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Solidariedade em tempos sombrios

Tributo aos “Justos entre as nações”


helena lewin
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Colaboradora e
Coordenadora do Programa de Estudos Judaicos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

resumo No presente artigo, resgataremos a memória de abstract In the present article we will redeem the memory
alguns “Justos entre as Nações”, isto é, aquelas pessoas que, of some “Righteous Among the Nations”, that is, those
durante a Segunda Guerra Mundial, trabalharam para salvar as persons who, during Second World War, worked to save the
vidas de judeus ameaçados pelo nazismo e que, por sua lives of Jews threatened by the Nazis and who, for their
atuação solidária e humanitária, foram reconhecidos e solidarity and humanitarian action, were recognized and
homenageados pelo Yad Vashem, o Museu do Holocausto de honored by Yad Vashem, the Holocaust History Museum in
Jerusalém. Jerusalem.

palavras-chave Justos entre as Nações; Salvadores de keywords Righteous Among the Nations; Saviors of Jews;
Judeus; Holocausto; Yad Vashem; Luís Martins de Souza Holocaust; Yad Vashem; Luís Martins de Souza Dantas;
Dantas; Aracy de Carvalho Guimarães Rosa; Aristides Souza Aracy de Carvalho Guimarães Rosa; Aristides Souza
Mendes; Raoul Wallenberg; Chiune Sugihara; Irena Sendler; Mendes; Raoul Wallenberg; Chiune Sugihara; Irena Sendler;
Nicholas Winton Nicholas Winton

Introdução
O sistema político nazista estabeleceu-se ancorado em uma economia bélica tendo
como foco o domínio mundial – a Alemanha dos 1.000 anos –, uma nova era a ser
instituída pela pretendida raça superior ariana. O governante convertido em Führer, o
condutor das massas e não um representante destas, e exibindo poder inquestionável,
colocava-se ditatorialmente acima do bem e do mal. Se, por um lado, Hitler jamais
ocultou seu desprezo pelas massas, visto considerá-las destituídas de heroísmo e inteli-
gência, por outro lado sua dominação carismática dependia da devoção irracional e do
fanatismo das mesmas. Daí a importância de organizá-las, de despojá-las de sentido
crítico que porventura pudessem exibir, ou seja, aliená-las completamente.
O estímulo ao preconceito antissemita criou um inimigo visível, o judeu, fácil de
ser alcançado e sobre o qual repousava a atribuição de inimigo da pátria, pois sua fi-
gura aglutinava, contraditoriamente, os malefícios dos dois grandes sistemas políticos
vigentes: ora rotulado de capitalista explorador das finanças internacionais, ora de co-
munista responsável pela instabilidade mundial devido ao chamamento ideológico à
luta de classes.1
Raul Hilberg (1985), em seu livro The Destruction of the European Jews, afirma
que, na história europeia, houve três modalidades de política antijudaica: conversão,
expulsão e eliminação. A destruição processada pelos nazistas não emergiu de um vá-
cuo sociopolítico, representou a culminação de uma tendência historicamente progres-
siva. Segundo esse autor, o discurso dos missionários afirmava “vocês não têm o direi-
to de viver entre nós como judeus”, correspondendo à etapa da conversão. Por sua vez,

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os seculares atestavam “vocês não tem o direito de Salvadores de judeus:


viver entre nós”, e, nesse caso, o instrumento uti- os “justos entre as nações”3
lizado foi a expulsão. Por fim, os nazistas decreta-
ram “vocês não tem o direito de viver”, ou seja, a Neste contexto de tempos sombrios, faz-se ne-
eliminação. cessário assinalar o desempenho de determinadas
Correlacionando estas diferentes fases à legisla- embaixadas e consulados sediados na Europa no
ção na Alemanha de Hitler, verifica-se um proces- processo de salvação de milhares de judeus, conce-
so de discriminação crescente. O início do processo dendo-lhes visto de entrada em seus países apesar
já ocorre em 1933, e sua escalada observa-se a partir das proibições, arriscando vidas e carreiras. A esses
das Leis de Nurenberg de1935, ampliada sucessi- cônsules e a todos aqueles que salvaram judeus da
vamente nos anos posteriores, deixando largos es- matança nazista, devem-se o respeito e a admiração
paços não escritos para ações rotuladas de “espon- por seu silencioso trabalho de resgate de vidas, sen-
tâneas”, praticadas pelas brigadas das AS,2 como a do merecedores do título de heróis da Segunda
que ocorreu na Noite de Cristais. Assim, o apare- Guerra Mundial.
lho de estado nazista utilizava dois mecanismos Recuperar historicamente o papel dos protago-
de repressão: o oficioso, cujas ações eram aciona- nistas que livraram os judeus do extermínio nazis-
das para intervir com violência em movimentos ta durante os tempos sombrios do Holocausto é
de rua sobre aqueles marcados para morrer, e o o objetivo desta apresentação. Ao conceder aos ju-
formal, expresso inicialmente pela legislação vigen- deus as oportunidades reais para fugirem daquela
te, que se autolegitimava progressivamente como Europa conflagrada ou ao escondê-los em lugar
um estado de destruição massiva dos judeus atra- seguro, estes homens e mulheres denotaram, em
vés de seu encarceramento em campos de trabalho meio à barbárie, seus sentimentos de solidariedade
e de aniquilamento. e de compaixão além de sua postura político-ide-
Até o início de 1941, os judeus, principalmen- ológica democrática.
te os alemães, não acreditavam que um país de re- Baseando-se na Lei de Recordação dos Mártires
conhecida cultura civilizatória como a Alemanha e Heróis, o Parlamento israelense criou, em 1953,
pudesse representar um perigo para sua população o Yad Vashem, tendo como obrigação institucional
judaica ou ser portador de atitudes de violência a permanente celebração religiosa e histórica em
programada. Julgavam tratar-se do clássico fenô- memória das vítimas do terrível massacre nazista,
meno do antissemitismo, tão presente no cotidia- além de manifestar os agradecimentos a todos aque-
no das comunidades europeias, interpretado como les não-judeus que arriscaram suas vidas para sal-
uma onda que vem e vai embora. Essa atitude de var judeus durante o Holocausto, os “Justos entre
conformidade das populações judaicas, decorrente as Nações”. Esse título designa uma pessoa de ele-
de leituras ingênuas da realidade social, foi respon- vada moral, que oferece empatia, compaixão e aju-
sável pelo volumoso aporte demográfico na depor- da a judeus em tempos de grandes dificuldades e
tação para os campos de extermínio, apesar dos perseguições. Refere-se a uma atuação excepcional
movimentos de resistência que ocorreram em vá- que exibe coragem e riscos, implicando perigos re-
rios guetos, sendo o de Varsóvia o mais abrangen- lativos à sua segurança, liberdade física, intelec­­tual
te e heroico. e profissional. O nome Yad Vashem foi inspirado

