado (uso maior de orações subordinadas, número de locuções,
agente da passiva, adjetivos, advérbios, pronomes pessoais); as classes socioeconomicamente
desprestigiadas, em contrapartida, dispõem de um uso menos frequente de tais variáveis estruturais na
formação das sentenças e, portanto, no dizer dessa linguista, de um código não elaborado.
No entanto, a própria autora reflete sobre tal teoria, revelando o seu grau de discriminação, haja
vista essa perspectiva submeter a capacidade cognitiva do indivíduo à classe social à qual pertence
(KATO, 2003). Até mesmo porque pertencer às classes desprestigiadas socioeconomicamente não
significa dizer que não há possibilidades de os seus membros terem acesso ao letramento e,
consequentemente, ao código elaborado.
Outro aspecto que interfere na produção da linguagem é o grau de letramento. Aqui, as
experiências pré e pós-letramento são muito importantes, já que a escrita influencia sobremaneira a fala.
Seguindo esse raciocínio, a norma padrão nada mais é do que a simulação da escrita convencionalizada.

Para Kato, a F1 (fala1) corresponde à E1 (escrita1); a E2 (escrita2)


corresponde uma F2 (fala2).

A fala1, por sua vez, corresponde à fase de pré-letramento; a escrita1, então, pretende
representar a fala da forma mais natural possível; a escrita 2 se torna quase independente da fala, através
de convenções rígidas; finalmente, a fala 2 é aquela que resulta do letramento. Considerando-se essa
hipótese, torna-se fácil entender-se por que os(as) letrados(as) concebem a fala segundo o que sabem
da escrita.
Essa é uma perspectiva principalmente de Kato (2003). Entretanto, alguns autores mais ligados
à Linguística do Discurso, percebem que se vai da fala para a escrita num processo histórico. É o caso da
pesquisa de Terzi (2002) que explica o fato de meninos de uma favela do Rio terem aprendido a falar de
acordo com a norma padrão. Depois, mais facilmente, adquiriram a escrita padrão.

Para Terzi (2002), a F1 (fala1) corresponde a uma E1 (Escrita1); enquanto a F2 (Fala2) corresponde a uma
E2 (Escrita2).
Eis a diferença entre as duas teorias: Se naquela se vai de uma escrita padrão para uma fala padrão;
nesta, vai-se de uma fala padrão para uma escrita padrão, obedecendo ao curso “natural” da aquisição
da linguagem

Em relação àquela teoria, Kato (2003) aponta para a questão dos discursos não planejado e
planejado. Isso porque o estágio de desenvolvimento linguístico refere-se ao discurso relativamente não
planejado e ao discurso planejado.

O discurso não planejado não condena uso de repetição lexical e uso de estruturas morfossintáticas
adquiridas cedo.
O discurso planejado requer menor uso de repetição lexical, maior uso de variação de forma e
conteúdo e menos uso de estruturas adquiridas cedo (fase infantil).

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

O discurso relativamente não planejado pode aparecer na escrita que não seja dissertativa.
Mesmo o adulto, em determinadas situações, pode utilizar estruturas menos elaboradas em detrimento
da linguagem escrita formal. É o que ocorre em conversas não planejadas, com os amigos, com os
familiares, enfim em conversas cotidianas.
Sabemos ainda que, diferentemente da linguagem escrita, a linguagem oral não depende do
contexto e sua fluência recebe apoio de gesticulações, contato pessoal e direto. Aquilo que o interlocutor
não entender, o locutor tem oportunidade de esclarecer de imediato. Já a linguagem escrita, que é uma
produção solitária, possui dependência contextual, no sentido de o locutor contextualizar o seu texto
para o seu virtual interlocutor; as estruturas lexicais são mais complexas; a presença de conectivos é,
muitas vezes, imprescindível para a progressão textual e, consequentemente, para maior compreensão
do texto.
Entretanto, como mencionado anteriormente, o que determina as diferenças entre a fala e a
escrita, ao contrário do que pensamos, é a condição e o modo de produção da linguagem, e não as
modalidades em si, haja vista o fato de um texto oral ser composto por estruturas sintáticas e lexicais
complexas, existentes também no texto formal escrito.
No Brasil, o uso da linguagem oral é bem mais frequente na linguagem escrita do que esta na
linguagem oral. Até mesmo os letrados dão preferência à oralidade, a qual, por sua intensa presença,
acaba por marcar a escrita. Dessa forma, na sociedade brasileira, a modalidade prioritária ainda é a oral,
se comparada com a produção escrita; enquanto que, em países considerados desenvolvidos
socioeconomicamente, a modalidade escrita se destaca, influenciando, inclusive, a produção oral.
Observe, então, o quadro abaixo. Ele resume essas diferenças:

Fala Escrita
não depende de um contexto produzido depende de um contexto fornecido pelo
por um locutor; locutor;
os interlocutores não são definidos; os interlocutores são definidos;

pode-se lançar mão da linguagem não- mesmo a linguagem não-verbal passa


verbal, como gestos, sinais; por um processo de programação anterior;

geralmente, há mais de uma pessoa produção solitária (o locutor elabora o


falando; texto pensando no seu virtual
interlocutor);
utilização de dêiticos6, sem haver uma o dêitico não pode ser usado sem contexto;
contextualização;
não pode haver apagamentos; pode haver apagamentos. O locutor pode
trabalhar o seu texto da maneira que lhe
convier;
diz respeito a um momento na linha do prolonga-se em relação ao tempo.
tempo.

