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Como Israel foi dos braços de Stalin para os dos EUA

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Bruna Frascolla

Sionismo

PorBruna Frascolla

25/11/2023 13:00

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Excerto de um cartaz sionista convocando as mulheres à guerra contra os árabes na


década de 40 para a fundação do Estado de Israel.| Foto: Museu Haganá/Creative
Commons
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Ao tratar de antissemitismo, o cientista político Norman Finkelstein é, por assim dizer, o rei
do lugar de fala: ele é de etnia judaica, filho de dois poloneses que sobreviveram ao Gueto
de Varsóvia e aos trabalhos forçados em campos de extermínio nazistas (o pai esteve em
Auschwitz e a mãe em Majdanek). Tanto o seu pai quanto a sua mãe são sobreviventes
solitários de suas respectivas famílias, e o menino Finkelstein cresceu com fotos da família
materna (gente que ele nunca conheceu) penduradas pelas paredes da casa. Já da família
paterna não sobraram nem as fotos.

Ele está velho, já. Nasceu em 1953, em Nova Iorque. Segundo conta, a única memória de
um evento relativo ao Holocausto em sua infância se resume a chegar em casa em 1961 e
encontrar a mãe colada à TV, acompanhando o julgamento de Eichmann. Apesar das fotos
nas paredes e da solidão familiar dos pais, Finkelstein diz que até hoje não consegue, na
própria imaginação, atrelar os próprios pais, vistos por ele como duas pessoas muito
normais, a um passado tão sombrio no outro lado do mundo.

Mas vamos à parte de suas reminiscências que tem maior interesse político, e que são
objeto de um livro que causou muito alvoroço: “Tirando essa presença fantasmagórica [dos
retratos], eu não me lembro de o holocausto nazista invadir a minha infância. A principal
razão é que ninguém, fora da minha família, parecia ligar para o que aconteceu. Meu círculo
de amigos de infância tinha leituras abrangentes, e debatíamos calorosamente os eventos
da época. Ainda assim, eu sinceramente não me recordo de um único amigo (ou pai de
amigo) fazer uma única pergunta sobre o que os meus pais suportaram. Não era um
respeito silencioso. Era apenas indiferença. À luz disso, só podemos ficar céticos diante da
erupção de sofrimento nas últimas décadas, depois de a indústria do Holocausto se
estabelecer de modo firme.” Esta citação é de A indústria do Holocausto, publicado pela
primeira vez 2000, com uma edição aumentada em 2003. Há uma tradução brasileira
esgotada.

Assim, a pergunta inicial a ser respondida por Finkelstein no livro é: como o genocídio
nazista passou de assunto amplamente ignorado, conhecido somente por vítimas e
estudiosos, a mania nacional nos Estados Unidos e depois no mundo? O Museu do
Holocausto fica nos Estados Unidos, não na Polônia ou Alemanha. A juventude dos EUA
tem na ponta da língua (ou tinha, em 2000) que 6 milhões de judeus foram mortos no
Holocausto, mas não sabia das baixas da Guerra Civil do seu país natal, nem ligava muito
para os índios dizimados na Marcha para o Oeste. A resposta de Finkelstein está na
cronologia das conquistas militares do Estado de Israel.

O extermínio ocorreu na Europa Oriental


Antes disso, vamos dar uma recapitulada na história geral. A diáspora judaica remonta à
antiguidade, e variadas levas de imigração judaica para os Estados Unidos têm pouco em
comum entre si. É bem sabido, entre brasileiros, que os judeus expulsos do Recife junto
com os holandeses foram para Nova Iorque – e por aí se vê como é antiga a presença

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judaica nos EUA e nas Américas em geral. (Werner Sombart aponta que os judeus não
puderam ser rejeitados nas colônias inglesas porque os acionistas da holandesa WIC não
deixaram.) Os judeus dos EUA, cidadãos americanos, pouco ou nada sofreram com a II
Guerra Mundial. Ao contrário: segundo Finkelstein, são a minoria mais bem sucedida do
país, de modo que integravam já a elite nacional.