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no livro de Isaías 56:5: “E a eles darei minha casa para a atribuição do título.
e dentro de meus muros um memorial (‘yad’, em O salvamento dos judeus durante a Segunda
hebraico) e um nome (‘shem’, em hebraico) eterno Guerra Mundial desdobrou-se em dois momentos
que não perecerá jamais.” O Yad Vashem, também cruciais. O primeiro concentrava-se em tirá-los da
conhecido como Museu do Holocausto de Jerusa- Europa. Fuga era, portanto, a meta. As rotas de fu-
lém, abriga arquivos e uma biblioteca – a mais im- ga estavam fechadas e vigiadas. Cruzavam os Alpes
portante documentação do mundo sobre o Holo- para alcançar a Soesse, os Pirineus para chegar à
causto, reunindo 50 milhões de páginas de teste- Espanha, ou fugiam para a Rússia asiática. Nestas
munhos, 80 mil livros e 4.500 revistas especializa- circunstâncias, o papel dos diplomáticos foi da
das nesta temática –, além de publicar livros e re- maior importância na medida em que lhes conce-
alizar seminários, cursos e pesquisas. diam documentos que lhes possibilitavam mover-
Por sua vez, o termo “Justos entre as Nações” se em busca de refúgio em outros países. Nem to-
(Chassidei Umot HaOlam) foi tirado da tradição das as embaixadas e consulados abriram suas por-
judaica – da literatura dos Sábios. Há uma série de tas para atender as solicitações dos perseguidos.
explicações para o termo, tais como: não-judeus Isso acontecia com um mesmo país: algumas re-
que vieram em auxílio do povo judeu em tempos presentações diplomáticas atendiam e outras recu-
de perigo; em outros casos, o termo é usado para savam, como aconteceu no caso do Brasil, Japão,
descrever os não-judeus que observam os sete prin- Portugal, entre outros.
cípios básicos estabelecidos na Bíblia, as assim cha- Com o agravamento da guerra, com a expansão
madas Leis de Noé – incluindo a proibição de der- das tropas nazistas sobre toda Europa, com as de-
ramamento de sangue. Alguns ainda defendem que portações crescentes e o estabelecimento dos cam-
o termo tem ligação com a crença existente no fol- pos de extermínio a todo vapor, a única saída pa-
clore judaico de que, em cada geração, existem trin- ra os judeus era desaparecer. Neste segundo mo-
ta e seis homens justos ocultos de cujos méritos mento, organizações privadas de solidariedade, além
depende a existência do mundo; conforme a obra de pessoas comprometidas com seu dever de cons-
“Dicionário Judaico de Lendas e Tradições”, de ciência, assumiram a tarefa de esconder como par-
autoria de Alan Unterman (1992), esses humildes te de suas atividades de resistência. Redes clandes-
homens perambulam no exílio com seus compa- tinas de ajuda operando em vários países europeus
nheiros judeus, trabalhando como artesãos, só se dedicaram-se a torná-los invisíveis. Ou seja, subs-
fazem conhecer quando a comunidade está em pe- tituir o anterior tipo de “fuga para fora” conver-
rigo e, depois de agirem para salvar os judeus da tendo-o em “fuga para dentro”.
ameaça, retornam ao seu anonimato, impedidos Além da relevante ajuda ofertada por diploma-
de se revelar aos outros, pois, se o fizerem, morre- tas sediados na Europa, a salvação também veio de
rão. Seja como for, as autoridades do Yad Vashem grupos que funcionavam como unidades clandes-
tomaram o termo existente e acrescentaram um tinas de resistência e que operavam na Holanda,
novo significado a ele. O Yad Vashem passou a ca- Noruega, Bélgica e França, arranjando esconderi-
racterizar como “Justos entre as Nações” aqueles jos para judeus, além de instituições religiosas, re-
que não só salvaram judeus, mas arriscaram suas des privadas de solidariedade e pessoas movidas
vidas ao fazê-lo. Este viria a ser o critério básico por razões humanitárias.

