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O Eu Histórico

Conteudista: Prof.ª Dra. Patrícia Santos Silva


Revisão Textual:  Aline Gonçalves

O Eu Histórico

#FICADICA

REFERÊNCIAS
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O Eu Histórico

Em um lindo texto que nos encanta mundialmente, o escritor malinês


Amadou Hampaté Bâ nos traz a seguinte pergunta: quantas pessoas existem
dentro de uma mesma pessoa? A partir dessa curiosa questão, ele nos
apresenta uma das mais bonitas interpretações da história social dos povos da
África do Oeste, sobre a noção de pessoa, do “Eu”, no espaço, no tempo e nas
dimensões espirituais.

Destacamos este belo trecho:

“(...) o ser humano não é uma unidade monolítica, limitada a seu corpo físico, mas sim um ser
complexo habitado por uma multiplicidade em movimento permanente. Ele não se trata, portanto,
de um ser estático, ou concluído. A pessoa humana, como a semente, evolui a partir de um capital
primeiro, que é seu próprio potencial e que vai se desenvolvendo ao longo da fase ascendente de
sua vida, em função do terreno e das circunstâncias encontradas. As forças liberadas por esta
potencialidade estão em perpétuo movimento, assim como o próprio cosmos. (AMADOU, 1981, p. 3)”
A reflexão sobre o “Eu” Histórico se apresentou para nós a partir do final do século XIX e atravessou o
século XX e os primeiros 20 anos do século XXI.

Para nós, que somos tão envolvidos por cobranças, imagens, orientações, direitos e deveres que
exigem a definição do nosso nome, idade, filiação e localização, parece espantoso que somente nos
últimos 130 anos a noção do “Eu” tenha ganhado um destaque tão grande.

E por que foi o mundo contemporâneo que nos convidou a refletir sobre o “Eu”?

Historicamente, foi nesse período que surgiram diversas questões, movimentos e transformações
nos quais se tornou fundamental perceber que os seres humanos, apesar de únicos, em face das
demais espécies vivas, não são os mesmos em todos os tempos e possuem diversas formas de
lidarem com o espaço, o tempo e com suas produções culturais, referências intelectuais e
perspectivas espirituais.

Fonte: Getty Images 


A obra do historiador Marc Bloch, morto em um campo de prisioneiros por conta da perseguição
nazista na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), nos traz uma noção fundamental do papel da
História de dar “voz aos mortos”, enfatizando o vínculo entre passado e presente, a partir das
experiências humanas individuais e coletivas (BLOCH, 1965).

BLOCH, M. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-


América, 1965. Gerações de jovens historiadores tiveram nessa obra a
sua iniciação nos estudos históricos. Ela foi escrita no período de
prisioneiro de guerra das tropas nazistas. O autor teve que se remeter
a sua memória para fazer o texto. Foi a última obra antes de morrer.

Se nos últimos 70 anos o reconhecimento da diversidade humana é visto como um valor universal e
como algo que faz a vida do planeta ser melhor e mais criativa, na primeira metade do século XX, as
diferenças humanas foram hierarquizadas e tratadas de forma desqualificadora para justificar a
criação dos impérios coloniais na África e na Ásia e para garantir a exploração dos povos desses
continentes.

Os povos africanos e asiáticos tiveram suas formas de ser e de viver consideradas inferiores em
comparação com as pessoas que faziam parte das nações colonizadoras, que se encontravam na
Europa Ocidental, notadamente em Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha.

Durante a Era Colonial, que começou em torno de 1890 e que durou até 1962, com a Guerra da
Argélia, em um primeiro momento, e teve seu completo fim em 1974, por conta das guerras de
libertação de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, as diferenças entre pessoas e
sociedades eram explicadas em termos de raça.

Esse seria um conjunto de características biológicas que sofriam também interferências do meio
natural, que justificariam a diversidade humana, mas remetendo à ideia de que haviam raças mais
avançadas do que outras, no caso, a dos brancos da Europa Ocidental, que poderiam colonizar e
controlar a mão de obra e os territórios daqueles que eram considerados não brancos.

