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Claudia R. C. Pfeiffer
Labeurb-Nudecri
Unicamp
Introdução
O que buscarei fazer nesta apresentação é uma retomada de pontos fundamentais que tocam
a relação língua e instituição no que se refere à minha ancoragem analítica: o espaço da
escolarização.
Neste recorte analítico, refletir sobre a institucionalização da língua portuguesa no Brasil
implica pensar sobre o modo através do qual a história da língua e a constituição de um saber sobre
ela constituem uma ética e políticas públicas de ensino desta língua, naquilo que diz respeito às
normatividades construídas no interior das políticas públicas e do ensino especificamente. Reflexão
que leva em conta, necessariamente, a relação entre a produção do conhecimento, seu
funcionamento institucional, e o funcionamento do Estado. Esta forma de compreender os processos
de institucionalização da língua e de seu conhecimento na relação necessária com o Estado está no
bojo da área de conhecimento História das Ideias Linguísticas, iniciada na década de 80 no Brasil.
Considero importante salientar que esta área de conhecimento começa como projeto de pesquisa
internacional e interinstitucional, passa a ser um programa de pesquisa a partir do qual se propõe a
área de concentração em HIL no Programa de Pós-Graduação em Lingüística do IEL/Unicamp e,
posteriormente, a disciplina HIL passa a ser obrigatória no currículo de Letras e Lingüística do
IEL/Unicamp.
A História das Ideias Linguísticas estabelece uma relação intensa e produtiva com a Análise
de Discurso (AD), referencial teórico e metodológico para muito de seus pesquisadores. Como
sabemos, a AD é uma teoria e um instrumento de leitura de textos que se constrói pela articulação
de três campos disciplinares: o da Linguística, o do Materialismo Histórico e o da Psicanálise, o que
implica no deslocamento da noção de transparência da língua, da história e do sujeito. A Análise de
Discurso é uma teoria e uma disciplina que pressupõe a Linguística e sua relação com as Ciências
Humanas e Sociais, trabalhando a noção de entremeio, como nos diz Orlandi, colocando “em estado
de questão o sujeito do conhecimento e seu campo, seu objeto e seu método, face à teoria que
produz” (ORLANDI, 2002, p.22). A AD é, pois, um modo de leitura que coloca em relação o campo
da língua e o campo da sociedade apreendida pela história, pela ideologia. E, enquanto instrumento
científico, visa a colocar questões, antes que dar respostas (como nos ensina Paul-Henry). Não se
trata, pois, de uma técnica, de um instrumento neutro de análise de textos, em termos empíricos, que
possa ser adotada independentemente da adoção de seu referencial teórico.
1
Texto apresentado na mesa-redonda Língua e Instituição na Jornada Internacional Sujeito, Discurso e Sentidos,
promovida pelo Labeurb/Unicamp em 13 de setembro de 2011.
Desse lugar teórico, a língua significa porque a história intervém: o sentido é uma relação
determinada do sujeito com a história. No movimento e jogo da língua, sentidos e sujeitos se
constituem em processos sobre os quais o indivíduo não tem controle e o equívoco está sempre
presente. Um dispositivo teórico, como é o da AD, deve ser capaz de mostrar isso, trabalhando a
opacidade do texto e a relação entre o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a polissemia, para
compreender como as interpretações funcionam, atravessando um imaginário que condiciona os
sujeitos em seus modos de ler.
Há finalmente mais uma relação a ser estabelecida. Se com a AD aprendemos que sujeito e
linguagem se constituem ao mesmo tempo e com a HIL aprendemos que ciência, sociedade e
Estado são indissociáveis na reflexão sobre a construção de um saber metalinguístico e de uma
língua nacional, é preciso fazer ajuntar a esse arcabouço uma outra área do conhecimento que foi
sendo construída institucionalmente no Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp: a do saber
urbano e linguagem. Com ela levamos às últimas consequências o fato de que a relação do espaço
com a linguagem é uma relação constitutiva, tal como afirma Orlandi. O que se procura formular e
desenvolver é que, assim como o sujeito, o espaço também se estrutura de um certo modo ao longo da
história: essa forma atualmente, como afirma Orlandi, é a cidade. Prossegue a autora mostrando que esta
forma histórica da cidade sobredetermina o social (cf. Orlandi 1999). Ainda conforme Orlandi, é na ordem
urbana que os mecanismos jurídicos e administrativos nos quais se sustenta a organização da cidade em
suas diferentes instâncias são produzidos e que as políticas públicas são traçadas (lembro aqui a distinção
ordem/organização proposta em Orlandi 1996 e seu artigo (N)o limiar da cidade, 1999). Daí a relevância
de compreender o funcionamento simbólico desse processo, trazendo a língua para analisá-lo.