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Um dos casos mais impressionante foi o da pe- para ocultar o judeu que ali permanecia durante
quena aldeia holandesa de Nieuwlande, cujos ha- semanas, meses ou anos, e o alimentava mesmo
bitantes, entre 1942 e 1943, resolveram, de forma em tempo de grande escassez de comida, compar-
conjunta, que cada família ocultaria uma família tindo seu escasso pão. O número de judeus salvos
ou um indivíduo judeu. Todos os 117 habitantes por não-judeus durante o Holocausto é impreciso.
desta pequena comunidade foram honrados como Alguns dos judeus morreram depois da guerra ou
“Justos entre as Nações”. Outro salvamento cole- durante a mesma, não tendo sido possível obter
tivo teve lugar na aldeia francesa de Le Chambon- testemunhas ou saber o nome desses salvadores.
sur-Lignon, cujo pastor protestante, André Trocmé, Muitos deles preferiram o anonimato, mesmo de-
organizou seus fiéis para prover esconderijo e as- pois da guerra, afirmando que seu comportamen-
sistência aos judeus que fugiam dos nazistas. A to era ditado por princípios imperiosos de cons-
Dinamarca foi o país onde se realizaram as opera- ciência frente ao trágico silêncio da maioria dos
ções de resgate mais completas e famosas de toda europeus (que não reagiam à brutalidade vigente
a área da Europa ocupada pelos nazistas. Em 1943, contra os judeus) e que, portanto, não se julgavam
as autoridades alemãs de ocupação impuseram a merecedores de prêmio ou reconhecimento algum.
lei marcial como resposta ao aumento dos atos de Esses anônimos “Salvadores de Judeus”, no si-
sabotagem da população nativa contra as instala- lêncio de seus atos, demonstraram enorme bravu-
ções bélicas alemãs. A liderança do movimento de ra, elevada consciência moral e um incomensurável
resistência da Dinamarca teve conhecimento de respeito à vida de seu semelhante. Certamente, cen-
que os alemães planejavam deportar todos os ju- tenas deles não constam nos registros do Yad Va-
deus durante o período da lei marcial e que a data shem, e, por falta de provas e de testemunhos orais,
para tal ação estava marcada para os dias próximos. não puderam ser nomeados institucionalmente co-
A resistência dinamarquesa organizou uma opera- mo “Justos entre as Nações”. Porém, nas cerimô-
ção ampla para esconder os judeus em vários tipos nias dedicadas à lembrança das vítimas da Segun-
de esconderijos, alcançando a quase totalidade da da Guerra Mundial, celebradas em todas as comu-
população judaica. Durante os dias seguintes, a re- nidades judaicas de todo o mundo, de forma reli-
sistência dinamarquesa organizou uma ampla ope- giosa ou secular, preces especiais são dedicadas a
ração de resgate na qual os pescadores dinamarque- esses Salvadores, reconhecidos como heróis aos
ses transportaram clandestinamente cerca de 7.200 quais várias gerações de judeus devem suas vidas.
judeus, de um total de 7.800 que viviam naquele Até o final de 2010, haviam sido registrados,
país, em pequenos barcos de pesca, para locais se- como “Justos entre as Nações”, mais de 23.700 no-
guros na Suécia neutra, em uma arriscada operação mes de homens e mulheres. Muitos deles foram
de salvamento. Todos esses salvadores foram me- convidados a plantar árvores em sua homenagem,
recidamente reconhecidos pelo Yad Vashem. visando a comemorar suas ações humanitárias. O
Em muitos casos, cidadãos comuns escolheram simbolismo do plantio das árvores e seu conse-
salvar judeus assumindo o risco de vida que uma ação quente Bosque de Recordação, junto ao Jardim do
dessas implicava, ocultando um ou mais judeus em Yad Vashem, estão intimamente associados ao signi­
suas próprias casas. Este salvador geralmen­­te cons- ­ficado de vida que a árvore representa, principal-
truía um “bunker” ou outro tipo de esconde­­­ri­­­­­­­­­jo mente em uma terra árida, como é a de Israel, em

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que cada árvore plantada constitui uma esperança todos os diplomatas sediados na França passaram
no futuro e uma mensagem exemplar de paz. a despachar em Vichy, que foi tomada pelos nazis-
Na impossibilidade de nominar cada um dos tas. O governo brasileiro havia rompido com a
“Justos entre as Nações”, alguns nomes foram aqui Alemanha e a ela declarado guerra. A embaixada
selecionados visando a apresentar, de forma breve, brasileira em Vichy não ficou livre da violência
sua “biografia de guerra”. Assim, serão apresenta- nazista. Foi invadida, e o Embaixador Souza Dan-
das as trajetórias de cônsules envolvidos no resga- tas foi preso, juntamente com seus auxiliares, e fo-
te de judeus, deixando claro que estes não esgotam ram todos confinados em Bad Godesberg, na Ale-
o elenco de nomes a quem se devem o respeito e manha, por 14 meses. Libertado, ele voltou para o
os agradecimentos pelo desempenho heroico de Brasil, onde havia sido planejada uma recepção
salvar vidas, tanto de judeus como de não-judeus. festiva que, no entanto, foi abortada por Getúlio
Segundo os dados do Yad Vashem, já são, atual­ Vargas. Somente no dia 21 de dezembro de 1944,
­mente, vinte os diplomatas condecorados. Do Bra- seu nome foi inscrito no Livro do Mérito Nacio-
sil, há duas figuras marcantes, um homem e uma nal, reconhecimento formal ao seu elevado desem-
mulher. Esta é a única do sexo feminino de todo penho nos serviços prestados à Nação. Morreu po-
o grupo de diplomatas homenageados pelo Yad bre e abandonado em Paris, em 1954. A recupera-
Vashem. Luís Martins de Souza Dantas e Aracy de ção histórica do diplomata Souza Dantas, figura
Carvalho Guimarães Rosa são os seus nomes. Gran- que sequer aparece nos livros didáticos brasileiros,
de foi a contribuição destes dois personagens no foi analisada no livro “Antissemitismo na Era Var-
cenário da Segunda Guerra Mundial no que se re- gas”, de autoria de Maria Luiza Tucci Carneiro
fere à salvação de foragidos judeus. (1988), e, posteriormente, tornou-se tema da disser­
Luís Martins de Souza Dantas foi o embaixa- ­tação de Mestrado de Fabio Koifman (2000), com
dor brasileiro em Paris de 1922 a 1942. Foi reco- o título “Quixote nas Trevas”. Essas publicações
nhecido pelo Museu do Holocausto de Jerusalém foram responsáveis por trazer ao conhecimento
(Yad Vashem) como “Justo entre as Nações” por público esse personagem que tanto benefício apor-
ter emitido centenas de vistos durante os difíceis tou àqueles que salvou, denotando heroísmo e gran-
anos do domínio nazista na Europa, sem alarde, deza de caráter.
silenciosamente. Rebelou-se contra as determina- Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, a partir de
ções do governo de Getúlio Vargas, que, através de 1934, trabalhou no consulado brasileiro em Ham-
circulares secretas enviadas às embaixadas brasilei- burgo, Alemanha, como chefe do serviço de vistos.
ras instaladas na Europa, determinava a proibição Perplexa e indignada com as terríveis perseguições
de atender solicitações de vistos a semitas para en- e com a matança de judeus promovidas pelo nazis­
trar no Brasil. Os vistos emitidos por Souza Dan- ­­mo, Aracy, ciente das proibições do Ministério das
tas salvaram comprovadamente 478 pessoas, porém Relações Exteriores do Brasil, que determinava a
calcula-se que o número alcance a casa de 1.000, não concessão de vistos aos apátridas (leia-se ju-
pois muitos, por medida de segurança, não foram deus), resolveu desobedecê-las. Passou, discretamen-
computados por conta de sua natureza secreta. te, a facilitar a emissão de vistos a dezenas de pes-
Quando, em 1942, os alemães romperam o armis- soas que buscavam ajuda no consulado brasileiro
tício e invadiram a parte não ocupada da França, de Hamburgo. Em 1938, o diplomata brasileiro