Junto a essa visão, associavam-se ideias que vinham de uma interpretação das Ciências Biológicas e
das Ciências Sociais, que posteriormente se revelou equivocada, de que havia raças atrasadas e
outras evoluídas, o que criaria uma distinção dentro da espécie humana. Basta dizer que, com essa
perspectiva, os dois grandes conflitos mundiais do século XX, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ceifaram milhões de vidas, justificado pelo racismo (o ato de
discriminação embasado na ideia de raça), pela xenofobia (o ódio ao estrangeiro) e pela intolerância
religiosa.

A noção de “Eu” emergiu no final do século XIX e ganhou espaço nos séculos XX e XXI. Na primeira
metade do século XX, era tratada como pessoa aquela que era considerada civilizada, portadora dos
valores culturais, espirituais e estéticos da Europa Ocidental, sendo parte da raça branca. Os demais
seres não eram vistos como pessoas e, junto ao racismo, todos os demais seres humanos que,
mesmo na Europa, não fossem cristãos, heterossexuais e concordantes dos governos e dos sistemas
políticos hegemônicos eram considerados seres de segunda categoria. Apesar das transformações e
dos avanços na crítica às exclusões por gênero, religião e raça, ainda há grandes desafios a serem
vencidos contemporaneamente.

De acordo com Santos (2020, p. 157):

“A intolerância ao estrangeiro e a discriminação religiosa tornaram-se fenômenos que ocorrem


globalmente e que marcam os vinte primeiros anos do século XXI. A maneira de pensar uma nação
atrelando Estado a um território homogêneo e coeso foi transformada pelas duras condições sociais
planetárias, e a circulação de pessoas se intensificou bastante. Com elas vieram novas formas sociais,
culturais, políticas e espirituais de se estar no mundo. Estabelecer vínculos e ser transformado por
eles foi e é um grande desafio, limitado pelas graves dificuldades econômicas que o globo atravessa
e pela ascensão de governos e ideologias extremistas.”
Até os anos 40 do século XX, eram consideradas pessoas os grandes
políticos, empresários, exploradores coloniais, médicos, militares e
religiosos, e aí trazemos outra noção fundamental. As mulheres eram
consideradas menos pessoas que os homens até o fim da Segunda
Guerra Mundial.

Essa geopolítica internacional entra em crise justamente com o fim


da Segunda Guerra Mundial e a descoberta da não legalidade dos
princípios das Ciências Biológicas, da medicina e das ciências
humanas, que eram embasadas na ideia de raças e na diferenciação
entre elas.

A crise política e social que advém do fim do conflito mundial traz a


reivindicação de milhões de pessoas do mundo inteiro, que eram
oprimidas por regimes políticos embasados na hierarquia das raças,
como os estados coloniais na África e na Ásia. Na Europa e na
América Latina, as populações afro-americanas e indígenas
intensificaram suas lutas pelos direitos civis e fim do racismo.

As mulheres ganharam forte protagonismo, questionando


severamente valores sociais embasados no machismo que as
desqualificavam como pessoas e não permitiam a valorização das
suas singularidades, tampouco o exercício da cidadania.
Marcha sob Washington, D.C. (EUA), século XX
Fonte: Wikimedia

Os anos 60 do século XX se destacaram pelas reivindicações de uma nova escrita da História. Que
esta não fosse mais a exaltação dos grandes homens, que apagava as mulheres, crianças e a
diversidade social e humana. Que pudéssemos conhecer a história das crianças, das mulheres, dos
trabalhadores, dos povos africanos e asiáticos.

Que pudéssemos expandir as noções de estética e de valorização dos diversos patrimônios culturais
do mundo. Foi um período fundamental para a emergência da contestação dos jovens, que não
aceitavam ser submetidos a trabalhos forçados e a regimes laborais em condições análogas à
escravidão, no caso da África e da Ásia. Já na Europa e nas Américas, ganham muita força as
reivindicações juvenis de direito aos próprios corpos, não tendo que se submeter ao serviço militar
obrigatório.
A autodeterminação dos povos e dos indivíduos tornou-se uma bandeira fundamental, e com isso
surgiu também a reivindicação da sexualidade como uma experiência única de liberdade, de
autodescoberta, de fortalecimento da noção do “Eu” e da liberação de vínculos tradicionais, como o
casamento e a obrigatoriedade de ter filhos.

