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PPGCOM/UFJF – Doutorado em Comunicação

Nome: Sara Rodrigues de Moraes Bridi


Data: 12/07/2022
Professor: Paulo Roberto Figueira Leal
Disciplina: Processos Simbólicos e Representação Social

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

FICHAMENTO

O livro contrapõe a ideia de que a política é construída de forma puramente


racional e ideológica, centrada no consenso ao demonstrar como a maior parte dos
discursos que fazem parte do imaginário político se originam nas religiões, crenças
populares e na mitologia. Tais origens compõem a explicação de porque os indivíduos
se deixam levar de forma inconsciente por teorias da conspiração.

Para além da pura análise histórica documental que compreende determinado


encadeamento de acontecimentos, para se obter uma análise adequada de determinados
fenômenos sociológicos, se faz necessário um estudo da história cultural, das ideias e
das mentalidades. Esses campos levam em conta a contribuição do inconsciente e do
irracional na construção da história. A obra de Girardet se insere nesse contexto ao
apresentar como ponto central que: “Tantos relatos, no entanto, tantos apelos que
escapam a toda racionalidade aparente, mas dos quais nossa cultura política carrega
ainda tão profundamente a marca... Parece claro, e com irredutível evidência, que é de
uma notável efervescência mitológica que não cessaram de ser acompanhadas as
perturbações políticas dos dois últimos séculos da história europeia” (p.11). As
mitologias estariam presentes no segundo plano de todas as grandes ideologias. Em
uma disputa mitológica, a posição ideológica ganha menos impacto que o
sentimento inconsciente de participar de uma batalha mítica do bem contra o mal.

Girardet elenca quatro conjuntos mitológicos que ajudariam a explicar muitos


movimentos históricos: A conspiração, a idade de ouro, o salvador e a unidade.

Conceito de Mito: Mentira, ilusão, camuflagem; crença. Com o desenvolvimento da


psicanálise (Freud, Young), ao analisar os sonhos começaram a aparecer relações entre
as narrativas produzidas pelo subconsciente e as encontradas nas mitologias e crenças
populares. Por conseguinte, tais histórias fantásticas podem ser mais importantes do que
parecem por auxiliarem a revelar dinâmicas sutis do subconsciente humano. Tanto a
antropologia quanto a ciência da religião referem-se ao mito como uma narrativa que se
refere a um passado sagrado que, apesar de não ter sido vivenciado de fato, ajuda a
conferir sentido ao mundo. Por meio do subconsciente, os indivíduos repetem essas
histórias e as vivenciam por meio de símbolos e rituais mesmo que, muitas vezes, não
tenham mais a consciência total do significado desses símbolos (festas religiosas, rituais
- casamento).

Os mitos são ambivalentes. Por não serem racionais, podem conter vários significados.
Frequentemente, o mito pode, inclusive, inverter o seu significado. A conspiração, por
exemplo, pode ter uma conotação positiva (complô demoníaco X santa conjuração). O
segredo, a máscara, o juramento e os cúmplices podem ser, num aspecto mitológico, a
depender da história, atributos heroicos (conspiradores do bem).

As narrativas míticas possuem lógica própria e um número limitado de regras,


fórmulas e combinações. “O poder de renovação da criatividade mítica é, de fato,
muito mais restrito do que as aparências poderiam fazer crer. Se o mito é polimorfo, se
constitui uma realidade ambígua e movente, ele reencontra o equivalente de uma
coerência nas regras de que parece depender o desenrolar c de sua caminhada. Esta pode
ser representada e apresenta-se efetivamente como uma sucessão ou uma combinação
de imagens” (p.17).