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João Guimarães Rosa foi nomeado Cônsul-Adjun- judeus foram salvos por esta corajosa mulher, aos
to em Hamburgo e afirmou, posteriormente, ter quais se devem acrescentar muitos outros não-ju-
ciência da desobediência de Aracy e ter lhe dado deus perseguidos pelo nazismo. Era carinhosamen-
pleno apoio. Casaram-se em 1940. Viveram em te chamada de “O Anjo de Hamburgo” por todos
Hamburgo até regressarem ao Brasil, em 1942, quan- aqueles que havia salvado da morte.
do as relações diplomáticas entre a Alemanha e o Aristides de Sousa Mendes, cônsul português
Brasil foram rompidas. Consta, na obra “Concise em Bordeaux, contrariando as ordens de Salazar,
Encyclopedia of the Holocaust” (BERGEN, 2003), assinou milhares de vistos para fugitivos judeus,
que Aracy de Carvalho Guimarães Rosa começou salvando-os da morte certa caso fossem enviados
a ajudar os judeus após o terrível “pogrom” ocor- para os campos de concentração, até ser afastado
rido na noite de 9 de novembro de 1938 (que ficou do cargo pelo ditador português. Os milhares de
conhecida como Kristallnacht – Noite dos Cris- vistos eram assinados de dia e de noite, todos os
tais) e que se estendeu por várias cidades da Ale- dias, até a exaustão física. Portugal, como país neu-
manha e da Áustria. Multidões de nazistas enfure- tro, transformara-se na única porta de saída para
cidos atacaram sinagogas e queimaram objetos do o deslocamento destes refugiados tentando alcan-
ritual litúrgico judaico. Invadiram residências de çar outros destinos fora da Europa. Sousa Mendes
judeus e violentaram mulheres e crianças. Depre- percebeu que a rapidez na emissão dos vistos era
daram estabelecimentos comerciais e saquearam- crucial, pois, cada vez mais, o espaço fora do do-
nos. Mataram 90 pessoas com requinte de cruelda- mínio alemão na Europa se estreitava. Até quando
de. Este acontecimento marca o início da repressão Portugal poderia se manter neutro? Esta era uma
sistemática contra os judeus, que objetivava, atra- pergunta ansiosamente recorrente, e ele justificava
vés da chamada “Solução Final”, o extermínio to- sua pressa como um mandamento a ser cumprido.
tal dos judeus da Europa. Aracy, revoltada, não se No processo a que foi submetido por ter descum-
intimidou e passou, daí em diante, a acelerar a prido as ordens governamentais, ele afirmou, em
emissão de vistos para os fugitivos judeus, igno- sua defesa, que as razões que o levaram a optar por
rando as determinações do Itamaraty. Para tanto, tal atitude se vinculavam “à situação aflitiva de to-
contou com a cumplicidade de um funcionário da da aquela gente que o comoveu profundamente”.
polícia de Hamburgo que emitia passaportes para Aristides de Sousa Mendes foi considerado culpa-
judeus retirando do documento o “J” vermelho do no inquérito disciplinar, tendo como pena a
que os identificava como judeus, viabilizando a sua reforma compulsória com uma pensão redu-
emissão de vistos nesses passaportes. Aracy não zida que lhe impossibilitava sustentar sua família,
emitia apenas vistos. Ela protegia esses refugiados sendo socorrido por seu irmão e pela comunidade
dando-lhes cobertura diplomática, abrigando ju- judaica de Lisboa. Em 1954, morreu na mais ex-
deus em sua própria casa (ou de pessoas de confian­ trema miséria. Em sua lápide, foi inscrita a passa-
­­ça) e garantindo sua saída da Alemanha. Em entre­ gem da Torá (Quem salva uma vida, salva a huma-
­­vista realizada com seu filho, Eduardo de Carvalho nidade) como reconhecimento de seus méritos, em-
Tess, ele afirmou que sua mãe arriscou a vida, mui- bora sem nenhuma repercussão na imprensa por-
tas vezes, ao transportar judeus no porta-malas de tuguesa. Desde 1967, Aristides de Sousa Mendes é
seu carro, apesar da vigilância da Gestapo. Oitenta o único português portador do título “Justo entre