2 Orlandi (1993), refletindo sobre a relação da autoria e o interdiscurso, estabelece uma distinção entre o funcionamento
de um repetição empírica, uma formal e uma histórica. O primeiro consiste num exercício mnemônico e, portanto, não
historicizador: o sujeito está no interpretado; o segundo consiste na técnica da reprodução de frases produzindo apenas
um exercício gramatical, que não permite a historicização: o sujeito é significado sem que as palavras lhe façam
sentido; o terceiro é um funcionamento que permite a inserção do sujeito no interdiscurso: o dizer se inscreve no
repetível enquanto memória constitutiva. Ou seja, o sentido sob o efeito do sempre-já-lá (repetível) é posto em
funcionamento pelo sujeito, já que este se enreda numa rede de filiações que permite à língua e ao sujeito significarem.
2. Língua, Memória e Sujeito
Orlandi (2002) nos ensina que o sujeito brasileiro é inscrito em uma história fortemente
marcada por uma "heterogeneidade interdiscursiva": falamos, sob a aparência do mesmo, uma
língua que produz discursos diferentes por estar marcada por uma memória histórica distinta. O
brasileiro fala e, ao falar, traz consigo uma conjunção que pede uma disjunção difícil de se dar: há
uma clivagem entre uma memória européia do colonizador e uma memória brasileira do colonizado
que causa um estranhamento do brasileiro ao falar sua "própria" língua na sua forma legitimada: a
escrita.
Essa disjunção - uma separação estanque entre o português do Brasil e o de Portugal - não é
possível ou até desejável: não podemos apagar a história: no brasileiro, também fala o português de
Portugal. Há um paradoxo aí: ao mesmo tempo em que se apresenta uma indistinção entre o
português e o brasileiro, temos de forma bem marcada, pela memória histórica distinta, uma
constituição diversa (polissêmica) dos sentidos de um brasileiro e de um português: há produção de
sentidos diferentes dentro da indistinção. São distintos objetos simbólicos com distintas histórias
lingüísticas (processos de institucionalização distintos), aparentando uma mesma realidade
empírica.
Essa indistinção produz efeitos no funcionamento do espaço escolar, como quando o aluno
não se apresenta como um legítimo usuário de sua língua, dita, materna, porque erra na língua. Há
aí um estranhamento que se produz, de um lado, pelo batimento de duas memórias sob a forma da
indistinção e, por outro lado, em função da produção de uma coincidência histórica entre a língua
que é designada materna, a língua nacional e a língua portuguesa. Elas não são a mesma língua e
não podem ser3. Nesse funcionamento, produz-se o “analfabetismo”, o “iletramento”, o
“analfabetismo funcional”. E essa produção vem se reinscrevendo de diferentes modos na relação
do brasileiro com sua língua.
Podemos observá-la, por exemplo, no modo como os europeus administraram o assim
designado novo-mundo por meio da imposição de uma língua outra para ser falada pelo brasileiro.
Nessa imposição, na relação com a língua outra, produzia-se um imaginário sobre o que seja o
brasileiro. Um exemplo bem conhecido de todos é a crítica feita às línguas indígenas de que elas
não possuem nem FÉ, nem REI, nem LEI, porque não possuem o 'f ' , o 'r ', o 'l '. Como sabemos, o
dizer sobre a língua cola no sujeito (cf. Orlandi, 1990 e Mariani, 1998).