A estrutura do discurso do líder salvador é sempre associada a símbolos de purificação e


libertação: o herói é quem quebra correntes, derrota monstros e expurga o mal. Sua
imagem está sempre ligada à luz e claridade (ouro, sol, brilhante). Por outra via, o
imaginário da conspiração maléfica repete temas como a sujeira, o fedor, animais
imundos e tentaculares. Tais imagens atribuem sentido a diversas circunstâncias.
“Último traço específico, portanto, da narrativa mítica: é em um código que se tem o
direito de considerar como imutável em seu conjunto « que ela transcreve e transmite
sua mensagem” (p.18).

A CONSPIRAÇÃO

3 Narrativas (conspiração judaica, jesuíta e massônica)

Mito da grande conspiração judaica – origem em um livro de ficção medíocre,


chamado Biarritz, publicado em Berlin em 1868 por Sir John Retcliffe (pseudônimo de
Goedsche, um ex-funcionário dos Correios prussianos) . Um determinado trecho isolado
de seu contexto de ficção começou a circular em jornais franceses como um testemunho
autêntico de um suposto embaixador britânico chamado Sir John Readclif. Em 1896, o
livro “Os Judeus nossos contemporâneos”, de François Bournaud, reproduziu o discurso
dos jornais e ganhou repercussão internacional. Em 1933, a edição sueca do livro dizia
que o suposto diplomata que tinha revelado o complô fora “misteriosamente
assassinado”. A história de um plano rigorosamente arquitetado de que os judeus
desejavam dominar o mundo correu o planeta. De acordo com o plano, eles dominariam
a economia, a política e se enraizariam em todas as esferas da sociedade. Para isso
usariam de especulação financeira até influência dos governos passando pelo controle
das escolas e meios de comunicação.

O discurso do rabino também serviu de base para o texto ideológico “Os Protocolos do
Sábios de Sião” – falsificação produzida pela polícia russa no final do século XIX que
circulou em vários países antes da primeira guerra mundial. Esse “documento” erra
frequentemente citado por Hitler como justificativa para o extermínio dos judeus.
Girardet narra que o mesmo processo de construção mítica se deu para o complô
jesuítico e o complô massônico, que circulavam por meio de folhetins na sociedade do
século XVIII e XIX. “As variantes narrativas são inúmeras, suscetíveis de situar-se
tanto no espaço como no tempo. Contudo, são muito secundárias em relação à
permanência de uma mesma construção morfológica” (p.34).

Elementos básicos do mito da conspiração:

A organização começa com a criação de uma entidade secreta que deve ser temida, é
repleta de segredos, indevassável e impossível de ser denunciada. Para entrar na
organização, é preciso passar por cerimônias e rituais em locais secretos e clandestinos.
Membros se comunicam por códigos e senhas, são ligados por juramentos e pactos de
silêncio. São capazes de trair, espionar e matar para cumprir seus objetivos.

Objetivo das conspirações seria a instalação de um império das trevas. “Assim,


todos os fios da manipulação se encontram atados. À corrupção pelo ouro corresponde a
corrupção pelo sangue. Diante da vontade conquistadora e disciplinada da Organização
não se erguerá mais que uma massa aviltada, a dividida e desvairada, desapossada tanto
de seus bens como de sua dignidade, atingida nas fontes mais profundas da vida” (p.
41).
O império das trevas

Há uma frequência nas narrativas de conspiração as ideias de descida para baixo da


terra, para o abismo, para as trevas (outras figuras de linguagem: a cripta, o porão, a
caverna, o andar secreto). O inimigo sempre se apresentará com um aspecto
sombrio, maléfico e diabólico. Os conspiradores tramam seus planos sempre à noite,
usam roupas escuras e sombrias. “Constituem, no interior de toda comunidade
consciente de sua coerência, um corpo exógeno obscuramente submetido às suas
próprias leis, obedecendo apenas a seus próprios imperativos ou a seus próprios apetites.
Surgidos de outra parte ou de parte alguma, os fanáticos da conspiração encarnam o
Estrangeiro no sentido pleno do termo” (p.43).