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as Nações”, embora outros diplomatas portugueses um departamento especial para fabricar os “passa-
também devam ser mencionados como salvadores portes de proteção”. Sua equipe chegou a ter mais
de judeus: Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho. de 400 pessoas, basicamente judeus, eles próprios
Raoul Wallenberg, diplomata da Embaixada da isentos de usar a “estrela amarela”. Com a ajuda
Suécia, sediada na Hungria, foi responsável pelo des­­ta equipe, foram emitidos cerca de 15 a 20 mil
salvamento de milhares de judeus em arriscadas pas­­­saportes. Quando Adolf Eichman, espe­­­­cial­­­­­men­
operações de proteção contra o exército alemão ­­te destacado para cumprir o programa de elimina-
nazista, que ocupou este país em março de 1944. ção física dos judeus húngaros, parte do programa
Em apenas dois meses, os alemães já haviam de- da “Solução Final”, ordenou a “Marcha da Morte”
portado 435.000 judeus para os campos de exter- dos judeus de Budapeste até a fronteira austríaca,
mínio, restando apenas 200.000 pessoas da popu- Raoul Wallenberg perseguiu as colunas de judeus
lação nativa judaica. Em outubro do mesmo ano, em marcha para a morte retirando aqueles que por-
as deportações foram reativadas em ritmo acelera- tavam os “passaportes de proteção”, anteriormen-
do. Observando a tragicidade do destino de gran- te expedidos, e os conduziu de volta à capital. Tam-
des contingentes populacionais marcados para mor- bém foram alvo da atividade de salvamento de
rer, a Suécia, país que conseguiu manter sua neu- Wallenberg os judeus já embarcados em trens que
tralidade, propôs, por meio de sua Embaixada, se dirigiam a Auschwitz ou a campos de trabalho
emitir passaportes aos judeus húngaros que tives- forçado, desembarcando aqueles que possuíam “pas-
sem alguma vinculação com cidadãos suecos, no- saporte de proteção”. Concomitantemente, Wal-
meando Raoul Wallenberg para assumir a chefia lenberg teve apoio de diplomatas de outros países
desta perigosa missão humanitária e política. Esta na emissão de vistos e no estabelecimento de alber­
decisão do Ministro das Relações Exteriores da ­gues e seus esquemas de vigilância. Entre tais diplo­
Sué­­cia converteu-se em um decisivo sinal para ini- ­­­matas, destacaram-se Angel Sank Briz, da Espanha,
ciar a operação de salvamento. Paralelamente, a Carl Lutz, da Suíça, e Giorgio Perlasca, da Itália.
situação dos judeus remanescentes tornou-se ainda Esse sistema de abrigamento foi considerado como
mais perigosa, tendo em vista a subida ao poder um espaço territorial neutro que teria que ser admi­
do partido Cruz de Flechas, declaradamente antis- ­­tido por força das convenções internacionais. Esses
semita e aliado dos nazistas. Violência e assassina- albergues e espaços protegidos ficaram conhecidos
to explodiram nas ruas de Budapeste. Frente a essa como o “Gueto Internacional”, e, em suas janelas,
conjuntura, Wallenberg resolveu intensificar seus tremulavam bandeiras brancas como sinal de in-
esforços: durante os três meses seguintes, emitiu terdição de entrada aos alemães e seus aliados. Gru-
milhares de passaportes denominados de “passa- pos de voluntários se encarregaram da provisão de
porte de proteção” (The Wallenberg’s Passport). alimentos e do atendimento médico, formando
Esses novos documentos de identidade com as co- uma subterrânea rede de solidariedade. Em janeiro
res nacionais suecas – azul e amarelo – traziam o de 1945, o exército soviético invade a Hungria,
símbolo sueco das três coroas e eram assinados pe- liberando-a do domínio nazista. Wallenberg tentou
lo ministro Carl Ivan Danielson, chefe da legação negociar o destino dos judeus internados no “Gue-
sueca, contendo a informação de que o portador to Internacional” e no “Gueto Principal da Cidade
achava-se sob sua proteção. Wallenberg estabeleceu de Budapeste”, argumentando que os primeiros ti-

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nham proteção do governo sueco como portadores que, até então, vivia em paz, transformando a Li-
dos “passaportes de proteção” e que os demais eram tuânia em importante centro de cultura judaica,
refugiados de guerra e/ou apátridas devido ao con- religiosa e secular. Em 1940, a situação começa a
fisco de seus documentos pelos nazistas. Os sovi- mudar quando da invasão da Lituânia pelos sovié­
éticos, suspeitando que Wallenberg e os demais ­ticos. Estes permitiram aos refugiados judeus po-
diplomatas suecos em Budapeste fossem agentes loneses sair da Lituânia através da União Soviética
ou espiões alemães, convocaram-nos a prestar escla­ se eles obtivessem documentos de viagem conce-
­­recimentos, sem respeitar suas imunidades diplomá­ didos por algum consulado estabelecido no país.
­ticas. Um grande mistério se abateu sobre o desti- O consulado japonês e seu Cônsul-Geral Chiune
no de Raoul Wallenberg, que desapareceu sem dei- Sugihara transformaram-se em importante instru-
xar rastros, aos 33 anos. Durante anos, os soviéticos mento de salvação para milhares de pessoas que
alegavam desconhecer seu paradeiro. Prisioneiros lhes batiam à porta em busca de vistos de entrada
de guerra alemães que retornaram das prisões so- no Japão, com passagem garantida pelas autorida-
viéticas afirmaram ter visto Wallenberg e que o co- des soviéticas em seu território. Concomitantemen-
nheceram na prisão. A partir destes testemunhos, te, as autoridades soviéticas instruíram as missões
o governo sueco exigiu informações do governo diplomáticas de todos os países aí instalados para
soviético, que, somente após a morte de Stalin, que cessassem imediatamente suas atividades, o
confessou que ele havia sido preso e tinha falecido que prontamente fizeram. Contudo, Sugihara con-
na prisão em 1947. Ainda hoje, permanece o dra- seguiu uma licença para ficar por mais vinte dias
mático mistério. Wallenberg tem sido alvo de inú- e permaneceu no país juntamente apenas com o
meras manifestações de solidariedade e de admira- cônsul holandês Jan Zwartendijk. Esses dois ho-
ção por seu corajoso papel no salvamento de mi- mens trabalharam arduamente em sua atividade
lhares de vítimas da Segunda Guerra Mundial. Co- humanitária. Jan Zwartendijk liberou vistos para
mo homenagem e como tributo a sua memória, as colônias holandesas do Caribe – as Antilhas e a
seu nome está em ruas e praças de inúmeros paí- Guiana (atualmente Suriname) –, cujas autoridades
ses, tendo os Estados Unidos lhe outorgado a dis- alfandegárias não eram exigentes na vigilância da
tinção de Cidadão Honorário. Raoul Wallenberg legalidade dos passaportes distribuídos por seus
é um dos maiores heróis daqueles tempos som- consulados, conseguindo salvar muitas centenas
brios. Sua coragem e sua consciência democrática de judeus. Mas o prazo de sua permanência havia
são modelo para todas as gerações. se esgotado. Teve que sair da Lituânia não poden-
Outro relevante nome é o de Chiune (Sempo) do dar seguimento a sua atividade altamente arris-
Sugihara, Cônsul-Geral japonês, servindo em Kau- cada, mas plena de significado de solidariedade.
nas, capital da Lituânia, entre 1939 e 1940. Com Em frente ao consulado japonês em Kaunas, nos
a invasão da Polônia por Hitler, levas de judeus se vinte dias prorrogados para a permanência de Sugi­
deslocaram para a Lituânia em busca de refúgio e ­hara, milhares de pessoas em fila, tristes mas espe-
de alternativas de fuga, relatando as atrocidades rançosas, esperavam. Como diplomata de carreira,
cometidas pelo exército invasor. Esses fugitivos che- tinha ciência de que deveria consultar seu Minis-
gavam despossuídos de dinheiro e documentos, tério das Relações Exteriores sobre a grande quan-
sendo atendidos pela comunidade judaica local, tidade de vistos solicitados pelos judeus refugiados