É imprescindível ainda observar que, com os atuais estudos acerca dos gêneros textuais,
principalmente no que diz respeito aos chats, essas diferenças vêm sendo questionadas, pois como
diferenciar fala de escrita nesse gênero textual, uma vez que os chats representam uma conversa no
computador? Esse assunto tem sido vastamente abordado, tanto por linguistas como por profissionais

6Dêitico - Empregado tanto como adjetivo [‘valor dêitico’, ‘elemento


dêitico’) quanto como nome [‘um dêitico’], esse
termo designa um dos grandes tipos de referência de uma expressão, aquela em que o referente é identificado por
meio da própria enunciação dessa expressão. Opõe-se, classicamente, à referência do tipo anafórico”.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004)

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

que insistem em preservar a antiga dicotomia grega do “certo versus o errado”. Entretanto, é importante
levar em conta que nossos(as) alunos(as) também estão expostos(as) a essas conversas e,
consequentemente, escrevem falando. É impossível fugir a essa realidade. Devemos ponderar sobre a
seguinte argumentação de Cagliari (2002, 114):
Diante das mais recentes conquistas tecnológicas e dos novos hábitos da vida
moderna, talvez alfabetizar na forma tradicional seja um anacronismo. [...] ser
alfabetizado nas belas letras representa uma ameaça bem menor a quem
detém as formas de poder da sociedade do que aprender a operar os
computadores, que são hoje as verdadeiras bibliotecas, o lugar da memória
coletiva da nossa sociedade.

O que dizer, então, das críticas dos(as) profissionais que perseguem as novas tecnologias,
principalmente porque estas, muitas vezes, contrariam definições já cristalizadas? Devemos refletir um
pouco sobre isso.
É importante ainda enfatizar as diferenças relacionadas à aquisição dessas duas modalidades.
Anteriormente, já mencionamos, à luz de alguns teóricos, que as crianças aprendem a falar naturalmente,
em interação com o outro e, em pouquíssimo tempo, adquirem o domínio verbal de sua língua. Durante
o período aquisicional, por sua vez, elas têm chances de refletir sobre os usos que fazem da língua. Além
disso, por estarem em constante interação com os(as) falantes adultos(as), estes(as) podem interferir
nesse processo, o que as leva a uma reflexão sobre a gramática da própria língua. Dessa forma, elas
acabam construindo naturalmente o seu sistema linguístico de maneira adequada. Já em relação à
escrita, o que se percebe é a existência da imposição de um modelo, sem possibilidade de
experimentação, de tentativas e descobertas de cada criança. A ela, constantemente, são impostas várias
cópias de vários traçados. Com efeito, ela é submetida a um treinamento manual, sem planejamento
educativo, sem reflexão sobre os processos de escrita.
Quanto ao ato de escrever, Cagliari (2001) nos traz algumas contribuições importantes, dentre
as quais o fato de haver variadas formas de escritas tão diferentes entre si, que exigem do(a)
alfabetizando(a) um conhecimento amplo acerca dessa modalidade. É o caso, por exemplo, das
diferenças entre a escrita de forma e a cursiva. Esta última, por seu turno, segundo o autor, surgiu na
Idade Média e passou a ser a eleita pela escola, inclusive pela contemporânea. Eis algumas “variantes”
do alfabeto: Ex.: ‘A’, ‘a’, ‘A’, ‘A’, ‘a’, ‘A’, ‘a’ (cada uma pertencendo a um tipo de alfabeto diferente).
Ainda segundo Cagliari (2001), o ‘A’ é tão diferente de ‘A’ quanto ‘p’ é diferente de ‘m’. Ele
acrescenta, então, que, em relação à forma, ‘p’, ‘b’, ‘d’ e ‘g’ são muito mais semelhantes entre si do que ‘b’
e ‘B’, ‘g’ e ‘G’ etc. (CAGLIARI, 2001). Ele faz, então, a seguinte advertência: “O grande problema é que a
escola ensina a escrever sem ensinar o que é escrever, joga a criança sem lhe dizer as regras do jogo”
(CAGLIARI, 2001, p. 97).
Ele contrasta o uso das duas escritas: a cursiva, cujo uso é individual e, consequentemente,
apresenta uma grande variação; e a de forma, a qual aparece nos livros, nas revistas, nos outdoors, de
maneira geral, exceto na cartilha, o manual de escrita do(a) alfabetizando(a). Nesse caso, evidencia-se
uma proibição da escola, utilizando-se, por sua vez, de falsos argumentos, quais sejam: a criança tem o
dobro do trabalho para aprender os dois tipos de escrita; ela pode confundir esses dois modos de
escrever. Para Cagliari (2001, p. 98):

A escrita cursiva só é menos difícil para quem está acostumado com o


escrever e com o modo de traçar as letras de quem escreveu, caso contrário,
sabemos muito bem, é difícil ler o que os outros escrevem e, às vezes, até
mesmo o que nós próprios escrevemos.

