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de
A Travessia – Viagem ao Coração Estilhaçado da Síria
de Samar Yazbek
ou
Percorrendo o Hades
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Resumo
Esta é uma proposta de leitura que situa historicamente o território sírio e o seu
contexto actual de conflito bélico e a posição difícil da autora como exilada apátrida.
Em simultâneo coloca em paralelo a narrativa-viagem de uma travessia a um país
destruído pela violência com a descida ao Hades, logo, ao território da distopia, do
desencanto, da perplexidade, da dor, da perda e da amnésia forçada, em que o caos e
a hibridez narrativa se prestam como pano de fundo para a narração da morte e
destruição de uma cultura e de uma identidade multifacetadas recriando o conceito de
epopeia.
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Num mundo em que a humanidade já atravessou várias distopias, uma das
mais marcantes, o holocausto, não deixa de surpreender a violência que o ser humano
exerce sobre os seus pares. Além de vários conflitos que ainda ocorrem num planeta
supostamente civilizado, o caso da Síria tem merecido destaque, não só pelas
incongruências e selvajaria, mas pela invasão de migrantes foragidos, em busca de
exílio. Tal como durante a segunda guerra mundial, com os judeus, hoje várias
migrações forçadas se repetem e os que se deslocam são vítimas arrastadas por
decisões que as transcendem. O Ocidente, com a sua secular mentalidade
hegemónica, em nome do politicamente correcto, trata os países em convulsão como
lugares habitados por seres que podem ser descartáveis, tornando-os invisíveis e
desumanizando-os. A empatia civilizacional que o ocidente teria integrado e
regulamentado por leis acaba por não passar de uma retórica vã e tanto a ONU como
outras organizações mundiais não conseguem gerir conflitos locais nem prevenir e
muito menos deter processos de políticas internas que continuam nos dias de hoje a
transformar zonas de alguns continentes em cemitérios. No caso do povo Sírio, este,
pela voz de Samar Yazbek transformou-se improvisamente no inimigo a abater por
vários interesses homicidas que ultrapassam a esfera nacional.
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conspurcada de segredos e conspirações, pilhada por militantes
saqueadores takfiri. As terras que os sírios tinham libertado com o
próprio sangue, as aldeias e cidades do norte, estavam novamente
ocupadas. Esta já deixara de ser uma terra libertada, e nem sequer
era síria. Os nossos sonhos de revolução tinham sido sequestrados.
Os países poderosos do mundo agora encenavam as suas próprias
batalhas neste espaço, movendo os seus batalhões armadas como
peões, financiando e abastecendo frentes de batalha imaginárias. De
forma completamente pública, a fronteira da Turquia abria-se de par
em par a todos os tipos de combatentes, e a armas que afluíam de
vários lados.” (Yazbek, 2016:301)
Aos que têm a sorte de conseguir escapar do conflito, para sobreviver, na maior
parte das vezes, resta-lhes apenas a memória e a incerteza e a espera, e um processo
interior de reconfiguração do mundo. O ser humano, na sua essência, repete
pensamentos de recusa do horror, para se subtrair a apenas uma parcela de
sofrimento e almejar um futuro, mesmo que incerto, depois de ter perdido tudo.
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um povo pelo mundo, começaram por um simples gesto em 2011 – uma
demonstração pacífica que pretendia alcançar alguma abertura por parte do governo
de Bashar al-Assad – e que em breve se tornou num jogo de interesses ditatoriais e de
políticas estratégicas em que os mais afectados foram os cidadãos sírios.
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cultures and religions, it seems that this will make the Syrian crisis a
prelude to a renewed clash of civilizations. [...]Since according to
Samuel Huntington, the foundation of civilizations, religious and
cultural backgrounds, and cultural and religious identities are the
main source of the clash of civilizations. Therefore, the war on
terrorism, the Syrian crisis, the emergence of ISIL and the presence of
the US military and international interventions, the competition of
regional and trans-national powers, is a manifestation of the clash of
civilizations.” (Ghadbeigy, 2020:304-305)
No entanto, tudo leva a crer que o factor impulsionador que mantém este conflito
activo deriva de agendas económicas, mais do que de factores culturais e religiosos.