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na Lituânia. Depois de receber respostas negativas Fora da órbita diplomática, cabe uma impor-
às várias solicitações, Sugihara, frente ao dilema tante menção ao nome de Irena Sendler, que, a
entre obedecer a regras burocráticas e políticas de partir de 1940, correu elevados riscos para levar
seu governo e salvar a vida de milhares de seres hu­ víveres, medicamentos e roupas aos habitantes do
­­manos, resolveu discutir com sua família as possí- Gueto de Varsóvia, que congregava, no seu interior,
veis consequências de sua escolha: a concessão dos mais de 450 mil pessoas amontoadas em 4 km².
vistos. Obteve o apoio de sua família e recebeu de Nas­­­cida em 1910, Irena estudou na Universidade
sua esposa Yukiko integral solidariedade, o que o de Varsóvia, tornando-se enfermeira diplomada,
ajudou até o final de sua estadia em Kaunas na ta­ vindo a pertencer aos quadros do Departamento
­re­­fa de acelerar a emissão dos vistos. Trabalharam de Assistência Social desta cidade. Ainda antes da
noite e dia, faziam suas refeições na mesa de traba­ Segunda Guerra Mundial, já exercia sua profissão
­lho, pois sabiam que o tempo era um recurso estra­ atendendo os bairros pobres de Varsóvia onde vi-
­­­tégico para salvar aqueles que dependiam desses viam muitas famílias judias. À época da invasão
do­­­­cumentos. A média diária de passaportes conce­ alemã na Polônia e da instalação do Gueto de Var-
­­didos era de 300, número correspondente a um mês sóvia, Irena Sendler usava a Estrela de Davi quan-
de trabalho consular. Com o empenho do casal do ia visitar o Gueto para ajudar seus habitantes.
Su­­­­gihara, foram expedidos seis mil vistos, que atual­ Assim o fazia para não chamar a atenção dos sol­
­mente alcançam 40 mil pessoas se levarmos em ­­­da­­­­­­­dos alemães, comportando-se como se fosse uma
consideração duas gerações de descendentes daque- judia anônima. Sua atenção preferencial dedicava
les sobreviventes que receberam dos Sugihara a bên- às crianças, trazendo alimentos e remédios às des-
ção de viver. Conta-se que já no trem de partida de nutridas e doentes, ajudando as mães com conse-
Kaunas, da janela de seu vagão, ainda assinava vistos lhos e apoio. Até 1943, Irena e sua equipe de cola-
e entregava selos consulares para aqueles que não boradores fizeram sair do gueto de Varsóvia mi-
foram atendidos a tempo. Esses refugiados via­­­ja­­­ lhares de crianças judias, as quais colocavam em
vam até Moscou, depois alcançavam Vladivostok casa de famílias polonesas, orfanatos e conventos
pela linha férrea Trans-Siberiana e, em seguida, ru- católicos. Ao todo, foram salvas cerca de 2.500
mavam para Kobe, no Japão, onde podiam perma- crianças, resgatadas pelas mãos de Irena Sendler.
necer até seis meses, quando teriam que partir pa- Era extremamente perigosa a operação estabelecida
ra outros destinos. Quando foi entrevistado, mui- para salvar este enorme contingente de crianças.
tos anos mais tarde, Sugihara afirmou que sua deci­ Tanto ela e sua equipe quanto as crianças retiradas
­­são se pautou por dois motivos: “Primeiro, eles eram do gueto corriam risco de vida. Irena dava-lhes um
seres humanos e necessitavam de ajuda”, e,“segundo, calmante e escondia-as dentro de malas, em sacos
eu estou satisfeito em ter encontrado forças para de batata e até de caixões, que depois eram trans-
tomar a decisão que assumi”. Também declarou portados pelos bombeiros ou em caminhões de
que “se eu não desobedecesse meu governo, estaria lixo. Irena Sendler foi muitas vezes entrevistada
desobedecendo a Deus”. E, finalmente, utilizando- antes de morrer, principalmente pelas crianças que
se de uma máxima samurai disse: “mesmo um caça­ havia salvo, essas já na condição de adultos quan-
­dor não pode matar um passarinho quando este voa do descobriram sua história e identidade, prestan-
em direção a ele em busca de refúgio”. do-lhe homenagens, agradecimentos e testemunhan-

