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Análises de

Obras Literárias
UNICAMP 2023

Lygia Fagundes Telles


Pero Vaz de Caminha
Olavo Bilac
Machado de Assis
Paulina Chiziane
APOSTILA II

professor Gilmar
LITERATURA BRASILEIRA
E PORTUGUESA
Sumário

Lygia Fagundes Telles: Seminário dos Ratos (1977) 04

Exercícios 14

Vaz de Caminha: Carta a el-Rei D. Manoel sobre o achamento do Brasil (1500) 17

Exercícios 31

Olavo Bilac: Tarde (1918) 33

Exercícios 47

Machado de Assis: Bons dias! (1888-1889) 50

Exercícios 67

Paulina Chiziane: Niketche: Uma História de Poligamia (2001) 71

Exercícios 91
2022
Material organizado pelo Professor Gilmar Ramos.
Contato: gilmarliteratura@gmail.com
Apresentação

Os resumos apresentados a seguir não têm a intenção, nem a pretensão, de esgotar


as possibilidades de interpretação acerca das obras abordadas. São fontes de apoio
e encaminhamento para a leitura. Cabe ao aluno a leitura integral do livro, atento
às relações entre as personagens, ao ambiente, ao contexto histórico em que foi
produzida a obra, bem como, as possíveis relações intertextuais entre os livros
exigidos na lista do vestibular.

É importante durante a leitura que o aluno faça anotações e questionamentos,


levantando suas dúvidas de maneira a elucidar tudo o que permeia o universo literário
da obra em análise.

Boa leitura!

Professor Gilmar

2022
LYGIA FAGUNDES TELLES

Lygia Fagundes Telles


(1923-)
Seminário dos Ratos, 1977
4

I. A Autora e o Movimento − Observamos na narrativa da autora


Literário algumas fragmentações do foco narrativo
e um fluxo de consciência onde se observa
− Lygia Fagundes Telles é escritora, o conflito existencial das personagens.
romancista, contista e é um grande nome
do cânone literário brasileiro.

− Considerada uma artista do movimento “Irrompendo com uma naturalidade


pós-modernista, a autora busca em sua chocante, o insólito a pouco e pouco vai se
escrita documentar as condições difíceis convertendo em fantástico (...). E o estilo,
de grandes centros urbanos com sua com ser fluente, desartificioso, serve bem
literatura engajada, misturando realismo e ao propósito de impedir que o leitor desvie
fantasia. a atenção do episódio fora do comum que
se desenrola à sua frente”. (MASSAUD,
− O movimento pós-modernista, ao qual 2012, p.583-584)
pertence a autora, possui características
que exploram a pluralidade, a mistura do
real e do imaginário, mesclando vários
estilos e trabalha também a imprecisão II. O Livro
e o individualismo desse período.
Esse movimento acompanha todo − O livro “Seminário dos ratos” foi
avanço tecnológico e da expansão da publicado em 1977 e se constitui como
globalização, e isso se reflete nas artes e um livro de contos que percorrem os
na literatura. caminhos da narrativa fantástica e lidam
com questões típicas dos seres humanos.
− Sempre estabelecendo relações com o
contexto sociopolítico, suas personagens − São 14 contos que trazem temas como
estão imersas em incertezas. amor, solidão, conflitos existenciais,
loucura e medos de cada personagem.
LYGIA FAGUNDES TELLES
− Muitas vezes a autora transcende as condensa pontos para apresentar ao leitor
fronteiras do real chegando ao mundo um flagrante, um momento significativo
fantástico em suas histórias, pois possui do todo.
muita habilidade na articulação do enredo.

− “Seminário dos ratos” é um dos contos


que dá nome ao livro, e faz parte desta “É preciso chegarmos a ter uma ideia
compilação onde a narrativa apresenta viva do que é o conto, e isso é sempre
uma metáfora sobre a repressão política difícil na medida em que as ideias tendem
que vivia o país em 1977. para o abstrato, para a desvitalização 5
de seu conteúdo, enquanto que, por
sua vez, a vida rejeita esse laço que a
conceitualização lhe quer atirar para fixá-
“Eu acho que essa é uma grande questão: la e encerrá-la numa categoria. Mas se não
afinal de contas, quem são os ratos do tivermos a ideia viva do que é um conto,
Seminário dos Ratos? Por que a utilização teremos perdido tempo, porque um conto,
dessa preposição “dos” faz com que a em última análise, se move nesse plano do
gente pense: esse seminário é feito pelos homem onde a vida e a expressão dessa
ratos? Esse seminário é sobre os ratos? vida travam uma batalha fraternal, se me
Os ratos dominam esse seminário ou eles for permitido o termo; e o resultado dessa
são o alvo dele?”.1 batalha é o próprio conto, uma síntese viva
ao mesmo tempo que uma vida sintetizada
, algo assim como um tremor de água
dentro de um cristal, uma fugacidade
III. O Conto. numa permanência” (CORTÁZAR, 2006)

− O conto tem como característica a


brevidade. Um dos aspectos peculiares
da sua estrutura é o seu tamanho, “o seu “Eu percebo que está começando a
limite físico” (CORTÁZAR, 1974, p. 151). nascer um conto quando, ao analisar as
personagens, vejo que elas são, de certo
− Trata-se de uma narrativa feita com modo, limitadas. Elas têm que viver aquele
economia verbal, porque tende a fazer um instante com toda força e vitalidade que
recorte, a registrar uma fatia daquilo que eu puder dar, porque nenhuma delas
foi escolhido para narrar. vai durar. Isso quer dizer que, com elas,
eu preciso seduzir o leitor num tempo
− O conto não apresenta a totalidade mínimo. Eu não vou ter a noite inteira para
de uma experiência, apenas seleciona e isso, com uísque, caviar, entende! Preciso
ser rápida, infalível. O Conto é, portanto,
uma forma arrebatadora de sedução”.
1 In: https://www.institutoclaro.org.br/ (FRANCESCHI, 1998)
educacao/nossas-novidades/podcasts/na-
lista-da-unicamp-seminario-dos-ratos-traz-
visao-critica-sobre-o-pais/
LYGIA FAGUNDES TELLES

IV. Realismo Fantástico V. As Personagens

− O realismo fantástico é um conceito As personagens que compõem esse


aplicado a inúmeras produções artísticas ambiente são denominadas de acordo
em que elementos da realidade, da com os cargos políticos ou pela posição
fantasia e do sonho se misturam, gerando hierárquica que possuem, ou seja, o foco
um todo harmônico. está no papel social e, além disso, há um
tom irônico em cada nomenclatura.
− Fatos históricos, míticos, lendas e
6 folclore são combinados e geram uma Por exemplo, o diálogo entre o Secretário
narrativa nova, que busca explorar outras e o Chefe é baseado na relação social
noções da realidade recorrendo a imagens e profissional entre eles, não revelando
que não fazem parte da ordenação lógico- quaisquer indícios de conexão pessoal ou
científica. de comportamento humano.

− Mistura dos elementos (personagens, 1. Chefe das Relações Públicas


cenários, situações etc.) da realidade
cotidiana com elementos de universos − Jovem de baixa estatura, é o
folclóricos, oníricos ou míticos. protagonista e responsável pela
organização de todo o Seminário.
− Como há total incorporação desses
elementos extraordinários e fantásticos, − O exagero das funções e a natureza
há uma naturalização de sua coexistência das informações que ele transmite ao
com a realidade objetiva. Secretário dão ao personagem um traço
quase mecânico: ele não emite opiniões,
− Possíveis rompimentos com a não deixa escapar suspiros de enfado e
linearidade temporal e com o princípio da nem demonstra qualquer emoção pela
causalidade. realização de seu trabalho.

− Problematização da racionalidade. − A narrativa é construída,


principalmente, pelo diálogo dele com
o Secretário do Bem-Estar Público e
Privado.
“O termo fantástico (do latim phantastica,
por sua vez do grego phantastikós, os − Além de sua função social, sua fala é
dois oriundos de phantasia) refere-se marcada pela presença da palavra Bueno,
ao que é criado pela imaginação, o que que funciona como uma introdução a
não existe na realidade, o imaginário, o um comentário que não é exatamente
fabuloso, aplica-se, portanto, melhor a um o que o interlocutor gostaria de ouvir,
fenômeno artístico, como é a literatura, aproximando-se de um tipo de pedido de
cujo universo é sempre ficcional por desculpas. Dessa maneira, percebemos
excelência, por mais que queira aproximá- que a personagem está sempre
la do real”. (RODRIGUES, 1988, p.9) empenhada em agradar seus superiores e
sabe quando não lhes traz boas notícias.
LYGIA FAGUNDES TELLES
“- Pois com o Delegado de Massachusetts - E dói, Excelência?
veio também a secretária, uma jovem.
E veio ainda um ruivo de terno xadrez, - Muito- Pode ser a gota d’água!
tipo um pouco de boxer, meio calado, Pode ser a gota d’água!–cantarolou ele,
está sempre ao lado dos dois. Suponho ampliando o sorriso que logo esmoreceu
que é um guarda-costas mas é simples no silêncio taciturno que se seguiu à sua
suposição, Excelência, o cavalheiro em intervenção musical. Pigarreou. Ajustou
questão é uma incógnita. Só falam inglês. o nó da gravata.
Aproveitei para conversar com eles,
completei a pouco meu curso de inglês – Bueno, é uma canção que o povo 7
para executivos, se os debates forem em canta por aí”. (p.178)*
inglês, conforme já foi aventado, darei
minha colaboração. Já o castelhano eu
domino perfeitamente, enfim, Vossa
Excelência sabe, Santiago, Buenos “A narrativa também faz referência aos
Aires...” (p.172-173)* movimentos culturais do período que
foram censurados pelos militares. O
Secretário tem um pé enfermo, com
uma doença nas articulações conhecida
Podemos inferir que essa personagem popularmente como gota e, nesse
já esteve presente em outros países instante, há a alusão à canção “Gota
com governos ditatoriais, como Chile d’água”. (...) O refrão dessa canção é
e Argentina, desse modo, sabe como de composição de Chico Buarque de
proceder para conter as manifestações Holanda, um dos intelectuais mais
dos ratos e da imprensa. atuantes e críticos diante da repressão
imposta pela ditadura”. (MASSOLI, 2017)
2. Secretário do Bem-Estar Público e
Privado

− Ainda que seja responsável pelo Bem- 3. Diretor das Classes Conservadoras
estar Público e Privado, o personagem Armadas e Desarmadas
permanece recluso em uma suíte.
No contexto de publicação da obra os
− Não participa da abertura do Seminário ideais conservadores eram latentes
por estar sofrendo de uma crise de gota. e qualquer oposição era punida
severamente no meio familiar ou
nas ruas;

“- É algo... grave?

- A gota.

*Ver referências.
LYGIA FAGUNDES TELLES

4. Delegação americana − A história se passa em uma casa de


campo onde estão reunidos os chefes de
Composta pelo Delegado de diversas nações para discutirem sobre a
Massachussetts, um suposto segurança situação dos ratos.
e uma secretária, Miss Glória. O nome
da mulher é relevante, haja vista que ela − A narrativa é dividida em duas partes:
é a única personagem com identidade, na primeira, por meio dos diálogos das
contudo, essa identificação pode remeter personagens citados, há a preparação
a glória conquistada mundialmente pelos do evento, e notam-se os interesses
8 Estados Unidos após a Segunda Guerra expressos quanto à manipulação do povo;
Mundial. já a segunda parte, contempla o que
ocorreu após a invasão dos ratos.

− Ao final, os ratos invadem a casa e


“Aproveitei para conversar com eles, devoram tudo, comida, pessoas, roupas,
completei há pouco meu curso de inglês móveis.
para executivos. Se os debates forem
em inglês, conforme já foi aventado, − O único que sobrevive é o Chefe que
darei minha colaboração.” (p. 153)* organiza a festa, pois se esconde dentro
da geladeira.

− O conto deixa o leitor na ambiguidade,


pois não esclarece se os líderes políticos
VI. Enredo e Análise também são ratos ou são humanos
discutindo a situação dos ratos.
Epígrafe: “Que século, meu Deus! –
exclamaram os ratos e começaram a roer
o edifício”. Carlos D. de Andrade.
“O caráter irônico da narrativa é
− Os versos drummondianos, de certa perceptível desde o título “Seminário dos
forma, revelam o final da narrativa Ratos”. Segundo o dicionário Houaiss
e justificam os acontecimentos na (2001), o termo seminário é uma atividade
perspectiva dos ratos humanizados que intelectual de valor científico e cultural,
comentam a complexidade do século XX, em contraponto, o rato, na cultural
antes de começarem a roer o decadente popular, é sinônimo de pessoa trapaceira,
edifício descrito e chamado no poema de considerado ladrão. De fato, o Seminário
“Esplendor” por ironia do poeta. é composto por membros que não estão
preocupados em resolver os conflitos da
− Conto homônimo do livro, “Seminário nação, todavia, a presença de ratos no
dos ratos” é uma crítica à burocracia, à sentido literal dá a qualidade insólita ao
ditadura e à uma elite que acredita não ser conto, representando uma população que
integrante da mesma classe social. vive nas regiões sombrias e é desprezada”.
(MASSOLI, 2017)
LYGIA FAGUNDES TELLES
− O conto foi publicado em 1977, está lata d’água na cabeça — acrescentou
ambientado durante o governo de Ernesto contendo uma risadinha. — O de sempre”.
Geisel que teve como característica “a (p.174)*
abertura política”.

− Narrado em terceira pessoa, onisciente,


apresenta uma alegoria de nossas Há, então, um tom irônico na conversa,
estruturas político-burocráticas. o Secretário do Bem Público e Privado
menospreza as questões públicas e se
− Trata-se da narrativa da preparação preocupa somente em manipular as 9
do Sétimo Seminário dos Ratos em que, mídias.
inclusive, especialistas estrangeiros são
chamados para discutirem a eliminação Nessa época, durante a ditadura no
da superpopulação desses roedores, por país, qualquer oposição aos ideais
demais nocivas. conservadores era punida severamente.

− Só que há mais preocupação com o


conforto e as aparências do encontro do
que com a solução dos problemas, tanto “- Vossa Excelência vai me perdoar, mas
que já era o sétimo a ser realizado. penso eu a cúpula se valoriza ficando
assim inacessível. Aliás, é sabido que uma
− A história se passa em um casarão no certa distância, um certo mistério excita
interior, onde ocorre um seminário que mais que o contato diário com os meios
irá discutir o controle populacional dos de comunicação. Nossa única fonte vai
ratos que, segundo o Chefe das Relações soltando notícias discretas, influindo
Públicas: sem alarde até o encerramento, quando
abriremos as baterias! Não é uma boa
“- Gastando milhões? Bilhões estão tática?
consumindo esses demônios, por
acaso ele ignora as estatísticas? Estou Com dedos tamborilantes, o Secretário
apostando como ele é de esquerda, estou percorreu vagamente os botões do colete.
apostando. Ou então amigo dos ratos. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as
Enfim, não tem importância. unhas polidas.

- Mas são essas as críticas mais — Boa tática, meu jovem, é influenciar
severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e no começo e no fim todos os meios de
aquela eterna tecla que não cansam de comunicação do país. Esse é o objetivo.
bater, que já estamos no VII Seminário Que já está prejudicado com esse
e até agora, nada de objetivo, que a assessor de perna quebrada.” (p.176)*
população ratal já se multiplicou sete
mil vezes depois do primeiro Seminário,
que temos agora cem ratos para cada
habitante, que nas favelas não são as Ao longo da narrativa a autora coloca
Marias, mas as ratazanas que andam de várias pistas para indicar quem são
LYGIA FAGUNDES TELLES

as personagens desse conto. Muitas A voz ficou um brando queixume: — Só


referências são postas para indicar que os se fala em povo e, no entanto, o povo não
organizadores do evento são caricaturas passa de uma abstração.
dos militares, como na passagem a seguir.
— Abstração, Excelência?

— Que se transforma em realidade


“— Pois eu escuto demais, devo ter um quando os ratos começam a expulsar
ouvido suplementar. Tão fino. Quando os favelados de suas casas. Ou a roer os
10 fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe pés das crianças da periferia, então, sim,
de 64, era sempre o primeiro do grupo o povo passa a existir nas manchetes
a pressentir qualquer anormalidade. O da imprensa de esquerda. Da imprensa
primeiro! Lembro que uma noite avisei marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada
meus companheiros, o inimigo está aqui às bombas dos subversivos, não esquecer
com a gente e eles riram, bobagem, você esses bastardos que parecem ratos
bebeu demais, tínhamos tomado no jantar — suspirou o Secretário percorrendo
um vinho delicioso. Pois quando saímos languidamente os botões do colete.
para dormir, estávamos cercados”. (p.178)* Desabotoou o último: - No Egito Antigo
resolveram esse problema aumentando o
número de gatos. Não sei porque aqui não
se exige mais da iniciativa privada, se cada
“O interessante deste trecho é o família tivesse em casa um ou dois gatos
emprego da palavra “anormalidade”. esfaimados...
A escolha lexical foi proposital, pois,
simultaneamente é utilizada para suas - Mas Excelência, não sobrou nenhum
experiências passadas, como também é gato na cidade, já faz tempo que a
utilizada para a atual, reafirmando para a população comeu tudo. Ouvi dizer que
iminência de um acontecimento anormal, dava um ótimo cozido!” (p.1178-179)*
de um acontecimento Fantástico”.
(VILHAGRA, 2014)

O segundo momento do conto se dá


quando o Secretário interrompe a
Podemos interpretar também que no conversa dizendo que está ouvindo
conto os organizadores não acreditavam barulhos. O Chefe de Relações Públicas,
que pertenciam à mesma classe social. a princípio, não percebe, mas acaba
Por isso é possível interpretar que talvez escutando também. Para se certificar que
os organizadores também fossem ratos, está tudo bem, sai da sala para percorrer
porém não se consideravam como os corredores do casarão até encontrar a
tal. Segue o trecho que permite essa fonte do barulho.
interpretação:
Ao encontrar o Cozinheiro Chefe
“— O povo, o povo — disse o Secretário do esbaforido, correndo para ir embora do
Bem-Estar Público, entrelaçando as mãos.
LYGIA FAGUNDES TELLES
lugar, o Chefe das Relações Públicas o — Ratos?!… Que ratos?
questiona:
O Cozinheiro-Chefe tirou o avental,
“Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar embolou-o nas mãos.
providências e volto em seguida, com
licença sim? – fez o jovem, esgueirando- — Vou-me embora, não fico aqui nem
se numa mesura rápida. Enveredou pela mais um minuto.” (p.181-182)*
escada. Parou no primeiro lance: — Mas
o que significa isso? Pode me dizer o que
significa isso? 11
Os ratos aparecem como devoradores
Esbaforido, sem o gorro e com o famintos. Sem acreditar no cozinheiro,
avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio o Chefe das Relações Públicas observa
correndo pelo saguão. O jovem fez um um tumulto na casa e sai para verificar, é
gesto enérgico e precipitou-se ao seu quando ocorre a segunda invasão.
encontro.

— Como é que o senhor entra aqui


neste estado? “As luzes se apagaram. Então, deu-se
a invasão, espessa como se um saco
O homem limpou no peito as mãos de pedras borrachosas tivesse sido
sujas de suco de tomate. despejado em cima do telhado e agora
saltasse por todos os lados numa treva
— Aconteceu uma coisa horrível, dura de músculos, guinchos e centenas
doutor! Uma coisa horrível! de olhos luzindo negríssimos. Quando
a primeira dentada lhe arrancou um
— Não grita, o senhor está gritando, pedaço da calça, ele correu sobre o chão
calma — e o jovem tomou o Cozinheiro- enovelado, entrou na cozinha com os ratos
Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. despencando na sua cabeça e abriu a
geladeira. Arrancou as prateleiras que foi
— Controle-se. Mas o que foi? Sem encontrando na escuridão, jogou a lataria
gritar, não quero histerismo, vamos, calma, para o ar, esgrimou com uma garrafa
o que foi? contra dois olhinhos que já corriam no
vasilhame de verduras, expulsou-os e
— As lagostas, as galinhas, as batatas, num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta,
eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou mas deixou o dedo na fresta, que a porta
nem um grão de arroz na panela. Comeram não batesse. Quando sentiu a primeira
tudo e o que não tiveram tempo de comer agulhada na ponta do dedo que ficou
levaram embora! de fora, substituiu o dedo pela gravata.”
(p.184)*
— Mas quem comeu tudo? Quem?

— Os ratos, doutor, os ratos!


LYGIA FAGUNDES TELLES

“Sabe-se, no imaginário popular, por forcejar. Lembrava- se, isso sim, de um


exemplo, que há uma associação da figura súbito silêncio que se fez no casarão:
do roedor com atitudes de covardia, de nenhum som, nenhum movimento. Nada.
pusilanimidade. (...) Ambos os símbolos, Lembrava-se de ter aberto a porta da
que o signo do Rato traz, contribuem geladeira. Espiou. Um tênue raio de luar
para a inversão dos valores entre os era a única presença na cozinha esvaziada.
seres humanos e os roedores, tendo a Foi andando pela casa completamente
tomada do poder como último patamar oca, nem móveis, nem cortinas, nem
dessa transposição. Ao consumir tudo tapetes. Só as paredes. E a escuridão.
12 que estava pela frente, expulsando tudo Começou então um murmurejo secreto,
e todos do local, assumindo o controle rascante, que parecia vir da Sala de
do VII Seminário de Roedores, os ratos Debates e teve a intuição de que estavam
se apoderam de uma posição que, todos reunidos ali, de portas fechadas. Não
naturalmente, pertenceriam aos homens”. se lembrava sequer de como conseguiu
(VILHAGRA, 2014) chegar até o campo, não poderia jamais
reconstituir a corrida, correu quilômetros.
Quando olhou para trás, o casarão estava
todo iluminado.” (p.185)*
O segundo ataque dos ratos confirma
que a narrativa retrata a repressão e a
desigualdade entre o povo, considerado
pelo Secretário uma abstração. A autora trabalha no conto uma denúncia
sobre a situação do Brasil no período da
Ao encerrar a narrativa, a autora deixa um ditadura e o sofrimento da população,
final ambíguo sobre quem são os ratos tanto na manipulação da mídia quanto na
e o que estão decidindo no Seminário. repressão política e econômica.
A invasão pode ser interpretada como
uma luta de resistência dos considerados Ao utilizar fatos insólitos, a autora articula
mais fracos, pois transgridem a ordem a palavra para tratar da resistência e
estabelecida e trocam de papel social, contemplar as questões sociais.
onde os homens se tornam animais e os
animais se transformam em homens.

“O conto “Seminário dos ratos” é


marcado, principalmente, pela ironia e
“No rigoroso inquérito que se processou pelo elemento insólito, onde os ratos
para apurar os acontecimentos daquela transgridem a ordem estabelecida,
noite, o Chefe das Relações Públicas propiciando, inclusive, a metamorfose,
jamais pôde precisar quanto tempo teria visto que os homens se tornam animais
ficado dentro da geladeira, enrodilhado e os animais se tornam homens. Por
como um feto, a água gelada pingando na meio do trabalho com a linguagem, Lygia
cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, Fagundes Telles denuncia a situação do
a boca aberta no mínimo vão da porta que Brasil no período ditatorial e a situação
de vez em quando algum focinho tentava da população, tanto nos aspectos
LYGIA FAGUNDES TELLES
econômicos, tanto na manipulação da Na lista da Unicamp, “Seminário dos Ratos”
informação. Portanto, atenta ao contexto traz visão crítica sobre o país. <https://www.
sociopolítico, a autora trata da resistência institutoclaro.org.br/educacao/nossas-
como tema e como processo inerente à novidades/podcasts/na-lista-da-unicamp-
escrita, articulando a magia da palavra seminario-dos-ratos-traz-visao-critica-sobre-
ao criar fatos insólitos para contemplar o-pais/>
questões sociais. (MASSOLI, 2017)”
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São
Paulo: Ática, Série Princípios, 1988.
13
Referências VILHAGRA, Leonardo Teixeira de Freitas
Ribeiro. Aspectos da literatura fantástica em
* Todos os trechos foram retirados de: TELLES, Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles.
Lygia Fagundes. Seminário dos ratos. - 4ªed. –
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto.


In_. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci
Jr.São Paulo: Perspectiva, 1974.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto


e Do conto breve e seus arredores. In Valise
de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. E João
Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva,
2006.

FRANCESCHI, Antônio Fernando de (Org).


Cadernos de literatura brasileira, Instituto
Moreira Salles. São Paulo: Primeira linha
Distribuidora, n.5, mar. De 1998.

Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n.


21, 2014.

MASSAUD, Moisés. A Literatura Brasileira


através de textos. 29.ed.rev e ampl. – São Paulo:
Cultrix, 2012.

MASSOLI, Franciscati da Silva. NARRATIVA


DE RESISTÊNCIA: “SEMINÁRIO DOS RATOS”,
DE LYGIA FAGUNDES TELLES. Revista (Entre
Parênteses), v. 6, n. 1, 18 dez. 2017.< https://doi.
org/10.32988/rep.v1i6.574>
LYGIA FAGUNDES TELLES

Exercícios literários voltados à denúncia das mazelas


e deficiências da sociedade brasileira.