A partir de tais observações, Cagliari (2001) adverte que não cuidar da arte de escrever é um
equívoco, um erro da escola, que se diz moderna. Os(as) professores(as), por sua vez, estão mais
preocupados(as) com o uso da escrita cursiva, entretanto se esquecem de verificar o que a escrita
representa para a criança. Ele afirma que é preciso o(a) professor(a) ouvir das crianças o que é escrever,

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

para que serve a escrita, valorizando a opinião de cada uma. Exemplifica tal argumento, lembrando que
uma criança pode representar seu nome por um conjunto de rabiscos, enquanto outra pode fazê-lo a
partir de uma sequência de letras. E, diante dessa multiplicidade de representações, ele previne ainda
que os(as) alfabetizadores(as) podem considerar seus(suas) alunos(as) problemáticos(as), mas
assegura que eles/as (os/as profissionais) fariam o mesmo se alguém lhes pedisse para escrever alguma
coisa em árabe. Então, é preciso dizer aos(às) alunos(as), logo no início, o que é a escrita, as maneiras
possíveis de escrever, é preciso não camuflar a complexidade da língua.
Resumindo: fizemos um percurso a partir do qual estabelecemos as diferenças entre a fala e a
escrita, tentando refletir sobre tais diferenças, na medida em que trouxemos a tão discutida questão
sobre os chats. Nesse sentido e diante dos estudos acerca dos gêneros textuais, não podemos abandonar
tal problemática, colocando-a “debaixo do tapete”. É importante percebermos que a esse assunto estão
subjacentes as formas de poder instituídas. Com efeito, muito além de se tentar preservar a escrita,
tenta-se preservar o poder de quem a domina. Colocamos também a relação problemática das múltiplas
escritas bem como o significado que adquirem quando está em jogo o processo de alfabetização. Enfim,
é importante que, a partir dessas polêmicas apresentadas, possamos construir o próprio pensamento
sobre o que é alfabetizar crianças e adultos.
Para prosseguir com essa linha de pensamento sobre a escrita, a seguir trataremos dos sistemas
da escrita, ainda numa perspectiva histórica. Discutiremos sobre as diferenças entre a leitura e a escrita.

ASSUNTO 04: DIFERENÇAS ENTRE A LEITURA E A ESCRITA

OBJETIVOS
Estabelecer a relação entre o caráter bifásico do signo linguístico e os sistemas de escrita de que
dispomos; entender as dificuldades dos(as) educandos(as) diante da dicotomia do signo linguístico;
compreender as consequências da escrita como (de)codificação versus a escrita como representação;
entender que as habilidades da leitura vão além dos aspectos linguísticos.

INTRODUÇÃO
Alguns conhecimentos sobre a escrita são fundamentais para que o(a) educador(a) exerça o seu
papel de introdutor(a) da criança/do adulto no mundo da escrita. Trazemos à baila questões
esclarecedoras acerca de sistemas da escrita, para que, mais adiante, possamos entender as teorias sobre
a alfabetização. Trazemos algumas opiniões expressas por Cagliari (2002) para elucidar as questões
referidas; estabelecemos um paralelo entre a escrita e a leitura, uma vez que os teóricos aqui abordados
afirmam que a função da escrita é permitir a leitura. E, além do linguista anteriormente citado, expomos
os pontos de vista de Ferreiro (1991), Kleiman (1989) e Kato (2003), com o fim específico de explicitar
as diferenças entre essas duas modalidades da linguagem verbal. Acrescentamos algumas reflexões
sobre o papel da escola em relação a essas modalidades.

A Leitura/A Escrita
Para Cagliari (2002), o objetivo primordial da escrita é permitir a leitura. Esta, por sua vez,
consiste em uma interpretação da escrita, baseando-se, inicialmente, em uma tradução dos símbolos
escritos em fala. Alguns tipos de escrita preocupam-se com a expressão oral; outros, com a transmissão
de significados específicos, os quais, por seu turno, devem ser decifrados por alguém habilitado a fazê-
lo. É o caso, por exemplo, dos sinais de trânsito. Por conseguinte, é importante discernir os sistemas de
escrita, que são divididos em dois grandes grupos, quais sejam:
1. escrita baseada no significado: a escrita ideográfica. Como exemplo, temos os sinais de
trânsito, os logotipos, escrita dos números e das notações científicas. A placa consiste em uma
escrita que procura não ter relação direta com a expressão sonora linguística, apresentando
compromisso apenas com o valor semântico da mensagem. Nesse caso particular, os significados
são mais abrangentes do que outros sistemas de escrita. Com efeito, esse sistema pode ser usado

11
FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

internacionalmente, de igual maneira, em regiões de cultura e línguas completamente diferentes. A


escrita sai da expressão linguística, referindo-se a um pensamento não necessariamente de
natureza linguística. Entretanto, uma placa e outros sinais só são considerados enquanto escrita
quando alguém os interpreta e relaciona expressões de fala às formas gráficas, motivado pelo que
interpretou. A simples indicação é uma representação semiótica, mas não é escrita.

2. Escrita baseada no significante: a escrita fonográfica. Ocorre quando a escrita representa o


significante sem revelar nada do significado: a transcrição fonética de uma língua desconhecida
evidencia esse fato.

Quer num caso extremo, quer noutro, a escrita permite uma leitura, mas seu valor como código
linguístico desaparece, uma vez que nesses casos não ocorre mais o signo linguístico, mas somente parte
dele, ou seja, só o significado ou só o significante. As escritas que se colocam nesses extremos são muito
restritivas e têm um uso bastante específico e limitado. Portanto, a escrita, para ser caracterizada como
tal, precisa de um objetivo bem definido: fornecer subsídios para que alguém a leia.
A partir de tais postulados, Cagliari (2002) faz a seguinte observação: “A motivação da escrita é
sua própria razão de ser; a decifração constitui apenas um aspecto mecânico de seu funcionamento”. No
entanto, ele adverte que a leitura não se reduz apenas à somatória dos significados individuais dos
símbolos (letras, palavras etc.), mas obriga o leitor a enquadrar todos esses elementos no universo
cultural, social, histórico etc., em que o escritor se baseou para escrever. A esse respeito, o autor (2002,
p.105) faz a seguinte ilustração:
Quando se faz um desenho de uma casa para representar o objeto casa, não
se produz uma escrita. Mas, ao desenhar uma casa para que se diga casa,
então está escrevendo a palavra casa. Aí está claramente exemplificada a
diferença entre desenhar e escrever.