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do suas heroicas ações. Irena afirmou, em um de e protegê-las durante o período da guerra. Plane-
seus depoimentos, que, quando propunha às famí- jou, com muito cuidado, o transporte de trem que
lias salvar-lhes os filhos, as reações eram trágicas. levaria essas crianças, assim como um sistema de
As mães não concebiam a ideia de se separar deles, controle sobre as condições em que se encontra-
preferindo “morrer juntos”. As que tomaram essa vam essas crianças em lares que não eram os seus.
decisão demonstraram a maior coragem, afirmou Providenciou auxílio médico para atendê-las, além
Irena, anos depois. “Perguntavam-me se eu podia de apoio psicológico, visando a proporcionar-lhes
lhes prometer que os filhos sobreviveriam. O que segurança emocional. Longe de seus pais, essas crian-
eu podia prometer, quando eu sequer sabia se con- ças tiveram dificuldades de adaptação à língua e
seguiria sair do gueto?”. Seu trabalho de salvamen- aos costumes diferentes dos seus. Mas essas situa-
to não terminava com o resgate físico das crianças. ções problemáticas, quando existentes, eram míni-
Sua preocupação era com o seu registro, ou seja, o mas em relação às vantagens auferidas pela salva-
futuro resgate de sua identidade passada. Ia regis- ção de suas vidas. No total, foram utilizados oito
trando os antigos nomes das crianças e seus cor- trens no transporte para a Inglaterra. O nono trem
respondentes novos nomes assim como os das fa- não conseguiu sair de Praga, foi retido pelos na-
mílias e dos conventos nas quais ficaram abrigadas, zistas, e suas 250 crianças não tiveram a sorte de
anotando tudo em papéis que ia juntando e guar- serem salvas. Isto porque a data de 3 de setembro
dando em potes de vidro que enterrava. Foi presa de 1939, data prevista para a saída do trem, coin-
e torturada pela Gestapo em outubro de 1943. Que- cidiu com o dia em que a Inglaterra declarou guer-
braram-lhe os ossos dos pés e das pernas, mas Ire- ra à Alemanha. Calcula-se que, atualmente, haja
na nada revelou. Condenada à morte, foi salva a 5.000 descendentes das “crianças de Winton”, es-
caminho da execução por um soldado alemão su- palhadas por vários países do mundo, entre os
bornado pela resistência polonesa. Depois da guer- quais os Estados Unidos, França, Canadá, Inglater­
ra, ela mesma desenterrou os frascos com os nomes ­ra e Brasil. Durante mais de 50 anos, Winton guar-
das crianças, das famílias e dos conventos. Come- dou segredo. Seu silêncio proposital revela a dis-
çou a busca pelos pais biológicos, mas a maioria crição e a modéstia deste grande homem, que nem
havia morrido nos campos de concentração. Sua sequer contou seus atos meritórios para sua família,
modéstia era impressionante, tendo declarado que porque os considerava uma obrigação moral, uma
“podia ter feito mais”. Foi um exemplo de digni- questão de foro íntimo. Por mero acaso, sua espo-
dade e de amor ao próximo. Faleceu em 2008, aos sa encontrou uma velha pasta que continha ano-
98 anos de idade. tações completas com os nomes das crianças e de
Nicholas Winton, o herói silencioso, de nacio- seus pais e anunciou publicamente esta salvadora
nalidade inglesa, nasceu em 1909. Sua vida está as­ operação de resgate de crianças judias. Winton re-
­­s­­­ociada ao resgate de 669 crianças judias da Tchecos­ cebeu da Rainha Elizabeth II o título de Cavalhei-
­­lováquia, salvando-as da morte certa nos campos ro da Coroa e foi homenageado pelo exército tche-
de concentração nazistas, enviando-as para a Ingla­ co com a medalha de mais alto escalão do exército.
­­terra. Essa operação ficou conhecida como “Kinder­ A titulação de “Justo entre as Nações” não lhe foi
­­transport” e consistia em organizar a saída dessas outorgada pelo Yad Vashem, pois Winton tinha
crianças e preparar famílias inglesas para recebê-las antecedentes judaicos e, nos estatutos dessa institui­

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ç­ ão de Memória e Recordação do Holocausto, a outras possibilidades. Muitas mulheres salvadoras