1. (UFPR) Os ratos são nossos, as e) O conto citado, bem como a narrativa


soluções têm que ser nossas. Por que A mão no ombro em que um homem
botar todo mundo a par das nossas sonha com sua própria morte, exemplifica
mazelas? Das nossas deficiências? uma característica recorrente em
Devíamos só mostrar o lado positivo Seminário dos ratos: a presença de
não apenas da sociedade, mas da nossa elementos insólitos nos enredos, às vezes
14 família. De nós mesmos acrescentou aproximando-se da literatura fantástica.
apontando para o pé em cima da almofada.
EXERCÍCIOS

Considerando o trecho acima, extraído do 2. (UFPR) Tendo em vista o livro


conto Seminário dos ratos, e a leitura do “Seminário dos Ratos”, de Lygia Fagundes
livro homônimo, de Lygia Fagundes Telles, Telles, assinale a(s) afirmativa(s) correta(s).
identifique a alternativa verdadeira.
(01) Trata-se de contos apresentados à
a) Os contos de Seminário dos ratos, maneira de fábulas, cada texto dedicado
como toda a obra de Lygia Fagundes a um animal, como formigas, pombas,
Telles, representam a tendência literária tigres e ratos, todos com características
predominante no Brasil no período fantásticas.
da ditadura militar, identificada como
literatura-verdade, ou literatura- (02) São contos autobiográficos,
reportagem. evidenciando-se os trabalhos da memória.
Há indícios, nos diversos textos, de que
b) O trecho citado exemplifica o a voz da autora ecoa por trás da voz da
conservadorismo da visão de mundo de narradora.
Lygia Fagundes Telles, também presente
no conto Senhor diretor, em que uma (04) Traço que caracteriza os contos é o
professora denuncia a liberdade excessiva desencanto, a frustração das ilusões, seja
com que o cinema e a televisão passaram para o indivíduo, seja para a coletividade.
a representar a sexualidade.
(08) Vários contos são marcados por uma
c) O trecho citado deve ser interpretado atmosfera de pesadelo, e neles não há a
de forma irônica, pois é um rato quem perspectiva do despertar libertador.
condena a transparência no trato dos
problemas sociais e familiares, ou seja, o (16) Em alguns contos o ponto de vista é
conto opera uma inversão total de valores. em primeira pessoa, de uma perspectiva
feminina; mas há uns poucos em que a voz
d) Ao lado de Guimarães Rosa e de narradora é masculina, e há ainda outros
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles em terceira pessoa.
é responsável pela continuidade de
uma tradição literária marcada pelo (32) A temática da obra gira em torno
engajamento dos escritores em projetos das desilusões da vida, das misérias da
LYGIA FAGUNDES TELLES
condição humana, mas o amor é apontado “Seminário dos ratos” – é um ser humano
como um resgate possível. isolado do convívio social.

Soma ( ) d) A variedade de detalhes e nuances


do trecho apresentado resultam numa
3. (UFPR) Leia o fragmento a seguir, exatidão descritiva típica de uma
extraído do conto “A mão no ombro” (in: descrição realista.
“Seminário dos ratos”, de Lygia Fagundes
Telles): e) A dificuldade do personagem para
identificar o astro luminoso – lua ou sol – 15
“O homem estranhou aquele céu verde justifica-se pelo predomínio dos cenários
com a lua de cera coroada por um fino urbanos na ficção de Lygia Fagundes

EXERCÍCIOS
galho de árvore, as folhas se desenhando Telles.
nas minúcias sobre o fundo opaco. Era
uma lua ou um sol apagado? Difícil saber
se estava anoitecendo ou se já era manhã 4. (UFPR) Analise as afirmativas a seguir e
no jardim que tinha a luminosidade fosca assinale a correta.
de uma antiga moeda de cobre. Estranhou
o úmido perfume de ervas. E o silêncio a) Os focos narrativos de “Leão-de-
cristalizado como num quadro, com chácara” representam uma visão de
um homem (ele próprio) fazendo parte mundo distanciada do universo retratado:
do cenário. Foi andando pela alameda ambientes e pessoas marginalizadas pela
atapetada de folhas cor de brasa, mas não parcela mais rica da sociedade.
era outono.”
b) Em “Como e por que sou romancista”,
Assinale a alternativa correta. descobrimos que a literatura, para José
de Alencar, deve reproduzir fielmente sua
a) Assim como em livros publicados nos visão de mundo, pois ela é, antes de tudo,
anos 70 por Dalton Trevisan e Clarice um documento político.
Lispector, os elementos fantásticos dos
contos de “Seminário dos ratos” são c) “O pagador de promessas” – ao
resultado de uma estratégia para driblar contrário de “O santo e a porca”, que
a vigilância da censura no período da apresenta uma compreensão política do
ditadura militar. mundo – faz uma opção pela religiosidade
como condutora da moral social.
b) A presença de um estranho jardim
aproxima “A mão no ombro” do conto d) “Seminário dos ratos” apresenta
“Herbarium”, narrativa em que as plantas uma multiplicidade de personagens e
igualmente colaboram para a composição diferentes contextos sociais, mas há
de um cenário denso, pouco objetivo. um fio condutor para o conjunto de
contos: uma sensação de absurdo e de
c) A atmosfera de mistério relaciona-se deslocamento característicos do nosso
com a psicologia da personagem que – tempo.
assim como diversos protagonistas de
LYGIA FAGUNDES TELLES

e) “Em Terras do sem fim”, a violenta a) Em “Seminário dos Ratos”, o Chefe das
luta pela terra é um ingrediente em Relações Públicas marca um encontro
uma história em que a afetividade e a secreto com o Secretário do Bem-
sensualidade definem o enredo. Estar Público e Privado e tramam uma
estratégia para provocar uma epidemia de
ratos que assolará a região.
5. (UFRS) Considere as afirmações abaixo.
b) Em “A Consulta”, o médico que tratava
I – Antonio Callado, autor de vários dos loucos da clínica troca de lugar com
16 romances e peças de teatro, escreveu um de seus pacientes, Maximiliano,
“Quarup”, narrativa que mergulha nas permitindo que este o analise, revelando,
profundezas da realidade brasileira pós- apesar de louco, sua perspicácia e
EXERCÍCIOS

64. inteligência.

II – Dalton Trevisan é autor de contos c) “Pomba enamorada ou Uma história


que exploram, através de personagens de amor” trata do envolvimento de uma
comuns, situações extraordinárias assistente de cabeleireira romântica
vivenciadas em cidades gaúchas. com um homem que é o seu oposto.
Ela o persegue com rezas, mandingas,
III – Lygia Fagundes Telles é autora de simpatias, convites e cartas de amor, mas
narrativas, entre as quais “As Meninas” e não há nada que o faça se interessar por
“Seminário dos Ratos”, que representam ela.
ficcionalmente a vivência urbana de
personagens que se confrontam com o d) Em “As Formigas”, durante o tempo em
esvaziamento do sentido existencial. que as duas amigas levam para se formar
em Medicina, as formigas vão juntando
Quais estão corretas? e colando os ossos abandonados de um
anão até montar o esqueleto completo.
a) Apenas I.
e) Em “Herbarium”, um médico, com
b) Apenas II. uma doença contagiosa e perigosa,
busca repouso na casa de sua tia, num
c) Apenas III. sítio retirado, onde é bem recebido, mas
mantido sob discreta vigilância e aura de
d) Apenas I e III. mistério.

e) I, II e III.

6. (CFET-PR) Assinale a única alternativa


correta quanto ao conteúdo dos contos do
livro “Seminário dos Ratos”.
PERO VAZ DE CAMINHA
Pero Vaz de Caminha
(1450-1500)
Carta a el-Rei Dom Manoel
sobre o achamento do Brasil, 17

1500

I. O Autor e explorar a faixa de terra que caberia


a Portugal na América, pelo tratado de
Pero Vaz de Caminha nasceu em Porto, Tordesilhas, não tardou para se avistar
Portugal, no ano de 1450. Filho de Vasco sinais de terra, como aves e vegetação
Fernandes de Caminha, cavaleiro do marinha.
Duque de Bragança. Antigo vereador da
cidade do Porto, homem letrado, herdou No dia 22 de abril foi avistado um monte e
do pai o cargo de mestre da balança confirmando a existência das terras.
da Casa da Moeda, com a função de
tesoureiro e escrivão.
II. O Gênero
Foi nomeado escrivão da esquadra de
Pedro Álvares Cabral que iria estabelecer − O primeiro problema na abordagem que
uma feitoria fortificando o domínio se deve fazer é: a Carta é mesmo um texto
português em Calicute, na Índia, grande literário?
centro das especiarias.
− É incontestável a sua importância
No dia 9 de março de 1500, partia de quanto ao significado histórico,
Lisboa, rumo à Índia, a maior esquadra etnográfico e cultural.
que Portugal já teria organizado até então,
com 13 navios e aproximadamente 1500 − A Carta mescla aspectos da crônica
homens, entre eles, o escrivão Pero Vaz de histórica, do diário de bordo e de missiva
Caminha. informativa e impressionista.

Afastando-se da costa africana, para − Importante destacar que a epístola,


evitar as perigosas calmarias do golfo de além de auxiliar a compreender a
Guiné que paralisavam os navios de vela, geografia, põe fim a uma concepção
ou obedecendo à instrução secreta do rei medieval de que elementos fantásticos
Dom Manuel, no sentido de reconhecer existiam abaixo da linha do equador.
PERO VAZ DE CAMINHA

“Caminha não era um cosmógrafo. O que transformasse o estilo e, por isso mesmo,
ele redigiu para recreio e esclarecimento a maneira de ver o mundo. Dir-se-ia que
do rei foi uma narrativa impressionista o literato que nele existia, latente ou não,
em que revela aquela cultura literária vem à tona, mercê do deslumbramento
tão própria dos portugueses da sua perante a visão edênica oferecida pela
grande época, e aquela capacidade terra desconhecida. Daí,a descrição,
de observação, e aquela faculdade de fluentemente literária, do gentio e uma
compreender e descrever judiciosamente, narração de igual teor, centrada na
que constituem o mais esplêndido entrevista que que o aborígene concede
18 encanto dos cronistas”. (DIAS, 1923, p. 77) aos navegantes”.(MASSAUD, 2012, p.15)

Não é difícil perceber que a personagem Questionando o aspecto estético da


central de todo relato da missiva é o missiva, o ensaísta Flávio R. Kothe
indígena. argumenta que a Carta não foi escrita para
ser publicada, não é um texto literário e
A preocupação em traduzir os gestos, a nem sequer é de autor brasileiro.
caracterização corporal, a sua alimentação
e abrigo, enfim, o seu modo de existir,
demonstra o valor dessa carta narrativa
como documento e obra literária. “A Carta de Caminha, que não foi escrita
para ser publicada e cuja primeira edição
é somente de 1817, tinha características
adequadas para ocupar posto estratégico
“O principal intuito, por conseguinte, no que se queria que fosse a formação e
resumia-se em ser fiel à verdade a determinação do cânone da literatura
observada, para que o relato desse conta brasileira, onde costuma ser vista como
exata da gente e da terra descobertas. o seu grande momento inaugural. Isso
E tal imperativo realizou-se cabalmente, é estranho, pois a Carta sequer é um
a ponto de transformar a Carta numa texto literário nem de autor brasileiro.
espécie de diário de viagem, com toda a Descoberta no século XIX, ela não estava
pormenorização que lhe é peculiar. Nada ‘no início’: este foi construído, inventado
lhe escapa à retina aguçada no mister (...)”. (KOTHE, 1997)
de informar e comentar, desde o modo
como os indígenas se apresentaram
ao Capitão da armada, até a descrição
do solo. Fazia, assim, obra simultânea Para Kothe, a carta de Caminha é
de escrivão de bordo e de historiador. documento jurídico português, e não um
Percebe-se, contudo, que não se limitou a texto literário brasileiro, isto é, foi uma
uma relato frio ou impessoal; ao contrário, ficção jurídica, não uma ficção literária que
certa veemência percorre-lhe as palavras, protagoniza três finalidades muito claras:
como se o entusiasmo provocado
pelas novidades contempladas lhe
PERO VAZ DE CAMINHA
a. promove a filiação do Brasil à formação todo o aparato da cena montada por
portuguesa; ocasião da Primeira Missa” (KOTHE, 1997,
p. 202)
b. mantém a hegemonia da oligarquia lusa
sobre minorias étnicas aqui encontradas, e
para aqui posteriormente deslocadas;
Observemos o que diz o professor e
c. impõe visão do Brasil como uma utopia. ensaísta Reinaldo Martiniano Marques:

Radicalizando sua opinião, Kothe “Vejo o aspecto literário da Carta como 19


considera ser o texto mera secundário, limitado, fazendo parte mais
“correspondência burocrática oficial do de uma estratégia de discurso. O Texto
Estado Português”. de Pero Vaz pertence antes ao âmbito
da retórica e é moldado pelos efeitos
Embora insista que a missiva é antes um persuasórios pretendidos”. (MARQUES,
documento jurídico português do que 1922, p. 55)
texto literário brasileiro, Flávio Kothe, em
seu ensaio, várias vezes recorre ao termo
“ficção”.
Reinaldo Marques transcreve um trecho
da carta, exemplificando, na descrição dos
costumes dos silvícolas, a literariedade da
“A Carta de Caminha participa da ficção escritura de Caminha:
legitimadora da presença portuguesa,
e ela mesma é uma ficção, mas uma “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui
ficção jurídica: um ato de posse, em boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha,
nome do rei de Portugal, como se, ao nem galinha, nem qualquer outra alimária,
invés de maçados, índios e papagaios, o que costumada seja ao viver dos homens.
universo inteiro estivesse a contemplar Nem comem senão desse inhame, que
a apropriação dentro de um cartório, aqui há muito, e dessa semente e frutos,
conforme a partilha do planeta feita que a terra e as árvores de si lançam.
pelo papa como intérprete oficial do E com isto andam tais e tão rijos e tão
‘testamento de Adão e Eva’. A ficção nédios, que o não somos nós tanto, com
impregna e domina essa realidade. O quanto trigo e legumes comemos”. (p.12)*
sentido de tal ficção é conferir um direito
divino aos portugueses em relação ao
Brasil, ficção que os brasileiros tendem
a assumir como legitimação de sua Se nessa passagem, Caminha utiliza o
identidade, a começar pela língua que termo “semente” em seu sentido literal,
usam. Não se trata, em primeiro lugar, no fim da Carta retorna a esse termo de
de uma ficção literária, que justificaria forma metafórica:
a participação de tal texto no sistema
de uma literatura nacional: trata-se,
sobretudo, de uma ficção jurídica, com * Ver referências.
PERO VAZ DE CAMINHA

“Porém, o melhor fruto que dela se pode e andava tinto de tintura vermelha pelos
tirar, me parece que será salvar essa peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas
gente. E esta deve ser a principal semente até baixo, mas os vazios com a barriga e
que vossa Alteza nela deve lançar”.(p.14)* estômago eram de sua própria cor. E a
tintura era assim vermelha que a água a
não comia nem desfazia, antes, quando
saía da água, parecia mais vermelha”.
As vertentes real e ficcional estão (p.07)*
presentes no texto de Caminha,
20 mesclando o histórico e o literário, como
observa Maria A. Ribeiro.
− Percebe-se que a carta de Caminha
considerada fundadora da Literatura
Brasileira, foi escrita sob a visão de um
“Não se pode deixar de observar que português, sustentando a ilusão de
o próprio Caminha indica esta posição que a terra “descoberta” era o próprio
quando, ao falar do ouro e da catequese, paraíso perdido descoberto justamente
opõe ver a desejar, que corresponde, de pelos portugueses, definindo assim, uma
certa forma, a uma vertente real e a outra nacionalidade que não corresponde,
ficcional. As ideias de fertilidade da terra porém, a formação étnica e cultural do
e do barbarismo da gente veiculadas pelo país tornando-se uma imposição de uma
texto inauguram um filão temático na minoria sobre a maioria.
literatura brasileira, do qual é exemplo o
ufanismo, e o processo de colonização − O descobrimento do Brasil foi,
de que ele dá conta é parodiando, no sobretudo, uma ficção histórica, pois ia se
Modernismo, em vários poems, em alguns descobrir o já descoberto?
dos quais utiliza fragmentos da Carta.”
(RIBEIRO, 1995) − O fundamental não era o
“descobrimento”, mas a apropriação da
terra.

Se falta ao escrivão o conhecimento de


cosmografia e de detalhes da navegação, IV. A Estrutura da Carta
sobra-lhe o caráter impressionista, a
frequente inserção de sua subjetividade − Redigida em 1º de maio de 1500, em
em trechos da carta. Porto Seguro, Bahia, foi levada para Lisboa
sob os cuidados de Gaspar de Lemos,
considerado um dos maiores navegadores
de seu tempo.
“Andava aí um que falava muito aos
outros que se afastassem, mas não que − Apesar de ter sido escrita no século XVI,
a mim me parecesse que lhe tinham a Carta foi descoberta muitos anos depois,
acatamento ou medo. Este que os assim em 1773, por José de Seabra da Silva
andava afastando trazia seu arco e setas,
PERO VAZ DE CAMINHA
(1732-1813). Naquele momento, guarda- água, era mais que estética. Escapava-
mor da Torre do Tombo. lhes que naquelas linhas estava inscrita
hierarquia, função, nacionalidade.
− No Brasil, sua primeira publicação foi em Advertidos de que impropriamente
1817, na Imprensa Régia do Rio de Janeiro. restringimos a escrita ao alfabeto,
devemos considerar aquelas cores e
− Provavelmente, a primeira versão traços signos de um sistema de escrita
editada no Brasil foi do Padre Manuel pictórica, exigido pela organização social”.
Aires de Casal (1754-1821). Ele era (SCHULLER, 2001, p. 53)
geógrafo, historiador e sacerdote 21
português que viveu boa parte de sua vida
em território brasileiro.
O escrivão busca, na leitura equivocada de
− Ao longo do texto, percebe-se o grande cores, gestos e ações do Outro, as marcas
apego do autor às categorias sensoriais, do Mesmo: deseja que os nativos ajam
isto é, a valorização dos sentidos, como os portugueses, interessem-se pela
principalmente o da visão. Cruz, façam mesuras diante do Capitão,
evidenciem reverências e objetivem as
− Embora desconheça o significado das referências àquilo mesmo que interessa
cores das tinturas dos índios, o autor mais: as riquezas da terra.
várias vezes faz questão de descrevê-las.
A Carta, escrita numa sequência
− O caráter plástico o atrai mais do que a cronológica, aproximando-se de um
possível significação social e cultural. diário, é um relato que pode ser assim
estruturado:
− O escrivão projeta nos signos da sua
escritura a visão ideológica europeia, I. Introdução: Apresentação ao Rei Dom
que situa esse continente e sua raça Manuel I e objetivos da missiva.
como o centro de tudo. Daí falarmos em
etnocentrismo ou eurocentrismo, o que Remetida diretamente ao rei, a Carta se
está por detrás dos vários equívocos inicia de maneira protocolar. Caminha
transmitidos na epístola. busca captar a benevolência do
destinatário, apresentando-se com falsa
− Donaldo Schüler aborda um desses modéstia, como o menos capaz de todos
equívocos: da armada que escreveram missivas ao
monarca para noticiar a descoberta da
“Os portugueses incorrem em muitos nova terra.
equívocos nesses primeiros contatos. A
desinteligência não se restringe à fala e II. 22 de abril: a síntese da viagem de
aos gestos. Qual era o sentido das pinturas Portugal até se avistar a nova terra.
que revestiam o corpo dos silvícolas?
Os descobridores estavam longe de Na manhã da quarta-feira, 22 de abril de
imaginar que a finalidade daquelas formas 1500, os marinheiros toparam com aves
coloridas, resistentes ao contato com a no céu, o que lhes acendeu a esperança de
PERO VAZ DE CAMINHA

se aproximarem de terra firme. Já no fim Pero Vaz destaca, neste momento, o


do dia as expectativas se concretizaram. fato de os índios ignorarem as marcas de
distinção social, demonstrando o quanto
A atitude de nomear uma terra o reconhecimento da hierarquia era
desconhecida, sem saber se era ou não fundamental na sociedade europeia.
habitada, corrobora o impulso europeu
de apropriação naquele momento de V. 25 de Abril: Nudez das Indígenas.
expansionismo marítimo. Dar nome ao
território e aos acidentes geográficos O espanto dos marinheiros diante da
22 equivalia a tomar posse, com direito nudez das moças fica registrado com
de explorá-los economicamente e de um tom de leveza e de certa ironia, ao
incorporá-los às referências cristãs. destacar que os homens aproveitavam a
inocência das nativas para reparar, sem
III. 23 de Abril: Primeiro contato com os constrangimento, a genitália que elas
Indígenas. deixavam à mostra.

Logo pela manhã, os marinheiros VI. 26 de Abril: Missa, Danças e diversão.


dirigiram-se à terra ancorando, por
volta das dez horas, a cerca de três Celebrada uma Missa de Pascoela, o
quilómetros da boca de um rio. Foi dali primeiro domingo após a Páscoa, os
que os portugueses, pela primeira vez, nativos fizeram música soprando chifres e
avistaram os habitantes originários conchas dançando alegremente na areia.
daquela natureza suntuosa. Os capitães
das naus se reuniram e decidiram enviar Os capitães da frota discutiram e
alguns homens à praia, liderados por concordaram em mandar um dos navios
Nicolau Coelho, experiente navegador que a Portugal, com a notícia da descoberta.
participara da armada de Vasco da Gama. Aventaram também a possibilidade de
sequestrar um par de índios para tentar
IV. 24 de Abril: Visita na Embarcação. tirar deles informações a respeito das
riquezas do lugar, mas preferiram deixar
Na manhã de sexta, seguindo o conselho para isso dois degradados.
dos pilotos o capitão-mor ordenou
levantar âncoras e fazer velas, seguindo Espantado com a beleza e o vigor
a costa rumo ao norte, com o objetivo de dos nativos, Pero Vaz de Caminha os
encontrar algum porto seguro onde as compara a animais selvagens, que
naus pudessem se reabastecer de lenha e muitas vezes parecem mais saudáveis
de água fresca. do que os domesticados. A analogia é
também aplicada ao comportamento dos
Um piloto chamado Afonso Lopes foi indígenas, que ora pareciam confiantes,
designado para sondar o porto. Tendo ele ora tomavam atitudes desconfiadas
encontrado dois jovens índios em uma exigindo que os portugueses fossem
pequena jangada, trouxe-os para bordo da delicados e falassem com calma.
nau Capitania, onde viajava Pedro Álvares
Cabral, que os recebeu.
PERO VAZ DE CAMINHA
VII. 27 de abril: Animais. Os índios perceberam, ao observarem
dois carpinteiros construindo uma cruz, a
Na segunda-feira pela manhã, depois de eficiência muito maior dos machados de
comer, os portugueses foram novamente ferro.
à terra reabastecer de água os navios
ocasião em que puderam se misturar O trecho mostra os diferentes estágios
ainda mais aos nativos. tecnológicos envolvidos neste encontro
de civilizações. Ao descrever as flechas
Pero Vaz destaca as tinturas corporais indígenas, o escrivão destacou que as
muito coloridas e que não se diluíam na pontas não eram de ferro, mas de “canas 23
água, feitas de uma planta cujas sementes aparadas”.
eram esmagadas.
VIII. 29 de abril: Transposição de carga.
O grupo caminhou cerca de nove
quilômetros até uma povoação na qual Neste dia os marinheiros não foram
havia nove ou dez enormes habitações. à terra, pois estavam ocupados
em transferir a carga do navio de
Depois de trocarem mantos de mantimentos para as outras embarcações.
plumagens multicoloridas e suntuosas O navio seria usado para levar a noticia do
araras-vermelhas por reles carapuças, descobrimento a Lisboa.
eles devolveram resolutamente os
portugueses às suas embarcações. Ao fim da tarde, os homens que
pernoitaram com os índios retornaram
“Foram-se lá todos, e andaram entre eles. à praia trazendo papagaios e outros
E, segundo eles diziam, foram bem uma pássaros.
légua e meia a uma povoação, em que
haveria nove ou dez casas, as quais eram Muitos índios insistiam para dormir nas
tão compridas, cada uma, como esta nau embarcações, embora não tivessem
capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas permitido que os europeus dormissem
de tábuas, e cobertas de palha, de razoada mais uma noite com eles. Dois dos que se
altura; todas duma só peça, sem nenhum mostraram mais dedicados foram levados
repartimento, tinham dentro muitos às naus e muito bem tratados, comendo
esteios; e, de esteio a esteio, uma rede o que lhes foi oferecido e dormindo em
atada pelos cabos, alta, em que dormiam. “cama de lençóis”.
Debaixo, para se aquentarem, faziam
seus fogos. E tinha cada casa duas portas IX. 30 de abril: Missão Divina.
pequenas, uma num cabo, e outra no
outro”. (p.09-10)* Depois de fazer o desjejum na companhia
dos índios, os portugueses rumaram para
a terra.

VII. 28 de abril: Pedra e Ferro. Ao verem os estrangeiros ajoelharem-se


diante da grande cruz que ainda estava
O dia começou com a ida à terra para encostada numa árvore, vários índios
buscar lenha e lavar roupa. ajoelharam-se também, dispostos a
PERO VAZ DE CAMINHA

reverenciá-la. Essa atitude fez com que o Antes de encerrar a longa missiva,
escrivão tivesse a certeza da boa índole Caminha faz seu pedido pessoal: trazer
daquela gente, pronta para receber em seu genro de volta da África.
seus corações o que ele considerava a
religião verdadeira.
V. O Estilo
Os portugueses aproveitaram essa
confiança e a boa disposição dos índios Em linhas gerais, alguns traços do autor
para usá-los como força de trabalho, já que e de seu estilo podem ser exemplificados
24 a ansiada noticia sobre metais preciosos com passagens de seu texto:
não lhes foi dada.
− Modéstia:
Apesar da utilização da mão de obra
indígena, Pero Vaz reitera ao rei que uma “Posto que o Capitão-mor desta vossa
das mas elevadas missões de Sua Alteza frota, e assim os outros capitães escrevam
era cuidar da salvação daquela gente. a Vossa Alteza a nova do achamento desta
vossa terra nova, que ora nesta navegação
X. 01 de Maio: Segunda Missa e se achou, não deixarei também de dar
Despedidas. disso minha conta a Vossa Alteza, assim
como eu melhor puder, ainda que — para
Logo cedo, os marinheiros saíram para o bem contar e falar — o saiba pior que
terra para fixar a enorme cruz que fora todos fazer.” (p.01)*
construída pelos carpinteiros. Além
da representação da fé católica, a cruz
serviria também como um marco a ser
utilizado por outras expedições para − Comedimento no relato, no sentido de
localizar o lugar onde os degredados não deformar a verdade:
seriam deixados.
“Tome Vossa Alteza, porém, minha
Acompanhados de cerca de oitenta ignorância por boa vontade, e creia bem
indígenas, os portugueses caminharam por certo que, para aformosear nem afear,
solenemente pela praia, em forma de não porei aqui mais do que aquilo que vi e
procissão, entoando hinos religiosos, até me pareceu”. (p.01)*
chegaram ao lugar indicado pelo capitão
para fixar a cruz.