A técnica literária gera uma narrativa quem envolve o indivíduo de tal forma que ele
perde a distinção sobre o que é real e o que é imaginário. O Nevoeiro, a tempestade
transportam os leitores para um mundo amedrontador. O vagabundo ameaça a ordem da
cidade, o forasteiro é o portador da desgraça e da doença. O inimigo é apresentado
como aquele que vai invadir sua casa e provocar a ruína.

Os animais imundos também surgem da sombra. Os animais escolhidos para


estabelecer comparação com os inimigos geralmente constituem um bestiário místico
que “Reúne tudo o que rasteja, se infiltra, se esconde. Reúne igualmente tudo o que é
ondulante e viscoso, tudo o que é tido como portador da sujeira e da infecção: a
serpente, o rato, a sanguessuga, o polvo... No centro desse pulular repulsivo, ágil, negro,
voraz e peludo, a aranha constitui aparentemente a imagem simbólica privilegiada entre
todas: estende suas armadilhas com paciência infinita, envolve sua vítima em seus fios,
devora-a com lentidão” (p. 44).

A imagem da praga invisível também foi amplamente utilizada em campanhas


ideológicas, atribuindo a ela ódio e desejo de extermínio do inimigo. O porco que se
alimenta da sujeira e o lobo assassino. A partir desse medo irracional contra um
bestiário mítico associado ao inimigo, a representação evolui para uma alegoria
diabólica e maléfica. Há uma obsessão pela devoração bucal, consumo de sangue
humano (vampiros), rituais diabólicos e fogo. “Por outro lado, não é sem significação
suplementar que, à denúncia das práticas criminais dos homens do Complô, vem
frequentemente acrescentar-se a das sevícias sexuais infligidas às suas vítimas” (p. 46).
Assim, o adversário político se torna inimigo. “no segundo plano dos infinitos
desenvolvimentos do discurso do Complô – discurso multiforme, sem cessar renascente,
sempre presente – seja possível discernir certas especulações maquinadoras é um fato
que não pode ser negligenciado. Seria, contudo, e com toda evidência, singularmente
arriscado concluir daí que é a partir desse segundo plano que o discurso inteiro deve ser
apreendido e compreendido (...) nenhum empreendimento manipulador pode esperar
atingir seus objetivos ali onde não existe, nos setores de opinião que ele se esforça por
conquistar, uma certa situação de disponibilidade, um certo estado de receptividade” (p.
50-51).

As propagandas políticas que se valem desse recurso, retomam um horror


primitivo, imagem primordial e constitutiva do nosso inconsciente.
“Paradoxalmente, o mito do Complô tende, assim, a preencher uma função social de
importância não negligenciável, e que é da ordem da explicação. Explicação tanto mais
convincente quanto se pretende total e de exemplar clareza: todos os fatos, qualquer que
seja a ordem a que pertençam, acham-se “reduzidos, por uma lógica aparentemente
inflexível, a uma mesma e única causalidade, a uma só vez elementar e todo-poderosa.
Em outras palavras, tudo se passa como se uma chave interpretativa se encontrasse
estabelecida e na qual se visse inserido o conjunto dos acontecimentos do tempo
presente, aí compreendidos, com certeza, os mais desconcertantes e os mais
angustiantes. Por isso mesmo o desconhecido infinitamente temível das questões sem
resposta cede diante de um sistema organizado de evidências novas. O destino volta a
ficar inteligível; uma certa forma de racionalidade, ou pelo menos de coerência,, tende a
restabelecer- -se no curso desconcertante das coisas” (p. 55).

Tal angústia gera uma efervescência mitológica que deixa os indivíduos sensíveis à
introdução do mito do herói capaz de combater a conspiração em nome do povo.