Entre 2012 e 2013, depois de se ter refugiado em França em 2011, Samar Yazbek fez
três viagens à Síria.
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“The situation in Syria wasn′t as bad in 2012 as it is now. At that time
I thought it would be possible to return permanently to the areas in
the north that had been liberated from Bashar al-Assad′s regime. I
wanted to write about life there and set up some projects for women
and schools. But the situation deteriorated so badly that I had to
leave the country for good in 2013.” (Yazbek apud Gosch, 2015)
Voltaria a casa, na esperança de poder rever o lugar familiar, com projectos que
pretendia pôr em prática, sem ter completa noção do horror com que se iria deparar.
“Este regresso ao meu país natal era tudo aquilo em que pensava e
acreditava que estava a fazer o que estava certo como pessoa com
instrução e como escritora, estando ao lado do meu povo na sua
causa. O meu objetivo era criar alguns projetos de mulheres em
pequena escala e uma organização com o propósito de conferir
poder às mulheres e de proporcionar às crianças instrução. Se a
situação parecesse que se ia prolongar não havia outra escolha a não
ser tentar virar o foco para a geração seguinte. Também estava a
tentar encontrar uma maneira eficaz de estabelecer instituições civis
democráticas nas zonas que se haviam libertado do controlo de Al-
Assad.” (Yazbek,2016:12-13)
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A ideia de travessia pressupõe um percurso através da chegada a uma
passagem que constitui o espaço – ponte, túnel, abertura, mar, terra, ar – onde
decorre a deslocação, a ultrapassagem dessa «ponte», e a chegada a um lugar
específico de destino.
Implica saber de onde se vem, por onde se vai, e para onde vamos, e finalmente, o
repouso depois do périplo.
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fazer isto por vós. Só consigo invocar-vos na minha mente e usar as
vossas histórias para construir pilares que se erguem da terra até o
céu.
Estou a escrever para vós: os atraiçoados.”(Yazbek,2016:5)
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património arqueológico que o país albergava são irreparáveis não só pelo seu valor
histórico, mas também pelo impacto cultural e identitário que terá no futuro.
The city of Palmyra was once considered the “bride of the Syrian
desert.” Its heart emitted life and beauty and attracted visitors from
around the world with archaeological monuments representing
Eastern culture, Western culture, and the mixed culture of the East
and West [...] The war has destroyed the most important
monuments of Palmyra [...] The city represented the spirit of the
Syrian identity, which integrates multiple ancient civilizations, spatial
and temporal diversity, and ethnic and religious diversity. Palmyra
represents the greatest example of this integration.
The Old City of Aleppo was also a vibrant urban quarter [and]
reflected the Syrian identity with its ethnic, religious, and social
aspects for a long period of time, until the beginning of the war. [...]
[...] The suspension of more than 140 research teams and
archaeological research projects in Syria since 2011 [...] has deprived
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Syrian society and the international community of a wealth of
knowledge about the Syrian identity and human civilizational history
in the Middle East, which in turn will have a negative impact on
future generations.” (Kanjou,2020:322-323)
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As próprias pessoas com quem fala são quase que fantasmas de pessoas, e que
aqui assim são designados pela transformação abrupta que as suas vidas sofreram:
antes do eclodir da violência tinham, a maior parte deles, vidas consideradas normais:
donas de casa, estudantes, pais, avós, famílias, profissionais de várias áreas que de
repente foram obrigados a empunhar uma arma para se defenderem.
Lugares históricos são evocados com dor e nostalgia por serem irrecuperáveis. Quando
lhe perguntam se escrever se torna mais fácil a sua resposta relata um processo
doloroso:
“People always say writing helps to process pain. In my case it′s the
opposite. The more I write about it, the greater the pain. Everything I
write about becomes part of me. The fires of hell have ignited inside
me and I can′t put them out.” (Yazbek apud Gosch, 2015:3)
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invasor ignorante dos seus antigos esplendores, devolvem, ao
viajante «de passagem», a imagem simultânea da história perdida e
da vida que passa, mas é o próprio movimento da viagem que o
seduz e arrasta. Esse movimento não tem em si mesmo outro fim –
senão o da escrita que o fixa e lhe reitera a imagem.” (Augé,1994:93-
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acabar e percorríamo-la com o baque surdo de bombardeamentos ao
longe. [...]