Junto a ela foi armado um altar no − Precisão no uso de números:


qual foi celebrada a segunda missa no
território. Como de costume, os índios “E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela
acompanharam todo o ritual com muito e seguimos em direitos à terra, indo os
interesse, imitando os gestos devotos navios pequenos diante, por dezessete,
levantando os braços ou pondo-se de dezesseis, quinze, catorze, treze, doze,
joelhos. dez e nove braças, até meia légua da terra,
onde todos lançamos âncoras em frente
PERO VAZ DE CAMINHA
à boca de um rio. E chegaríamos a esta “Viu um deles umas contas de rosário,
ancoragem às dez horas pouco mais ou brancas; acenou que lhas dessem, folgou
menos”. (p.02)* muito com elas, e lançou-as ao pescoço.
Depois tirou-as e enrolou-as no braço e
acenava para a terra e de novo para as
contas e para o colar do Capitão, como
− Visão etnocêntrica, eurocêntrica dos dizendo que dariam ouro por aquilo.
aborígenes:
Isto tomávamos nós assim por assim
“A feição deles é serem pardos, maneira o desejarmos. Mas se ele queria dizer que 25
de avermelhados, de bons rostos e bons levaria as contas e mais o colar, isto não
narizes, bem-feitos. Andam nus, sem o queríamos nós entender, porque não
nenhuma cobertura. Nem estimam de lho havíamos de dar. E depois tornou as
cobrir ou de mostrar suas vergonhas; contas a quem lhas dera” (p.03-04)*
e nisso têm tanta inocência como em
mostrar o rosto. Ambos traziam os
beiços de baixo furados e metidos neles
seus ossos brancos e verdadeiros, de “Nela, até agora, não pudemos saber que
comprimento duma mão travessa, da haja ouro, nem prata, nem coisa alguma
grossura dum fuso de algodão, agudos na de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém
ponta como um furador. Metem-nos pela a terra em si é de muito bons ares, assim
parte de dentro do beiço; e a parte que frios e temperados como os de Entre
lhes fica entre o beiço e os dentes é feita Douro e Minho, porque neste tempo de
como roque de xadrez, ali encaixado de tal agora os achávamos como os de lá”. (p.14)*
sorte que não os molesta, nem os estorva
no falar, no comer ou no beber”. (p.03)*

− Senso de humor e de aguda visão


sensual no perfil das nativas:
− Uso de comparações com elementos
da cultura europeia “Ali andavam entre eles três ou quatro
moças bem moças e bem gentis, com
“Esse que o agasalhou era já de idade, cabelos muito pretos, compridos pelas
e andava por louçainha todo cheio de espáduas, e suas vergonhas tão altas,
penas, pegadas pelo corpo, que parecia e tão cerradinhas e tão limpas das
asseteado como S. Sebastião. Outros cabeleiras, que de as nós muito bem
traziam carapuças de penas amarelas; olharmos, não tínhamos nenhuma
outros, de vermelhas; e outros de verdes”. vergonha.” (p.04-05)*
(p.05)*

− Observação detalhada das partes


− Predisposição em descrever o que íntimas, evidenciando provável
interessa ao desejo do colonizador: preconceito:
PERO VAZ DE CAMINHA

“Então estiraram-se de costas na alcatifa, − Depreciação e Admiração do indígena:


a dormir, sem buscarem maneira de
cobrirem suas vergonhas, as quais não “Os outros dois, que o Capitão teve nas
eram fanadas*; e as cabeleiras delas naus, a que deu o que já disse, nunca mais
estavam bem rapadas e feitas. O Capitão aqui apareceram – do que tiro ser gente
lhes mandou pôr por baixo das cabeças bestial, de pouco saber e por isso tão
seus coxins; e o da cabeleira esforçava- esquiva. Porém e com tudo isso andam
se por não a quebrar. E lançaram-lhes muito bem curados e muito limpos. E
um manto por cima; e eles consentiram, naquilo me parece ainda mais que são
26 quedaram-se e dormiram”. (p.04)* como aves ou alimárias monteses, às
quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo
que às mansas, porque os corpos seus são
tão limpos, tão gordos e tão formosos, que
* O termo fanadas está usado no sentido não pode mais ser”. (p.08)*
de circuncidadas, isto é, que sofreu
circuncisão, costume judaico.

− Sentimento de religiosidade: − Concepção do aborígene como tábula


rasa, passivo à catequese:
“Acabada a missa, desvestiu-se o padre
e subiu a uma cadeira alta; e nós todos “E portanto, se os degredados, que aqui
lançados por essa areia. E pregou uma hão de ficar aprenderem bem a sua fala
solene e proveitosa pregação da história e os entenderem, não duvido que eles,
do Evangelho, ao fim da qual tratou da segundo a santa intenção de Vossa Alteza,
nossa vinda e do achamento desta terra, se hão de fazer cristãos e crer em nossa
conformando-se com o sinal da Cruz, sob santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que
cuja obediência viemos, o que foi muito a os traga, porque, certo, esta gente é boa
propósito e fez muita devoção..” (p.05)* e de boa simplicidade. E imprimir-se-á
ligeiramente neles qualquer cunho, que
lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor,
que lhes deu bons corpos e bons rostos,
− Fixação de detalhes pitorescos: como a bons homens, por aqui nos trouxe,
creio que não foi sem causa”. (p.12)*
“Trazia este velho o beiço tão furado, que
lhe caberia pelo furo um grande dedo
polegar, e metida nele uma pedra verde,
ruim, que cerrava por fora esse buraco. O − Senso do visual, armação de cenas de
Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo intensa plasticidade pictórica:
falava e ia com ela direito ao Capitão, para
lha meter na boca. Estivemos sobre isso “Enquanto andávamos nessa mata
rindo um pouco; e então enfadou-se o a cortar lenha, atravessavam alguns
Capitão e deixou-o“. (p.08)* papagaios por essas árvores, deles verdes
e outros pardos, grandes e pequenos, de
maneira que me parece que haverá muitos
PERO VAZ DE CAMINHA
nesta terra. Porém eu não veria mais que VI. O Vocábulo “Vergonha”
até nove ou dez. Outras aves então não
vimos, somente algumas pombas-seixas, “Também andavam, entre eles, quatro ou
e pareceram-me bastante maiores que as cinco mulheres moças, nuas como eles,
de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; que não pareciam mal. Entre elas andava
eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos uma com uma coxa, do joelho até o quadril,
são mui muitos e grandes, e de infindas e a nádega, toda tinta daquela tintura
maneiras, não duvido que por esse sertão preta; e o resto, tudo da sua própria cor.
haja muitas aves!” (p.10)* Outra trazia ambos os joelhos, com as
curvas assim tintas, e também os colos 27
dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com
tanta inocência descobertas, que nisso
− Exaltação da terra descoberta: não havia nenhuma vergonha”. (p.07)*

“Águas são muitas; infindas. E em tal


maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem − A palavra é explorada em sua
das águas que tem. Porém o melhor fruto, ambiguidade, significando pudor moral ou
que nela se pode fazer, me parece que fazendo referência à genitália.
será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela − A Carta de Pero Vaz de Caminha
deve lançar”. (p.14)* menciona, ao longo de suas linhas, dez
vezes a palavra “vergonha” ou alguma
derivação, como “desvergonha”.

− Subserviência ao rei e interesse − Das dez, seis se referem explicitamente


pessoal: aos órgãos sexuais masculino ou feminino.

“E pois que, Senhor é certo que assim − As índias se revelam especiais ao


neste cargo que levo como em outra primeiro olhar e foram as intensas
qualquer coisa que de vosso serviço for menções a elas na carta que levaram o
, Vossa Alteza há de ser por mim muito texto a ser censurado.
bem servida, a Ela peço que por me fazer
singular mercê mande vir da ilha de São − A atração carnal com que os lusos
Thomé Jorge Dosoiro, meu genro, o que viriam depois sucumbir às indígenas
dela receberei em muita mercê. durante os anos da colonização e a
discreta forma com que sua nudez é
Beijo as mãos de Vossa Alteza”. (p.14)* relatada por Caminha, enfatizando o
bordão “e suas vergonhas tão nuas e com
tanta inocência descobertas, que nisso
não havia nenhuma vergonha” (p.07)*, são
chave para compreender nossas origens.
PERO VAZ DE CAMINHA

− Desprezando-se as minorias étnicas O professor Reinaldo Martiniano Marques,


que aqui viviam à hegemonia lusa, em analisando esse trecho, observa:
passo substancial que relega ao Brasil a
condição de terra de utopia, para a qual “É uma cena carregada de denso
todos os sonhos foram sonhados, mas na simbolismo, premonitória, e que vale
qual, e na vida real, todos os pesadelos são como acabada alegoria da exploração e
vividos. espoliação, por parte do conquistador
europeu, de seu outro exterior”.
(MARQUES, 1992, p. 60)
28 VII. As Projeções da Carta

− A projeção da Carta de Pero Vaz de


Caminha expressa bem como o verbo − Vários poetas modernistas, dotados
é caminhante, peregrinando por várias de forte senso crítico, apropriaram-se da
veredas da História, da Literatura, da Carta para uma revisão de leitura e de país.
Antropologia e de várias fontes de cultura.
− Oswald de Andrade, no seu livro de
− O Hino Nacional espelha a grandeza poemas Pau-Brasil, publicado em 1924,
do entusiasmo do escrivão na terra dos no texto ‘As meninas da gare”, recorta a
papagaios. passagem da descrição das índias nuas
e desloca-as para o espaço da estação
− Toda uma literatura que se ufana desse ferroviária, descarrilando o sentido e
país elege, como paradigma, as palavras antecipando a questão da exploração
do amigo do rei que, à sua maneira, viu sexual, da prostituição da nativa pelo
aqui uma espécie de Pasárgada. colonizador.

− Algumas passagens da epístola “Eram três ou quatro moças bem moças e


tornaram-se emblemáticas, como a da bem gentis
procissão: Com os cabelos mui pretos pelas
espáduas
“Enquanto a ficaram fazendo, ele com E suas vergonhas tão altas e tão
todos nós outros fomos pela Cruz abaixo saradinhas
do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos Que de nós as muito olharmos
com esses religiosos e sacerdotes diante Não tínhamos nenhuma vergonha.”
cantando, em maneira de procissão.

Eram já aí alguns deles, obra de setenta


ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, Murilo Mendes, em História do Brasil, no
alguns se foram meter debaixo dela, para poema Carta de Pero Vaz, faz caricatura
nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da da fertilidade de nossa terra, descrita por
praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, Pero Vaz:
que será do rio obra de dois tiros de besta.
Andando-se ali nisto, vieram bem cento e “A terra é mui graciosa,
cinquenta ou mais”. (p.13-14)* Tão fértil eu nunca vi.
PERO VAZ DE CAMINHA
A gente vai passear, Se os índios não cobriam suas vergonhas,
No chão espeta um caniço, o verbo de Caminha sutilmente joga um
No dia seguinte nasce véu sobre a violência que se inicia, fazendo
Bengala de castão de oiro. do nativo o verdadeiro degredado.
Tem goiabas, melancias.
Banana que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muitos.
De plumagens mui vistosas. Referências
Tem macaco até demais.
Diamantes tem à vontade, * Todos os trechos foram retirados de: 29
Esmeralda é para os trouxas. MINISTÉRIO DA CULTURA. Fundação
Reforçai, Senhor, a arca. Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do
Cruzados não faltarão, Livro. A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA,
Vossa perna encanareis, disponível em <http://objdigital.bn.br/Acervo_
Salvo o devido respeito. Digital/livros_eletronicos/carta.pdf>
Ficarei muito saudoso
Se for embora d´aqui.” Biografia de Pero Vaz de Caminha . <https://
(MENDES, 1991, p. 13) www.ebiografia.com/pero_vaz_de_caminha/>

DIAS, Carlos Malheiro (Dir.) A semana de Vera


Cruz. In: História da colonização portuguesa do
VIII. Conclusão Brasil. Porto, Litografia Nacional, 1923. Vol 2.

− Para Caminha, o contato entre culturas KOTHE, Flávio R. O Cânone colonial. Brasília:
diferentes foi marcado por muito Editora Universidade de Brasília, 1997.
escambo, muita dança, muita festa e
amizade, aliás, muito mais da parte dos MACIEL, Luiz Carlos Junqueira e XAVIER,
homens da terra do que dos homens do Gilberto. Cadernos de Literatura Comentada
mar... – Intercampos. Ano I N º1. BH: Edições Horta
Grande Ltda.2005.
− O texto de Caminha, conforme aponta
Flávio Kothe, inaugura: MARQUES, Reinaldo Martiniano. A Carta de
Caminha in Extensão, Cadernos da Pró-reitoria
“(...) uma grande fantasia quanto à de Extensão da PUC-MG, volume 2, n.3. Junho
colonização lusitana: de que teria sido de 1992.
pacifica, como se cada um procurasse
no outro o paraíso: o europeu, no contato MASSAUD, Moisés. A literatura brasileira
com a natureza, em forma de locus através de textos. 29 ed. rev. e ampl. – São
amoenus, Eldorado ou harmonia primária; Paulo: Cultrix, 2012.
o indígena, no conforto da civilização e do
céu cristão”. (KOTHE, 1997, p. 249) MENDES, Murilo. História do Brasil.
Organização, introdução e notas de Luciana S.
Picchio. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
PERO VAZ DE CAMINHA

Carta de Pero Vaz de Caminha. <https://www.


todamateria.com.br/carta-de-pero-vaz-de-
caminha/>

OLIVEIRA, Paulo Giovani de. Carta do


achamento do Brasil / Pero Vaz de Caminha.
Análise de Paulo Giovani de Oliveira. 1.ed.-São
Paulo: Somos Sistema de Ensino, 2021.

30 RIBEIRO, Maria Aparecida. Pero Vaz de


Caminha, in Enciclopédia Verbo das Literaturas
de Língua Portuguesa. Lisboa: Verbo:1995.

SCHULLER, Donaldo. Na conquista do Brasil.


Cotia: Ateliê, 2001.
PERO VAZ DE CAMINHA
Exercícios a) o caráter sensual pelo qual os europeus
foram recebidos.

1. Leia o fragmento: b) o aproveitamento jocoso da


ambiguidade dos vocábulos.
“Neste dia, enquanto ali andaram,
dançaram e bailaram sempre com os c) o caráter imaginativo com que o
nossos, ao som dum tamborial dos nossos, escrivão registrava os eventos.
em maneira que são muito mais nossos
amigos que nós seus.” (Carta De Caminha) d) a antipatia do escrivão para com elas, 31
motivado pelo pudor moral.
O trecho demonstra que Pero Vaz de

EXERCÍCIOS
Caminha, em seu relato: e) a exposição dos pensamentos
luxuriosos dos portugueses, apresentados
a) mostra as ações calculadas dos sem culpa.
europeus com os índios.

b) registra a superioridade da música 3. Em carta ao rei D. Manuel, Pero Vaz de


europeia em relação à indígena. Caminha narrou os primeiros contatos
entre os indígenas e os portugueses no
c) exalta o caráter igualitário nas relações Brasil:
entre europeus e os nativos.
“Quando eles vieram, o capitão estava
d) demonstra como os índios incorporam com um colar de ouro muito grande
imediatamente a cultura europeia. ao pescoço. Um deles fitou o colar do
Capitão, e começou a fazer acenos com
e) apresenta os métodos de conversão a mão em direção à terra, e depois para
religiosa utilizados no contato com os o colar, como se quisesse dizer-nos que
nativos. havia ouro na terra. Outro viu umas contas
de rosário, brancas, e acenava para a terra
e novamente para as contas e para o colar
2. Leia o fragmento: do Capitão, como se dissesse que dariam
ouro por aquilo. Isto nós tomávamos
“Ali andavam entre eles três ou quatro nesse sentido, por assim o desejarmos!
moças bem moças e bem gentis, com Mas se ele queria dizer que levaria as
cabelos muito pretos, compridos pelas contas e o colar, isto nós não queríamos
espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão entender, porque não havíamos de dar-
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras, lhe!” (Adaptado de Leonardo Arroyo, A
que de as nós muito bem olharmos, não carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo:
tínhamos nenhuma vergonha.” Melhoramentos; Rio de Janeiro: INL, 1971,
p. 72-74.)
A maneira com que Pero Vaz de Caminha
descreve as moças indica:
PERO VAZ DE CAMINHA

Esse trecho da carta de Caminha nos a mim. Ou então como um grupo social
permite concluir que o contato entre as concreto ao qual nós não pertencemos.
culturas indígena e europeia foi: Este grupo, por sua vez, pode estar
contido numa sociedade: as mulheres,
a) favorecido pelo interesse que ambas para os homens; os ricos, para os pobres;
as partes demonstravam em realizar os loucos para os “normais”. Ou pode ser
transações comerciais: os indígenas se exterior a ela, uma outra sociedade que,
integrariam ao sistema de colonização, dependendo do caso, será próxima ou
abastecendo as feitorias, voltadas ao longínqua.” (Tzvetan Todorov, A Conquista
32 comércio do pau-brasil, e se miscigenando da América, p.3)
com os colonizadores.
Com base nesse trecho, redija um texto
EXERCÍCIOS

b) guiado pelo interesse dos explicando como se verifica, na Carta de


descobridores em explorar a nova terra, Caminha, a relação entre o Eu e o Outro.
principalmente por meio da extração de
riquezas, interesse que se colocava acima
da compreensão da cultura dos indígenas,
que seria quase dizimada junto com essa
população.

c) facilitado pela docilidade dos indígenas,


que se associaram aos descobridores
na exploração da nova terra, viabilizando
um sistema colonial cuja base era a
escravização dos povos nativos, o que
levaria à destruição da sua cultura.

d) marcado pela necessidade dos


colonizadores de obterem matéria-
prima para suas indústrias e ampliarem o
mercado consumidor para sua produção
industrial, o que levou à busca por colônias
e à integração cultural das populações
nativas.

4. Leia o trecho abaixo:

“Posso conceber os outros como uma


abstração, como uma instância de
configuração psíquica de todo indivíduo,
como o Outro, outro ou outrem em relação
OLAVO BILAC
Olavo Bilac
(1865-1918)
Tarde, 1919
33

I. O Autor II. O Movimento Literário

− Olavo Bilac (1865-1918) foi um poeta, − Parnaso é um monte localizado na


contista e jornalista brasileiro. Grécia central, onde, segundo a mitologia,
residiam o deus Apolo e as Musas,
− É o autor da letra do Hino à Bandeira. divindades inspiradoras das artes. Já no
nome da escola se revela, por conseguinte,
− Foi um dos principais representantes seu tributo à Antiguidade Clássica, que
do Movimento Parnasiano que valorizou influenciou os temas e a concepção de
o cuidado formal do poema, em busca de arte dos adeptos da escola literária.
palavras raras, rimas ricas e rigidez das
regras da composição poética. − “Arte pela Arte”: a arte voltada para si
mesma, sem intenções políticas, morais,
− É membro fundador da Academia didáticas ou de qualquer outro tipo,
Brasileira de Letras. princípio que sintetizava os objetivos do
movimento.
− Em 1888, Olavo Bilac publicou seu
primeiro livro, Poesias. Nele, o poeta “Situando-se na linha dos que recusavam
já demonstrava estar plenamente os padrões estéticos românticos, a poesia
identificado com as propostas do parnasiana dispunha-se a combater o
Parnasianismo, como na famosa Profissão sentimentalismo e o subjetivismo, com
de Fé, que enaltece a perfeição formal, vistas na restauração dos ideais clássicos
explicitando o ideal estético da arte de arte: a impassibilidade, o racionalismo,
parnasiana. a objetividade, o culto da Forma (a “Deusa
serena/ Serena forma”, “Deusa sublime”,
nas palavras de Olavo Bilac) como
um fim em si próprio, o esteticismo, o
universalismo”. (MASSAUD, 2012, p. 291)
OLAVO BILAC

Vejamos os poemas Língua Portuguesa e A visão de superioridade acerca da língua


A Um poeta, na sequência: tida pelo autor reflete no poema uma
postura excludente em relação às demais
“Última flor do Lácio, inculta e bela, línguas faladas no período colonial durante
É as, a um tempo, esplendor e sepultura: o processo de aculturação linguística.
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela... A língua portuguesa foi imposta por
Portugal à população do Brasil colônia, a
Amo-te assim, desconhecida e obscura, cultura dos índios e africanos foi em parte
34 Tuba de alto clangor, lira singela desfeita, a língua que eles falavam e que
Que tens o trom e o silvo da procela, carregava uma bagagem social e histórica
E o arrolo da saudade e da ternura! do meio e do momento em que viviam foi
desvalorizada.
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
“O preconceito linguístico se baseia na
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”, crença de que só existe [...] uma única
E em que Camões chorou, no exílio língua portuguesa digna deste nome e
[amargo que seria a língua ensinada nas escolas,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!” explicadas nas gramáticas e catalogada
(p.12)* nos dicionários. Qualquer manifestação
linguística que escape desse triângulo
escola-gramática-dicionário é
considerado sob a ótica do preconceito
O soneto de Bilac retrata o processo linguístico, “errada, feia, estropiada,
histórico de formação da Língua rudimentar, deficiente”, e não raro a gente
Portuguesa, a última língua neolatina ouvir que “isso não é português”. (BAGNO,
formada, que surgiu do latim vulgar na 2007, p. 40)
região italiana do Lácio, falado por pessoas
menos favorecidas economicamente,
como eram vistos os soldados e
camponeses. “Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Bilac defendia a ideia de que a língua Do claustro, na paciência e no sossego,
que se originava em detrimento do Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!
latim que caía em desuso era uma língua
rústica, grosseira, mas que através de Mas que na forma se disfarce o emprego
um processo de elaboração, lapidação, Do esforço; e a trama viva se construa
poderia ser moldada, enquadrada nas De tal modo, que a imagem fique nua,
normas estéticas que ele acreditava. Rica mas sóbria, como um templo grego.

* Ver referências.
OLAVO BILAC
Não se mostre na fábrica o suplício “A busca da perfeição pela correção
Do mestre. E, natural, o efeito agrade, gramatical, a volta aos clássicos e o
Sem lembrar os andaimes do edifício: rebuscamento marcam uma atitude de
tipo aristocrático e constituem um traço
Porque a Beleza, gêmea da Verdade, saliente da fase que vai dos anos de 1880
Arte pura, inimiga do artifício, até a altura de 1920, correspondendo a um
É a força e a graça na simplicidade”. (p.44- desejo generalizado de elegância ligado à
45)* modernização urbana do país, sobretudo
sua capital, Rio de Janeiro. Do ponto de
vista da literatura, foi uma barreira que 35
petrificou a expressão, criando um hiato
− Poema dos mais objetivos, sem a largo entre a língua falada e a língua
presença do sentimentalismo. escrita, além de favorecer o artificialismo
que satisfaz as elites, porque marca
− O autor faz uso da metalinguagem, distância em relação ao povo; e pode
o ponto mais forte desse escrito: é um satisfazer a este, parecendo admiti-
poema sobre o poema. lo em terreno reservado. Essa cultura
acadêmica, geralmente sancionada pelos
− Em uma linguagem mais simples, o Poderes, teve a utilidade de estimular,
texto nos apresenta os caminhos de como por reação, o surto transformador do
fazer um bom poema, ao estilo parnasiano. Modernismo, a partir de 1922” (CÂNDIDO,
1999, p. 61)

“O soneto funda-se no conceito paradoxal


da arte como artifício que deve parecer III. A Epígrafe
espontâneo. Essa é a dinâmica inerente
ao princípio retórico de que a beleza, “...La nostra vita è siccome uno arco
sendo o objeto da arte, não passa de montando e volgendo... Avemo dunque
efeito produzido por elocução eficiente. Che la gioventute nel quarantacinquesimo
No primeiro terceto, o poeta desnuda anno se compie: e siccome l’adolescenza è
o princípio, afirmando que a função do in venticinque anni Che procede montando
artista consiste em provocar efeitos allá gioventute: cosí il discendere, cioè
agradáveis, isto é, em produzir a sensação la senettute, è altrettanto tempo Che
de beleza, que só se realiza quando o sucede allá gioventute; e cosi si termina la
artifício é percebido como natural. Logo, o senettute nel settantesimo anno... Dov’è
esforço técnico da enunciação não pode da sapere che la nostra buona e diritta
deixar marcas no enunciado. Em outros natura ragionevolmente procede in noi,
termos, a elocução eficiente (“Arte pura”) siccome vedemo procedere la natura delle
seria aquela que arrebata o leitor do plano piante in quelle; e però altri costumi e altri
técnico para o domínio da natureza, em portamenti sono ragionevoli ad uma età
que beleza e verdade se relacionam em più Che ad altre; nelli quali l’anima nobiliata
harmoniosa hierarquia”. (TEIXEIRA, 2002) ordinariamente procede per uma semplice
via, usando li suoi
OLAVO BILAC

atti nelli loro tempi e etadi siccome a forma impõe a concisão, de modo que o
al’ultimo suo frutto sono ordinati.” soneto normalmente assuma tendência
descritiva ou argumentativa.
(Dante, Il Convito, trat. Quarto, cap. XXIV)
Pode-se dizer que a inclinação para a
argumentação predomina no livro, pois
nesse título o poeta se abre, embora
discretamente, para interesses mais
IV. A Obra metafísicos, que problematizam a
36 existência humana.
Publicado em 1910, Tarde mistura motivos
líricos e filosóficos, no qual é constante a
preocupação com a morte e o sentido
da vida. “Na trilha dos ideais parnasianos de
contenção emotiva por meio da técnica, e
Os poemas do livro reúnem-se sob um da descrição objetiva de cenas e objetos
título que logo anuncia o tom crepuscular em contraponto à expressão desenfreada
predominante nas composições. do eu lírico, o poeta desenvolve os temas
de sua predileção: o amor e a beleza física
Com redação concluída no ano da morte da mulher; a pátria e os grandiosos eventos
de Bilac, o livro confirma o domínio desse da história nacional; a exaltação do trabalho
parnasiano sobre o verso, e revela um e do progresso. E, na esteira do conjunto
sujeito às voltas com a “antevelhice”, da obra, então reunida em Poesias (1902)
nostálgico e mais reflexivo do que em sua há a impressão de uma emoção singela e
produção anterior. espontânea, mesmo que conformada aos
limites da forma poética fixa”.1
Trata-se de uma sequência de 99 sonetos
petrarquianos – todos os poemas
apresentam dois quartetos e dois
tercetos, somando 14 versos, decassílabos “A tarde da vida não aflige somente as
ou dodecassílabos (alexandrinos), e grandes almas, os espíritos superiores.
rigorosamente rimados. Esta inquietação do ocaso, esta incerteza
da hora dúbia, esta saudade e esta
A conclusão dos sonetos em verso final desesperação, acabrunham todos os
com tom elevado e de efeito é outra homens. A ânsia pela perfeição impossível,
constante. Embora se trate de recurso o descontentamento pelas decepções do
caro aos parnasianos de modo geral,
o emprego intenso da chave de ouro
constitui, para alguns críticos, sinal de 1 TARDE. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural
que em Tarde, Bilac já esgotava seus de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo:
procedimentos. Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/obra43829/
Essa configuração tem, é claro, tarde. Acesso em: 22 de julho de 2021. Verbete
consequências no sentido – por ser breve, da Enciclopédia.
OLAVO BILAC
trabalho, as desilusões do amor enganado., Observemos mais um poema na mesma
a tristeza que causa o espetáculo das linha temática:
inevitáveis injustiças do viver, a tortura
que suscitam as perguntas sem respostas “Não sei. Duvido e espero. Na ansiedade,
e os mistérios sem solução do mundo Vago, entre vagas sombras. Se não rezo,
físico e do mundo moral – todos estes Sonho; e invejo dos crentes a humildade
sentimentos, que sempre dominam o E o orgulho dos filósofos desprezo.
espírito durante a existência, agravam-se
exacerbam-se nesta hora dolorosa em que Com um Jó miserável da verdade
começa a velhice”. (JORGE, 1972, p. 234) E de receios farto como um Creso, 37
Adormeço a tristeza que me invade
E engano o coração cansado e leso...