Pluralismo político, a sexualidade livre, o fim do serviço militar obrigatório, a valorização do cotidiano


e o fim do racismo se tornaram agendas identitárias que passaram a associar pessoas que buscavam
desenvolver a noção do “Eu” histórico por meio do autoconhecimento, mas também da militância
político-social, da expansão do ensino universitário, da valorização da diversidade religiosa e da
liberdade que a mulher deve ter em relação ao seu próprio corpo.

Pluralismo político, a sexualidade livre, o fim do serviço militar obrigatório, a valorização do cotidiano


e o fim do racismo se tornaram agendas identitárias que passaram a associar pessoas que buscavam
desenvolver a noção do “Eu” histórico por meio do autoconhecimento, mas também da militância
político-social, da expansão do ensino universitário, da valorização da diversidade religiosa e da
liberdade que a mulher deve ter em relação ao seu próprio corpo.

“The Flower Power”, de Bernie Boston, fotografia retirada durante


a Marcha no Pentágono, em 1967
Fonte: Wikimedia
A conjuntura do mundo nos anos 60 e 70 do século XX não foi nada fácil e, em muitos momentos,
altamente reativa a tantas demandas e anseios do “poder jovem”. Mas não havia mais condição de se
retornar para uma ordem mundial que, em menos de 50 anos, havia provocado duas guerras
mundiais com imenso sacrifício juvenil.

Junto com isso e na busca de novos caminhos, o reconhecimento de outros patrimônios e valores
civilizatórios não ocidentais abriu um rico caminho de produção literária, de pesquisas sociais e
compreensão do “Eu” na Psicologia e na Psicanálise.

Protesto de estudantes na França, em 1968

Esse “Eu” passa a ser visto como uma dimensão que é interna e única do indivíduo que a porta, por
isso, para ser compreendido, precisava ser buscado, descoberto, sentindo, percebido. Nesse sentido,
a Psicanálise dos anos 1960 enfatizou ainda mais a importância do inconsciente e da compreensão e
problematização dos comportamentos, vistos como expressões de uma dimensão que se acessa no
profundo de cada ser.
A saúde mental ganha um particular destaque nesse contexto e o que se considerava como
desordens mentais também. É fortalecido na França e em diversos países o movimento
antimanicomial e a denúncia dos usos dos equipamentos que provocavam os choques elétricos.

As pulsões, os sentimentos profundos e o inconsciente deveriam ser descobertos, reconhecidos e


trabalhados. As artes, a poesia, a literatura e as pesquisas nas Ciências Sociais deveriam se abrir
também, corajosamente, para conhecer o inconsciente coletivo, para se questionar os mecanismos
repressores e se perceber o que era da antiga ordem política e colonial que criara tantas divisões e
ódios no mundo.

Nesse processo, as medicinas, os caminhos culturais e valores civilizatórios africanos, indígenas e


asiáticos ganharam um imenso impulso e adesão. Grupos de meditação se fortaleceram também
como caminhos de uma busca para dentro, de uma descoberta de si na perspectiva do encontro
consigo mesmo.

Dia Nacional da Luta Antimanicomial é celebrado em 18 de maio


Fonte: abrasco.org.br
Ao mesmo tempo, nos campos musical e artístico, a reconquista da posse do corpo e do autoprazer
vinha nas ondas do Rock and Roll e das baladas. Chacoalhar os corpos, ousar nas roupas, liberar
movimentos trazia a ideia também de que o corpo era uma história desconhecida. Descobrir o “Eu”,
necessariamente, passava também pela redescoberta sensória de si mesmo, do outro e de todos.
Com isso, os grandes festivais, o ato de dançar, o estar juntos faziam parte também do encontro de si
mesmo, que, necessariamente, passava pelo contato e pelas trocas com outras parcerias e outras
formas de ser e estar.