Cagliari (2002) lembra ainda que a escrita começou a existir no momento em que o objetivo do
ato de representar pictoricamente tinha como endereço a fala e como motivação fazer com que, através
da fala, o leitor se informasse a respeito de alguma coisa. Recorda, então, que muitos sistemas de escrita
se desenvolveram a partir de desenhos. Defende que o caminho que a criança percorre na alfabetização
é semelhante ao processo de transformação pelo qual a escrita passou desde a sua invenção.
Para Kleiman (1989), Ferreiro (1991), Kato (2003), a leitura ocorre muito antes de se
alfabetizar a criança, pois esta desenvolve um código para ler através de símbolos, tais como as
embalagens dos produtos, realizando uma leitura icônica. No âmbito da escola, Ferreiro (1991) afirma
que, enquanto na tradição norte-americana a leitura precede a escrita, na latino-americana há uma
introdução conjunta das duas modalidades. Argumenta ainda que a aprendizagem da criança na escola
está fundamentada na escrita/leitura. No entanto, esta não deve consistir em um mero ato mecânico de
decodificação, mas ato cognitivo e social, uma vez que implica uma interação entre autor e leitor,
obedecendo a objetivos e necessidades determinados.
Kleiman (1989, p. 10) defende o seguinte ponto de vista: “[...] a compreensão de um texto
envolve a compreensão de frases e sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de
objetivos, de intenções, muitas das vezes de ações e de motivações [...].” Acrescenta que a compreensão
de um texto implica conhecimento prévio: conhecimentos linguísticos e extralinguísticos. O leitor utiliza
o conhecimento adquirido durante toda a sua vida. Por causa dessa utilização, a leitura é considerada
como um processo interativo.
Os conhecimentos linguísticos implicam desde a pronúncia do português, o vocabulário, as
regras da língua até o uso desta. Implicam também as noções e conceitos sobre textos (conhecimento
textual). Isso porque quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, mais fácil será a sua compreensão.
É assim que essa linguista explica sua tese: “[...] o conhecimento de estruturas textuais e de tipos de
discurso determinará, em grande medida, suas expectativas em relação ao texto, as quais exercem um
papel considerável na compreensão” (KLEIMAN, 1989, p. 20).

12
FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Outrossim, para que haja uma compreensão do texto, é necessário também que os
conhecimentos extralinguísticos (conhecimento de mundo, conhecimento partilhado) sejam ativados e
operados conscientemente. São esses conhecimentos que permitem ao leitor fazer as inferências7
necessárias para interligar as diferentes partes discretas do texto num todo coerente. Tais inferências –
acionadas pelos conhecimentos extralinguísticos e presentes em itens lexicais do texto –, no entanto, são
inconscientes no processo de compreensão textual. É importante, portanto, que o(a) educando(a)
perceba a necessidade de ler, acionando esses conhecimentos, em busca da produção de sentido, do
estabelecimento da interação leitor-autor, em vez de adotar uma atitude meramente passiva.
Quanto à relação escrita/leitura, Ferreiro (1991) ainda sustenta que a escrita tem sido
considerada como uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica das
unidades sonoras. No caso da criação de uma representação, nem os elementos nem as relações estão
predeterminados. Convém ressaltar ainda que a criança reinventa o sistema quando procura
compreender seu processo de construção e suas regras de produção. No caso da codificação, tanto os
elementos como as relações já estão predeterminados.
É importante, então, recordar a teoria linguística de Ferdinand de Saussure (2000), para quem
o signo linguístico é uma união indissolúvel entre um significante e um significado, demonstrando o
caráter bifásico do signo. Mas nenhum sistema de escrita, como mencionado anteriormente, conseguiu
representar de maneira equilibrada a natureza bifásica do signo linguístico, pois a escrita do tipo
alfabético procurou representar diferenças entre significantes, e a do tipo ideográfico procura
representar diferenças entre significados.
Essa dicotomia, por sua vez, apresenta consequências (escrita como representação versus
escrita como código de transcrição). Primeiro, na escrita como codificação, a aprendizagem é concebida
como aquisição de uma técnica. Na escrita como representação, a aprendizagem se converte na
apropriação de um novo objeto de conhecimento – aprendizagem conceitual. Ademais, as crianças não
adquirem a escrita apenas quando são submetidas a um ensino sistemático.
No entanto, a escrita continua sendo ensinada como codificação, na medida em que o(a)
educando(a) não produz um texto, mas repete estruturas canônicas de produção, sem se apropriar de
um novo objeto de conhecimento. Como bem argumenta Ferreiro (1991, p.102): “[...] é necessário
entender que a aprendizagem da linguagem escrita é muito mais que a aprendizagem de um código de
transcrição: é a construção de um sistema de representação”.
Muitas crianças, por sua vez, vivem em contato com vários tipos de escrita: logotipos, placas de
trânsito, rótulos e cartazes, além de textos de revistas, jornais, televisão etc. Esses contatos devem ser
aproveitados pelo(a) professor(a). Este(a) pode fazer uma reflexão sobre as possibilidades da escrita,
esclarecendo que marcas muito pessoais restringem a possibilidade de leitura e que, para facilitar a
comunicação entre todas as pessoas de uma sociedade, estabeleceu-se um código, convencionou-se um
desenho para as letras. Dessa forma, como já mencionamos anteriormente, estaremos esclarecendo a
criança sobre o jogo, as peças do jogo.
Resumindo: apresentamos uma série de controvérsias quanto aos sistemas de escrita de que
dispomos e o caráter bifásico do signo linguístico. A partir disso, observamos os problemas que
envolvem o processo de alfabetização, haja vista a tendência de os profissionais se basearem na escrita
como código de transcrição gráfica. Por conseguinte, perdemos a função primordial da escrita, que é
possibilitar a leitura. Introduzimos os pontos de vista de alguns teóricos, esclarecendo sobre a
importância de procedermos a uma leitura que vai além dos aspectos linguísticos. Ou seja, para que
possamos ler efetivamente, devemos acionar conhecimentos linguísticos e extralinguísticos. Daí a
grande dificuldade de introduzirmos efetivamente as crianças no mundo letrado.