“`Às vezes, uma dor me desespera... Talvez haja na morte o eterno olvido,
Nestas ânsias e dúvidas em que ando, Talvez seja ilusão na vida tudo...
Cismo e padeço, neste outono, quando Ou geme um deus em cada ser ferido...
Calculo o que perdi na primavera.
Não afirmo, não nego. É vão o estudo.
Versos e amores sufoquei calando, Quero clamar de horror, porque duvido:
Sem os gozar numa explosão sincera... Mas, porque espero, - espero, e fico mudo”
Ah! mais cem vidas! com que ardor quisera (Sperate, creperi!, p. 30)*
Mais viver, mais pensar e amar cantando!

Sinto o que esperdicei na juventude;


Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude, V. Temas e análises

Os beijos que não tive por tolice, 1. Amadurecimento e velhice


Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!” Em termos de percurso poético, o livro
(Remorso, p.48)* começa retratando os períodos de um dia:
manhã, dia, tarde e noite.

Como a poesia é polissêmica, leia-a


− Os momentos de prazer são efêmeros pensando na seguinte possibilidade: cada
como a florescência das flores. estrofe é um período do dia, mas também
pode ser um período da vida. Dessa forma,
− É necessário, portanto, que vivam em manhã seria a pré-adolescência; dia, seria
nossa memória, à semelhança de um eco a juventude; tarde, a maturidade e noite, a
que não se extingue, à maneira de um velhice.
perene raio de luar refletido na dimensão
infinita da eternidade. Observemos pela análise do poema Ciclo,
o segundo poema do livro:
OLAVO BILAC

“Manhã. Sangue em delírio, verde gomo, Não te amo! Nem a ti, canícula bravia,
Promessa ardente, berço e liminar: Que a ti mesma te estruis no fogo que
A árvore pulsa, no primeiro assomo [derramas!
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!
Amo-te, hora hesitante em que se preludia
Dia. A flor, - o noivado e o beijo, como O adágio vesperal, - tumba que te recamas
Em perfumes um tálamo e um altar: De luto e de esplendor, de crepes e
A árvore abre-se em riso, espera o pomo, [auriflamas,
E canta à voz dos pássaros... Amar! Moribunda que ris sobre a própria agonia!
38
Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo; Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta,
A árvore maternal levanta o fruto, [que, entre
A hóstia da ideia em perfeição... Pensar! Os primeiros clarões das estrelas, no
[ventre,
Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama Sob os véus do mistério e da sombra
Da árvore aflita pelo chão derrama [orvalhada,
As folhas, como lágrimas... Lembrar!”
(p.10)* Trazes a palpitar, como um fruto do
[outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada...”
Não é difícil perceber que esse poema (p.10)*
não está vinculado à estética ortodoxa
parnasiana do autor, pois ele já encerra
uma ideia de sentimento, de senhor, de
necessidade de extravasar o sentimento 2. Nacionalismo
romântico que o eu-lírico possui.
− A veia nacionalista do livro começa
No entanto, as rimas, a métrica regular, como o texto Pátria.
a palavra elegante, a sobriedade
aristocrática do texto parnasiano − O autor começa seu ufanismo de forma
permanece. inflamada, afirmando que “lateja” na
própria pátria.
Essa explicação valerá para todos os
textos dessa coletânea que se encaixem − Isso quer dizer que ele pulsa, vibra no
nessa vertente. espaço geográfico-simbólico Brasil.

Nessa mesma linha temática, podemos − O texto abusa do cheiro, do clima,


incluir o poema Dualismo (p.25-26), além afirmando que pode subir no país, como se
do texto de abertura do livro: Hino à Tarde: sobe em uma árvore:

“Glória jovem do sol no berço de ouro em “Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde
[chamas, Círculo! e sou perfume, e sombra, e sol, e
Alva! Natal da luz, primavera do dia, [orvalho!
OLAVO BILAC
E, em seiva, ao teu clamor a minha voz Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
[responde, Dos desertos, das matas e do oceano:
E subo do teu cerne ao céu de galho em Bárbara poracé, banzo africano,
[galho! E soluços de trova portuguesa.

Dos teus liquens, dos teus cipós, da tua És samba e jongo, xiba e fado, cujos
[fronde, Acordes são desejos e orfandades
Do ninho que gorjeia em teu doce De selvagens, cativos e marujos:
[agasalho,
Do fruto a amadurar que em teu seio se E em nostalgias e paixões consistes, 39
[esconde, Lasciva dor, beijo de três saudades,
De ti, - rebento em luz e em cânticos me Flor amorosa de três raças tristes”.
[espalho! (p.13-14)*

Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias


[felizes,
No alto, como uma flor, em ti, pompeio e O poeta demonstra, indiretamente, seu
[exulto! apreço pelo samba: mais quente e tropical
E eu, morto, - sendo tu cheia de cicatrizes, que os modelos corteses da Europa.

Tu golpeada e insultada, - eu tremerei Ele chega a se referir, agora diretamente,


[sepulto. à volúpia, à sensualidade misturada ao
E os meus ossos no chão, como as tuas swing africano e a cadência portuguesa.
[raízes,
Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o O próximo texto do livro é uma
[insulto!” (p.11)* homenagem a Padre Anchieta, fundador
da cidade de São Paulo e poeta de
expressão no Quinhentismo Brasileiro.

No final do século XIX, aconteceu um “Cavaleiro da mística aventura,


surto de brasilidade na arte como resposta Herói cristão! nas provações atrozes
ao processo de afrancesamento do país Sonhas, casando a tua voz às vozes
proposto pela Belle Époque Dos ventos e dos rios na espessura:

Na mesma linha temática, ainda temos Entrando as brenhas, teu amor procura
Língua Portuguesa, já analisado, e o Os índios, ora filhos, ora algozes,
poema Música Brasileira: Aves pela inocência, e onças ferozes
Pela bruteza, na floresta escura.
“Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa Semeador de esperanças e quimeras,
Em requebros e encantos de impureza, Bandeirante de “entradas” mais suaves,
Todo o feitiço do pecado humano. Nos espinhos a carne dilaceras:
OLAVO BILAC

E, porque as almas e os sertões desbraves, que os modernos acreditavam que os


Cantas: Orfeu humanizando as feras, estrangeiros foram mais nocivos que
São Francisco de Assis pregando às aves”. benéficos para o país. Observemos o
(p.13)* poema:

“Ainda viveis! Conheço-vos, felizes


Morubixabas de ambições astutas,
Ele é tratado como “Herói Cristão”, Que em desgraçadas e mesquinhas lutas
“semeador de esperanças e quimeras”, Desgovernais misérrimos países!
40 “Orfeu humanizado”, “São Francisco das
aves”. Já tendes paços em lugar de grutas...
Mas, apesar do tempo e dos vernizes,
Percebe-se que o poeta abre aqui, uma - Se os não trazeis por beiços e narizes,
homenagem às personalidades que Os botoques guardais nas almas brutas.
fizeram parte da história do país.
Pobres de ideias, ávidos de foros,
Rudes pastores de servil rebanho,
Espirrais arrogância pelos poros...
“A duplicidade de matrizes até agora
responsáveis pela construção da Sois sempre os mesmos Curinqueãs de
identidade das personagens do poema [antanho:
- Anchieta e os índios- cristaliza-se, Vastos e estéreis, ocos e sonoros,
reservando-se a matriz da cultura e da Unicamente grandes no tamanho!” (Os
humanidade para José de Anchieta e a da curinqueãns, p.17)*
natureza e da animalidade para os índios.
O jogo dialético recomeça, entretanto,
a partir do movimento no qual tanto a
humanidade de Anchieta volta a escorar- “No interior do volume Tarde, o soneto
se num duplo padrão, simultaneamente dedicado a Anchieta dialoga de forma
cristão e pagão ( São Francisco e Orfeu ) , particular com um outro subconjunto de
quanto a animalidade do indígena volta a poemas: os poemas que, englobados pelo
cindir-se nas metáforas feras e aves que subtítulo Diziam que... e, respectivamente,
já figuravam na segunda estrofe, com nomeados Os monstros, Os Goiasis, Os
valores contraditórios”.2 Matuius, Os Curinqueãs e As Amazonas
ocupam-se de elementos da cultura
indígena postos em circulação pelo Padre
Simão de Vasconcelos, de quem Bilac
IMPORTANTE: Esse quesito é um toma a epígrafe para versos que não
distanciador entre a ideologia do passam de pesado exercício filosofante
Modernismo e Parnasianismo, uma vez sobre a natureza humana.
O recurso ao indianismo não é, porém,
frequente nesta publicação póstuma, mas
2 In: http://www.jornaldepoesia.jor.br/ também não é inovação dela. Em obras
mlajolo1.html. Bilac lê Anchieta. Marisa Lajolo. anteriores, figuras indígenas povoam
OLAVO BILAC
poemas de Bilac, que os celebra ora − O homem que habita esse paraíso não
diretamente como em A morte do Tapir é um bom selvagem rousseauniano, mas
ora indiretamente como nos versos A um inconstante, um ansioso, um pobre em
Gonçalves Dias evocado como cantor das qualquer situação.
grandes tribos ( cf. Panóplias ).
É, pois, no contexto de uma presença, − Série constituída pelos sonetos em que
simultaneamente estereotipada e se personificam formas da natureza.
ambígua do indígena na obra bilaquiana,
que se pode ler o poema dedicado a José − Vejamos um poema sobre a natureza
de Anchieta na medida em que nele o brasileira, A Montanha: 41
indígena é contraparte fundamental da
cena protagonizada pelo vulto jesuítico de “Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
José de Anchieta”.3 De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:

3. A Paisagem. Rezas sobre os desertos e as areias,


Sobre as florestas e a amplidão marinha;
“Após esse relato antropológico, há E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
o geográfico: vales, montanhas, rios, Mudas servas aos pés de uma rainha.
estrelas, nuvens, árvores, ondas, pôr-do-
sol, cada um desses elementos também Ardes, num holocausto de ternura...
recebe um soneto para si. É como se o E abres, piedosa, a solidão bravia
autor começasse pelo princípio: sua obra Para as águias e as nuvens, a colhê-las;
é uma espécie “bíblia” em que todas as
partes desse novo mundo recebem um E invades, como um sonho, a imensa
versículo elogioso, amável, cuidadoso altura,
e querido. No entanto, quando o artista - Última a receber o adeus do dia,
chega na grande criação, o homem, Primeira a ter a bênção das estrelas!”
percebe um dualismo”.4 (p.19)*

− É curioso como Bilac vê a humanidade Outros poemas com a mesma linha


forma pendular: oscila de um polo a outro temática: O Vale, Os rios, As estrelas, As
sem nunca estar contente em um ponto nuvens, As árvores, As ondas.
de equilíbrio.
4. Cultura Greco-latina e Grandes
Mestres da Arte

A análise dos títulos supõe um eu-lírico


3 Idem. possuidor de extrema erudição: ele cita
4 In: https://literaturaprofessorgustavoborges. história e mitologia do Egito, da Grécia e
blogspot.com/2021/03/tarde-olavo-bilac.html do Renascimento.
OLAVO BILAC

“Filhas verdes do mar, e ó nuvens, num E rala, na saudade que o consome,


[incenso, O pobre peito contra a pedra dura.
Beijai-me! e bendizei o meu sangue e o
[meu pranto! O seu gênio ilumina a abjeta lura...
Quando sucumbo e sou vencido, - exulto e Mas a vida das carnes se lhe some:
[venço: Míngua de pão, e, outra mais negra fome,
A minha queda é glória e o meu rugido é Indigência de beijos e ventura.
[canto!
Do próprio fel, dos íntimos venenos,
42 Sob os grilhões, espero; escravizado, Faz a glória da pátria e a luz da raça;
[penso; E chora, na ignomínia. Mas, ao menos,
E, morto, viverei! Domando a carne e o
[espanto, Possui, na mesquinhez da terra crassa
Invadindo de estrela a estrela o Olimpo E na vergonha de homens tão pequenos,
[imenso, O orgulho de ser grande na desgraça”. (No
Roubei-lhe na escalada o fogo sacrossanto! tronco de Goa, p.36)*

Forjando o ferro, arando o chão,


[prendendo o raio,
Dei aos homens o ideal que anima, e o pão 5. Descritivismo: arte fotográfica.
[que nutre...
Debalde o ódio, e o castigo, e as garras me “O ouro fulvo do ocaso as velhas casas
[consomem: [cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que
Quando sofro, maior, mais alto, quando caio, [ambição
Sou, entre a terra e o céu, entre o Cáucaso Na torturada entranha abriu da terra nobre:
[e o abutre, E cada cicatriz brilha como um brasão.
- Sobre o martírio, o orgulho, e, sobre os
[deuses, o Homem!” (Prometeu, p.32)* O ângelus plange ao longe em doloroso
[dobre,
O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e
− Outros poemas: O Crepúsculo dos [pobre,
deuses, Hércules, Édipo I, A Esfinge, O crepúsculo cai como uma extrema-
Jocasta, Antígona, A morte de Orfeu, [unção.
Gioconda.
Agora, para além do cerro, o céu parece
− Mestres da Arte: Dante no Paraíso, Feito de um ouro ancião que o tempo
Beethoven Surdo, Milton Cego, Miguel [enegreceu...
Ângelo Velho. A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

“Camões sofre, na infância da clausura, Como uma procissão espectral que se


Paria sem honra, náufrago sem nome; [move...
OLAVO BILAC
Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu... “Mas sempre sofrerás neste vale
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos medonho...
[astros chove”. (Vila Rica, p. 45)* Que importa? Redentor e mártir voluntário,
Para a tua miséria um reino imaginário
Invento, glória e paz num futuro risonho.

− O autor faz referência ao período em Para te consolar, no opróbrio do Calvário,


que a extração e exportação do ouro era Hóstia e vítima, a carne, o sangue e a alma
a base da dinâmica econômica do Brasil [deponho:
colônia. Vila Rica é o antigo nome da Nasce da minha morte a vida do teu sonho, 43
cidade de Ouro Preto (Minas Gerais), que E todo o choro humano embebe o meu
foi um dos mais importantes locais de [sudário.
mineração no período.
Só liberta a renúncia. Ó triste! a sombra
− O eu lírico descreve a cidade de Ouro [imensa
Preto em seu ocaso, isto é, no pôr do sol. Dos braços desta cruz espalha sobre o
Assim, ele menciona o ouro, que é a luz [mundo
do sol, mas também é o ouro extraído das A utopia celeste, orvalho ao teu suplício.
minas.
Sou a misericórdia ilusória da crença:
− Além disso, ao aludir ao “último ouro do Sobre a força, a fraqueza: e, sobre o amor
sol” do dia, ele está se referindo, também, [fecundo,
à ausência de ouro no contexto atual A piedade sem glória e o inútil sacrifício!”
do lugar. Contudo, no céu, há ouro, que, (p.32-33)*
porém, o tempo enegreceu.

− Por fim, os astros, igualmente, são


relacionados ao ouro, devido a seu brilho Outros poemas: Madalena, A rainha de
sobre a cidade de Ouro Preto. Sabá, Natal, Maternidade, O oitavo pecado,
Ruth, Abisag, Prece.
− Com certo caráter nacionalista, o eu-
lírico apresenta o declínio do Ciclo do Ouro 7. O Amor e a mulher.
com tom melancólico e de lamentação.
No que diz respeito ao tema amoroso,
6. Temas e Personagens bíblicos. ao lado de sonetos que cantam o
sentimento em termos genéricos, como
− Série de poemas que transitam pela Oração a Cibele, há outros como Salutaris
religiosidade cristã através de passagens Porta, que reflete sobre uma frustrada
e personagens famosas da Bíblia. experiência do passado.

− Destaque para o poema Jesus, que Tematicamente, encontraremos poemas


forma uma das trilogias do livro com que cantam o erótico, o divino, a saudade,
Hércules e Prometeu. a solidão, etc.
OLAVO BILAC

“No Parnasianismo, a mulher emerge que nos lembra o caráter paradoxal do


como um elemento distante ao poeta, Romantismo.
possuindo atributos tão perfeitos que
chega a ser mineralizada no poema, O envolvimento chega mesmo a ser
isto é, comumente ela será vista como comparado com uma subida aos céus
estátua – objeto no qual converge o e posterior descida aos infernos.
trabalho artístico da beleza, supremo Confessando que a amada morreu e
ideal parnasiano. A mulher para este deixou uma saudade infinita, o sujeito
estilo literário será moldada, esculpida e poético declara que continua querendo
44 petrificada pelo poeta, este admirador de estar com ela e sofre por isso, a ponto de
sua beleza”. (NETO, s/d) desejar ter morrido também.

“Foste o beijo melhor da minha vida, “Há no amor um momento de grandeza,


ou talvez o pior... Glória e tormento, Que é de inconsciência e de êxtase
contigo à luz subi do firmamento, bendito:
contigo fui pela infernal descida! Os dois corpos são toda a Natureza,
As duas almas são todo o Infinito.
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o É um mistério de força e de surpresa!
[pensamento, Estala o coração da terra, aflito;
e do teu gosto amargo me alimento, Rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,
e rolo-te na boca malferida. E de todos os astros rompe um grito.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo, Deus transmite o seu hálito aos amantes:
batismo e extrema-unção, naquele instante Cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
por que, feliz, eu não morri contigo? E a Gênese fulgura em cada abraço;

Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto, Porque, entre as duas bocas soluçantes,


beijo divino! e anseio delirante, Rola todo o Universo, em harmonias
na perpétua saudade de um minuto...” (Um E em glorificações, enchendo o espaço!”
beijo, p. 51)* (Criação, p.52)*

No soneto, o sujeito poético fala de Neste texto, desaparece o tom de


uma paixão inesquecível que parece sensualidade e de erotismo. O encontro
ter marcado irremediavelmente o seu entre a mulher e o homem e a relação
percurso. Os sentimentos que nutre por física entre eles têm outra conotação. É o
aquela pessoa são tão fortes que o beijo momento da fecundação, do êxtase divino,
que trocaram foi, ao mesmo tempo, o da “sanção dos Sete Dias”, portanto, a
melhor e o pior da sua vida, numa atitude Gênese de uma vida. O corpo e a alma
de cada um são a Natureza e o Infinito
OLAVO BILAC
e os astros festejam porque Deus dá ao “Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o
homem o seu poder de criação. [rosto
Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.
Mata-me! Abençoarei teu coração,
[composto,
“Por que chorar? Exulta, satisfeita! Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!
És, quando a mocidade te abandona,
Mais que bela mulher, mulher perfeita, Tu, que me dás amor e dor, gosto e
Do completo fulgor senhora e dona. [desgosto,
Glória e vergonha, tu, que me afagas e 45
As derradeiras messes aproveita, [feres,
E goza! A antevelhice é uma Pomona, Aniquila-me! E doura e embala o meu sol
Que, se esmerando na final colheita [posto,
Dos frutos áureos, a paixão sazona. Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!

Ama! e frui o delírio, a febre, o ciúme, Que eu morra assim feliz, tudo de ti
E todo o amor! E morre como um dia [querendo:
Em fogo, como um dia que resume Mal e bem, desespero e ideal, veneno e
[pomo,
Toda a vida, em anseios, em poesia, Pecados e perdões, beijos puros e impuros!
Em glória, em luz, em música, em perfume,
Em beijos, numa esplêndida agonia!” E os astros sobre mim caiam de ti,
(Messidoro, p.50)* [chovendo,
Como os teus crimes, como as tuas
[bênçãos, como
A doçura e o travor de teus cachos
Poema que exalta e valoriza os amores e maduros!” (Oração à Cibele, p. 66)*
alegrias da mocidade.

“Pode-se perceber, (...), os recursos


poéticos utilizados por Olavo Bilac para Cibele, deusa romana, é divindade trazida
compor as mulheres fatais. Utilizando da Frígia para Roma é denominada como
mitologias de diversas culturas (grega, Grande Mãe, identificada com a natureza
romana, egípcia, judaico- cristã) o poeta como um todo e classificada como deusa
faz emergir a imagem de divindades de da fecundidade.
outrora ligadas, geralmente, ao mistério, à
ruína e à destruição. Na primeira estrofe, o eu-lírico deixa
Fazendo um paralelo entre mitologia entrever sua condição de prostração
e literatura, Bilac compõe femmes frente a esta mulher forte e dominadora.
fatales envolventes, devoradoras e Seu único desejo é morrer por estas
enigmáticas: figuras que, por sua postura “mãos ferozes”, em uma atitude passiva
imponente e dominante, fazem do de entrega.
homem um ser pequeno e passivo à sua
vontade”. (NETO, s/d)
OLAVO BILAC

Na segunda estrofe, ressalta o paradoxo “Os melhores poemas de Olavo Bilac” –


que envolve a deusa, revestida com Análise da obra de Olavo Bilac. <https://
atributos de encanto, mas também de guiadoestudante.abril.com.br/estudo/os-
devassidão (traço peculiar às femmes melhores-poemas-de-olavo-bilac-analise-da-
fatales) e a perplexidade do eu lírico. obra-de-olavo-bilac/>

Cibele é identificada no poema como TARDE. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte
divindade destruidora que, através de seu e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural,
dualismo, seduz e encanta seu observador 2021. Disponível em: http://enciclopedia.
46 ao mesmo tempo em que o maltrata. itaucultural.org.br/obra43829/tarde.
Acesso em: 22 de julho de 2021. Verbete da
Enciclopédia.

Referências Tarde, Olavo Bilac. <https://


literaturaprofessorgustavoborges.blogspot.
*Todos os trechos foram retirados de: BILAC, com/2021/03/tarde-olavo-bilac.html>
Olavo. Tarde. Campinas, SP: Pontes Editora,
2020. TEIXEIRA, Ivan. Artifício, persuasão e sociedade
em Olavo Bilac. REVISTA USP, São Paulo, n.54,
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico – o p. 98-111, junho/agosto 2002.
que é, como se faz. 49ª Ed. São Paulo: Loyola,
2007.

CÂNDIDO, Antônio. Iniciação à literatura


brasileira: resumo para principiantes/ Antônio
Candido. – 3. ed.– São Paulo :Humanitas/
FFLCH/USP, 1999.

JORGE, Fernando. Vida e Poesia de Olavo Bilac.


2ª. Edição, revista e ampliada. São Paulo: Editora
Mundo Musical Ltda. 1972.

MASSAUD, Moisés. A Literatura Brasileira


através de textos. 29.ed.rev e ampl. – São Paulo:
Cultrix, 2012.

NETO, Armando Rabelo Soares. A FEMME


FATALE EM “TARDE”, DE OLAVO BILAC.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1. UERJ

Olavo Bilac. <https://www.ebiografia.com/


olavo_bilac/>
OLAVO BILAC
Exercícios d) Na busca de sugerir sensações,
uma das principais características do
parnasianismo, o poeta aproxima a poesia
1. A UM POETA da música.

“Longe do estéril turbilhão da rua,


Beneditino, escreve! No aconchego 2. “O ouro fulvo do ocaso as velhas casas
Do claustro, no silêncio e no sossego, cobre;
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que 47
Mas que na forma se disfarce o emprego [a ambição
Do esforço; e a trama viva se construa Na torturada entranha abriu da terra

EXERCÍCIOS
De tal modo, que a imagem fique nua, [nobre;
Rica, mas sóbria, como um templo grego. E cada cicatriz brilha como um brasão.

Não se mostre na fábrica o suplício O ângelo plange ao longe em doloroso


Do mestre. E, natural, o efeito agrade, [dobre.
Sem lembrar os andaimes do edifício: O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e
Porque a Beleza, gêmea da Verdade, [pobre,
Arte pura, inimiga do artifício, O crepúsculo cai como uma extrema-
É a força e a graça na simplicidade”. [unção”.

Sobre o poema de Olavo Bilac, é correto Podemos reconhecer nas estrofes acima
afirmar apenas: do poema Vila Rica, de Olavo Bilac, as
seguintes características do estilo de
a) É um soneto metalinguístico, pois nele época que marcou sua poesia:
o poeta trata do próprio ato de escrever
poemas. Há uma preocupação excessiva a) Interesse pela descrição pormenorizada
com a forma e, para alcançar a perfeição, da paisagem, numa linguagem que procura
o poeta trabalha, e teima, e lima, e sofre, e impressionar os sentidos.
sua, conforme o último verso do primeiro
quarteto do soneto. b) Uso do vocabulário próprio para
acentuar o mistério, a realidade oculta das
b) Há um manejo especial de ritmos da coisas, que deve ser sugerida por meio de
linguagem com estranha combinação de símbolos.
rimas e recursos sonoros, como aliteração
e assonância. c) Valorização do passado histórico, em
busca da definição da nacionalidade
c) O irracionalismo dos versos parnasianos brasileira.
facilita a compreensão e interpretação do
poema, escrito em tom denotativo. d) Utilização exagerada de hipérboles,
perífrases e antíteses, no desejo de não
OLAVO BILAC

nomear diretamente as coisas, mas de discurso poético de Olavo Bilac ecoa esse
fazer alusão a elas. projeto, na medida em que:

e) Busca de imagens naturais e a) a paisagem natural ganha contornos


vocabulário simples, predileção pelo verso surreais, como o projeto brasileiro de
branco e negação de inversões sintáticas. grandeza.

b) a prosperidade individual, como a


3. Texto para a questão: A pátria exuberância da terra, independe de
48 políticas de governo.
“Ama, com fé e orgulho, a terra em que
[nasceste! c) os valores afetivos atribuídos à família
EXERCÍCIOS

Criança! não verás nenhum país como este! devem ser aplicados também aos ícones
Olha que céu! que mar! que rios! que nacionais.
[floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, d) a capacidade produtiva da terra garante
É um seio de mãe a transbordar carinhos. ao país a riqueza que se verifica naquele
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos momento.
[ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos e) a valorização do trabalhador passa a
[inquietos! integrar o conceito de bem-estar social
Vê que luz, que calor, que multidão de experimentado.
[insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde
[impera, 4. Texto para a questão.
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha “Não se mostre na fábrica o suplício
O pão que mata a fome, o teto que Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
[agasalha... Sem lembrar os andaimes do edifício:
Quem como seu suor a fecunda e
[umedece, Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e Arte pura, inimiga do artifício,
[enriquece! E a força e a graça na simplicidade”.