Atravessando todas essas buscas do “Eu”, houve também a intensificação do uso de substâncias
entorpecentes e de exaltação dos estados de alteração psíquica provocados por elas. Nesse
complexo movimento, envolviam-se desde chás e preparos de rituais advindos dos povos indígenas,
africanos e asiáticos, que logo tiveram grande popularidade e envolvimento da juventude, até as
drogas alucinógenas, cujos efeitos e usos provocaram lesões, mortes e graves problemas de ordem
psiquiátrica.

Filmes como Duna (1984), dos anos 1970 e 1980, evocavam a possibilidade da ordem política global
e razões dos indivíduos. A juventude precisava ser revista não mais como um grupo homogêneo, ou
como uma fase do desenvolvimento humano, apenas. Havia bilhões de “Eus” únicos, particulares e
históricos cujos campos de possibilidades, desafios e estratégias de vida convidavam para que, de
fato, emergissem novas abordagens científicas para a compreensão do que se chamou de psico-
história e de Ego-História (ROSE, 2001).

A segunda metade do século XX consagra fortemente as noções do Eu individual e do coletivo.


Metodologicamente, era fundamental se pensar em outras metodologias para se evidenciar os
relatos de si. E a história oral se estabelece como um poderoso contribuinte para o favorecimento da
produção social de testemunhos individuais e de experiências do coletivo.

Esse caminho, aberto pela História, de se produzir relatos por meio da metodologia da História Oral,
com ênfase nas entrevistas, das histórias de si, contribuiu para complexificar a noção de Eu histórico.
Este passa a ser visto como expressões de pessoas que produziam diversos vínculos e engajamentos
identitários. E em cada uma dessas experiências o Eu era vivenciado de formas distintas e contribuía
poderosamente para a a compreensão da complexidade de interações e relações que marcam e
alimentam a história do ser.

Junto a isso, a noção do ser trazia também a do grupo social e de coletivos mais amplos. Graças aos
estudos em torno das histórias de vida, de categorias sociais, de trabalhadores, de ativistas sociais,
das chamadas pessoas comuns, percebe-se que o mundo contemporâneo traz poderosamente os
vínculos sociais e a necessidade deles para a compreensão da trajetória dos indivíduos e para a
construção das identidades sociais.

Movimento “Diretas Já”, no Brasil, 1983-1984


Fonte: Wikimedia

Isso vinha também, do ponto de vista da história dos séculos XX e XXI, das diversas razões apontadas
por diferentes depoentes, projetos e histórias de se repensar o devir civilizatório. Os vínculos dos
primeiros 60 anos do século passado, embasados nas crenças de supremacia racial e dos valores
eurocêntricos como os mais importantes, haviam descarrilhado com as guerras mundiais e a dura
conjuntura de guerra fria que se seguiu ao fim do conflito mundial. Muitos eram vítimas dos sistemas
totalitários e havia a percepção do sufocamento pessoal e coletivo que precisava ser transformado.

A descoberta de um novo mundo passava necessariamente para a valorização dos associativismos


que levaram à crise de um modelo de civilização racista e profundamente classista. E há a criação de
novas formas de se unir pessoas, de se perceber novas reivindicações e de se compreender mais as
histórias pessoais a partir dos trânsitos (circulações, encontros e articulações) dos indivíduos e
grupos.

O “Eu” histórico, com isso, se complexificou muito. Não era mais só a percepção de si no espaço e no
tempo, ou o evidenciar da singularidade e unicidade de cada ser. Era fundamental perceber como as
diversas formas de se associar, reivindicar, participar e criar aumentavam o campo de compreensão e
elaboração social e psíquica do próprio ser, por se ampliar referências, comunidades políticas,
vínculos identitários, referenciais estéticos e possibilidades de outros papéis de gênero para além do
que se tem como herança biológica.