7 O dicionário eletrônico de Houaiss (2009) faz os seguintes esclarecimentos acerca desta palavra: substantivo
feminino 1 ação ou efeito de inferir; conclusão, indução 2 Rubrica: lógica. operação intelectual por meio da qual se
afirma a verdade de uma proposição em decorrência de sua ligação com outras já reconhecidas como verdadeiras
3 Derivação: por extensão de sentido. proposição admitida como verdadeira em virtude dessa operação 4 Rubrica:
estatística. operação que consiste em, tomando por base amostras estatísticas, efetuar generalizações

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Dando continuidade aos nossos estudos sobre a alfabetização, apresentaremos os postulados


teóricos de Ferreiro (1991) sobre a construção do conhecimento da escrita.

ASSUNTO 5: A APRENDIZAGEM DA ESCRITA I

OBJETIVOS

Conhecer as fases de construção por que passam as crianças/os adultos durante a aprendizagem da
escrita; reconhecer as consequências relacionadas ao posicionamento frente a concepções de escrita
(representação versus codificação); refletir sobre as práticas de ensino escolhidas pelo(a) professor(a).

INTRODUÇÃO

Apresentamos as fases por que passam as crianças no processo de aprendizagem da escrita,


numa perspectiva construtivista. Para ilustrar tal perspectiva, utilizamos as teorias de Ferreiro (1991)
acerca desse processo. Ao longo da exposição, discutimos os papéis do(a) professor(a) e da escola frente
às escolhas de determinadas concepções de escrita. E, a partir de tal escolha, centraliza-se uma prática
a qual, por sua vez, é determinante em relação à construção do conhecimento do aprendiz. Chegamos à
conclusão, enfim, de que esse processo vai muito além de uma escolha de práticas ou de métodos, pois
diz respeito a uma postura política do(a) profissional e a um redimensionamento do objeto realizado
pelo(a) professor(a). Enfim, tentamos introduzir o leitor no mundo da alfabetização propriamente dito.

Aprendizagem da Escrita à luz de Ferreiro (1991)

Ao longo das explanações, temos visto que a escrita precisa de um ensino sistemático para o
alcance de seu aprendizado, isto é, o indivíduo não aprende a escrever sem ajuda. No campo da
aprendizagem da escrita, há várias correntes teóricas com opiniões distintas, assim como há várias
teorias no âmbito da fala. Agora trazemos à tona os postulados teóricos de Ferreiro (1991), seguidora
do construtivismo. Conforme essa autora, três componentes são essenciais para a realização da
aprendizagem da escrita: o sujeito que ensina (alfabetizador[a]), o sujeito que aprende
(alfabetizando[a]) e o objeto de estudo (a escrita). O sucesso ou o fracasso no processo de aprendizagem
estão associados, primordialmente, à concepção do que o objeto de estudo representa para os dois
elementos envolvidos (alfabetizador[a] e alfabetizando[a]).
E, tal como estudamos anteriormente, a autora ressalta que a escrita pode ser concebida como
uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica. São esses dois tipos de
percepção que determinam o andamento do processo. Segundo a primeira perspectiva (escrita como
representação), o(a) alfabetizador(a) terá condições de identificar e de considerar as fases pelas quais
os(as) alfabetizandos(as) passam para obterem êxito, como também suas hipóteses acerca da escrita.
Com efeito, o aprendiz torna-se sujeito do processo de alfabetização, seu conhecimento prévio possui
significativa importância, não há nenhuma fórmula ou conceito a ser imposto, mas construído.
Quanto à segunda perspectiva (a escrita como código de transcrição gráfica), há outra
concepção do processo de aprendizagem. Essa mudança se dá tanto para o(a) alfabetizando(a), como
para o(a) alfabetizador(a). Este compreende o processo como um percurso de absorção daquilo que já
está pronto e formatado. O aprendiz não tem espaço para expor sua opinião em relação à escrita, sua
obrigação é apenas apreender aquilo que já está pronto. Consequentemente, o aprendiz se torna
assujeitado ao objeto de estudo (a escrita) e ao que o(a) professor(a) lhe impõe como estudo. E, diferente
do(a) alfabetizador(a) que tem a escrita como representação, o(a) professor(a) que concebe a escrita
como código não salienta e nem aproveita o conhecimento prévio do aprendiz que, visto como objeto
destituído de cognição.
Confrontamos, assim, duas teorias: a tradicionalmente conhecida e a construtivista. O modo
tradicional de se considerar a escrita infantil tem atenção voltada para os aspectos gráficos (qualidade