Criança! Não verás país nenhum como este: Os versos denunciam


Imita na grandeza a terra em que
[nasceste!” a) vocabulário simples e pouca
preocupação com as qualidades técnicas
BILAC, O. Poesias infantis. Rio de Janeiro: do poema, já que as sugestões sonoras
Francisco Alves, 1929. não estão neles presentes.

Publicado em 1904, o poema A pátria b) emoção expressa racionalmente,


harmoniza-se com um projeto ideológico embora seja bastante evidente o caráter
em construção na Primeira República. O subjetivo na construção das imagens.
OLAVO BILAC
c) na busca da perfeição na expressão,
visando ao universalismo, como
exemplificam os termos Beleza e Verdade,
grafados com maiúsculas.

d) o afastamento da realidade social,


decorrente de uma visão idealizada do
mundo, descrito por metáforas pouco
objetivas.
49
e) a forma de expressão pouco idealizada,
resultante de uma concepção de mundo

EXERCÍCIOS
marcada pela complexidade que, nos
versos, se manifesta em vocabulário
seleto.
MACHADO DE ASSIS

Machado de Assis
(1839-1908)
Bons dias!, 1888-1889
50

I. O Autor diversas vem implicando num intenso


processo de “imersão densa” em sua
− Na obra em questão, o autor não literatura, numa articulação dinâmica e
visa nunca oferecer respostas, mas criativa com o seu tempo”. (GOMES, 2019)
questionamentos e problematizações em
relação a determinados fatos e eventos
que lhes são contemporâneos.
II. A Crônica
− Ironia refinada.
− A crônica é um gênero textual
− Metalinguagem e Intertextualidade. caracterizado por textos curtos, de
linguagem simples e que retrata os
− Denúncia e crítica social. aspectos da vida cotidiana, geralmente
com toques de humor ou ironia.
− Digressão, dissimulação e sutileza.
− As crônicas são um gênero textual que
está entre o estilo jornalístico e o literário
e que tem como ponto de partida os
“Dessa forma, se por um lado, durante acontecimentos daquele tempo e lugar.
muito tempo, a sugestão de um pretenso
absenteísmo machadiano atuou como − O cronista busca inspiração para os
eixo norteador de várias críticas e seus textos nos acontecimentos recentes
interpretações sobre sua vida e obra; ou em situações banais do cotidiano.
por outro, essa imagem é cada vez mais
difícil de se sustentar. A complexificação − A linguagem da crônica é
das análises da obra de Machado, a despretensiosa e leve, ela não busca
utilização de novos instrumentos teórico- convencer o leitor de algum ponto de
metodológicos e o cruzamento de fontes vista, mas entretê-lo. Também é comum
MACHADO DE ASSIS
que as crônicas provoquem uma reflexão, “1885
mas de forma sutil.
Agosto: o imperador pede ao barão de
Cotejipe, antiabolicionista conservador,
para formar um governo.
“Para atrair esse leitor, recém-formado,
Machado demonstra preocupar-se com a 28 de setembro: é aprovada a Lei dos
prática retórica da elocução, que procura Sexagenários, também chamada de Lei
adaptar o estilo do discurso ao tema e Saraiva-Cotejipe.
ao auditório. Para isso, além dos efeitos 51
criados, como o estranhamento, a retórica 1886
recomenda o uso de estilo simples
quando se tem que agradar, a fim de atrair 15 de janeiro: eleições sob o regime de
a atenção do público. Associaremos o Cotejipe, que produzem uma Câmara
estilo simples ao tipo de linguagem usada ainda mais antirreformista que a anterior.
por Machado. Podemos afirmar que
em suas crônicas, como aliás se tornou 12 de junho: Antônio Prado, ministro da
característica do gênero, Machado utiliza Agricultura no governo Cotejipe, promulga
uma linguagem coloquial, marcada pela o “Regulamento Negro”, que interpreta
oralidade, por conversas com o leitor e a Lei dos Sexagenários num sentido
pela presença de muitos diálogos. retrógrado: provoca muitas manifestações
Um texto cujo discurso se aproxima abolicionistas, sobretudo no Rio de
da língua falada, do habitual. O objetivo Janeiro.
era incentivar a leitura em uma época
que apresentava quase toda população 04 de outubro: abolição do uso do chicote
analfabeta ou semianalfabeta”. em estabelecimentos públicos.
(PINHEIRO, 2012)
07 de outubro: abolição da escravidão em
Cuba.

III. Cronologia Novembro-dezembro: distúrbios em


Santos entre policias, enviados para
A cronologia abaixo servirá como capturar escravos refugiados na cidade, e
referência histórica para a melhor abolicionistas.
compreensão das crônicas que compõem
o livro. 1887

Homens públicos que compunham o De maio em diante: muitas fugas


poder, mudanças e promulgações de leis em massa das fazendas paulistas,
e eventos políticos, ocorridos entre os e consequente cessão de liberdade
anos de 1885 e 1889, que deram origem a provisória (em troca de serviços) por
muitos textos. muitos fazendeiros.
MACHADO DE ASSIS

30 de junho: o imperador parte para 18 de março: o governo de Cotejipe é


a Europa, na sua terceira viagem ao destituído.
estrangeiro.
20 de março: a regente, princesa Isabel,
13 de setembro: Antônio Prado, escolhe João Alfredo Correia de Oliveira,
importante fazendeiro e político paulista, aliado de Antônio Prado, para formar um
até então antiabolicionista, apoia a governo.
abolição e opõe-se ao governo de
Cotejipe. 24 de março: discurso de Ferreira Viana
52 no Clube Beethoven, anunciando que a
25 de outubro: petição do marechal escravidão seria abolida sem indenização.
Deodoro da Fonseca, presidente do Clube
Militar, para que o exército seja poupado 11 de abril: anuncia-se um empréstimo de
do dever de caçar escravos fugidos. 6 milhões de libras, destinado a cobrir as
despesas decorrentes da abolição.

Outubro-novembro: distúrbios em 03 de maio: solene abertura das Câmaras


Campos (província do Rio de Janeiro), da nova sessão legislativa.
com greves, fugas em massa e repressão
violenta do movimento abolicionista. 07 de maio: João Alfredo anuncia no
Senado a decisão do governo de abolir
Novembro-dezembro: as fugas em massa a escravidão imediatamente e sem
continuam nas fazendas paulistas. condições.

15 de dezembro: realização de congresso 13 de maio: a Lei Áurea, que abole a


de fazendeiros em São Paulo para discutir escravidão.
uma abolição imediata ou provisória da
escravidão. 17 de maio: missa solene em ação de
graças, na presença da regente.
1888
23 de maio: o imperador está em Milão, em
Janeiro-fevereiro: fogem muitos escravos estado de saúde desesperador.
em Minas, e vão para Ouro Preto, então
capital da província. 19 de junho: Cotejipe propõe uma lei para
autorizar uma emissão de apólices de
25 de fevereiro; no aniversário de Antônio 200.000 contos para indenizar os ex-
Prado, a cidade de São Paulo é declarada donos de escravos. O assunto é muito
livre de escravos. discutido na imprensa.

17 de março: muitos fazendeiros libertam 21 de agosto: o imperador volta para o Rio


seus escravos em São Fidelis, na região do de Janeiro, onde é recebido com bastante
rio Paraíba do Sul. entusiasmo.
MACHADO DE ASSIS
06 de setembro: o incidente Manso: o 15 de novembro: golpe - fim da Monarquia
deputado republicano Antônio Monteiro e fundação da República.”1
Manso recusa-se a prestar juramento à
Coroa.

28 de setembro: a princesa Isabel recebe a


Rosa de Ouro, ofertada pelo papa Leão XIII. IV. O Livro

1889 − Composto por uma série de crônicas,


publicadas na Gazeta de Notícias, iniciada 53
13 de fevereiro: morte do barão de em 05 de abril de 1888 e durou até 29 de
Cotejipe. agosto de 1889, totalizando 49 textos.

30 de abril: renúncia de Antônio Prado, − Importante ressaltar que o principal


ministro das Relações Exteriores e objetivo do periódico era, explicitamente,
ministro da Agricultura no governo de a luta pela abolição da escravatura e pela
João Alfredo. instauração do modelo republicano.

23 de maio: fim do ministério João Alfredo, − Dessa forma, é razoável pressupor que o
impossibilitado de governar em razão das público para o qual Machado se dirigia não
divisões no partido conservador. Seguem só esperava opiniões críticas à instituição
várias tentativas de compor um governo escravidão, como também via na
conservador, que falham, e terminam República uma saída óbvia para os dilemas
com a chamada do Partido Liberal, com o do país. Ter em mente que Machado se
visconde de Ouro Preto como presidente dirige, em grande medida, a Abolicionistas
do Conselho: para mais detalhes ver e Republicanos é vital para compreender
crónica 43, nota 6. como ele organiza sua série de forma a
provocar os leitores.
07 de junho: o visconde de Ouro Preto
assume a presidência do Conselho. − Todas começavam com a saudação
“Bons dias!” e acabavam na despedida
11 de junho: Ouro Preto apresenta o seu com “Boas noites!”, funcionando como
programa, com muitas propostas liberais, assinatura-pseudônimo.
mas sem adotar um sistema federal.
“É impossível exagerar a importância
17 de junho: dissolve-se a Câmara dos desse verdadeiro anonimato para a
Deputados e convocam-se novas eleições; série; não se trata apenas de um novo
a nova Câmara devia reunir-se em 20 de pseudônimo, como parecia acreditar
novembro.

11 de novembro: vários políticos e militares 1 In: Assis, Machado. Bons dias!/Machado de


se reúnem com o marechal Deodoro Assis; Introdução e notas: John Gledson. 3ªed.-
e o convencem a liderar o movimento Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008. p.
republicano. 63-65.
MACHADO DE ASSIS

Magalhães Júnior. Parece claro que claramente o que é que vai fazer; o melhor
Machado ia dizer algumas coisas duras, é fazer calado. Nisto pareço-me com o
mesmo sob a capa da ironia, e queria princípe (sempre é bom parecer-se a
poder dizer essas coisas com uma gente com príncipes, em alguma coisa, dá
margem extra de liberdade, sem sofrer certa dignidade, e faz lembrar um sujeito
consequências mais imediatas. Parece muito alto e louro parecidíssimo com o
que o disfarce funcionou à perfeição: imperador, que há cerca de trinta anos ia
como vimos, só nos anos 1950 é que a todas as festas da Capela Imperial, pour
se soube que essas crônicas eram de étonner de bourgeois; os fiéis levavam a
54 Machado”.2 olhar para um e para outro, e a compará-
los, admirados, e ele teso, grave, movendo
a cabeça à maneira de Sua Majestade. São
gostos de Bismark. O príncipe de Bismark
V. O Cronista tem feito tudo sem programa público; a
única orelha que o ouviu, foi a do finado
imperador, — e talvez só a direita, com
ordem de o não repetir à esquerda. O
“05 de abril de 1888 parlamento e o país viram só o resto.

BONS DIAS! Deus fez programa, é verdade (“E


Deus disse: Façamos o homem, à nossa
“Hão de reconhecer que sou bem imagem e semelhança, para que presida”
criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, etc. Gênesis, I, 26): mas é preciso ler
e ir logo dizendo o que me parecesse; esse programa com muita cautela.
depois ia-me embora, para voltar na outra Rigorosamente, era um modo de persuadir
semana. Mas, não senhor; chego à porta, e ao homem a alta linhagem de seu nariz.
o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons Sem aquele texto, nunca o homem
dias. Agora, se o leitor não me disser a atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha,
mesma coisa, em resposta, é porque é um nem a sua fraude. É certo que a fraude,
grande malcriado, um grosseirão de borla e, a rigor. a gaforinha são obras do diabo,
e capelo; ficando, todavia, entendido que segundo as melhores interpretações;
há leitor e leitor, e que eu, explicando-me mas não é menos certo que essa opinião
com tão nobre franqueza, não me refiro ao é só dos homens bons; os maus creem-
leitor, que está agora com este papel na se filhos do céu — tudo por causa do
mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! versículo da Escritura.

Feito esse cumprimento, que não Portanto, bico calado. No mais é o


é do estilo, mas é honesto declaro que que se está vendo; cá virei uma vez por
não apresento programa. Depois de um semana com o meu chapéu na mão, e os
recente discurso proferido no Beethoven, bons dias na boca. Se lhes disser desde
acho perigoso que uma pessoa diga já, que não tenho papas na língua, não me
tomem por homem despachado, que vem
dizer coisas amargas aos outros. Não,
2 Idem, p. 20-21. senhor, não tenho papas na língua, e é
MACHADO DE ASSIS
para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, tão poucas linhas, e mais esta, quatro; é
engolia-as e estava acabado. Mas aqui demais.
está o que é, eu sou um pobre relojoeiro,
que, cansado de ver que os relógios deste Boas noites.” (p. 79-81)*
mundo não marcam a mesma hora, descri
do ofício. A única explicação dos relógios
era serem iguaizinhos, sem discrepância:
desde que discrepam, fica-se sem saber “A série começa, portanto, num momento
nada, porque tão certo pode ser o meu em que a abolição da escravidão era uma
relógio, como o do meu barbeiro. questão de tempo, a despeito de ainda 55
existirem resistências e questionamentos
Um exemplo. O Partido, Liberal, sobre se ela seria completa ou com
segundo li, estava encasacado e pronto prestação de serviço obrigatório, com
para sair com o relógio na mão, porque indenização ou sem. À vista disso, não
a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, nos parece que a referência ao Clube
que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Beethoven e ao Ministro Ferreira Viana,
Saraiva (ambos da chapelaria Aristocrata): logo na primeira crônica da série, sejam
era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa gratuitas. Do ponto de vista da construção
o carro do paço com outra pessoa, e da crônica, o tema é utilizado para
ele descobre que ou o seu relógio está justificar a ausência de programa da série,
adiantado, ou o de Sua Alteza é que se geralmente apresentada nos primeiros
atrasara. Quem os porá de acordo’? textos pelos autores”. (GOMES, 2019)

Foi por essas e outras que descri do


oficio; e, na alternativa de ir à fava ou
ser escritor, preferi o segundo alvitre; é Observemos o fragmento retirado da
mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, crônica acima:
portanto, com certeza até à chegada
do Bendegó, mas provavelmente ate à
escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde.
Não digo mais nada para os não aborrecer, “Depois de um recente discurso proferido
e porque já me chamaram para o almoço. no Beethoven, acho perigoso que uma
pessoa diga claramente o que é que vai
Talvez o que ai fica, saia muito curtinho fazer; o melhor é fazer calado.
depois de impresso. Como eu não tenho (...)
hábito de periódicos, não posso calcular Desse modo, não expor logo de cara
entre a letra de mão e a letra de forma. Se os objetivos da série implica em uma
aqui estivesse o meu amigo Fulano (não estratégia em que se desloca para o leitor
ponho o nome, para que cada um tome a tarefa de construir em articulação com
para si esta lembrança delicada), diria o contexto os significados esboçados
logo que ele só pode calcular com letras através de vestígios espalhados pelo
de câmbio — trocadilho que fede como narrador nos textos da série. Soma-se
o diabo. Já falei três vezes no diabo em
* Ver em referências.
MACHADO DE ASSIS

a isso, ainda, o caráter descontínuo e era, portanto, necessária. Era preciso


relativizador, constitutivos do gênero, mas redefinir a nação para que ela ocupasse
que Machado desenvolve magistralmente. um lugar no mundo ocidental capitalista.
O efeito conseguido é uma coerência O capitalismo iria provocar importantes
e beleza estética seguida de um viés e curiosas medidas para garantir a
absolutamente crítico – que, todavia, integridade nacional. Buscando tecnologia
se manifesta de forma dissimulada e mão de obra qualificada, Alfredo
e assimétrica no decorrer da série”. d’Escragnolle, o Visconde de Taunay,
(GOMES, 2019) apresentou ao Senado um projeto de
56 nacionalização, no qual consta que “todo
estrangeiro que tiver residência efetiva
no Brasil, por espaço de dois anos, será
“Como já demonstrou Ivanete Soares considerado cidadão brasileiro”. Esse
(2010, p. 35), ao analisar as estratégias incentivo à imigração em larga escala
discursivas adotadas por Machado nas foi comentado por Machado de Assis
crônicas de Bons Dias!, existe “uma na crônica de 28 de outubro de 1888.
ambiguidade estrutural geradora de uma O projeto de renacionalização, como
tensão entre narrador e enunciador”. Ou chamamos, conta com a ajuda de várias
seja, embora no nível do enunciado “O áreas de conhecimento que estavam
narrador se autocaracteriza como um unidas desde o começo do século XIX
homem culto, dado à reflexão, solidário a fim de garantir a integridade nacional,
e sociável. (...) no nível da enunciação, como a História, a Geografia, a Literatura
mostra-se como um indivíduo hipócrita, e o jornalismo, que se encontrava em
interesseiro, demagogo, superficial, ascensão.”. (PINHEIRO, 2012)
trapaceiro e, principalmente, arrogante
e prepotente’ (SOARES, 2010, p. 35)”.
(GOMES, 2019)

VII. Características e Temas

VI. Contexto Histórico. − A citação abaixo pretende, sem


diminuição das possibilidades
interpretativas, organizar a leitura e a
compreensão das crônicas.
“Se na metade do século XIX aparece
a preocupação em definir o território − Relevante observar que diz respeito às
brasileiro, o povo desse território, com crônicas publicadas no ano de 1888.
seus hábitos e costumes, durante
as últimas décadas desse século “Propomos então, a partir das análises que
encontramos uma redefinição. É uma fizemos até aqui e das que se seguem,
época de mudanças políticas, época em uma outra caracterização temática das
que ocorre a Abolição da Escravatura, crônicas que, nesse sentido, refletiriam
a queda do Império e o surgimento da a tentativa deliberada de Machado
República. Uma ordenação da sociedade de problematizar, de modo sutil e
MACHADO DE ASSIS
dissimulado, a questão da Abolição e suas Observemos o fragmento da crônica 06,
consequências a partir de suas múltiplas do dia 11 de Maio de 1888:
significações. As temáticas abordadas
por Machado são a ausência de princípio
dos partidos (5 e 12 de abril e 4 de maio);
os interesses ocultos no processo “Vejam os leitores a diferença que há
abolicionista (5 de abril e 11 de maio); a entre um homem de olho alerta, profundo,
não visualização da escravidão como um sagaz, próprio para remexer o mais íntimo
problema estrutural, cujas consequências das consciências (eu em suma), e o resto
estavam entranhadas nas relações sociais da população. 57
(19 de abril e 19 de maio); o caráter cômico
de uma elite escravocrata que buscava Toda a gente contempla a procissão
assumir, simbolicamente, as rédeas do na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroço,
processo (19 de maio); o pós-abolição e o tumulto, e aplaude ou censura, segundo
suas implicações (27 de abril e 11 de maio); é abolicionista ou outra coisa; mas
o caráter cômico e perturbador de um ninguém dá a razão desta coisa ou daquela
processo de transição do trabalho escravo coisa; ninguém arrancou aos fatos uma
para o trabalho assalariado em que, de significação, e, depois, uma opinião. Creio
fato, pouca coisa parecia mudar (19 de que fiz um verso.
abril e 19 de maio) e o processo político da
abolição de 1871 a 1888 (20-21 de maio)”. Eu, pela minha parte, não tinha parecer.
(GOMES, 2019) Não era por indiferença; é que me custava
a achar uma opinião.” (p.103)*

1. Abolição da Escravatura
Podemos observar uma crítica dirigida a
quem tem opiniões facilmente, apoiando
ou negando a Abolição, sem procurar mais
“Machado de Assis enquanto cronista atentamente a razão dos acontecimentos.
seria um flâneur profeta. Não seria apenas,
como nos diz o dicionário, o “[...] passeante, Logo depois, ao dizer que chegou a uma
o que passa o tempo passeando sem opinião racional e a seus fundamentos
destino pelas ruas e praças.” (AZEVEDO, sobre a questão da liberdade e da
1989, p.694). Machado é um passeante propriedade, o cronista irá contar casos
com destino, além de observar, ele de escravos fugidos que acabaram
remexe o mais íntimo das consciências, sendo alugados por outros senhores de
esforçando-se para entender e prever os escravos, já prenunciando e denunciando
acontecimentos. Esse olhar sagaz será o que iria acontecer após a Abolição.
tematizado em sua crônica do dia 11 de
maio de 1888, dois dias antes da abolição Os escravos ao serem libertos seriam
da escravatura”. (PINHEIRO, 2012) alugados, por salário que a ironia
machadiana define muito bem.
MACHADO DE ASSIS

Sendo assim, Machado critica a euforia me os pés. Um dos meus amigos (creio
geral em relação ao abolicionismo, que ainda é meu sobrinho), pegou de outra
relativizando-o. taça, e pediu à ilustre assembleia que
correspondesse ao ato que eu acabava
de publicar, brindando ao primeiro dos
cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro
“Não é novidade para ninguém, que os discurso agradecendo, e entreguei a carta
escravos fugidos, em Campos, eram ao molecote. Todos os lenços comovidos
alugados. Em Ouro Preto fez-se a mesma apanharam as lágrimas de admiração. Caí
58 coisa, mas por um modo mais particular. na cadeira e não vi mais nada. De noite,
Estavam ali muitos escravos fugidos. recebi muitos cartões. Creio que estão
Escravos, isto é, indivíduos que, pela pintando o meu retrato, e suponho que a
legislação em vigor, eram obrigados a óleo”. (p.109-110)*
servir a uma pessoa; e fugidos, isto é,
que se haviam subtraído ao poder do
senhor, contra as disposições legais. Esses
escravos fugidos não tinham ocupação; − Machado relativiza o abolicionismo ao
lá veio, porém, um dia em que acharam reproduzir o discurso capitalista, que tem
salário, e parece que bom salário”. (p.104)* o narrador-personagem como porta-voz.

− A escravidão é substituída pela liberdade,


e esta se torna escrava do salário.
Na crônica 07, do dia 19 de maio de 1888,
entra em cena um personagem ficcional. − Após uma cena que, aparentemente
Esse personagem apresenta-se como irrelevante: um peteleco dado em
pertencente a uma família de profetas Pancrácio; perceberemos o real interesse
après coup, depois do gato morto, e diz da atitude do narrador, que é se tornar
que a lei de 13 de maio já estava por ele deputado.
prevista.
− Sobre a escravidão, sugiro a leitura da
Como prova, afirma ter alforriado um crônica 08, onde o autor faz uma paródia
escravo seu, o Pancrácio. de um texto bíblico.

Para o ato de alforria, o personagem-


narrador oferece a alguns amigos um
jantar comemorativo e faz um discurso “Tão certo é que a paisagem depende
sobre a liberdade, associando-a às ideias do ponto de vista, e que o melhor modo
pregadas por Cristo, o que comoveu todos, de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na
inclusive Pancrácio. mão”.3

3 In: ASSIS, Machado de. Quincas Borba.


“Pancrácio, que estava à espreita, entrou Editora Martin Claret. 4ª Edição. São Paulo, SP.
na sala, como um furacão, e veio a abraçar- 2012.p.45.
MACHADO DE ASSIS
2. Proclamação da República Na verdade, essa mudança é de fato
aparente. Isso se confirma com a frase da
passagem acima, principalmente com a
palavra “também”.
“— É o senhor; o senhor é que perdeu o
pouco juízo que tinha. Aposto que não vê Nota-se que essa frase faz a ligação entre
que anda alguma cousa no ar. a Abolição e a necessária “mudança” de
sistema, a República. Tal qual a Abolição, a
— Vejo, creio que é um papagaio. República também é relativizada.
59
— Não, senhor; é uma república. Nessa crônica, uma pista para essa
Querem ver que também não acredita que interpretação encontra-se na citação
esta mudança é indispensável? em alemão que significa: “Seria fácil
provar que o Brasil é mais uma oligarquia
— Homem, eu a respeito de governo, absoluta do que uma monarquia
estou com Aristóteles, no capítulo dos constitucional”.
chapéus. O melhor chapéu é o que vai bem
à cabeça. Este, por ora, não vai mal.

— Vai pessimamente. Está saindo dos “Com isso, John Gledson (1986) observa
eixos; é preciso que isto seja, senão com que a República nascerá da oligarquia,
a monarquia, ao menos com a república, o que mostra que a mudança de regime
aquilo que dizia o Rio-Post de 21 de junho será, simplesmente, uma mudança
do ano passado. Você sabe alemão? de rótulo: antes e depois, a oligarquia
governará.
— Não. Sem dúvida para um leitor que
não lê alemão, a citação torna-se
— Não sabe alemão? incompreensível, todavia há uma pista
de seu significado nas expressões
E dizendo-lhe eu outra vez que não transparentes: konstitutionelle Monarchie
sabia, ele imitando o médico de Molière. e absolute Oligarchie”. (PINHEIRO, 2012)
dispara-me na cara esta algaravia do
diabo:

— Es dürft leicht zu erweisen sein, O inevitável advento da República,


dass Brasilien weniger eine kontitutionelle abordado de passagem na crônica 06, do
Monarchie als eine absolute Oligarchie ist”. dia 11 de maio, será tema da crônica 09, do
(p.104)* dia 27 de maio, na qual aparece a ligação
entre República e escravidão.