E à medida que se esse “Eu” se expande, percebe-se que o coletivo tornou-se ainda mais diverso e
plural, e que havia necessidade de se buscar constantemente negociações, acordos e acomodações
para se lidar com tamanha multiplicidade de experiências e formas de ser no mundo.

Nesse percurso, o princípio social da equidade se mostrou de forma fundamental para se equilibrar
as relações entre experiências de diversidade humana, histórica e social, mostrando que o consenso
é algo fluido e que sempre está em transformação em função da dinâmica histórica e das ações dos
indivíduos e dos coletivos.

Do ponto de vista das histórias coletivas, o século XX foi marcado pela produção de ideologias de
solidariedades universais que questionaram o forte processo de produção de impessoalidade
gerado pelo capitalismo industrial e financeiro que triunfou a partir da Revolução Industrial no século
XIX e que se aprofunda com a exploração global, favorecida pelos impérios coloniais e pela
proletarização dos trabalhadores na Europa e nas Américas.

Se até a primeira metade do século XIX, nas sociedades da Europa Ocidental, havia a compreensão
de que a pobreza necessariamente criava, apesar do sofrimento de quem se encontrava nessa
situação, um vínculo entre essas pessoas e os demais segmentos sociais, a fim de se ter o equilíbrio
político, social e espiritual, com o avanço da Revolução Industrial, que advém das descobertas de
fontes de energia como carvão e, no final do mesmo século, da eletricidade, junto aos produtos
advindos da exploração dos Impérios coloniais, a pobreza na Europa aumentou muitíssimo.

Pode parecer parodoxal que mais riqueza leve a mais miséria, mas, no final do século XIX, as grandes
metrópoles europeias conheciam grandes bolsões de pobreza e miserabilidade motivadas pelos
cercamentos dos campos que levaram à perda de terras dos pequenos proprietários e migrações
para as cidades para serem mãos de obras nas indústrias em expansão, submetidos a baixíssimos
salários e a longas horas de jornada de trabalho. Para aumentar a renda familiar, mulheres e crianças
entram na produção industrial com remuneração ainda mais baixa e sujeitas a diversas formas de
violência e arbitrariedades.

Os vínculos sociais que comprometiam governos e setores produtivos com o bem-estar social dos
seus trabalhadores e a atenção aos mais pobres haviam sido rompidos. As violências trabalhistas e os
abusos em nome de um lucro que não era socialmente partilhado favoreceram a emergência dos
movimentos sindicais e das ideologias contestadoras da exploração capitalista, das quais a que
tomou mais vulto foi o socialismo científico defendido pelo filósofo alemão Karl Marx.

Para ele, havia uma contradição capital versus trabalho que era intransponível, que poderia ser
somente superada pelo rompimento advindo da parte dos trabalhadores dessa logica que se
apropriava completamente dos lucros da força de trabalho, desobrigando-se da redistribuição social
deles. Esse rompimento viria pela via revolucionária, criando uma nova estrutura na qual nem a
religião e nada que salvaguardasse os princípios e valores da burguesia industrial deveriam subsistir.

Nesse momento, o “Eu” histórico individual era diluído dentro dos grandes projetos, tanto do
capitalismo de exploração em massa quanto da alternativa socialista da transformação do sistema
econômico e social coletivamente.

A quebra de vínculo social e de relações de compromisso coletivos era evidente.

Tal fato levará a um amplo e acirrado debate e constituição de ações por parte de lideranças
religiosas e políticas em torno de uma ideia moderna de caridade, de indivíduo e de compromisso
coletivo. Percebia-se que a quebra desse vínculo estava no cerne da contestação da ordem política
e social, e a repressão política contra militantes não resolveria algo que apresentava a crise
estrutural das próprias sociedades contemporâneas.