Do outro lado do Atlântico, a situação estava bem diferente. Na Europa (e no norte da


África!), os nazistas assassinaram tantos judeus quanto puderam. Ainda assim, pelos
cálculos mais aceitos hoje, os judeus não eram maioria entre os assassinados: foram 6
milhões de mortos, dentro de um total de 15, que incluía deficientes, ciganos, mestiços,
homossexuais, eslavos, comunistas (reais ou supostos), outros opositores do regime (como
os conservadores arrependidos e os militares da Operação Valquíria), além de prisioneiros
de guerra. O retrato do genocídio nazista como um episódio especificamente antissemita
não era evidente.

Outra coisa que não era evidente, na América e na Europa Ocidental, eram os próprios
campos de extermínio, com suas câmaras de gás. “Campos de concentração” é uma
designação ambígua, porque os nazistas tinham campos na Europa Ocidental (e no Norte
da África) onde os prisioneiros ficavam apenas concentrados e morriam de doença. Mas
esse era um estágio prévio à deportação para a Polônia, onde ficavam os grandes campos
de extermínio propriamente dito, e de trabalhos forçados – como Auschwitz, o mais famoso
de todos. Os nazistas começaram a deportar judeus em 1941. A população europeia
ocidental (judaica inclusa) não sabia ao certo o destino dos prisioneiros. Esse destino era a
Polônia, onde os sãos iriam trabalhar como escravos no esforço de guerra enquanto a
saúde e arbítrio dos nazistas permitissem.

Pois bem, quando os Aliados libertam os prisioneiros, quem pegou o front europeu oriental
foi, naturalmente, o Exército Vermelho da União Soviética. Quem escolheu preservar as
pilhas de sapatos em Auschwitz foram os comunistas, não o “mundo livre”. E depois da
guerra Auschwitz ficou atrás da Cortina de Ferro.

O sionismo era próximo da União Soviética


Mais um elemento na equação: após a morte de Herzl, o grosso do movimento sionista
pendeu para o socialismo. Essa era uma razão extra para ter como aliado natural o
Camarada Stalin, que em 1944 começou a libertar os judeus das fábricas de morte na
Polônia. No mesmo ano, Stalin tomou o lado dos paramilitares sionistas em meio à guerra
contra os árabes e apoiou o seu projeto de criar um Estado socialista dos judeus na
Palestina britânica, ou seja, Israel. Dado o conjunto da obra na altura dos anos 40, era óbvio
que, nos EUA, o sionismo tendia a ser visto como coisa de comunista.

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Nos EUA estava em vigência um anticomunismo mórbido, que culminaria, na década
seguinte, no macartismo. Como vimos, a elite judaica americana era integrada à elite
nacional. Por isso, segundo Finkelstein, elas se empenharam em afastar de si a suspeita de
serem comunistas, aderiram com força ao macartismo e se empenharam em entregar listas
de elementos comunistas nas comunidades judaicas. E de fato havia uma quantidade
proporcionalmente grande de comunistas entre os judeus.

Vale ressaltar, ainda, que o macartismo não foi só um movimento governamental: em


algumas profissões, ser blacklisted (isto é, listado como comunista) equivalia a uma
sentença de desemprego permanente. Muitos artistas (inclusive de origem judaica) se
mataram porque foram blacklisted. O setor cultural era (e é) cheio de empresários judeus
nos EUA. Àquela época, portanto, a cancel culture atendia pelo nome de macartismo e era
coisa de direita.

Ao longo do livro, Finkelstein reúne evidências de que as elites judaicas americanas


colocava o governo dos Estados Unidos em primeiro lugar e não se interessava nem pelo
Holocausto, nem pelos nazistas. Se o macartismo mostrava que elas não se interessavam
pelos judeus americanos de classe média, o empenho em lavar a reputação da Alemanha
recém-desnazificada mostrava que tampouco se importavam com os judeus europeus
mortos.

As elites dos EUA usaram ONGs judaicas americanas para lavar a imagem da Alemanha
recém desnazificada no pós-Guerra. A ADL (aquela mesma da qual Elon Musk tanto
reclama) e o World Jewish Congress (WJC) promoveram já em 1954 uma campanha de
combate ao sentimento anti-alemão em meio às populações judaicas. A ADL liderou a
iniciativa; já o WJC fez isto somente após combinar uma compensação financeira com o
governo alemão. Outra evidência pesada de desinteresse é que nenhuma dessas
organizações se moveu contra os acordos dos EUA para trazer ao país cientistas do Reich,
nem se mobilizaram contra os nazistas que imigraram. (Sobre a migração de cientistas
nazistas para os EUA com as bênçãos do governo, você pode ler neste texto de Lorenzo
Carrasco para a Gazeta do Povo.) Todo esse desinteresse permanece firme e forte na
década de 50.