O SALVADOR

Em situações de crise, as pessoas tendem a invocar a figura de um herói salvador


para livrá-las do mal. Assim, em alguns momentos da história, determinadas
personalidades foram eleitas pela sociedade para encarnar esse anseio coletivo.
Entretanto, muitas vezes, os heróis são criados a partir de uma série de manipulações
conscientes de agentes históricos capazes de identificar as angústias sociais e encenam o
papel esperado pela comunidade. Para isso, Girardet compara o retrato do Sr. Pinay à
figura mítica explorada por Paul Claudel em Tête d’Or. “De fato, a narrativa claudeliana
organiza-se em três tempos, em três períodos: o apelo, o poder e a glória, e o martírio”
(p. 66).

Quatro modelos:

Constatação que complica a abordagem – impossibilidade de traçar uma linha de


demarcação precisa entre a fabulação legendária e o relato histórico (ex: figura de
Napoleão). “Toda a questão está, evidentemente, em saber como se opera a passagem
do histórico ao mítico, como opera, em outras palavras, esse misterioso processo de
heroificação, que resulta na transmutação do real e em sua absorção no imaginário”
(p.71) , levando-se em conta, ainda, a parcela de manipulação voluntária.

Girardet aponta que são necessários alguns requisitos para a construção de um herói
nacional:

Tempo da espera e do apelo: há que existir uma certa disponibilidade social, no qual
sofrimentos e expectativas da sociedade formam o desejo por um salvador,
“cristalizando-se em tordo dela a expressão coletiva de um conjunto, na maior parte das
vezes confuso, de esperanças, de nostalgias e de sonhos” (p. 72);

Tempo da presença: Quando o herói se anuncia e o curso da história parece estar


prestes a se realizar. Período mais suscetível à manipulação ideológica.

Tempo da lembrança: Quando a figura do salvador do passado vai se modificando de


acordo com a memória coletiva e de grupos que se interessam em perpetuar
determinados aspectos do personagem.

a partir do momento em que todo mito desse tipo ganha uma certa amplitude coletiva,
ele tende a combinar vários sistemas de imagens ou de representações, a constituir-se,
em outras palavras, como uma espécie de encruzilhada do imaginário onde vêm cruzar-
se e embaralhar-se às aspirações e às exigências mais diversas, por vezes mais
contraditórias” (p. 72-73)

As características necessárias a determinado herói variam de acordo com o


momento histórico. Girardet destaca quatro categorias:
O velho homem: herói de guerras do passado que decide se retirar da vida pública.
Mas em um momento crucial, esse homem abandona o seu projeto de uma velhice
tranquila para obedecer o chamado do povo. Um discurso comum a esse arquétipo é o
de voltar às raízes, reconstruir a casa, abrigo e proteção.

O herói audacioso e impetuoso: Seu poder vem do entusiasmo da ação imediata,


proposta por uma aventura. Atravessa a história como um raio fulgurante (Napoleão). É
capaz de atos incríveis e acumula histórias fabulosas.

O homem providencial: Pais fundadores da nação, capazes de sustentar as instituições,


os fiéis guardiões dos fundamentos da pátria.

O profeta: Aquele que anuncia um novo tempo e consegue ler os sinais que os outros
ainda não percebem. Se apresenta como induzido por um impulso sagrado para conduzir
o seu povo pelos caminhos do futuro. Ele vincula seu destino pessoal ao destino
coletivo. Não se trata de apenas um representante, mas a encarnação da nação, do
destino histórico, de todo um povo que conduz a pátria.

A marca da história

Todo processo de heroificação depende da personalidade do salvador e as necessidades


de suas respectivas comunidades em certo momento histórica. Isso quer dizer que, por
mais que se utilize propaganda, não é tão fácil criar um herói. Em suas características
pessoais, o candidato a herói precisa ter um conjunto de elementos que correspondam
expectativas da sociedade.