Ou ainda, podemos observar a re-inscrição desta produção da relação do brasileiro com
sua língua, retomando Mariza Vieira da Silva (1998), quando compreende a relação intrínseca
entre a instauração político-jurídica do lugar do cidadão e a construção para um lugar de
3 Sobre isso, cf. Pfeiffer, C. C. Saber escolarizado – espaço de institucionalização da língua. 2005.
significação de alfabetizados e analfabetos. O espaço4 discursivo possível para a referência ao
alfabetizado ou ao analfabeto é balizado pela relação com o Estado. A constituição de 1891
declara e institui: todos são iguais perante a lei. Para a autora a declaração de uma igualdade
jurídica, que as práticas sociais desmentem, traz a «escrita» como um novo elemento
demarcador das diferenças que salvaguardam a manutenção das desigualdades sociais de uma
ordem burguesa, urbana e industrial que vem a se contrapor a uma ordem oligárquica, rural e
agrícola, tida como desigual. A escrita como divisor de águas de quem tem direito a ser
cidadão e de quem não tem direito, sem que a lei seja violada em termos do que propõe como
igualdade de direitos, institui, retomando Pêcheux (1975), a resignificação do choque de dois
mundos em um confronto estratégico em um mundo só.
A escrita, funcionando como este divisor de águas, traz ainda mais um sentido ao sujeito que
tenho chamado de o letrado não autorizado, isto é, o sujeito que tendo ou não passado pela escola,
por se encontrar em uma sociedade escolarizada, precisa se submeter ao processo de legitimação de
seu dizer que passa pelos sentidos da escolarização. Isto é, inscrevendo-se ou não historicamente, é
preciso que este sujeito dê sentido ao dizer, fazer sentido aí pressupõe ganhar legitimidade, ser
autorizado. Em outras palavras, o que quero dizer é que muitas vezes o sujeito, no gesto mesmo de
se inscrever na história, tem sua inscrição apagada pela desconsideração de seus sentidos: seus
sentidos são imobilizados naquilo que Orlandi formula como sem sentido (Orlandi, 1992) pela força
da resistência imaginária (ideológica) que se acomoda no molde pré-fixado e vê na diferença, na
resistência, somente o sem sentido. Há, pois, dois modos de se estar no “sem-sentido”: a) quando o
sujeito é imobilizado na repetição formal, pela exigência do simulacro da autoria; o modelo pelo
modelo, impossibilitando a inscrição histórica do dizer; e b) quando o sujeito inscreve seu dizer na
repetição histórica, porém tem este gesto apagado pela força da resistência imaginária que conforma
este gesto no sem-sentido, des-historicizando-o.
Para finalizar estes apontamentos quero, finalmente, remeter à situação característica de
sala de aula de solicitar aos alunos que escrevam um texto dando a sua opinião sobre o assunto,
justificando-a através de uma argumentação coesa e coerente. Em trabalho já apresentado pude
compreender a contradição constitutiva da injunção do sujeito escolar a expressar-se dentro da
escrita. Nesta injunção, a opinião só é válida caso seja fundamentada em uma dita boa
argumentação (que não caia no senso-comum). A crítica genérica e efusiva que classifica os textos
escolares como retóricos, participa do processo discursivo em que se identifica a língua brasileira,
ou melhor, o sujeito brasileiro que «usa» a língua à falta (de ter o que dizer, de saber dizer). É uma
4 Espaço para a AD é entendido como um lugar atravessado pela memória, atravessado por um conjunto de gestos de
interpretação, é onde o sujeito se inscreve historicamente, tomando sentidos. Lugar discursivo é já a inscrição histórica
do sujeito determinada por uma rede de discursividades por onde o sujeito passa. Isto é, é o lugar de onde ele fala dentre
as possibilidades do espaço discursivo.
desautorização histórica que coloca o sujeito escolarizado como inapto a ocupar o lugar de quem
está autorizado a dizer das verdades (não importa quais sejam elas), é o lugar da incapacidade de
discernimento, é a posição da falta de consciência do povo brasileiro, da falta de memória, da
ingenuidade. É a incapacidade de ser cidadão. (cf. Pfeiffer, 2000). Desse modo, pensando em
termos de institucionalização da língua portuguesa no Brasil dentro do processo de escolarização, a
escrita produzida em seu mal-dizer funciona na direção de tomar os sentidos do lugar do sujeito
letrado não autorizado como visibilidade de uma sua incapacidade: de dizer, de estar nos espaços
autorizados.
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