Nessa crônica, Machado imagina uma


Na crônica 07, já analisada no tema da conversa entre o meteorito de Bendegó
escravidão, do dia 11 de maio, temos uma e o oficial da marinha José Carlos de
mudança de assunto dentro dela. Carvalho, chefe da expedição enviada ao
MACHADO DE ASSIS

interior da Bahia, onde a pedra caíra mais se bem que os Estados Confederados,
de um século antes, a fim de trazê-la para quando redigiram a sua constituição,
o Rio. declararam no preâmbulo:

Um real meteorito descoberto no ‘A escravidão é a base da constituição


final do século XVIII no rio Bendegó dos Estados Confederados’. Lembra-se
(Bedengó ou Bendengó, conforme as também que o próprio Lincoln, quando
variações aceitas), no sertão da Bahia, é subiu ao poder, declarou logo que não
personagem na crônica. Por essa época, vinha abolir a escravidão...” (p.121)*
60 a rocha foi transportada a Salvador com
muitos imprevistos e, em seguida, ao Rio
de Janeiro (para o Museu Nacional). A
saída da capital da província foi atrasada Dessa forma, Machado reforça a questão
por uma convocação extraordinária da da relatividade das mudanças.
Câmara dos vereadores, na tentativa de
impedir o transporte da pedra de Bendegó A ficção utilizada em suas crônicas
para a Corte, mas a maioria votou contra desqualifica a transparência da
o embargo, tendo apenas dois vereadores simples notícia, não deixando dominar
se pronunciado a favor. A travessia do o puro factual do jornalismo. Através
sertão baiano e a permanência na capital da ambiguidade, ele provoca o
são interrompidas na crônica de Bons estranhamento, atraindo o leitor para a
dias! para personificar o meteorito e leitura e abalando a credibilidade retórica
relatar a suposta conversa entre ele e dos discursos de sua época.
o comandante José Carlos de Carvalho,
chefe da expedição que recuperou o 3. Partidos Políticos (e suas mudanças)
Bendegó.
Na crônica 02, do dia 12 de abril de 1888,
Carvalho conta ao meteorito sobre o tema é, como na anterior (crônica 01),
a existência de ideias republicanas, a ausência de princípios dos partidos
esclarecendo que todos creem que, com políticos imperiais:
o advento da República, a escravidão
estaria acabada. O meteorito, como tem
“uma visão experimentada e olímpica
da Abolição”, advertiu que República e “- Estou a ver que reprove o fato de estar o
escravidão não eram incompatíveis. Partido Conservador com ideias liberais...?
Interrompe-me o leitor.

Respondo que não reconheço em


“Nisto o meteorólito interrompeu o ninguém o direito de interromper-me, salvo
companheiro, para dizer que as duas se é para publicar a conversação, porque
coisas não eram incompatíveis: porque então a coisa muda de figura.” (p.86)*
antes de ser meteorólito fora general nos
Estados Unidos – e general do Sul, por
ocasião da guerra de secessão, e lembra-
MACHADO DE ASSIS
Depois de dizer que nos países velhos (no é aprofundado através da focalização da
caso, a Inglaterra) “os partidos políticos “política complicadíssima” do Ceará.
podem pegar algumas ideias alheias”
(idem. p. 86), o narrador novamente é O narrador planejava assistir a abertura da
questionado: câmara, em 03 de maio – coisa que não
pôde fazer, pois estava constipado –, e lá
tentaria travar um debate com o senador
cearense Castro de Carreira sobre os
“- Basta; mas por que é que nos países partidos do Ceará.
novos não será a mesma coisa? 61
Dada à impossibilidade do encontro, o
- Porque nos países novos há em geral narrador então imagina um diálogo:
poucas ideias. Supunha uma família com
pouca roupa; se o Chiquinho vestir o meu
rodaque, com que hei de ir à missa?
“- Saberá V. Exa. que eu não entendo
- Diga-me, porém... patavina dos partidos do Ceará...

- Não lhe digo mais nada (...)”.(p.87)* - Com efeito...

- Eles são dois, mas quatro; ou, mais


acertadamente, são quatro, mas dois.
“A ausência de princípios e de ideias
que de fato norteassem a ação política - Dois em quatro.
dos partidos e dos partidários é um
tema permanente na escrita folhetinista - Quatro em dois.
machadiana. A ironia do argumento é
um questionamento sobre quais são - Dois, quatro.
os princípios liberais, já que todas as
principais medidas abolicionistas – como - Quatro, dois.
a abolição do tráfico em 1850 (Eusébio
de Queiroz) e a Lei do Ventre Livre em - Quatro.
1871 (Rio Branco) – foram realizadas
por conservadores. Com isso, se - Dois.
reformulássemos a frase (“Se Chiquinho
vestir o meu rodaque ...”) ela ficaria mais - Dois.
ou menos assim: “se os conservadores
aprovam medidas liberais, o que liberais - Quatro.
hão de fazer?”. (GOMES, 2019)
- Justamente.

- Não é?
Na crônica 05, do dia 4 de maio de 1888,
o tema da ausência de princípios políticos - Claríssimo”. (p.100)*
MACHADO DE ASSIS

Os temas são apresentados de modo Não faltam banquetes, é verdade; mas,


escorregadio e nem sempre é fácil pergunto eu, que é que se come nesses
percebê-los com clareza. banquetes, estando tudo falsificado?(...)

O caráter truncado e sem sentido do Mas, como não bastasse a falsificação


diálogo visa reforçar a ausência de sentido dos comestíveis, temos as mortes
da própria constituição de partidos súbitas, os tiros com ou sem endereço, a
políticos sem princípios norteadores. peste dos burros, a seca do Ceará, vários
desaparecimentos, e porventura, algum
62 4. Denúncias Sociais harém incipiente seja onde for...mas isto
agora entende com a liberdade dos cultos,
Por vezes a manipulação da linguagem projeto que está pendente na Câmara.
em Bons dias! assume, ao invés da Não é que o harém não seja templo,
crueldade, um abatimento moral capaz mas é um artigo da religião muçulmana.
de produzir efeitos mais graves durante Demais, enquanto vir na Rua do Inválidos
a leitura, deslocando as “atrocidades” uma casa, que se parece tanto com casa,
exclusivamente para os fatos comentados. como eu com o leitor, e na fachada está
escrito: Igreja Evangélica, vou acreditando
O narrador escapa novamente, deixando que o projeto do Senado pode esperar”.
para si a depressão, a tristeza diante das (p.201-202)*
suas constatações.

Podemos observar essa postura na


crônica 27, de 25 de novembro de “A denúncia sutil do comportamento
1888, trazendo denúncias e relações superficial explorando as diferenças é, no
intertextuais muito interessantes. fundo, muito séria, ainda que o narrador
despiste, empregando as meias tintas
O texto refere-se à falsificação dos propositadamente, a fim de se confundir
comestíveis, aos crimes (assassinatos, com os que frequentam os banquetes e
desaparecimentos), às doenças (a fingir total desconhecimento sobre os
peste dos burros, a febre amarela), à “conselhos à pena amiga’”. (BETELLA,
seca do Ceará (a pior desde 1877), às 2004)
religiões “clandestinas”, expressando
imediatamente na abertura o
aborrecimento do narrador e as
contradições da sociedade: 5. Críticas ao Espiritismo

Em vários momentos, percebemos o


narrador criticando a religião espírita,
“Nunca tirei o chapéu com tanta como podemos observar na crônica 49, de
melancolia. Tudo é triste em volta de nós. 29 de agosto de 1889.
A própria risada humana parece um dobre
de finados. Creio que somos chegados ao
fim dos tempos.
MACHADO DE ASSIS
“A segunda é que o espiritismo não é de seu ódio por ela. Na Bíblia, Samuel
menos curanderia que a outra, e é mais fala pela “bruxa” (às vezes traduz-se
grave, porque se o curandeiro deixa os médium de Endor ao rei Saul (I Samuel,
seus clientes estropiados e dispépticos, cap.28), e os espíritas chamam os
o espírita deixa-os simplesmente doidos. acontecimentos de Pentecostes, quando
O espiritismo é uma fábrica de idiotas e Jesus falou com os apóstolos depois de
alienados, que não pode subsistir. Não morto, da maior “séance” da história. É,
há muitos dias deram notícia as nossas sem dúvida, principalmente a “perfeição
folhas de um brasileiro que, fora daqui, em sucessiva das almas” que o enfurece: o
Lisboa, foi recolhido em Rilhafoles, levado espiritismo é uma doutrina otimista, à 63
pela mão do espiritismo. maneira do humanitismo: acredita que
todo mundo será salvo, e que a lei da
Mas não é preciso que deem entrada progressiva perfeição da alma se aplica
solene nos hospícios. O simples fato universalmente”.4
de engolir aqueles rabos de raia, pés
de galinha, raiz de mil-homens e outras
drogas vira o juízo, embora a pessoa
continue a andar na rua, a cumprimentar 6. Imigração
os conhecidos, a pagar as contas, e até
a não pagá-las, que é meio de parecer A crônica de número 24, do dia 28
ajuizado. Substancialmente é homem de outubro de 1888, trata de uma lei
perdido. Quando eles me vêm contar apresentada pelo senador conservador
uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, Visconde de Taunay, na qual ele propunha
sublinhados de filosofia de armarinho, um projeto de nacionalização de
para dar na perfeição sucessiva das almas, estrangeiros em nosso país, se assim o
segundo estas mesmas relatam a quem as desejassem.
quer ouvir, palavra que me dá vontade de
chamar a polícia e um carro. Havia nesse momento uma proposta,
apoiada entre outros por Citejipe, de
Os espíritas que me lerem hão de introduzir trabalhadores chineses no
rir-se de mim porque é balda certa de Brasil.
todo maníaco lastimar a ignorância
dos outros. Eu, legislador, mandava A Sociedade Central de Imigração, de
fechar todas as igrejas dessa religião, que Taunay era membro importante,
pegava dos religionários e fazia-os protestou contra essa ideia, em carta
purgar espiritualmente de todas as enviada a Gazeta de Notícias no dia 26
suas doutrinas; depois, dava-lhes uma de outubro, exprimindo-se da seguinte
aposentadoria razoável”.(p.296-297)* maneira: estava contra “a introdução

4 In: Assis, Machado. Bons dias!/Machado de


“Aqui Machado não se limita a atacar o Assis; Introdução e notas: John Gledson. 3ªed.-
espiritismo; mostra um conhecimento Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
rudimentar da doutrina, e a grande razão p.298.
MACHADO DE ASSIS

de chins, coolies e proletários asiáticos” boa que lá está, é a grande naturalização.


e à “ideia da repulsiva importação de Não sei se ando certo, atribuindo àquela
representantes dessa raça que, nas palavra o direito do naturalizado a todos
condições atuais, viria ser em nosso país os cargos públicos. Pois, senhor, acho
a inteira substituição da escravidão negra, acertado. Com efeito, se o homem
pela escravidão amarela”. é brasileiro e apto, por que não será
para tudo aquilo que podem ser outros
Conclui Taunay em “formal e enérgico brasileiros aptos? Quem não concordará
protesto contra a nefanda tentativa comigo (para só falar de mortos), que é
64 de manchar-se o solo do Brasil com a muito melhor ter como regente, por ser
importação de representantes de uma ministro do império, um Guizot ou um
raça atrofiada e corrupta, incapaz de Palmerston, do que um ex-ministro (Deus
colaborar eficazmente com este povo lhe fale na alma!) que não tinha este olho?
neolatino, ávido de progresso e glorioso
futuro, em sua grande evolução altruísta”. Mas o projeto traz outras coisas que
bolem comigo, e até uma que bole com o
O cronista não poupa críticas e ironias ao próprio autor. Este faz propaganda contra
autor de Inocência. Vejamos: os chins; mas, não havendo meio legal
de impedir que eles entrem no império
aqui temos nós os chins, em vez de
instrumentos de trabalho, constituídos em
“Aqui interrompe-me o leitor: — Já vejo milhares de cidadãos brasileiros, no fim
que é nativista! E eu respondo que não sei de dous anos, ou até de um. Excluí-los da
bem o que sou. O mesmo me disseram lei é impossível. Ai fica uma consequência
anteontem, falando-se do projeto do desagradável para o meu ilustre amigo.
meu ilustre amigo senador Taunay. Como
eu dissesse que não aceitava o projeto, Outra consequência. O digno Senador
integralmente, alguém tentou persuadir- Taunay deseja a imigração em larga
me que eu era nativista. Ao que respondi: escala. Perfeitamente. Mas, se o imigrante
souber que, ao cabo de dois anos, e em
— Não sei bem o que sou. Se nativista certos casos ao fim de um, fica brasileiro
é algum bicho feio, paciência; mas, se quer à força, há de refletir um pouco e pode
dizer exclusivista, não é comigo. não vir. No momento de deixar a pátria,
ninguém pensa em trocá-la por outra;
Não se pode negar que o Sr. Senador todos saem para arranjar a vida.
Taunay tem o seu lugar marcado no
movimento imigracionista, e lugar Em suma,— e é o principal defeito
iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se que lhe acho,—este projeto afirma de um
de coração, fundou uma sociedade, e luta modo estupendo a onipotência do Estado.
por algumas grandes reformas. Escancarar as portas, sorrindo, para que o
estranho entre, é bom e necessário; mas
Entretanto, a gente pode admirá-lo mandá-lo pegar por dois sujeitos, metê-
e estimá-lo, sem achar que este último lo a força dentro de casa para almoçar,
projeto seja inteiramente bom. Uma coisa não podendo ele recusar a fineza, senão
MACHADO DE ASSIS
jurando que tem outro almoço à sua o mais que faço, é não dar gorjeta ao
espera, não é coisa que se pareça com automedonte, vulgo cocheiro.
liberdade individual”.(p.188-189)*
Imaginem agora o meu assombro,
ao ler o artigo em que que nosso ilustre
professor mostra, a todas as luzes, que
7. Uso de estrangeirismos. chambre é vocábulo condenável por ser
francês. Antes de acabar o artigo, atirei
− Com o processo imigratório no Brasil para longe a fatal estrangeirismo, e meti-
e as influências de autores estrangeiros me num paletó velho, sem advertir que era 65
torna-se inevitável o uso de expressões da mesma fábrica. A ignorância é a mãe de
estrangeiras no uso da Língua Portuguesa todos os vícios”.(p.265)*

− Machado ironiza a defesa do purismo da


língua.

− Observemos um fragmento da crônica VIII. Conclusão


42, do dia 20 de abril de 1889.

− Na crônica 40, do dia 22 de março de


1889, o autor também aborda o tema. “A leitura dessas crônicas em nossos
tempos de reedição bem mais sofisticada
de coalizão liberal-conservadora admite
uma confirmação de profecias relativas
“A principal vantagem dos estudos de aos efeitos das espertas alianças. As
língua, é que com eles não perdemos a palestras do ex-relojoeiro oitocentista
pele, nem a paciência, nem, finalmente. levam à dedução de uma antevisão pouco
as ilusões, como acontece aos que se animadora, sobretudo no que diz respeito
empenham na política, essa fatal Dalila à banalização ou ao fim de uma crítica
(deixem-me ser banal), a cujos pés Sansão efetiva partindo do meio intelectual, à
perdeu o cabelo, e André Roswein a vida. defesa das forças sociais e políticas das
velhas oligarquias pelos governos e à
Agora mesmo, ao sair da cama, enfiei adesão da sociedade ao consenso de real
um chambre. Cuidei estar composto, sem fundo conservador.
escândalo. Não ignorava (tanto que já o Bons dias! representa uma luta pela
disse aqui mesmo) que aquele vestido, validade da crítica sem ardores, sem
antes de passar a fronteira, era robe de declarada oposição ou adesão às novas
chambre; ficou só chambre. Mas como feições político-econômicas. Todas as
vinha de trás, os velhos que conheci não sutilezas da composição, do perfil do
usavam outra cousa, e o próprio Nicolau narrador às piadas sobre atos políticos ou
Tolentino, posto que mestre-escola, já o privados permanecem como observação
enfiou nos seus versos, pensei que não atenta contra o consenso que então
era caso de o desbatizar. Nunca mandei se estabelecia e declarava um futuro
embora uma caleça só por vir de calèche; regrado pelo conservadorismo, disfarçado
MACHADO DE ASSIS

ou não, hábil em cooptar inclusive as reflexão crítica de Bons Dias! Revista Letras,
manifestações intelectuais com “espírito Curitiba, n. 62, p. 11-25. jan./abr. 2004. Editora
de oposição histórica”. As crônicas de UFPR.
Machado de Assis demonstram uma
consciência do caráter cíclico e repetitivo
da história, incluindo a repetição do
movimento de “cooptação pela direita”
ou de “migração da ‘esquerda’” no cenário
político-social brasileiro. É bem verdade
66 que as teses, as deduções e o dogmatismo
conservadores seriam atualizados,
isto é, os produtos dos pactos liberais-
conservadores seriam “readequados”,
na medida em que atendessem aos
interesses tecnocráticos de poder”.
(BETELLA, 2004)

Referências:

* Todos os trechos foram retirados de: ASSIS,


Machado. Bons dias!/Machado de Assis;
Introdução e notas: John Gledson. 3ªed.-
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Editora


Martin Claret. 4ª Edição. São Paulo, SP. 2012

GOMES, Wemerson Felipe. Abolicionistas e


republicanos na série Bons Dias!, de Machado
de Assis. Temporalidades – Revista de História,
ISSN 1984-6150, Edição 30, v. 11, n. 2 (Mai./Ago.
2019)

PINHEIRO, Marta Passos. Machado de Assis


cronista: “BONS DIAS!” no avesso da República.
Rev. Let.São Paulo, v.52, n.2, p.133-145, jul./dez.
2012.

BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de


Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a
MACHADO DE ASSIS
Exercícios 19 maio de 1888

“Bons dias! Eu pertenço a uma família


1. BONS DIAS!, 14 de junho de 1889 de profetas après coup*, post factum*,
depois do gato morto, ou como melhor
“Ó doce, ó longa, ó inexprimível melancolia nome tenha em holandês. Por isso digo,
dos jornais velhos! Conhece-se um juro se necessário for, que toda a história
homem diante de um deles. Pessoa que desta lei de 13 de maio estava por mim
não sentir alguma coisa ao ler folhas de prevista, tanto que na segunda-feira, antes
meio século, bem pode crer que não terá mesmo dos debates, tratei de alforriar 67
nunca uma das mais profundas sensações um molecote que tinha, pessoa de seus
da vida, – igual ou quase igual à que dá a dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo

EXERCÍCIOS
vista das ruínas de uma civilização. Não é era nada; entendi que, perdido por mil,
a saudade piegas, mas a recomposição do perdido por mil e quinhentos, e dei um
extinto, a revivescência do passado”. jantar.

ASSIS, M. Bons dias! (Crônicas 1888-1889). Levantei-me eu com a taça de


Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: champanha e declarei que, acompanhando
Hucitec, 1990. as ideias pregadas por Cristo, há dezoito
séculos, restituía a liberdade ao meu
O jornal impresso é parte integrante do escravo Pancrácio; que entendia que
que hoje se compreende por tecnologias a nação inteira devia acompanhar as
de informação e comunicação. Nesse mesmas ideias e imitar o meu exemplo;
texto, o jornal é reconhecido como: finalmente, que a liberdade era um dom de
Deus que os homens não podiam roubar
b) objeto de devoção pessoal. sem pecado.

c) elemento de afirmação da cultura. Pancrácio, que estava à espreita,


entrou na sala, como um furacão, e veio
d) instrumento de reconstrução da abraçar-me os pés. Todos os lenços
memória. comovidos apanharam as lágrimas de
admiração. Caí na cadeira e não vi mais
e) ferramenta de investigação do ser nada. De noite, recebi muitos cartões.
humano. Creio que estão pintando o meu retrato, e
suponho que a óleo.
f) veículo de produção de fatos da
realidade. No dia seguinte, chamei o Pancrácio e
disse-lhe com rara franqueza:

2. Leia o trecho inicial da crônica de – Tu és livre, podes ir para onde


Machado de Assis para responder à quiseres. Aqui tens casa amiga, já
questão. conhecida e tens mais um ordenado, um
ordenado que...
MACHADO DE ASSIS

– Oh! meu senhô! fico... Nessa crônica, Machado de Assis tematiza


a abolição da escravatura, recém- ocorrida
– Um ordenado pequeno, mas que há por ocasião de sua escrita, expressando a
de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu opinião de que:
cresceste imensamente. Quando nasceste
eras um pirralho deste tamanho; hoje a) os antigos escravos só teriam a ganhar
estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és conservando seus velhos postos de
mais alto quatro dedos... trabalho.

68 – Artura não qué dizê nada, não, b) os ex-escravos continuariam sujeitados


senhô... ao domínio de seus ex-senhores.
EXERCÍCIOS

– Pequeno ordenado, repito, uns seis c) a economia não se beneficiaria com


mil-réis: mas é degrão em grão que a escravos transformados em assalariados.
galinha enche o seu papo. Tu vales muito
mais que uma galinha. d) os prejuízos dos senhores de escravos
seriam superados apenas a longo prazo.
– Justamente. Pois seis mil-réis. No
fim de um ano, se andares bem, conta e) os escravos recém-libertos seriam
com oito. Oito ou sete. Pancrácio aceitou facilmente substituídos por trabalhadores
tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei mais bem preparados.
no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade. Mas eu
expliquei-lhe que o peteleco, sendo um 3. 22 de agosto de 1889 – Bons dias!
impulso natural, não podia anular o direito
civil adquirido por um título que lhe dei. Ele “[.] E diria então que ser conservador era
continuava livre, eu de mau humor; eram ser essencialmente liberal, e que no uso
dois estados naturais, quase divinos. da liberdade, no seu desenvolvimento,
nas suas mais amplas reformas, estava a
Tudo compreendeu o meu bom melhor conservação. Vede uma floresta!
Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe (exclamaria, levantando os braços). Que
despedido alguns pontapés, um ou potente liberdade! e que ordem segura! A
outro puxão de orelhas. E chamo-lhe natureza, liberal e pródiga na produção, é
besta quando lhe não chamo filho do conservadora por excelência na harmonia
diabo; coisas todas que ele recebe em que aquela vertigem de troncos,
humildemente, e (Deus me perdoe!) creio folhas e cipós, em que aquela passarada
que até alegre”. estrídula, se unem para formara floresta.
Que exemplo às sociedades! que lição aos
(Machado de Assis. Bons dias. www. partidos!
dominiopublico.gov.br. Adaptado)
O mais difícil parece que era a união
1. après coup: [francês] pós-golpe. dos princípios monárquicos e dos
2. post factum: [latim] depois do fato. princípios republicanos; puro engano.
Eu diria: 1.º, que jamais consentiria que
MACHADO DE ASSIS
nenhuma das duas formas de governos 4. O nascimento da crônica
e sacrificasse por mim; eu é que era por
ambas; 2.º, que considerava tão necessária “Há um meio certo de começar a crônica
uma como outra, não dependendo tudo por uma trivialidade. É dizer: Que calor!
senão dos termos, assim podíamos ter na Que desenfreado calor! Diz-se isto,
monarquia a república coroada, enquanto agitando as pontas do lenço, bufando
que a república podia ser a liberdade no como um touro, ou simplesmente
trono, etc., etc. sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do
calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-
ASSIS, Machado de. Bons dias!.Campinas: se algumas conjeturas acerca do sol e da 69
Editora da Unicamp, 2008, p. 292. lua, outras sobre a febre amarela, manda-
se um suspiro a Petrópolis, e La glace est

EXERCÍCIOS
A partir da leitura de Bons dias!, de rompue; está começada a crônica.
Machado de Assis, e do seu conhecimento
sobre a obra do autor, assinale a Mas, leitor amigo, esse meio é mais
alternativa que contém uma característica velho ainda do que as crônicas, que
da sua escrita presente no trecho em apenas datam de Esdras. Antes de Esdras,
destaque: antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque
e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor
a) Ambiguidade e pessimismo, notável na e crônicas. No paraíso é provável, é certo
metáfora da natureza como representação que o calor era mediano, e não é prova do
dos partidos conservador e liberal. contrário o fato de Adão andar nu. Adão
andava nu por duas razões, uma capital
b) Crítica à sociedade burguesa e e outra provincial. A primeira é que não
sua superficialidade, representada havia alfaiates, não havia sequer casimiras;
pela indiferença quanto aos princípios a segunda é que, ainda havendo-os,
fundadores dos ideais republicanos. Adão andava baldo ao naipe. Digo que
esta razão é provincial, porque as nossas
c) Ironia e angústia, devido às manobras províncias estão nas circunstâncias do
políticas diante da iminente queda do primeiro homem”.
Império.
(ASSIS, M. In: SANTOS,J .F. As cem melhores
d) Metalinguagem, observada em “jamais crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva,
consentiria que nenhuma das duas formas 2007)
de governo se sacrificasse por mim; eu é
que era por ambas”. Um dos traços fundamentais da vasta
obra literária de Machado de Assis
e) Proximidade com leitor, presente no reside na preocupação com a expressão
jogo teatral do trecho “Vede uma floresta! e com a técnica de composição. Em O
(exclamaria, levantando os braços). Que nascimento da crônica, Machado permite
potente liberdade!”. ao leitor entrever um escritor ciente das
características da crônica, como:
MACHADO DE ASSIS

a) texto breve, diálogo com leitor e


registro pessoal de fatos do cotidiano.

b) texto ficcional curto, linguagem


subjetiva e criação de tensões.

c) priorização da informação, linguagem


impessoal e resumo de um fato.

70 d) linguagem literária, narrativa curta e


conflitos internos.
EXERCÍCIOS

e) síntese de um assunto, linguagem


denotativa, exposição sucinta.
PAULINA CHIZIANE
Paulina Chiziane
(1955-)
Niketche, uma história de
poligamia, 2001 71

I. A Autora quando criança e adolescente, da boca


dos mais velhos à volta da fogueira.
− Nascida na cidade de Manjacaze, na
Província de Gaza, cresceu nos subúrbios − Seus livros nem sempre falam
de Maputo, em Moçambique. diretamente da guerra, mas de um país
destruído, da miséria de seu povo, da
− Fez parte de uma família protestante, superstição, dos rituais religiosos e da
embora não tenha sido batizada. morte.

− Realizou estudos de linguística na


Universidade Eduardo Mondlane.
“Em África não precisamos ter o trabalho
− Na juventude, participou ativamente de imaginar ou sonhar, essas mulheres
da Frelimo (Frente de Libertação de desfilam nas ruas perto dos nossos olhos.
Moçambique). Às vezes pego meu gravador, sento na
rua e converso com a primeira mulher
− Trabalhou com a Cruz Vermelha que passa e tenho uma história. Eu não
Internacional durante a guerra civil. privilegio o feminino, mas sou parte do
feminino, estou a escrever sobre mim, sou
− Após o fim do conflito, trabalhou no mulher, escrevo sobre pessoas que me
Núcleo das Associações Femininas da rodeiam, que também são mulheres”.1
Zambézia (NAFEZA).