Era preciso redescobrir vínculos, criar relações de interdependência e ligar-se a uma ordem
civilizatória que daria sentido e alimentaria esses processos. Do ponto de vista das igrejas cristãs, era
preciso dizer que existia uma mediação que poderia garantir uma ética moral que pudesse justificar
hierarquizações, mas que buscasse mitigar as desigualdades.
Contudo, em sua dinâmica, isso não foi simples. Diversos agentes religiosos como sacerdotes,
religiosas, pastores e missionários percebiam que não dava para se mitigar diferenças. Primeiro
porque, nessa grande categoria pobre, havia indivíduos e suas histórias dos quais uma ação de
conciliação não daria conta. Não era possível tratar como massa, apesar da grande proletarização e
situações de miserabilidade em que se encontravam as pessoas.

A ideia de uma caridade radical, que passa pelo não julgamento, se constrói fortemente no período.
Lideranças que atuavam nessa perspectiva atraíram para si milhares de pessoas e mediaram a
relação com os Estados e grupos empresariais a mitigação de situação de abandono, a partir de uma
organizada ação de atenção e assistência.

Irmã Dulce desenvolveu forte trabalho social na Bahia


Fonte: fradesfranciscanos.com.br

Serão, contudo, os dois grandes conflitos mundiais e seus milhões de empobrecidos que farão
efetivamente a modificação da política dos estados europeus, na construção dos estados de bem-
estar social sob o risco de se tornarem solos férteis para os movimentos revolucionários de natureza
socialista.
A diluição do eu individual nas massas e a restrição da liberdade individual durante a era dos
fascismos na Segunda Guerra Mundial e no período Stalinista, na antiga União Soviética, trouxe
questões muito fortes, como o acirramento do machismo, das ações de violação de direitos políticos
e do extermínio de pessoas por motivações racistas e xenófobas.

O pós-guerras traz a tensão da necessidade da redescoberta da pessoa, da dimensão do ser, do eu.


Forma-se um campo de compreensão e de interligação que não se separa mais: o eu, o indivíduo e a
pessoalidade.

Ao mesmo tempo, percebe-se que, a partir dessa complexidade de percepção de cada um, o eu
histórico ganha um forte protagonismo e capacidade reconhecida de se aproximar de diferentes
formas de reivindicação e associações identitárias, como foi dito no início deste texto.

Com isso, também na pesquisa das Ciências Sociais e da História se abrem possibilidades de
pesquisa para novas fontes e abordagens de interpretação dos relatos e de diálogo com o passado.

Dentre elas, destaca-se a contribuição da História Oral e da produção dos relatos sobre si aqui já
caracterizados, mas também a possibilidade de se interpretar diversos outros processos de
construção de identidades coletivas.

Há um esforço sincero em se enfatizar a diversidade e a singularidade das diversas formas de


associativismo e de construção de vínculos coletivos. E surgiram historicamente novas formas de as
pessoas, entendidas na sua complexidade individual e na relação com as demais, se aproximarem e
formarem comunidades políticas e culturais.

Um grande e importante fato transformador da percepção de coletivos globais foi o processo de


libertação das antigas colônias africanas e asiáticas iniciado em meados dos anos 1950, com a
independência de Gana, na África.

Novos protagonistas e suas histórias emergiram, fazendo reivindicações fundamentais. Para os


países-membros da União Africana, entidade que congregava os países que se tornavam
independentes das antigas metrópoles europeias e para as nascentes universidades e sistemas
educacionais que se estruturavam, havia a necessidade de se reconhecer os saberes produzidos
pelas diferentes sociedades africanas e o incentivo à produção de avanços científicos e tecnológicos
que partissem de outros referenciais culturais e acadêmicos que não fossem só os da Europa
Ocidental.

Junto a isso, uma das mais comoventes reivindicações foi para a escrita de uma História Geral da
África, congregando pesquisadores de diferentes latitudes africanas, com alguns da Europa e das
Américas que tivessem o comprometimento de trazer as diversas perspectivas histórico-temporais
de fontes diversificadas, como as da arqueologia e das oralidades, para o conhecimento de diversos
povos, entidades políticas e processos culturais, ampliando muito o conhecimento da riqueza das
civilizações africanas, demonstrando que a história do continente começa a milhares de anos antes
da escravidão atlântica (séculos XVI ao XIX).