A mudança em junho de 1967

As elites judaicas americanas não falavam do Holocausto antes de junho de 1967. Esse era,
ao menos em 2000, um fato não controvertido para o qual eram apresentadas algumas
explicações. (A mais comum era que os judeus estavam traumatizados.) Finkelstein, porém,
explica essa mudança por meio da consolidação de Israel como uma potência militar aliada
dos EUA. Israel começa a se consolidar como potência militar em junho 1967, quando
enfrentou uma desproporcional multidão de árabes na Guerra dos Seis Dias, e esse
processo foi concluído em 1973, com a Guerra do Yom Kippur.

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Vamos a uma evidência importante (ele lista muito mais, claro): “No começo da década de
1960, por causa do sequestro de Eichmann, Israel chegou a enfrentar duras reprimendas de
fileiras da opinião da elite judaica [americana], como Joseph Proskauer, ex-presidente AJC
[uma ONG judaica americana], o historiador Oscar Handlin, de Harvard, do Washington Post
(de propriedade judaica). ‘O sequestro de Eichmann,’ opinou Erich Fromm, ‘é um ato de
ilegalidade, exatamente do mesmo tipo pelo qual os próprios nazistas […] foram
condenados.’ ” Não que nenhum judeu ligasse para Israel antes disso. Os únicos judeus nos
EUA que eram intelectuais públicos e forjaram laços com Israel antes de 1967 eram Hannah
Arendt e… o vermelhíssimo Noam Chomsky, hoje veementemente antissionista e pró
Palestina.

Eis um resumo do trajeto político das elites judaicas americanas, segundo Finkelstein: “Para
as elites judaicas americanas, a subordinação de Israel ao poder dos EUA foi um golpe de
sorte. O sionismo surgiu da premissa de que a assimilação era uma esperança vã, pois os
judeus seriam sempre percebidos como possíveis alienígenas desleais. Para resolver esse
dilema, os sionistas buscaram estabelecer uma pátria para os judeus. Na verdade, a
fundação de Israel exacerbou o problema para a diáspora judaica: deu à acusação de dupla
lealdade uma expressão institucional. Paradoxalmente, depois de junho de 1967, Israel
facilitou a assimilação nos Estados Unidos: os judeus agora estavam na linha de frente
defendendo os EUA – ou melhor, a “civilização ocidental” – das hostes árabes retrógradas.
Enquanto que antes de 1967 Israel encarnava o bicho-papão da dupla lealdade, agora
indicava super lealdade. Afinal, não eram os americanos, mas os israelenses que lutavam e
morriam para proteger os interesses dos EUA. E, ao contrário dos GIs americanos no
Vietnã, os combatentes israelenses não estavam sendo humilhados por pés rapados do
terceiro mundo.

“Por conseguinte, as elites judaicas americanas de repente descobriram Israel. Depois da


guerra de 1967, o élan militar podia ser celebrado porque suas armas apontavam para a
direção certa: contra os inimigos dos EUA. Seu poderio marcial poderia até facilitar a
entrada nos círculos mais recônditos do poder estadunidense. Antes as elites judaicas só
podiam oferecer umas listinhas de judeus subversivos; agora elas podiam posar como
interlocutores naturais do mais novo recurso estratégico dos EUA.”

Naturalmente, a essa altura, a União Soviética já havia perdido as esperanças de ter o


governo socialista de Israel como um satélite soviético no Oriente Médio. Quem passa a
nutrir tais esperanças são os Estados Unidos.

No próximo texto, veremos a indústria do Holocausto denunciada por Finkelstein há vinte


anos, e que agora, ao meu ver, volta com as vestes de racismo estrutural, pedindo gordas
indenizações coletivas para ongueiros e advogados representantes do sofrimento alheio.

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Bruna Frascolla
Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de "As ideias e o terror"
(República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020. **Os textos da colunista
não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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