concessão é exclusivamente oferecida a não-judeus. foram empregadas domésticas ou babás de crian-
A operação “Kindertransport” foi responsável pe- ças judias. O prévio conhecimento e a amizade ti-
la salva­­ção de milhares de crianças judias, e nela, veram um papel significativo no ato de resgate,
além de Nicholas Winton, atuaram muitos outros mas nem todos abriram suas portas. Contudo, mui-
beneméri­­­tos, tendo o governo da Inglaterra como tos dos salvados jamais haviam visto a pessoa ou
parceiro institucional que assegurou o recebimen- a família que lhes deu abrigo, seus salvadores.
to e a colo­­­cação destas crianças em casas de famí- No mundo ocidental, as Igrejas – católica e pro-
lias inglesas. testante – exercem o papel de transmissoras de valo­
­res associados à moralidade, à defesa da justiça e do
Considerações finais comportamento ético e solidário. Em todas essas
ta­­­­refas, as Igrejas fracassaram durante os anos do
Quais teriam sido os motivos que levaram in- Holocausto. Não falaram a favor dos judeus, dos
divíduos a salvar judeus da morte e da deportação ciganos, das Testemunhas de Jeová, dos homosse-
enquanto eles mesmos e suas famílias corriam pe- xuais e de outras minorias perseguidas. Não lembra­
rigo de vida? As respostas desses salvadores, quan- ­­ram aos cristãos que era moral e eticamente errado
do inquiridos, centravam-se em um núcleo recor- apossar-se dos bens alheios e que era moralmente
rente que permite compreender a ação corajosa errado marcar, segregar, deportar, delatar e matar.
destes indivíduos. As respostas mais frequentes eram: Há, contudo, uma diferença entre la grande
“Foi uma decisão deliberada de se comportar de église – a hierarquia superior da Igreja – e la petite
maneira civilizada”; “Nós fizemos o que tinha que église – as organizações de base ou compostas por
ser feito”; “Qualquer pessoa faria o mesmo”; “É indivíduos religiosos locais. Em toda a Europa,
dever do homem salvar seu semelhante.” Essas res- muitas freiras, padres, pastores e prelados agiam
postas demonstram a corajosa atitude que toma- independentemente. Falaram contra o mal que teste­
ram, sabendo de antemão dos grandes perigos que ­munhavam e empenharam-se em todos os tipos de
assumiam, além de revelarem a grandeza de caráter resgate clandestino. Uns poucos, como Monsenhor
e de atitudes de solidariedade e piedade. Riscos que Jules Gerard Saliège – arcebispo de Toulouse – eram
não se esgotavam em um ou dois dias, riscos que autoridades de alto escalão. Monsenhor Saliège não
permaneciam por semanas, meses ou anos, enquan- esperou instruções ou permissão de Roma para
to havia judeus abrigados em sua casa, sem men- deixar bem clara sua posição: criticou com força
cionar a questão da alimentação em tempo de es- o antissemitismo, o racismo e os programas desen-
cassez e de cartões de racionamento. volvidos pelos nazistas, ocupando o púlpito de sua
As pessoas que punham suas vidas em risco ao diocese para denunciar e incentivar seus seguido-
salvar judeus geralmente os conheciam desde antes res a flexibilizar seus corações.
da guerra – muitos eram amigos pessoais ou vizi- Produziu uma Carta Pastoral que foi lida em
nhos, sócios de empreendimentos comerciais ou todas as paróquias sob sua responsabilidade, no
trabalharam juntos no mesmo emprego, outros dia 23 de agosto de 1942, apesar dos esforços dos
eram professores, médicos, colegas de escola ou prefeitos para impedir sua leitura. Com esta Carta,
membros de instituições políticas, culturais, entre Monsenhor Saliège fez a primeira crítica pública

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partindo de um dignatário da alta hierarquia da notas


Igreja Católica. Três outros bispos fizeram declara-
ções semelhantes. Cada um agiu independentemen- 1 Diversos livros e artigos abordam a questão do
te de Roma. Seus 31 colegas bispos franceses não Holocausto. Entre os que foram consultados para a
disseram nada. Em silêncio estavam e em silêncio elaboração deste artigo estão Hilberg, 1985; Bankier, 1986;
ficaram. Davidovitch, 1988; Goldhagen, 1997; Arendt, 1999; Rozett e
A Congregação das Irmãs Franciscanas da Famí­ Spector, 2000; Bergen, 2003; Marrus, 2003; Shoá –
­lia de Maria esteve ativa em toda a Polônia, escon- Enciclopédia do Holocausto, 2004; Dvork e Pelt, 2004;
Emmert, 2006;
dendo centenas de crianças judias em suas casas-
conventos. Não foi um caso único. Calcula-se que 2 Sigla derivada da palavra alemã Sturmapteilungen, ou
dois terços das 74 comunidades femininas na Po-
“Tropas de Assalto”.
lônia abrigaram crianças judias durante a guerra. 3 Sobre os ‘justos entre as nações’ ver, entre outros, Gilbert
Em nenhuma parte, a discrepância entre a la (2004) e Gutman (2003). Ver, também, o website da
International Raoul Wallenberg Foundation: http://www.
grande église e a la petite église foi mais evidente
raoulwallenberg.net
do que em Roma. Enquanto o silêncio do Papa
Pio XII foi um dramático exemplo canônico de
tá­­­cita colaboração, vários mosteiros e conventos
ofereceram refúgio depois da invasão do gueto de referências
Roma pelos alemães.
Os protestantes, em âmbito local, eram tão ati-
Arendt, Hannah. Las Orígenes del Totalitarismo. Madrid:
vos quanto os católicos. Contudo, sua liderança Alianza, 1999.
religiosa comportou-se indiferente, apresentando
Bankier, David (org). El Holocausto:
a mesma conduta da grande église catholique.
Perpetradores,Vítimas, Testigos. Jerusalem: Magnes Press,
Para terminar, desejo citar a fala de Padre Bru- 1986.
no, da Bélgica, que, em 1964, foi honrado como
BERGEN, Doris. War & Genocide: A Concise History of the
“Justo entre as Nações” por ter salvado 320 judeus.
Holocaust. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2003.
Ele declarou: “Salvei? Eu, apenas, procurei abrigo
Carneiro, Maria Luiza Tucci. Antissemitismo na Era
para esses judeus, mas procurar abrigo sem encon-
Vargas. São Paulo: Brasiliense, 1988.
trar é infrutífero: encontrar é essencial! Mas encon-
trar não foi meu trabalho, porque encontrar sig- Davidovitch, Lucy S. The War Against The Jews. New
York: Bantam Books, 1988.
nifica que portas foram abertas, a porta de uma
casa, a porta do coração.” Dwork, Deborah; Pelt, Robert Jan van. Holocausto; uma
história. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
Emmert, Frantisek. The Holocaust. Czech Republic:
Computer Press, 2006.
Gilbert, Martin. The Righteous; the unsung heroes of the
Holocaust. New York: Henry Holt & Company, 2004.
Goldhagen, Daniel Jonah. Os Carrascos Voluntários de
Hitler. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

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Gutman, Israel. Dictionaire des Justes de France.


Jerusalem: Yad Vashem /Paris: Librairie Arthème Fayard,
2003.
Hilberg, Raul. The Destruction of European Jews. New
York: Holmes & Meier Publishing, 1985.
Koifman, Fábio. Quixote nas Trevas; o embaixador Souza
Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Record,
2000.
Marrus, Michel R. A Assustadora História do Holocausto.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
Rozett, Robert; SPECTOR, Shmuel (org). Encyclopedia of
the Holocaust. Jerusalem: Yad Vashem, 2000.
UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e
Tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
Shoá – Enciclopedia del Holocausto. Jerusalem: E.D.Z
Nativ Ediciones, 2004.

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