[...] Olhando fixamente em frente, tentei dar um sentido ao que me
rodeava. Máquinas de destruição. O céu em labaredas. Um carro
solitário que transportava uma mulher e quatro homens, dirigindo-se
através dos olivais para a cidade de Saraquebe.(Yazbek,2016:11)
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“Tudo o que relato na narrativa que se segue é real. A única
personagem fictícia é o narrador, eu: uma figura implausível capaz de
atravessar a fronteira no meio de toda esta destruição, como se a
minha vida nada mais fosse que o enredo rebuscado de um romance.
Conforme absorvia o que estava a acontecer em meu redor, deixei de
ser eu mesma. Era uma personagem inventada a ponderar as minhas
escolhas, que só era capaz de se manter em movimento. Deixei de
lado a mulher que sou na vida real e transformei-me nesta outra
pessoa imaginária cujas reações tinham de ser proporcionais a
qualquer que fosse o desígnio pelo qual ela vivia. O que é que ela
fazia aqui? Confrontava a existência? A identidade? A justiça? A
insanidade do derramamento de sangue?” (Yazbek,2016:12)
“Some of the main gods and heroes of antiquity also took the journey
of descending into the underworld and returning to the world of the
living in katabasis and anabasis that reflected the cycles of nature.
This was the case of Inanna in Sumeria, Marduk in Babylon, Ra and
Osiris in Egypt, the Cretan Megistos Kouros, the Syrian Adonis, the
Phrygian Atig and agrarian gods Dionysus and Persephone celebrated
in Eleusis. Among the heroes related to the classical period, Heracles,
Theseus, Perithoos, Orpheus and Odysseus performed the katabasis
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with different objectives. In Christianity, Lazarus and Christ himself
descended to the mansion of the dead. In the Renaissance world,
Dante was taken by Virgílio to the different abodes of souls”.
(Resende & Martinez,2020:89)
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“Nessa altura nem sabia se alguma vez conseguiria escrever acerca
disso mais tarde; de algum modo, tinha apenas partido do princípio
que morreria, tal como muitos outros, quando regressasse à minha
pátria.” (Yazbek,2016:9-10)
Os constantes regressos de Samar Yazbek não podem ser detidos, e a escritora, pela
sua função de contadora de histórias, transforma-se em cantadora, tal como Orfeu, e
tal como Orfeu, o facto de se virar para trás – que representa o regressar – corrompe a
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memória do passado e torna-o cada vez mais distante e irrecuperável porque para
manter viva a chama do passado é imperativo jamais regressar, e manter a distância.
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“Tinha esperança de que as suas histórias narradas pudessem reparar
toda esta ruína. Na pior das hipóteses, pelo menos o meu
testemunho restaria como prova, como testemunho do que
acontecera, para que nada se perdesse com o vento. E assim agora
era a vez dos emires Abu Hassan e Abu Ahmed adoptarem a voz de
Xerezade das Mil e uma noites – como Raed quando me falara acerca
de libertação de Kafranbel – e eu seria Shahryar, aquele que
consumia os seus contos vorazmente. Mas eu seria um Shahryar de
dois géneros, com um papel duplo: iria escutar, e a seguir voltaria a
assumir a identidade de Xerazade quando por minha vez divulgasse a
narrativa. Por vezes apareceria com um deles e outras vezes como o
outro; por vezes escutaria e por vezes criaria a história.”
(Yazbek,2016:278-279)
Esta evocação do imaginário, que tem origem nesta imensa área geográfica de
que faz parte a Síria, é interpretável como forma de enganar a morte, tal como no
relato ficcionado, uma espécie de mise en abyme através da imagem da sobrevivência
de uma outra narradora ficcionada e pode servir como finalização do processo de
catábase-anábase narrativo, mas não pessoal.