− Atualmente presta consultoria ao


desenvolvimento de projetos de ajuda
internacional com foco em conflitos e
defesa dos direitos das mulheres.
1 In: https://www.brasildefato.com.
− Paulina recusa o rótulo de romancista, br/2016/09/21/a-escrita-sagrada-da-
definindo-se apenas como contadora romancista-mocambicana-paulina-chiziane,
de histórias, inspirada naquilo que ouviu, acessado em 16/09/2021.
PAULINA CHIZIANE

“(...) Paulina, se não é a primeira, com forma, participar do processo reflexivo


certeza, é a voz que mais alto se eleva hoje desenvolvido pela narradora.
para recuperar temas “esquecidos” por
aqueles autores africanos de expressão − A oralidade, oriundas das velhas
portuguesa cujas raízes remontam ao histórias contadas por anciões, é um ponto
colonialismo – ainda que sejam críticos relevante na construção do romance.
ou tenham lutado contra o colonialismo
-, ao aflorar temas como o racismo, a
assimilação, a subjugação de valores
72 africanos aos valores europeus, a “O romance é permeado pela cultura
poligamia, as relações de subserviência africana, com suas lendas, mitos e
não só no lar, mas entre nações e grupos riquezas da tradição oral. Ao longo da
étnicos”.2 leitura surge um mosaico de culturas:
maconde, macua, ronga, tsonga,
machangana. O legado dessas culturas
é apresentado por intermédio de Rami
(etnia ronga), e pelas outras mulheres de
II. A Obra e o Estilo. Tony: Julieta (sul de Moçambique), Luísa
(etnia xingondo), Saly (etnia maconde) e
− É a obra mais conhecida da escritora e Mauá (etnia macua)”.3
conta a história da narradora-personagem
Rami, que se une às quatro amantes de
seu marido, Tony, para formarem uma
grande família.
Niketche, nome que define uma dança
− Composta de 43 capítulos, de de iniciação sexual feminina da Zambézia
tamanhos irregulares, a narrativa central e de Nampula, no Norte do país, região
é entremeada com pequenas histórias predominantemente macua, onde está
de tradição oral que revelam aspectos do a Ilha de Moçambique, primeira capital
universo da cultura moçambicana. das possessões portuguesas da África
Oriental.
− Com uma linguagem que incorpora o
uso do discurso direto representado nos
diálogos entre as personagens, o livro
conduz o leitor a compreender e, de certa “Uma dança nossa, dança macua —
explica Mauá —, uma dança do amor, que
as raparigas recém-iniciadas executam
2 In: O feminismo negro de Paulina Chiziane.
GONÇALVES, Adelto. Publicado no livro
Passagens para o Índico: encontros brasileiros 3 In: SANTOS, Cristina Mielczarski dos. A
com a literatura moçambicana, de Rita Chaves presença da voz em Niketche, de Paulina
e Tania Macêdo (organizadoras). Maputo: Chiziane. Nau Literária. ISSN 1981-4526.
Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, VOL. 07, N. 01. JAN/JUN 2011. seer.ufrgs.br/
pp. 33-41. NauLiteraria. p.1-16.
PAULINA CHIZIANE
aos olhos do mundo, para afirmar: somos este viés: a mulher como fonte produtora
mulheres. Maduras como frutas. Estamos e reprodutora dos filhos e também da
prontas para a vida! tradição. No decorrer da narrativa, ocorre
um contraponto a essa ideia de mulher
Niketche. A dança do sol e da lua, simplesmente reprodutora por intermédio
dança do vento e da chuva, dança da da fala da personagem-narradora:
criação. Uma dança que mexe, que “De repente lembro-me de uma frase
aquece. Que imobiliza o corpo e faz a famosa – ninguém nasce mulher, torna-
alma voar: As raparigas aparecem de se mulher. Onde terei eu ouvido esta
tangas e missangas. Movem o corpo frase?” (CHIZIANE, 2004, p.35). Rami, na 73
com arte saudando o despertar de continuação da narrativa, descreve todos
todas as primaveras. Ao primeiro toque os ritos pelos quais passou até “tornar-se
do tambor, cada um sorri, celebrando o mulher”. Entretanto, com a descoberta da
mistério da vida ao saboreio niketche. poligamia, o aprendizado ainda não havia
Os velhos recordam o amor que passou, terminado”. (SANTOS, 2011)
a paixão que se viveu e se perdeu. As
mulheres desamadas reencontram no
espaço o príncipe encantado com quem
cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. IV. As Mulheres em Moçambique
Nos jovens desperta a urgência de amar,
porque o niketche é sensualidade perfeita, O Norte do país é uma região matriarcal,
rainha de toda a sensualidade. Quando a onde as mulheres têm mais liberdade,
dança termina, podem ouvir-se entre os enquanto o Sul e o Centro são regiões
assistentes suspiros de quem desperta de patriarcais, extremamente machistas.
um sonho bom”.(p.138-139)*
Em país de poucos homens – milhares
morreram na guerra, muitos ficaram
mutilados, outros tantos emigraram -, as
mulheres, aparentemente, aceitam dividir
III. A Epígrafe. seus maridos umas com as outras, embora
a poligamia venha de tempos remotos,
“Mulher é terra. Sem semear, sem regar, quando os cultores do Islã desceram a
nada produz”. (Provérbio zambeziano) África e disseminaram suas crenças e
costumes.
“Esse provérbio reflete uma dicotomia:
por um lado, o peso da tradição, a mulher Em alguns lugares de Moçambique, como
como serventia apenas para a procriação; na província sulista de Gaza, é comum que
por outro lado, podemos analisar por a mulher atenda ao chamado do marido
de imediato, largando tudo o que está
fazendo. Mais: quando o marido chama, ela
*Todos os fragmentos deste resumo, serão não pode responder de pé.
retirados desta edição: CHIZIANE, Paulina.
Niketche, Uma história de poligamia. 1ª ed.-São
Paulo: Companhia de Bolso, 2021. p.61.*
PAULINA CHIZIANE

“Até na bíblia a mulher não presta. Os Poligamia e Feminismo:


santos, nas suas pregações antigas,
dizem que a mulher nada vale, a mulher “Para as seguidoras de Simone de
é um animal nutridor de maldade, fonte Beauvoir (1908-1986) e Flora Tristán
de todas as discussões, querelas e (1803-1844), tudo isto, certamente,
injustiças. É verdade. Se podemos ser parece estranho, mas é a forma que
trocadas, vendidas, torturadas, mortas, Paulina encontrou de denunciar o
escravizadas, encurraladas em haréns sofrimento das mulheres africanas,
como gado, é porque não fazemos falta subvertendo os valores tradicionais. Isso
74 nenhuma. Mas se não fazemos falta não significa que partilhe integralmente
nenhuma, por que é que Deus nos colocou dos valores das feministas brancas. A
no mundo? E esse Deus, se existe, por que dita civilização branca já levou tanto
nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é sofrimento à África que qualquer
que Deus parece não ter mulher nenhuma. ideia, mesmo emoldurada por valores
Se ele fosse casado, a deusa — sua humanitários, sempre é recebida com
esposa — intercederia por nós. Através desconfiança. E não poderia ser diferente”.
dela pediríamos a bênção de uma vida (GONÇALVES, 2012)
de harmonia. Mas a deusa deve existir,
penso. Deve ser tão invisível como todas
nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha
celestial”.(p.61)* “Transmito às mulheres a cultura da
resignação e do silêncio, tal como aprendi
da minha mãe. E a minha mãe aprendeu da
sua mãe. Foi sempre assim desde tempos
Observemos esta conversa sobre sem memória. Como podia eu imaginar
violência na família em que o Tony, fruto que estava a paralisar as asas das meninas
típico de uma sociedade patriarcal, à boca de nascença, a vendar os seus
justifica a sua condição de polígamo: olhos antes de conhecerem as cores da
vida?

— Pensa na vida e esquece o passado.


“Sou um homem bom, Rami, há homens Casa-te. E conjuga o verbo amar com
piores do que eu. Faço tudo bem feito. Ter letra maiúscula. Na sociedade terás mais
muitas mulheres é o direito que tanto a prestígio e estatuto.
tradição como a natureza me conferem.
Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas — Fui lobolada, sou reconhecida. O que
vezes, apenas para manifestar o meu falta?
carinho. Também te bati algumas vezes,
mas tu estás aí, não me abandonaste para —A lei é mais forte que a tradição.
lugar nenhum. A minha mãe foi sempre
espancada pelo meu pai, mas nunca —Estou bem assim.
abandonou o lar. As mulheres antigas são
melhores que as de hoje, que se espantam —Não estás bem coisa nenhuma.
com um simples açoite.” (p.246)* Vendo bem, o que são vocês as quatro?
PAULINA CHIZIANE
Para quê suportar as ridículas reuniões de “A ideia de que o homem complementa
esposas quando podes ter o teu espaço? a mulher vem do feminismo africano. As
Depois da semana conjugal, a solidão, moçambicanas acreditam que a luta por
depois da partida”.(p.221-222)* uma sociedade mais justa se dá junto ao
homem e, portanto, é indispensável que
ele esteja ao lado de sua mulher para
resolver os problemas da casa. Rami já não
Lobolo é o dote que o homem dá à mulher aceita carregar o fardo de cuidar dos filhos
ao casar, mas lobolar aqui serve também e da casa sozinha, por isso lastima que seu
para definir o ato de quem sustenta um lar. marido não esteja com ela”.4 75

“Olho para todas elas. Mulheres cansadas,


usadas. Mulheres belas, mulheres
feias. Mulheres novas, mulheres velhas. V. O Espelho
Mulheres vencidas na batalha do amor.
Vivas por fora e mortas por dentro, “— Quem és tu? — pergunto eu.
eternas habitantes das trevas. Mas
por que se foram embora os nossos — Não me reconheces? Olha bem para
maridos, porque nos abandonam depois mim.
de muitos anos de convivência? Por que
nos largam como trouxas, como fardos, — Estou a olhar, sim. Mas quem és tu?
para perseguir novas primaveras e novas
paixões? Por que é que, já na velhice, criam — Estás cega, gémea de mim.
novos apetites? Quem disse aos homens
velhos que as mulheres maduras não — Gémea? Não sou gémea de
precisam de carinho?” (p.12)* ninguém. Dos cinco filhos da minha mãe,
não há gémeo nenhum. Estou diante do
meu espelho. Que fazes tu aí?

Feminismo Africano: — Estás cega, gémea minha. Por que


choras tu?
“Um marido em casa é segurança e
proteção. Na presença de um marido, Solto da boca uma enxurrada de
os ladrões se afastam. Os homens lamentos. Conto toda a tristeza e digo que
respeitam. As vizinhas não entram em as mulheres deste mundo me roubam o
qualquer maneira para pedir sal, açúcar, marido.
muito menos para cortar na casa de outra
vizinha. Na presença de um marido, um lar
é mais lar; tem conforto e prestígio. (p.11)*
4 In: CARVALHO DOS SANTOS, J. ESCRITAS
SOBRE A CONDIÇÃO FEMININA: UMA
ANÁLISE DO ROMANCE NIKETCHE, DE
PAULINA CHIZIANE. Revista da Graduação, v.
8, n. 2, 19 nov. 2015.
PAULINA CHIZIANE

— Pode-se roubar uma pessoa viva, “O reflexo mostra-se mais evoluído


ainda por cima um comandante da polícia? e ajuda Rami a construir concepções
diferentes sobre os acontecimentos a
— Um marido rouba-se, nesta terra. sua volta. O espelho a alerta “agrediste a
vítima e deixaste o vilão. Não resolveste
—Não sejas criança, gémea minha. Ele nada.” (ibdem., 2002, p. 27). A partir desse
cansou-se de ti e partiu. momento, Rami compreende que as
mulheres não são suas rivais, concepção
—Mentes! que se tem das amantes, mas sim suas
76 aliadas em uma causa maior.
Entro em pânico. Enquanto eu soluço
a imagem dança. Paro de soluçar e fico A consciência de subalternidade inicia
em silêncio para escutar a canção mágica com o reflexo do espelho, no entanto, esse
desta dança. É o meu silêncio que escuto. objeto desaparece ao longo do romance,
E o meu silêncio dança, fazendo dançar o que nos dá a ideia de que o processo
o meu ciúme, a minha solidão, a minha de conscientização da personagem está
mágoa. A minha cabeça também entra completo. Afinal, não é preciso que o
na dança, sinto vertigens. Estarei eu a espelho a alerte para as contradições do
enlouquecer? sistema patriarcal, Rami já sabe perceber
e questionar esses aspectos sozinha”.
— Por que danças tu, espelho meu? (SANTOS, 2015)

— Celebro o amor e a vida. Danço sobre


a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e
a solidão. Piso para o fundo da terra todos VI. Personagens
os males que me torturam. A dança liberta
a mente das preocupações do momento. O livro trata do universo feminino e, sendo
A dança é uma prece. Na dança celebro a assim, as personagens mais importantes
vida enquanto aguardo a morte. Por que é são as mulheres moçambicanas e
que não danças?” (p.14-15)* suas histórias povoadas de opressão e
submissão em relação aos homens.

Os percalços vivenciados pelas


Assim que Rami descobre ser traída, personagens, enquanto indivíduos do sexo
sai à procura das amantes de Tony, e feminino ocorrem frente a uma sociedade
ao encontrá-las, entra em uma briga dividida entre o Feminino/Masculino,
corporal, da qual sai bastante machucada. o Matriarcal/Patriarcal, a Monogamia/
Ao chegar em casa, recorre ao espelho Poligamia, a Tradição/Contemporaneidade
em busca de respostas para o seu e Norte/Sul.
comportamento.
As personagens masculinas funcionam
como apoio e contraponto para que os
temas que envolvem o feminino possam
ser explorados.
PAULINA CHIZIANE
− Rami: Ao precisar justificar publicamente a
ausência de Tony, Rami percebe também
Seu nome verdadeiro é Rosa Maria, uma a situação dolorosa de suas vizinhas. O
mulher do Sul, bela e inteligente, que primeiro movimento da personagem é, no
durante a juventude havia sido disputada entanto, de buscar a culpa.
por vários homens, mas que se casou
com Tony que, seguindo a tradição local, Quem eram os responsáveis dessas
sempre teve muitas mulheres, ainda que a “fugas” e dessas ausências?
esposa sempre lhe tivesse sido fiel.
Apesar de cogitar culpar o marido pelo seu 77
A narradora-personagem, todo o tempo, sofrimento, Rami volta-se para si mesma,
recorre ao fluxo de consciência para examina-se ao espelho, culpa-se.
refletir sobre a sua condição de mulher
moçambicana. “Vou ao espelho tentar descobrir o que há
de errado em mim. Vejo olheiras negras
“Preciso de um espaço para repousar o no meu rosto, meu Deus, grandes olheiras!
meu ser. Preciso de um pedaço de terra. Tenho andado a chorar muito por estes
Mas onde está minha terra? Na terra do dias, choro até demais! Olho bem para
meu marido? Não, não sou de lá. Ele diz- a minha imagem. Com esta máscara de
me que não sou de lá, e se os espíritos tristeza, pareço um fantasma, essa aí não
da sua família não me quiserem lá, pode sou eu.”(p.14)*
expulsar-me de lá. O meu cordão umbilical
foi enterrado na terra onde nasci, mas a
tradição também diz que não sou de lá. Na
terra do meu marido sou estrangeira. Na Ao conhecer as amantes de seu marido,
terra dos meus pais sou passageira. Não Rami vai entrar em contato com séculos
sou de lugar nenhum. Não tenho registo, de tradição e de costumes, a crueldade
no mapa da vida não tenho nome. Uso este da vida e também com a diversidade de
nome de casada que me pode ser retirado mundos e culturas que convivem em
a qualquer momento. Por empréstimo. Moçambique.
Usei o nome paterno, que me foi retirado.
Era empréstimo. A minha alma é a minha “Poligamia é o destino de tantas
morada. Mas onde vive a minha alma? mulheres neste mundo desde os tempos
Uma mulher sozinha é um grão de poeira sem memória. Conheço um povo sem
no espaço, que o vento varre para cá e poligamia: o povo macua. Este povo
para lá, na purificação do mundo. Uma deixou as suas raízes e apoligamou-se
sombra sem sol, nem solo, nem nome. por influência da religião. Islamizou-se.
Os homens deste povo aproveitaram a
Não, não sou nada. Não existo em parte ocasião e converteram-se de imediato.
nenhuma”.(p.80)* Porque poligamia é poder, porque é bom
ser patriarca e dominar. Conheço um
povo com tradição poligâmica: o meu,
do sul do meu país. Inspirado no papa,
nos padres e nos santos, disse não à
PAULINA CHIZIANE

poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os “Penso muito nessa tal Julieta ou Juliana.
costumes bárbaros de casar com muitas Mulher bonita, ouvi dizer. Tem com o meu
mulheres para tornar-se monógamo ou Tony muitos filhos, não sei quantos. É
celibatário. Tinha o poder e renunciou. A um segundo lar, sólido e fixo. Na minha
prática mostrou que com uma só esposa mente correm ideias macabras. De
não se faz um grande patriarca. Por isso repente apetece-me ferver um pote de
os homens deste povo hoje reclamam óleo e derramar na cara dessa Julieta ou
o estatuto perdido e querem regressar Juliana, para eliminá-la do meu caminho.
às raízes. Praticam uma poligamia tipo Apetece-me andar à pancadaria como
78 ilegal, informal sem cumprir os devidos uma peixeira. Rezo. Rezo com todo o
mandamentos. Um dia dizem não aos fervor para que essa mulher morra e vá
costumes, sim ao cristianismo e à lei. para o inferno. Mas ela não morre e nem o
No momento seguinte, dizem não onde romance acaba. Enquanto ela viver, nunca
disseram sim, ou sim onde disseram não. terei o meu marido por completo e eu não
Contradizem-se, mas é fácil de entender o quero dividir com ela. Marido não é pão
A poligamia dá privilégios. Ter mordomia é que se corta com faca de pão, uma fatia
coisa boa: uma mulher para cozinhar, outra por cada mulher. Só o corpo de Cristo é
para lavar os pés, uma para passear, outra que se espreme em gotas do tamanho do
para passar a noite. Ter reprodutoras de mundo para saciar o universo de crentes
mão-de-obra, para as pastagens e gado, na comunhão de sangue”. (p.18)*
para os campos de cereais, para tudo, sem
o menor esforço, pelos simples facto de
ter nascido homem”. (p.81-82)*
− Luísa:

Terceira mulher de Tony.


− Julieta:
Mulher bela e elegante, Lu foi encontrada
Segunda mulher de Tony. por Tony quando se prostituía nas ruas.

Mãe de cinco filhos e grávida do sexto, Na infância sofreu abusos sexuais de


Ju é uma mulher tímida que acaba por soldados e acabou entregue pela mãe a
se tornar a mulher ideal, já que admite um velho em troca de um cobertor para
sua submissão e resignação diante do cobrir os irmãos.
contexto em que está envolvida.
Maltratada pelas outras esposas do velho,
Incentivada por Rami, consegue sua foge e torna-se prostituta na cidade de
independência financeira com um Beira.
armazém.
Sabe da condição de casado de Tony e não
No final, abandona Tony e se casa com um tem nenhuma ilusão acerca do amor e do
português rico. casamento.
PAULINA CHIZIANE
Após briga corporal com Rami, acabam na — Sabia. Mas ele gosta de mim. Eu
prisão, onde dialogam sobre a condição da gosto dele. Visita-me sempre que pode.
mulher. Temos dois filhos.

“— Sabes o que significa ser mulher de — Que espécie de lar esperas


um homem casado? É o mesmo que fazer construir com um homem casado?
filhos na sombra da outra mulher. É não ser
socialmente reconhecida como esposa. É — Não tenho ilusões. Quer seja
ser abandonada a qualquer momento, ser esposa ou amante, a mulher é uma camisa
usada, ser trocada. Que futuro esperas tu? que o homem usa e despe. É um lenço de 79
papel, que se rasga e não se emenda. É
— E a senhora, que presente tem? sapato que descola e acaba no lixo. Choca-
Lutar com rivais na rua, estar detida numa me a frontalidade desta mulher. Que aceita
cela, era o futuro que esperava? ser usada e ser jogada, como bagaço de
cana doce. Que vive um instante do amor
— Mas tu não fazes a instituição, como eternidade. Que fala da amargura
eu sim. Tu és a concubina e eu a esposa. com doçura. Diz tudo sem rodeios.
És secreta e eu reconhecida. Tenho Escuto-a. Esta mulher me espanta. Esta
segurança, direito a herança e tu não tens franqueza me encanta”. (p.48-49)*
direito a nada. Tenho certidão de casada e
aliança no dedo.

— Mas eu é que tenho prazer, − Saly:


recebo amor e todo o salário do seu
marido. Eu conheço a alegria de viver. Quarta mulher de Tony.
Acha isso pouco?
Mulher impulsiva, comporta-se como uma
A tensão ameaça subir outra vez. amazona, guerreira, disposta a ganhar
Ganho uma coragem de ferro e resisto, todas as batalhas.
não respondo. Sinto que estou a engolir
hóstias de veneno, agulhas, vidros Também incentivada por Rami, conseguirá
quebrados. Faço todo o esforço do mundo sua independência financeira com uma
para não perder a calma. Avalio-a. Uma loja e um salão de chá.
mulher sem nome. Sem sombra. Sem casa,
nem marido, nem emprego. Que tem um Com o tempo, volta a estudar o português
amante que a visita sempre que pode. Que para obter sucesso na gestão de seus
não se importa de parasitar na sombra de negócios.
outrem, nem de provocar a dor no meu
coração. Um padre italiano abandona a batina e ela
termina a história casada com ele.
— Não sabias que era casado?
“— Luísa, sentes-te esposa legítima do
Tony?
PAULINA CHIZIANE

— Enquanto ele me der assistência, − Mauá:


sim. Nós, lá do norte, somos práticas. Não
perdemos muito tempo com esses rituais Quinta mulher de Tony.
de lobolos, casamentos e confusões.
Basta um homem estar comigo uma Com aproximadamente 19 anos e tendo
noite para ser meu marido. E quando essa passado por uma escola de amor, é a mais
relação gera um filho o casamento fica jovem de tosas as esposas.
consolidado, eterno. Enquanto o Tony me
der comida, cama, alimento, sou esposa Resistente ao trabalho, num primeiro
80 legítima, sim. momento, por se julgar inapta, termina
abrindo um salão de beleza.
— E quando deixar de te assistir?
Também mantém um “assistente
— Esse é outro capítulo. conjugal” com quem termina a história.

— O Tony tem-te assistido “Entrei em vertiginosas buscas. Queria


regularmente? saber tudo sobre os amores do meu Tony
Fui ter com a Saly, a maconde. Ela indicou-
— Ultimamente falha, por causa dessa me a Mauá. Mauá Sualé, uma macuazinha
Saly. que é um encanto.

— Qual Saly? O coração do meu Tony é uma


constelação de cinco pontos. Um
— Uma maconde nervosa, que vive no pentágono. Eu, Rami,sou a primeira dama,
Bairro Central. a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a
enganada, ocupando o posto de segunda
— E o que fazes quando a assistência dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no
não vem? lugar de terceira dama. A Saly a apetecida,
é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a
— Desenrasco. Faço qualquer negócio. amada, a caçulinha, recém adquirida. O
nosso lar é um polígono de seis pontos. É
Esta mulher me excita. Ela me provoca, polígamo. Um hexágono amoroso”. (p.52)*
dá cabo do meu juízo. Rouba-me o marido
e ainda por cima me bate, depois ofende-
me, acusa-me não sei de quê. O meu
Tony é do sul, é machangana e dos duros. − Eva:
Conheceu o norte apenas em missões
militares e nunca viveu lá muito tempo”. Mulher com quem Tony passa a se
(p.50-51)* relacionar depois de oficializar sua relação
com as esposas.

Culta, bem sucedida, tornou-se amiga


de Tony, sem saber que ele tinha várias
esposas.
PAULINA CHIZIANE
Ela quem sugere a Tony uma viagem desempenho piora a cada dia. No lugar de
a Paris para que ele cuidasse de um corrigir o que está mal, buscas mais uma.
problema no joelho. És bom na conquista, mas não aguentas
connosco. Para que queres tu mais uma?
Surpreende-se ao saber que Tony
embarca com uma nova mulher para uma Nos olhos do Tony a surpresa, a raiva,
nova lua de mel. a arrogância. Responde com grosseria
e humilha-nos no habitual discurso de
As cinco esposas pensam em incluí-la macho. Já esperávamos.
nas escalas e obrigações de Tony como a 81
sexta esposa, porém ele rejeita a ideia e se — O que vocês pensam que são? Sou
afasta dela. o vosso marido, mas isso não vos dá o
direito de interferir na minha vida”.
“— Sentes-te realizado connosco, não é, (p.121-122)*
Tony?—pergunta a Lu, com voz trémula.

— Muito, muito!
− Gaby:
— O que te faz então procurar uma
nova mulher? Mulher com quem Tony viaja para a
França, enquanto todos acreditavam que
— Nova quê? ele tinha morrido.