Esse esforço monumental, que foi de 1962 até meados dos anos 1990, resultou em uma coleção
monumental de oito volumes que buscava enfatizar os processos locais africanos com dinâmicas
regionais e transregionais, ampliando os referenciais geográficos e tornando ainda mais rica a
percepção das partes ocidentais e orientais do planeta.

A criação dos arquivos orais da África ocidental, que foi empreendida pelo historiador Amadou
Hampaté Bâ, que já mencionamos aqui, conhecido mundialmente por ter nos proporcionado um
estudo sistematizado das civilizações orais da África do oeste, tinha a preocupação de mostrar a
complexidade das experiências individuais em franco diálogo com as histórias e os processos
culturais partilhados nas experiências coletivas das diversas entidades políticas e línguas faladas na
região (HAMPATÉ BÂ, 2010).

A multiplicidade de novos atores sociais que emergiram das pesquisas e páginas dos diversos
historiadores, arqueólogos, antropólogos e linguistas que escreveram esses oito volumes amplificou
a possibilidade de estudos de outros povos silenciados na primeira metade do século e suas
singularidades locais e transregionais, como as nações indígenas das Américas e da Oceania.

O “Eu” histórico é, de fato, um atributo da pessoa, do ser e do indivíduo. Passa pelas elaborações e
ações desse ser único, suas escolhas, processos identitários e associações, mas é também parte
integrante do coletivo, que é múltiplo, diverso, desafiador e transformador.
Nosso objetivo, neste texto, foi contribuir trazendo aspectos para a compreensão dessa dimensão do
Eu, que é fundamental, mas uma descoberta historicamente contemporânea. O Eu histórico se
apresenta de forma mais clara a partir do momento que a noção de mundo conhecido se amplia no
final do século XIX, com a conquista de populações e territórios da Ásia e da África. Junto a isso, os
desafios da modernização tecnológica e a transformação do sistema social e econômico modificam
socialmente os antigos centros de poder na Europa Ocidental, fazendo emergir sérias questões
sociais que levavam fundamentalmente a se repensar o ser na sua dimensão individual e histórica e
nos coletivos mais amplificados.

Desde o último trimestre de 2019, estamos passando por outra experiência globalizante e de difícil
convívio, que é a pandemia do coronavírus. Sobre a Covid-19, ainda em franca pesquisa sobre a sua
patogênese e sequelas nos seres humanos e animais, sabe-se da profunda debilitação do sistema
imunológico e do pulmão e, junto com a facilidade da sua propagação, levou todos os países a
passarem pela experiência do isolamento social e da profilaxia sanitária feita com álcool em gel,
água e sabão e uso de máscaras para não se propagar e receber contaminação pelas vias
respiratórias.

Apesar da simples profilaxia, o isolamento social e o acesso a esses recursos de higiene individual
fizeram emergir conflitos duríssimos justamente na relação do individual e coletivo, em que as
desigualdades sociais, de gênero, o racismo, a precariedade dos programas de saúde publica e
coletiva emergiram com grande força.

Se na primeira fase pandêmica as vítimas fatais eram majoritariamente idosas, na segunda fase do
chamado “retorno viral”, um número considerável de jovens tem vindo a falecimento. E isso traz
diversas reflexões sobre o que esses dados revelam: maior exposição a possibilidades de contágio
porque os mais jovens precisam trabalhar, não há assistência social pública para que os
trabalhadores das indústrias, do comércio e os domésticos possam fazer o isolamento e a necessária
autoproteção e coletiva, uma vez que mesmo um assintomático pode levar o vírus para a própria
residência.

Tensões entre a liberdade individual e a necessidade de um bem coletivo mais difuso têm revelado
também as contradições das sociedades contemporâneas e provocado diversas tensões, mudanças
de rumos políticos e um ativismo fundamentado na criação de redes de solidariedade e assistência
emergencial.
Padre Julio Lancelotti realiza trabalho social relevante com
moradores de rua na cidade de São Paulo
Fonte: revistasentido.com

Referimo-nos a essa situação do tempo presente para mostrar aqui como o “Eu” histórico lida com as
transformações sociais, ambientais e políticas no espaço e no tempo. Por isso é uma identidade em
constante transformação, que é sempre mobilizada por situações internas e externas. E esse Eu
histórico articula de formas complexas a relação dos indivíduos com processos coletivos mais
amplos (ODARA, 2020).