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

do traço), ignorando os aspectos construtivos, que têm a ver com o que se quer representar e os meio
ligados para criar diferenciações entre as representações. Segundo essa perspectiva, eis os processos
pelos quais os(as) estudantes passam no período da alfabetização.
De acordo com Ferreiro (1991), num primeiro momento, a escrita é concebida pela criança como
uma atividade motora, representada por rabiscos e grafismos desprovidos de significados. Kato (2003),
por sua vez, pautada na Psicolinguística, corrobora tal afirmação. Ainda conforme a visão construtivista,
após essa fase, a escrita é reproduzida por meio de pictogramas. A partir desse momento, significado e
forma estão relacionados à escrita. Tal argumento, por seu turno, como estudamos anteriormente, é
ratificado por Cagliari (2002).
Ferreiro (1991) defende que, em seguida, a criança utiliza símbolos (letras do alfabeto) com valor
ideográfico. Como exemplo, temos a letra “B” usada para indicar “doce”; a letra “F”, “carro”. Na fase
seguinte, ela passa a relacionar os sons da fala à escrita.
É importante citar uma fase que é observada nas crianças e que antecede o período silábico,
denominada “fase de realismo nominal”, a qual, mesmo não sendo essencialmente pictográfica, possui
um caráter icônico. Nessa fase, a criança costuma associar a palavra ao tamanho e à quantidade do objeto
em questão. Nesse caso, o substantivo “casa”, por exemplo, sempre será relacionado à palavra “casinha”
e não à “casa”, pois a grafia de “casinha” é mais extensa que a de “casa”. Com isso, observamos que a
criança tende a relacionar o tamanho do objeto à extensão da palavra. Outro exemplo interessante é
quando se oferece dinheiro à criança: ela sempre considera que o valor está associado à quantidade de
cédulas ou moedas, ou seja, cinco notas de um real valem mais para ela que uma nota de cem reais.
O próximo passo é a aquisição da noção de sílaba, quando a criança atribui um símbolo para cada
sílaba: dois símbolos para a palavra “bolo” e três símbolos para a palavra “brinquedo”, por exemplo.
Alcançada essa fase, podemos afirmar que a criança está preparada para ser alfabetizada.

Resumindo, eis as fases por que passa a criança no processo de construção da aprendizagem da escrita, conforme
Ferreiro (1991):
1. a escrita corresponde a uma atividade motora (FERREIRO, 1991; KATO, 2003);
2. a escrita é reproduzida por meio de pictogramas (FERREIRO, 1991; CAGLIARI, 2002). Nesse momento,
significado e forma estão relacionados;
3. a criança utiliza símbolos (letras do alfabeto) com valor ideográfico;
4. a criança relaciona os sons da fala à escrita;
5. fase denominada “realismo nominal”, com caráter icônico. Nela a criança relaciona a palavra ao tamanho e
à quantidade do objeto;
6. a criança adquire a noção de sílaba, atribuindo um símbolo para cada sílaba.

Do ponto de vista construtivo, então, a escrita infantil segue uma linha de evolução regular.
Assim, podem ser discriminados três períodos: o primeiro corresponde à distinção entre o modo de
representar icônico e não icônico (“desenhar" e "escrever"); o segundo, à construção de formas diferentes;
o terceiro, à fonetização da escrita (início do período silábico e culmina no período alfabético). É neste
último que a criança começa a descobrir que as partes da escrita (suas letras) podem corresponder a
tantas partes da palavra escrita (suas sílabas).
E o último passo da compreensão do sistema socialmente estabelecido é quando a criança
descobre que a sílaba não pode ser considerada como uma unidade, mas ela é reanalisável em elementos.
A partir desse momento, surgem alguns problemas: um corresponde ao lado quantitativo, pois, se não
basta uma letra por sílaba, também não se pode estabelecer regularidade alguma duplicando a
quantidade de letras da sílaba; o outro, ao lado qualitativo. Este, por seu turno, diz respeito a problemas
ortográficos, uma vez que o som não corresponde à identidade de letras, nem identidade de letras à de
sons.
Ferreiro (1991) faz algumas reflexões sobre o processo de alfabetização, observando que as
discussões sobre a prática alfabetizadora se centram nos métodos utilizados (analíticos versus sintéticos;
fonético versus global), no entanto, nenhuma discussão considerou as concepções das crianças sobre o
sistema de escrita. Conforme essa autora, os métodos não oferecem mais do que sugestões, incitações,