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âmbito da diegese, mas também se revela na permeabilidade entre
gêneros literários e do discurso.” (Carreira, 2018:36-37)
Depois de 2013 Samar Yazbek não fez mais nenhuma travessia clandestina. Em
entrevista, quando lhe perguntaram por que motivo se arriscou, a sua resposta foi a
seguinte:
“I was not frightened for myself. Not at all. Why should I be so? This
was my homeland. This is where I had grown up. I spoke the
languages, I knew the people. What did frighten me as time went on,
and as I made more trips, was the way everything I had once known
in Syria was being turned into something else, something I didn’t
quite recognise. This had once been a cosy place, a place of
traditional loyalties and hospitality. But now the people have been
scarred and mutilated. I don’t know whether it will ever go back to
what it was. That is what Assad has done.” (Azbek apud Hussey,2015)
Afirmar que não temia pela sua vida, coloca a autora numa posição de despojamento,
de consciência de perda e destituição do ego, afirmando a sua consciência de uma
nação que se transformou “numa outra coisa”, em algo “irreconhecível”. E embora não
seja culpada da forma alguma pela situação, tal como o povo sírio não o é, pode-se
equiparar a situação de perda e despojamento decorrentes da visão do inferno e
consequente lucidez relativamente à situação de um país que agoniza, ao processo de
crescimento interior de Ulisses, depois de ter subvertido as leis para recorrer ao
submundo dos mortos.
“[...] the most complete katabasis is found in the myth of
Odysseus. In the episode of Nekya, which occupies a central part
of the Odyssey, Martínez calls Odysseus katabasis as a
necromancer katabasis, which is its very essence. After the Trojan
War, Odysseus confronts the gods and because of his hybris
begins a painful journey back home. In the process he will be
depleted of all his possessions and will lose the company of all of
his crew, even his feelings of pride and power will be sacrificed in
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the end. His descent to Hades represents the death of the old and
natural man so to give birth to an enlightened man who no longer
guides his life by the glories of the world.” (Resende & Martinez,
2020:91)
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of exile, as a writer.” (Yazbek apud Gosch, 2015:3)
Na sua opinião, seria necessário acabar com o terrorismo, mas também derrubar o
governo de Assad que assassina a própria população impunemente:
“Chaos reigns in Syria. There are only certain regions left where
anyone is in charge: the Nusra Front, IS, Hezbollah, the Assad regime,
the Iranians, the Russians – they all have their own sphere of
influence. Most of the activists who began the revolution are now
either in exile or dead. There are only very few regions where they′re
still active. And until Assad stops bombing, there′s no point in talking
about a political solution – which I′m actually in favour of.” (Yazbek
apud Gosch, 2015)
O périplo narrativo deste texto que retrata a distopia pode ser definido como
híbrido, mas, em última análise, pode-se considerar este texto como épico. Uma
epopeia que se forma como percurso exterior e circular – circunscrito
geograficamente, tal como o percurso errático de Ulisses na Odisseia de Homero pelo
Mediterrâneo – mas também como percurso interior de um povo, representado pela
narradora, em que o território físico despoleta processos interiores de constante
descida e retorno, de catábase e anábase, num processo mental de conflito que serve
para gerir o sofrimento causado pela injustiça de apenas ter pretendido um pouco
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mais de voz e liberdade. Ficaram por focar aspectos da narrativa que têm a ver com a
complexidade multiétnica e religiosa da realidade Síria e também a delimitação das
várias fronteiras físicas e económicas de interesses sobre a área. Não é a diversidade
cultural intrínseca ao território que determina o conflito ou que causou divisões. A
própria Samar Yazbek faz parte da comunidade alauita enquanto que os seus
«contadores de histórias» neste périplo circular pertencem a diferentes sectores,
todos unidos perante um inimigo, ou inimigos comuns. Sendo uma narrativa épica
apenas eleva o povo pois o suposto líder é grandemente responsável pelo caos no país.
Caso para dizer que a era dos Titãs da Antiguidade não acabou, e o cenário da guerra
descrito que dura há quase dez anos e que estilhaçou a Síria e a sua identidade só
pode provir de um gigantesco e arquetípico pai devorador, como é o caso de todas as
ditaduras e dos países que as sancionam, independentemente das suas cores políticas,
religiosas e económicas.
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