Mais contemporaneamente, uma forma de se encarar essa complexidade do individual e do coletivo


tem sido pensada na perspectiva da empatia, do olhar de aproximação, reconhecimento e
identificação de situações de humanidade que não podem ser ignoradas, mas precisam ser
elaboradas e transformadas. E isso acontece na complexa relação do eu consigo mesmo e com o
mundo que o cerca.

Para Odara (2020, p. 216):


“O reconhecimento da dor e da vivência do outro e a aceitação das próprias condições possibilitam ir
na direção contrária ao preconceito, e esta é condição indispensável à empatia. Portanto, a primeira
conclusão a que cheguei sobre empatia é que exercê-la não é se colocar no lugar do outro, porque
isso é impossível – ninguém consegue viver a história do outro –, mas entender como o nosso lugar
impacta o lugar do outro e como agir para que esse impacto seja positivo.”

Junto a isso, o próprio papel das instituições políticas, culturais e educacionais se transforma cada vez
mais, uma vez que situações de limitações humanitárias individuais e coletivas reverberam
globalmente e a essa resposta local e geral é preciso estar aberto e compreender que as condições
do eu histórico individual e mais amplo estão em contínuas transformações.
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#FICADICA

Nesta área, separamos diversos conteúdos que irão auxiliar você a aprofundar os conhecimentos
adquiridos no decorrer deste módulo. O intuito é que você possa refletir e colocar em prática as
percepções levantadas. Não deixe de conferi-los! Eles serão de grande ajuda no seu
desenvolvimento. 

VIDEOAULA
 Instituto ICA 
Conversa sobre engajamento social e voluntariado com Mário Sérgio
Cortella e Rodrigo Pipponzi

Clique no botão para conferir o conteúdo.

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LEITURAS

 LIVROS 
Coleção “História Geral da África”
Em 1964, a UNESCO dava início a uma tarefa sem precedentes: contar a história da África a partir da
perspectiva dos próprios africanos. Mostrar ao mundo, por exemplo, que diversas técnicas e
tecnologias hoje utilizadas são originárias do continente, bem como provar que a região era
constituída por sociedades organizadas, e não por tribos, como se costuma pensar.

Veja mais em: https://bit.ly/3qUp3FT

SITES

 WEB 
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável 

ACESSE
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REFERÊNCIAS

BLOCH, M. Introdução à História. Lisboa, Portugal: Publicações Europa-América, 1965.

HAMPATÉ BÂ, A. A Tradição Viva. In: HAMA, B.; KI ZERBO, J. (org.). História Geral da África. Brasília:
Unesco/UFSCar, 2010. v. 1. Disponível em: <https://ipeafro.org.br/gratuito-historia-geral-da-africa-
em-8-volumes-7357-paginas-em-pdf/>. Data de acesso: 24/02/2021.

HAMPATÉ BÂ, A. A noção de pessoa na África Negra. Trad. Amadou Hampâté Bâ. In: DIETERLEN, G.
(ed.). La notion de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981. Disponível em:
<https://www.palasathena.org.br/downloads/amadou_hampat%C3%A9_b%C3%A2_ano%C3%A7%C3
%A3odepessoana%C3%A1fricanegra.pdf>. Data de acesso: 24/02/2021.

ODARA, M. Empatia: inspirando encontros improváveis. In: SILVA, A.; ROSA, L.; MOLINA, S. 20 palavras:
leituras sobre o Agora. Ribeirão Preto: Sesc; Fundação do Livro de Ribeirão Preto, 2020.

ROSE, N. Inventing our selves: psychology, power, and personhood. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Revista
Educação e Realidade, v. 26, n. 1, p. 33-57, jan./jul. 2001.

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Data de acesso: 24/02/2021.

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