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

pois não podem criar conhecimento. Questiona, então, a partir de que tipo de prática a criança é
introduzida na língua escrita e como se apresenta este objeto no contexto escolar. Ferreiro (1991)
previne, então, que tais práticas, muitas vezes, levam a criança à convicção de que o conhecimento é algo
que os outros possuem. Há ainda algumas práticas que tentam convencer os aprendizes de que o
conhecimento já foi construído, estruturado em um conjunto fechado, imutável, sacralizado. Ou seja,
tudo está pronto para ser aprendido. Negamos, então, a possibilidade de construção do conhecimento
pelo ser humano. Isso, de certa forma, já foi abordado quando contrapusemos as duas perspectivas de
escrita (como representação/como código).
Outro importante aspecto no processo de alfabetização diz respeito à confusão entre escrever e
desenhar letras. Observa-se que a maioria dos(as) alfabetizadores(as) aposta na cópia e na repetição de
modelos para o sucesso do processo (cópias de caderno de caligrafia, por exemplo). No entanto, a
confusão existente é desfeita ao constatar-se que crianças copistas não compreendem o que copiam
(desenho de letras). Isso leva a crer que a modalidade da escrita exige compreensão daquilo que se
escreve.
Ainda para essa educadora, a língua escrita é um objeto de uso social, com existência social (e
não apenas escolar). As crianças que vivem num ambiente urbano encontram escrita por toda a parte.
Como exemplos, podemos observar o contato com embalagens de variados alimentos, TV, a publicidade.
Isto é, aos poucos a criança constrói a compreensão do emprego e do valor da escrita na sua vida social.
Consequentemente, a escola não pode funcionar como controladora dos(as) alunos(as) tampouco dos
pais. Mas o que é constatado é que a criança vê mais letras fora da escola que dentro dela e produz mais
textos fora do que na escola. Dessa forma, transformar essas práticas implica redefinir o papel do(a)
professor(a) e as relações sociais dentro e fora da escola.
Em contraposição às crianças que estão frequentemente expostas a uma sociedade letrada, há
aquelas advindas da classe marginalizada, muitas vezes completamente afastadas do contato com a
escrita. Disso resulta que o ambiente de interação é fundamental para a criança. Com efeito, as interações
adulto/adulto, adulto/criança e criança/criança dão condições para a interpretação de símbolos. Em um
ambiente em que são oferecidos às crianças livros de histórias, papel, caneta, tinta, é provável que elas
se tornem “leitoras” e “escritoras” antes mesmo de terem acesso a um aprendizado sistemático.
Diante de tais circunstâncias, torna-se relevante a reflexão de algumas práticas pedagógicas a
que os(as) profissionais recorrem. Há práticas que costumam relacionar a escrita com um aspecto
natural inerente à linguagem, supervalorizando a capacidade da criança em uma perspectiva
adultocêntrica8. Consequentemente, subestimam o conhecimento e a capacidade da criança, reduzindo
a alfabetização a atividades de cópias descontextualizadas, como mencionado anteriormente. Ignoram
as produções, as hipóteses da criança. Como bem aconselha Ferreiro (1991, p. 62): “[...] imitando a mãe
que age ‘como se’ o bebê estivesse falando quando produz seus primeiros balbucios, o professor teria
que aceitar as primeiras escritas infantis como amostras reais de escrita e não como puros “rabiscos”.
Além da falha em insistir-se que a linguagem escrita se refere apenas à relação fonema-grafema,
relação esta nem sempre correspondente, observa-se a prática corriqueira de profissionais que voltam
sua atenção mais para aqueles aprendizes que, de alguma forma, possuem ou acompanham o
conhecimento dos profissionais. Essa prática acaba por marginalizar a maioria dos aprendizes dentro
da sala de aula. A exclusão, na sua maioria, é feita inconscientemente pelos(as) professores(as), levando
os aprendizes, gradativamente, ao desencanto, ao desinteresse e, por fim, ao fracasso.
Ela adverte ainda que as mudanças na alfabetização inicial não implicam novo método de
ensino, nem novos testes de prontidão, tampouco novos materiais didáticos, mas mudar os pontos por
onde nós fazemos passar o eixo central das nossas discussões, reintroduzindo a escrita como um sistema
de representação da linguagem.

8 Esta palavra não está dicionarizada. É um neologismo que a própria autora introduz, mas podemos fazer algumas
inferências a partir da leitura do texto. Percebemos que, usando essa palavra, a autora conota o poder centralizador
do adulto.

16
FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

Resumindo: expusemos o ponto de vista construtivista de alfabetização, segundo o qual a criança


constrói a escrita. À luz de Ferreiro (1991), uma das principais representantes dessa corrente,
registramos as fases por que passam as crianças ao construírem o seu conhecimento acerca da escrita.
E, à medida que fizemos isso, refletimos sobre o papel do(a) alfabetizador(a) enquanto partícipe dessa
construção. Ao lado disso, retomamos alguns conceitos anteriormente estudados, tal como a escrita
como forma de representação ou como codificação. Tais conceitos, por seu turno, vieram à tona para
podermos estabelecer uma comparação entre ambas as concepções, examinando o comportamento
do(a) professor(a) quando opta por uma concepção ou por outra. Finalmente, colocamos também a
escola como alvo de nossas reflexões.

ATIVIDADES
ASSUNTO 1:
1. Elenque as três concepções da linguagem.
2. Situe tais concepções no tempo, observando a perspectiva linguística a que cada uma se filia.
3. A partir da relação acima estabelecida, discuta sobre quais consequências cada uma das
concepções traz para o ensino de língua.
4. Observe a importância do processo de interação para a construção do conhecimento. Discuta
sobre isso, procurando outras fontes.
5. Em relação à concepção interacionista de língua, quais as vantagens em adotá-las como eixo e
norte no ensino de língua?
6. Reflita: a qual perspectiva da linguagem você foi submetido(a) enquanto estudante dos Ensinos
Fundamental e Médio?
7. A partir da exposição do assunto, você, enquanto futuro(a) professor(a) de Língua Portuguesa,
sente-se capaz de ajustar uma metodologia de ensino de LP na 3ª concepção da linguagem? O
que seria, então, ser um(a) profissional respeitando o caráter primordial da língua: a sua
historicidade, o dialogismo?

ASSUNTO 2:

1. Como o indivíduo adquire a linguagem?


2. Quais as condições consideradas básicas para o desenvolvimento da linguagem, segundo Albano
(1990)?
3. Qual a importância das primeiras competências (ouvir/falar) para a compreensão da
linguagem, a construção do conhecimento?
4. Como surgiu a escrita na humanidade?
5. Por que a escrita alfabética é considerada uma descoberta?
6. Elenque as fases da escrita na humanidade, segundo a abordagem que Cagliari (2001) faz.
7. O que dizer da escrita em língua portuguesa?
8. Que competências comunicativas são necessárias para o ser humano adentrar no mundo da
escrita?
9. Qual a importância do conhecimento acerca da história da escrita no mundo para se
alfabetizarem crianças/adultos?