— Estamos a falar da Eva, a mulata. As esposas cogitam em colocá-la como a


sétima esposa, mas isso não acontece.
Ele sente que está na ratoeira, mas
depressa recupera a calma, levanta a voz e “— Não me quero envolver nesta história,
responde sem rodeios. Rami, mas a verdade é que também não
consigo ficar alheia.
— Vontade de variar, meninas. Desejo
de tocar numa pele mais clara. Vocês são Nos olhos de Eva, duas lágrimas
todas escuras, uma cambada de pretas. suspendem-se nas orbitas, ameaçando
invadir as comportas para correr em
— Sabujo de coração sujo — grita a liberdade pelo rosto claro. Se caírem vão
Mauá. estragar a maquilhagem, ela vai ficar
borrada, feia, meu Deus, faz alguma coisa
— Esse é um assunto meu, não se para evitar a desgraça.
metam nisso.
— Porquê este interesse, porquê?
— Somos tuas esposas e nos deves
explicações — responde a Saly — Tenho as minhas razões. Primeiro, fui
eu que sugeri ao Tony esta viagem para ir
— Vejamos o teu procedimento nestes consultar um médico por causa daquele
últimos tempos — vocifera a Lu. — O teu problema do joelho. Tratei de tudo, desde
PAULINA CHIZIANE

as reservas de voos, hotéis, consultas. − Tony ou António Tomás:


Quando tudo está pronto, carrega na
bagagem outra mulher, para a lua-de-mel. Marido de Rami.
A tal Gaby. Segundo, eu não sabia que ele
tinha tantas mulheres. Conhecia apenas Comandante do alto escalão da polícia,
a Mauá, a quem ele me convenceu ser a tem o comportamento legitimado pelo
única e a legítima esposa. Descobri que ele machismo da sociedade em que vive.
mentia. Fiquei muito magoada”.
(p.185-186)* Tony não demonstra preocupação em
82 agradar suas esposas e não aparenta
indício de sentimento de culpa pelo
sofrimento que produz nas mulheres.
− Saluá:
Embora sua situação mude diante da
Jovem de 18 anos que as esposas de Tony sociedade ao assumir todas as mulheres,
encontram para ser sua nova mulher. continua não percebendo seu papel de
opressor.
Apesar de encantadora, é negada por
Tony. “— A Mauá é o meu franguinho — diz —,
passou por uma escola de amor, ela é uma
“O Tony perde a cabeça, meu Deus, doçura. A Saly é boa de cozinha. Por vezes
quando a Saluá abre a boca e deixa ver acordo de madrugada com saudades
aqueles dentes mais brancos que os dos petiscos dela. Mas também é boa de
grãos de milho, mais brilhantes que as briga, o que é bom para relaxar os meus
pérolas, produz-se um reflexo lunar, que nervos. Nos dias em que o trabalho corre
lhe fica bem. Quando ela fala, o sopro que mal e tenho vontade de gritar, procuro-a
solta daquela flauta, lhe fica bem. Aquela só para discutir. Discutimos. E dou gritos
pele de caju maduro, aqueles olhos de bons para oxigenar os pulmões e libertar
gata mansa, lhe ficam tão bem. O corpo a tensão. A Lu é boa de corpo e enfeita-
suculento de tomate fresco fica bem para se com arte. Irradia um magnetismo tal
a boca semi desdentada de um polígamo que dá gosto andar com ela pela estrada
de cinquenta e tantos anos. É a perdição fora. Faz-me bem a sua companhia. A Ju
no paraíso, esta Saluá. O papel de serpente é o meu monumento de erro e perdão. É
no paraíso bantu lhe fica bem. a mulher a quem mais enganei. Prometi
casamento, desviei-lhe o curso da sua
—Tony—explica a Saly—, conhecemos vida, enchi-a de filhos. Era boa estudante e
as tuas aspirações de abraçar o país tinha grandes horizontes. É a mais bonita
inteiro em casamento, por isso fomos de todas vocês, podia ter feito um grande
buscar esta nortenha do lado oeste. Ela casamento. Da Rami? Nem vou comentar.
fala português com acento nbanja, mas É a minha primeira dama. Nela me afirmei
vamos corrigi-la no devido tempo”. como homem perante o mundo. Ela é
(p.280-281)* minha mãe, minha rainha, meu âmago,
meu alicerce”.(p.120)*
PAULINA CHIZIANE
− Levy: “Recordo-me. A culpa foi toda minha.
O meu corpo inteiro treme como um
Irmão de Tony. terramoto. De medo. De vergonha. Dormi
com o amante da Lu! Aquela sedenta
Relaciona-se sexualmente com Rami após era eu, no meio do deserto, perseguindo
a morte do irmão, num ritual conhecido um grão de chuva. Aquela depravada
como Kutchinga. era eu, bebendo vinho, copo sobre copo,
como uma prostituta. Entreguei-me a um
“A multidão lança gritos de bradar aos desconhecido como uma vagabunda. Será
céus. É um oceano de desespero. Quem que a Luísa me criou esta cilada? Quem é 83
quer que seja o morto enterrado, teve a Luísa? Quem é o estranho? Eu era uma
um funeral condigno,com lágrimas que pedra firme. Incorruptível. Sempre vivi
não eram suas. Eu estou serena, derramo acima das outras mulheres porque era a
uma lágrima apenas, para não estragar a mulher de todas as virtudes. Feri a minha
minha pose. Olho para o Levy com olhos fidelidade, abri uma brecha, uma ferida
gulosos. Ele será o meu purificador sexual, que não cicatriza. Derrubei os pilares onde
a decisão já foi tomada e ele acatou-a com assentavam todos os valores, não resisti
prazer. Dentro de pouco tempo estarei nos à tentação. Queria tanto um detergente
seus braços, na cerimónia de Kutchinga. para esfregar esta mancha. Uma caverna
Serei viúva apenas por oito dias. Sou um profunda para esconder a arma do crime,
pouco mais velha que ele, mas sinto que mas a arma do crime é o meu corpo, ah,
vai amar-me e muito, pois apesar desta meu corpo, meu inimigo! Como podia eu
idade e deste peso tenho muita doçura resistir aos teus apelos? Carne maldita,
e muito charme. Daqui a oito dias vou- o que fizeste da minha alma? É difícil ser
me despir. Dançar niketche só para ele, fiel, quando se tem o corpo em chamas. É
enquanto a esposa legítima morre de difícil esta abstinência forçada, meu Deus,
ciúmes lá fora. Vou pedir a Mauá para me é difícil ser mulher”. (p.71-72)*
iniciar nos passos desta dança, ah, que o
tempo demora a passar! Deus queira que o
Tony só regresse a casa depois deste acto
consumado”. (p.191-192)* − Professora de amor:

Rami fará 15 aulas como se fosse seu rito


de iniciação.
− Vito:
“Ela oferece-me um assento, diante dela.
Amante de Luísa, manterá relações Olhamo-nos. Avaliamo-nos. É da minha
sexuais com Rami. idade, quase. Alta. Robusta. Gorda, até.
Mais gorda que eu. Preenche o sofá
Rami convencerá Luísa a se casar com ele todo com as carnes do seu traseiro, que
e abandonar Tony. transbordam como tesouro.

Estende os braços e os coloca sobre


as costas do sofá, para arejar os sovacos,
PAULINA CHIZIANE

com o maior à-vontade deste mundo. − Mãe de Tony:


Tomara. Ela está acima dos problemas
das mulheres deste mundo. Em matéria Superprotetora e orgulhosa do filho.
de amor ela está no alto. Invejo-a. Sabe
tudo sobre o amor. Deve ter vivido tudo, Quando a poligamia é assumida por seu
provado tudo e sabe de tudo. Ela distingue filho, interessa-se por conhecer todas as
uma mulher feliz e uma mulher insatisfeita suas esposas e netos.
com um simples relance da vista. Veste
uma enorme túnica, de amarelo-dourado. − Padre, tio de Rami:
84 Na cabeça pende um turbante colocado
com arte como uma coroa de rainha. Ela Personagem que simboliza a flexibilidade
usa ouro, muito ouro. Tem a imagem da da moral cristã.
Rainha de Sabá — os livros apresentam
uma Sabá magra e sem curvas, corpo − Tio de Mauá:
europeizado, mas as rainhas africanas são
gordas, pois são bem abastecidas tanto no Representante masculino das etnias
amor como na comida”. (p.31)* macua e maconde, onde as mulheres são
mais valorizadas.

Busca proteger e garantir os direitos de


− Pais de Rami: sua sobrinha.

A mãe é carinhosa e apoia a filha em


sua busca pelo autoconhecimento, mas VII. Tempo e Espaço
aconselha Rami a permanecer com Tony.
Romance urbano que tem como cenário a
O pai ignora os problemas da filha, cidade de Maputo, capital de Moçambique.
defendendo que ela deve manter-se
submissa ao marido. A cidade representa o pensamento do sul
do país, dividido entre as tradições locais e
− Tia Maria: os costumes herdados da colonização.

Foi a 25ª esposa de um rei, a quem foi A obra tem seu tempo situado por volta
entregue como pagamento de uma dívida de 2002, portanto, próximo à libertação
de seu pai. colonial e à guerra civil moçambicana.

Teve dois filhos de um guarda e na velhice “Um estrondo ouve-se do lado de lá.
mantém dois maridos vivendo juntos. Uma bomba. Mina antipessoal. Deve ser
a guerra a regressar outra vez. Penso
Ajudará Rami na decisão de tornar-se a em esconder-me. Em fugir. O estrondo
primeira esposa de um polígamo. espanta os pássaros que voam para a
segurança das alturas. Não. Não deve
ser o projétil de uma bala. Talvez sejam
dois carros em colisão pela estrada fora.
PAULINA CHIZIANE
Lanço os olhos curiosos para a estrada. nobre, com o irmão de circuncisão. Esposa
Não vejo nada. Apenas silêncio. Sinto um é água que se serve ao caminhante, ao
tremor ligeiro dentro do peito e fico imóvel visitante. A relação de amor é uma pegada
por uns instantes. Um bando de vizinhas na areia do mar que as ondas apagam. Mas
caminham na minha direção. deixa marcas. Uma só família pode ser um
mosaico de cores e raças de acordo com
— Rami! o tipo de visitas que a família tem, porque
mulher é fertilidade. É por isso que em
— O que foi? muitas regiões os filhos recebem o apelido
da mãe. Na reprodução humana, só a mãe 85
— O carro”. (p.09)* é certa. No sul, a situação é bem outra. Só
se entrega a mulher ao irmão de sangue
ou de circuncisão quando o homem é
estéril”. (p.35-36)*
“O tempo transcorrido Na ação de
Niketche não tem marcas claras, assim
também como não são oferecidas
marcações temporais que permitem ao “As vozes das mulheres do norte
leitor localizar mais precisamente a obra. censuram em uníssono. No sul a
A opção da autora por manter nebuloso sociedade é habitada por mulheres
esse aspecto da narrativa contribui para a nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul
noção de atemporalidade que, associadas as mulheres são exiladas no seu próprio
à contemporaneidade, torna ainda mais mundo, condenadas a morrer sem saber o
chocante o desenrolar do enredo. Pela que é amor e vida. No sul as mulheres são
profusão de acontecimentos incluídos na tristes, são mais escravas. Caminham de
ação do livro, compreende-se que toda a cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem
narrativa se desenvolve por mais de um a alegria de viver. Não cuidam do corpo,
ano na vida das personagens. Apenas nem fazem massagens ou uma pintura
um aniversário de Tony é mencionado e para alegrar o rosto. Somos mais alegres,
não há outras referências a outras festas lá no norte. Vestimos de cor, de fantasia.
anuais”. (SOARES, 2021) Pintamo-nos, cuidamo-nos, enfeitamo-
nos. Pisamos o chão com segurança. Os
homens nos oferecem prendas, ai deles
se não nos dão uma prenda. Na hora do
casamento o homem vem construir o
VIII. Linhas Temáticas lar na nossa casa materna e quando o
amor acaba, é ele quem parte. No norte
1. Cultura das regiões Sul e Norte. as mulheres são mais belas. No norte,
ninguém escraviza ninguém, porque tanto
“As culturas são fronteiras invisíveis homens como mulheres são filhos do
construindo a fortaleza do mundo. Em mesmo Deus. Mas norte, o homem é Deus
algumas regiões do norte de Moçambique, também. Não um deus opressor mas um
o amor é feito e partilhas. Partilha-se deus amigo, um deus confidente, um deus
mulher com o amigo, com o visitante companheiro”. (p.152-153)*
PAULINA CHIZIANE

2. Violência contra a Mulher. traiu-o. Foi apanhada em flagrante com


outro”. (p.103-104)*
“Eu decidi ir com a Lu para a venda
de roupas. Vendemos no mercado da
esquina onde há grande clientela. Este
mercado está cheio de mulheres, todas 3. Guerra e Violência sexual.
elas falando alto, gritando, na caça dos
clientes. Quando o movimento declina, “Fazemos viver, mas não vivemos.
as mulheres sentam-se em roda, comem Fazemos nascer, mas não nascemos. Há
86 a refeição do dia e falam de amor Um dias conheci uma mulher do interior da
amor transformado em ódio, em raiva, Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos.
em desespero, em trauma. Fui violada O primeiro, um mulato esbelto, é dos
sexualmente aos oito anos pelo meu portugueses que a violaram durante a
padrasto, diz uma. O teu caso foi melhor guerra colonial. O segundo, um preto,
que o meu. Eu fui violada aos dez anos elegante e forte como um guerreiro, é
pelo meu verdadeiro pai. Ganhei infecções fruto de outra violação dos guerrilheiros
e perdi o útero. Não tenho filhos, não de libertação da mesma guerra colonial.
posso ter. Eu casei-me, diz outra. Fui feliz O terceiro, outro mulato, mimoso como
e tive três filhos. Um dia, o meu marido um gato, é dos comandos rodesianos
saiu do país à busca de trabalho e não brancos, que arrasaram esta terra para
voltou mais. Eu levava muita pancada, aniquilar as bases dos guerrilheiros do
diz a outra. Ele trancava-me no quarto Zimbabwe. O quarto é dos rebeldes que
com os meus filhos e dormia com outras fizeram a guerra civil no interior do país. A
no quarto do lado. Fui violada por cinco, primeira e a segunda vez foi violada, mas
durante a guerra civil, diz a outra. Este filho à terceira e à quarta entregou-se de livre
bonito que tenho nas costas nem sei de vontade, porque se sentia especializada
quem é. Cada vez que olho para esta pobre em violação sexual. O quinto é de um
criatura, recordo-me daquele momento homem com quem se deitou por amor
horrível em que ia morrer. A minha mãe pela primeira vez.
morreu nos meus braços, diz outra. Foi
espancada de uma forma brutal pelo Essa mulher carregou a história de
meu pai e morreu a caminho do hospital. todas as guerras do país num só ventre.
A partir dali nunca mais quis ver homem Mas ela canta e ri. Conta a sua história a
à minha frente. Nem quero trazer filhos qualquer um que passa, de lágrimas nos
ao mundo, para sofrerem os tormentos olhos e sorriso nos lábios e declara: Os
desta vida. O meu marido bebe, diz outra, meus quatro filhos sem pai nem apelido
bebe tanto que já nem trabalha. No fim de são filhos dos deuses do fogo, filhos da
cada dia é só violência naquela casa. Quer história, nascidos pelo poder dos braços
o meu dinheiro para ir beber, mas eu não armados com metralhadoras. A minha
dou. Uma diz que é casada há doze anos e felicidade foi ter gerado só homens, diz
é feliz. Nunca teve problemas e vende no ela, nenhum deles conhecerá a dor da
mercado para ajudar o marido, que ganha violação sexual”. (p.241-242)*
pouco. Outra diz que o marido era bom. Ela
PAULINA CHIZIANE
4. Sexualidade feminina no Norte. — Oh, Rami, não cometeste crime
nenhum.
“— Luísa, como é que isto foi acontecer,
logo comigo? — Isto é adultério.

— Oh, Rami. Aquele homem não é — Adultério? Há quanto tempo esperas


criança nenhuma. És uma mulher carente, por quem não vem? Vocês, mulheres do
mal cuidada, abandonada, vê-se. Ele sul, perdem tempo com essas histórias
prestou-te um serviço. Não há nada de e preconceitos. Renunciam à existência,
errado nisso. pode-se saber porquê? Fidelidade a quê, 87
se ele já te deixou? Mesmo as viúvas
— O que aconteceu foi estupro. Fui aliviam o luto em algum momento. E tu não
violada. és viúva, o Tony está vivo, está feliz e anda
a fazer das suas, por aí”. (p.72-73)*
— Achas?

— Sim. Eu estava inconsciente,


embriagada, o homem aproveitou-se da 5. Cultura da submissão da Mulher.
minha fraqueza.
“— Devem servir o vosso marido de
— Será? joelhos, como a lei manda. Nunca servi-
lo na panela, mas sempre em pratos. Ele
— Invadi o teu espaço. não pode tocar na loiça nem entrar na
cozinha. Quando servirem galinha, não
— Não sou possessiva. Venho de se esqueçam das regras. Aos homens
uma terra onde a solidariedade não tem se servem os melhores nacos: as coxas,
fronteiras. Venho de um lugar onde se o peito, a moela. Quando servirem carne
empresta o marido à melhor amiga para de vaca, são para ele os bifes, os ossos
fazer um filho, com a mesma facilidade gordos com tutano. É preciso investir
com que se empresta uma colher de pau. nele, tanto no amor como na comida. O
Na minha comunidade o marido empresta seu prato deve ser o mais cheio e o mais
uma esposa ao melhor amigo e ao ilustre completo, para ganhar mais forças e
visitante. Na minha aldeia, o amor é produzir filhos de boa saúde, pois sem ele
solenemente partilhado em comunhão a família não existe”. (p.109-110)*
como uma hóstia. O sexo é um copo de
água para matar a sede, pão de cada dia,
precioso e imprescindível como o ar que
respiramos. Se já partilhamos um marido, “Lavamos a loiça. Conversamos, lavando
partilhar um amante é mais fácil ainda. também as nossas mágoas. A memória
Assim as contas estão pagas, não é, Rami? cava histórias antigas, histórias do ciclo
vital. A Ju relata coisas da sua infância. Ao
— Sinto tanta vergonha! nascer, a menina é anunciada com três
salvas de tambor, o rapaz com cinco. O
nascimento da menina é celebrado com
PAULINA CHIZIANE

uma galinha, o do rapaz celebra-se com do universo. Um pai é segurança, diz-se


uma vaca ou uma cabra. A cerimónia Que segurança? Meu pai não quer que
de nascimento do rapaz é feita dentro disturbe a sua meditação perpétua. Sou o
de casa ou debaixo da árvore dos fel que se retende afastado do peito. Um
antepassados, a da menina é feita ao espinho a remover, a afastar, a aparar. Os
relento. Filho homem mama dois anos sentimentos das filhas não passam grãos
e mulher apenas um. Meninas pilando, de areia. Simples poeira. Insignificantes.
cozinhando, rapazes estudando. O homem Olha, pai, vou-me embora, digo-lhe. Deus
é quem casa, a mulher é casada. O homem me livre de ficar mais um minuto diante
88 dorme, a mulher é dormida. A mulher fica deste velho. Procuro a minha mãe para lhe
viúva, o homem só fica com menos uma transmitir os segredos do meu coração.
esposa”. (p.139-140)* Aproximo-me dela”. (p.86)*

6. Emancipação feminina. “Coloquei o dedo nas feridas da alma


e espremi lamentos. Desencantos.
“— Se o teu marido não te responde, é em Desabafos. Estas mulheres simbolizam
ti que está a falta. a dor do mundo. Bebo as suas dores, os
seus sentimentos. Elas tinham no peito
— Que falta, pai? uma flor e se deram por amor. Abriram o
corpo, esse mágico labirinto, e deixaram
A voz dele é áspera e corrosiva como germinar outras flores sem rega, nem pão,
veneno espalhado ao vento. Fala com nem esperança.
desprezo, como quem diz: ó menina, não
me traz mais problemas, que já tive tantos Sofro por essas crianças. A situação
nesta vida. E continua o seu discurso: destas concubinas é de longe pior que a
minha. Sem proteção legal, nem familiar.
— As mulheres de hoje falam muito por As casas onde moram são propriedade do
causa dessa coisa de emancipação. Falas senhor, é ele quem paga as rendas no fim
demais, filha. No meu tempo, as mulheres de cada mês. Pode expulsá-las quando
não eram assim. entender, arremessá-las à pobreza total.
Se ele morre, não terão direito a nada,
Foi difícil aceitar o que estava a porque não constituem família de coisa
ouvir. A minha esperança morreu, sou nenhuma, são apenas satélites da família
um caso perdido. Que vergonha eu principal. É preciso inverter a ordem
sinto. Estou desesperadamente a pedir das coisas. Mas como? Reúno todos os
socorro e respondem-me com histórias sentimentos recolhidos em cada boca e
de macho. Os problemas de uma faço a radiografia do amor”. (p.92)*
mulher são classificados no arquivo das
insignificâncias, caprichos, incapacidades.
São assim os pais. Sempre educando os
filhos para serem tiranos e as filhas para
aceitarem a tirania segundo a ordem
PAULINA CHIZIANE
7. Machismo. aponta-se logo o coração e nada mais.
Mas o amor é coração, corpo, alma, sonho
“— Estamos a ganhar dinheiro para e esperança. O amor é o universo inteiro e
melhorar a vida, Tony. por isso nem a anatomia nem a cardiologia
conseguiram ainda indicar o lado do
— Por isso me afrontam, porque têm coração onde fica o amor”. (p.41)*
dinheiro. Por isso me abusam, porque têm
negócios. Por isso me faltam ao respeito,
porque se sentem senhoras. Mas eu sou
um galo, tenho a cabeça no alto, eu canto, 9. Tradição Cultural. 89
eu tenho dotes para grandes cantos. Pois
saibam que o vosso destino é cacarejar, “A nossa tradição é de longe superior ao
desovar, chocar, olhar para a terra e luto cristão. Para quê tantas lágrimas,
esgaravatar para ganhar uma minhoca tantas velas, tantas flores, jejum,
e farelo de grão. Por mais poder que abstinência, se o morto está morto e a vida
venham a ter, não passarão de uma raça continua? Chamem-me desavergonhada.
cacarejante mendigando eternamente o Deem-me todos os nomes feios que
abraço supremo de um galo como eu, para quiserem. Sou mulher e basta. Estou a
se afirmarem na vida. Vocês são morcegos cumprir à risca a tradição ditada pela
na noite piando tristezas, e as vossas família do meu marido.
vozes eternos gemidos”. (p.144)*
Depois do funeral, a divisão de bens.
Carregam tudo que podem: geleiras,
camas, pratos, mobílias, cortinados. Até
8. Colonização. as peúgas e cuecas do Tony disputaram.
Levaram quadros, tapetes da casa de
“Por que é que a igreja proibiu estas banho. Deixaram-me as paredes e o teto,
práticas tão vitais para a harmonia de e dão-me um prazo de trinta dias para
um lar? Por que é que os políticos da abandonar a casa. Pilharam a mim, só
geração da liberdade levantaram o punho a mim. As outras não. Contam histórias
e disseram abaixo os ritos de iniciação? mais extraordinárias à volta delas. Dizem
É algum crime ter uma escola de amor? que não são viúvas verdadeiras. Que
Diziam eles que essas escolas tinham são nortenhas e têm cultura diferente.
hábitos retrógrados. E têm. Dizem que são Que os xingondos são unidos e provocar
conservadoras. E são. A igreja também um é provocar todos. Que os espíritos
é. Também o são a universidade e todas desses senas, macuas, macondes. além
as escolas formais. Em lugar de destruir de poderosos são perigosos. Beneficiar
as escolas de amor, por que não reformá- do estatuto de viúva é ficar nua, com uma
las? O colonizado é cego. Destrói o seu, mão à frente e outra atrás?” (p.192)*
assimila o alheio, sem enxergar o próprio
umbigo. E agora? Na nossa terra há muito
desgosto e muita dor, as mulheres perdem
os seus maridos por não conhecerem
os truques de amor. Fala-se de amor e
PAULINA CHIZIANE

Referências

CHIZIANE, Paulina. Niketche, uma história de


poligamia. 1ª ed.-São Paulo: Companhia de
Bolso, 2021.

https://www.brasildefato.com.br/2016/09/21/a-
escrita-sagrada-da-romancista-mocambicana-
paulina-chiziane, acessado em 16/09/2021.
90
SOARES Filho, Maurício. Niketche/Paulina
Chiziane: Análise de Maurício Soares Filho – 1
ed.- São Paulo: SOMOS Sistema de Ensino,
2021.

O feminismo negro de Paulina Chiziane.


GONÇALVES, Adelto. Publicado no livro
Passagens para o Índico: encontros brasileiros
com a literatura moçambicana, de Rita Chaves
e Tania Macêdo (organizadoras). Maputo:
Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, pp.
33-41.

SANTOS, Cristina Mielczarski dos. A presença


da voz em Niketche, de Paulina Chiziane. Nau
Literária. ISSN 1981-4526. VOL. 07, N. 01. JAN/
JUN 2011. seer.ufrgs.br/NauLiteraria. p.1-16.

CARVALHO DOS SANTOS, J. ESCRITAS SOBRE


A CONDIÇÃO FEMININA: UMA ANÁLISE DO
ROMANCE NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE.
Revista da Graduação, v. 8, n. 2, 19 nov. 2015.
PAULINA CHIZIANE
Exercícios IV. Rami não só tem seus bens levados,
como também vai para a cama com o
irmão mais velho de Tony.
1. (IFNMG 2016) A obra Niketche: uma
história de poligamia trata das condições V. Para Tony, encontrar sua casa e sua
subalternas das mulheres africanas, com esposa devastadas pelo kutchinga é um
destaque para a questão da poligamia. sinal de fracasso, um golpe que Rami
Quando a personagem Rami descobre que assiste com certa alegria.
o marido Tony traía com várias mulheres,
resolve: a) Todas as afirmativas estão corretas. 91

a) Vinga-se, fugindo com outro homem b) Todas as afirmativas estão incorretas.

EXERCÍCIOS
para o Norte da África, já que nessa região
as mulheres eram mais respeitadas. c) Somente as afirmativas I e II estão
corretas.
b) Abandona o lar e vai para o Sul da
África, torna--se escritora que denuncia as d) Somente as afirmativas III, IV e V estão
condições das mulheres africanas. corretas.

c) Vingar no dia do aniversário de Tony,


levando todas as mulheres do marido para
a festa e todos os filhos, de modo a expor 3. Com relação à representação
a poligamia do marido. masculina na narrativa de Niketche: uma
história de poligamia, leia as seguintes
d) Nenhuma das alternativas. afirmações:

I. Todos os homens que aparecem na


narrativa são descritos de forma negativa,
2. Em determinado momento do livro, é em uma tentativa da autora de mostrar
realizado o kutchinga. Analise as seguintes que os homens são todos igualmente
afirmativas sobre essa prática: ruins.

I.O kutchinga é um ritual vinculado II. Tony simboliza os valores corruptos


necessariamente à poligamia, não do governo, deixando Rami de lado após
sendo realizado no caso de relações ganhar mais poder no trabalho.
monogâmicas.
III. Vitor possui uma história violenta, mas
Il. Sua realização consiste em passar os tem um arco de redenção, sendo colocado
bens do falecido para seu irmão mais novo. como a única figura masculina positiva em
todo o livro.
III. No ritual, a viúva tem seu cabelo
cortado e passa por um julgamento com
base na sua relação com o marido.
PAULINA CHIZIANE

Assinale a alternativa com a(s) afirmação


(ões) correta(s):

I e III.

II.

92 II e III.
EXERCÍCIOS

4. O termo “niketche”, que dá nome ao


livro de Paulina Chiziane é uma referência:

a) ao ritual de transferência de esposas a


um herdeiro depois da morte do marido.

b) à lenda da princesa insubordinada que


foi castigada por um dragão e teve sua
imagem impressa na lua cheia.

c) à dança de preparação para o amor de


origem macua, praticada por mulheres
recém-iniciadas para a vida amorosa.

d) ao processo de oficialização da relação


entre um polígamo e suas mulheres.

e) aos exercícios de alongamento do órgão


genital feminino para garantir o prazer
masculino.
professor Gilmar
LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA

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