ASSUNTO 03:
1. O que dizer da estrutura gramatical da fala e da escrita? Qual a consequência desse fato?
2. Defina código elaborado e código não elaborado.
3. Que crítica se pode fazer a essa teoria?
4. Compare/contraste as duas perspectivas, a de Kato (2003) e a de Terzi (2002), acerca da
influência da fala na escrita e vice-versa.
5. Quais as diferenças entre o discurso planejado e o não planejado? Em que circunstâncias
cada um deles é utilizado?

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

6. Estabeleça as diferenças entre a fala e a escrita.


7. Compare a aquisição da fala com a da escrita.
8. O que dizer das variadas formas de escrita?
9. Discuta sobre a exigência que a escola faz em relação à escrita cursiva.
10. A partir do estabelecimento de diferenças entre a fala e a escrita, reflita sobre o que ocorre
nos chats. Como se posicionar frente a esse problema?
11. Diante do que foi exposto, como você se percebe enquanto um(a) profissional que participa
da construção da escrita de seus(suas) alunos(as)? O que dizer das exigências que a escola
faz de uma escrita cursiva?

ASSUNTO 04:
1. Estabeleça a diferença entre a escrita baseada no significante e a baseada no significado.
Qual a consequência desse fato?
2. Elenque argumentos para o seguinte postulado de Cagliari (2002): o principal objetivo da
escrita é permitir a leitura.
3. Discuta sobre a argumentação de Ferreiro (1991) e Kleiman (1989), para quem a leitura
ocorre muito antes de a criança ser alfabetizada.
4. Discorra sobre o postulado de Kleiman (1989), segundo a qual a compreensão de um texto
envolve aspectos linguísticos e extralinguísticos.
5. Analise a seguinte diferença que Ferreiro (1991) estabelece entre dois modelos de ensino
de escrita: a escrita como representação versus a escrita como código de transcrição gráfica
das unidades sonoras (codificação/decodificação).
6. Relacione os sistemas de escrita e a teoria do signo linguístico de Saussure (2000).
7. Quais as consequências relacionadas à problemática da natureza bifásica do signo
linguístico e os sistemas de escrita?
8. Qual, então, a função das letras?
9. Comente sobre o seguinte argumento de Ferreiro (1991, p. 102): “É necessário entender
que a aprendizagem da linguagem escrita é muito mais que a aprendizagem de um código
de transcrição: é a construção de um sistema de representação”.
10. Diante do caráter bifásico do signo linguístico, como trabalhar a escrita enquanto
representação?
11. Você conhece crianças/adultos que foram submetidos a uma alfabetização pautada na
escrita enquanto código de transcrição gráfica? Posicione-se como professor(a) desses(as)
estudantes. Quais as suas atitudes frente a esse desafio?

ASSUNTO 05:
1. Quais os principais componentes do processo de alfabetização?
2. Quais são as duas concepções determinantes da língua escrita para o processo de
alfabetização?
3. Como se dá o processo de ensino e aprendizagem da língua escrita de acordo com cada uma
dessas concepções?
4. Diferencie o comportamento do aprendiz que concebe a escrita como código do aprendiz
que a concebe como representação do sistema escrito.
5. Há diferença em escrever e desenhar letras? Justifique sua resposta.
6. Elenque as fases por que passam as crianças no processo de construção da escrita.
7. Faça o mesmo em relação aos períodos de aprendizagem da escrita.
8. Para as crianças do meio urbano, qual a importância de a escrita estar em toda a parte?
9. Quanto ao fato de a criança estar exposta à escrita, estabeleça a comparação entre as
socioeconomicamente prestigiadas e as desprestigiadas.
10. Para a escola, qual a consequência desse contraste?

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FUNDAMENTOS PARA O ENSINO DA ALFABETIZAÇÃO

11. Discuta sobre as práticas de alfabetização utilizadas, refletindo sobre o papel do(a)
professor(a) diante delas.
12. Faça uma análise das teorias de Ferreiro (1991) apresentadas nesta aula. O que dizer a
respeito de a criança construir seu conhecimento?

REFERÊNCIAS
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BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Latiud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999.
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Vol. I. São Paulo: Contexto, 2002. p.25 -53
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 2001.
CÂMARA JR., J. M. História da linguística. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1975.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. Trad. Fabiana Komesu (coord.).
São Paulo: Contexto, 2004.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. Trad. Horácio Gonzales (et. al.) 18 ed. São Paulo: Cortez:
Autores Associados, 1991.
GERALDI, J. W. Concepções de linguagem e ensino de português. in: GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala
de aula: leitura e produção. Cascavel: ASSOESTE, 1984
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss eletrônico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva Ltda., 2009.
JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975
KATO, M. A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 2003.
KOCH, I. V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Ática, 1995
KRISTEVA, J. História da linguagem. Trad. Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969
ORLANDI, E. P. Análise do discurso princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes, 2002.
ROBINS, R. H. Pequena história da linguística. Trad. Luiz Martins Monteiro. Rio de Janeiro: Ao Livro
Técnico, 1983.
SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Trad. De Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein.24 a
ed. São Paulo: Ed. Cultrix Ltda., 2000.
TERZI, S. B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In KLEIMAN, A. B.
(org.). Os significados do letramento. São Paulo, Campinas: Mercado de Letras, 2002. p. 91 – 117.
TERZI, S. B. A construção da leitura. Campinas: Pontes, 1997.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São
Paulo: Cortez, 1997.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes,
2000.

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BRBR356BR356&q=jackobson

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