“Se o mito não pode deixar de conservar a- marca do personagem em torno de qual ele
se constrói, se, engrandecendo-os, tende a assegurar através do tempo a perenidade dos
traços específicos que são os de sua fisionomia, não pode deixar, por outro lado, de
depender ele próprio, em sua forma como em seu conteúdo, das circunstâncias,
historicamente delimitadas, nas quais é elaborado. Todo processo de heroificação
implica, em outras palavras, uma certa adequação entre a personalidade do salvador
virtual e as necessidades de uma sociedade em O um dado momento de sua história. O
mito tende, assim, a definir-se em relação à função maior que se acha episodicamente
atribuída ao herói, como uma resposta a uma certa forma de expectativa, a um certo tipo
de exigência” (p. 82).

Crises de Legitimidade e crises de identidade


A história se alterna em períodos de efervescência e remissão. “Essas vicissitudes
podem depender de origens múltiplas, ter-se manifestado sob as formas mais diversas:
bloqueio institucional. rejeição global de uma equipe governamental justa ou
injustamente desacreditada, ruína financeira, desordem interna, ameaça estrangeira,
desastre militar... Contudo, em todos os casos elas parecem estar relacionadas com a
aparição, e depois com o desenvolvimento do que se tem, sem dúvida, o direito de
chamar de uma crise de legitimidade” (p. 86).

“Todo poder pode, em última análise, aparecer como legitimo quando, para a grande
massa da opinião e no segredo dos espíritos e dos corações, a manutenção das
instituições estabelecidas é reconhecida como uma evidência fatual, escapando a toda
contestação, ao abrigo de todo questionamento” (p.88).

“Passagem de um estado de certeza a um estado de perturbação ou de angústia, de um


estado de adesão a um estado de alienação, toda crise de legitimidade aparece, de fato,
como inseparável de um m traumatismo psíquico perceptível tanto a nível o individual
como a nível coletivo” (p.89).

Ao analisar a imagem do herói é possível interpretar as ideologias, mentalidades e


modelos de autoridade aceitos em determinada sociedade em determinado período. Ao
estimular o medo na sociedade com conspirações e demonização do inimigo, a
propaganda política prepara o terreno para o anúncio de um herói salvador.

A IDADE DE OURO

Os tempos “de antes”

Imagens idealizadas de um passado lendário causam impactos poderosos na imaginação


política das pessoas. É o mito mais constante nas mitologias políticas. Estimula
nostalgia sobre os tempos do passado em contraste aos costumes corrompidos do
presente. Alguns desses momentos de fato aconteceram, entretanto, a memória não
registra tudo de maneira fidedigna. Por vezes ela se esquece, seleciona e amplifica
detalhes sentimentais insignificantes e apaga detalhes inconvenientes.

A memória pessoal não é um registro amplo e fiel da realidade. Mas nas na maioria
dos casos, os discursos evocados pelos velhos tempos na mitologia política são
idealizado a partir de referências fragmentadas da história.
O contraste entre as angústias do presente e as lembranças idealizadas do passado é algo
natural ao ser humano. Quanto maior a sensação de tristeza e decadência do presente,
mais o passado é imaginado como repleto de glória. O resultado é que a representação
desse tempo ancestral se torna um mito.

O mito da era de ouro é objetificada na moda retrô, nos objetos vintage com os quais
gerações mais jovens tentam vivenciar um passado idealizado. O mesmo fenômeno
ocorre na política ao idealizarmos um sistema social do passado.

No final do século XIX, a crítica ao liberalismo e ao individualismo já era intensa. No


decorrer do século XX, muitos também rejeitaram as utopias totalitárias do nazismo e
do comunismo. Para fundamentar uma nova ideologia política, esses grupos passaram a
fantasiar um passado nostálgico de tempos felizes da Idade Média como modelo de vida
comunitária. Os anarquistas do início do século XX, os hippies e ambientalistas dos
anos 1960, tinham como um dos fundamentos o retorno à natureza ou o primitivismo
como utopia social.

Outros nostálgicos preferem a idealização dos tempos da monarquia, das princesas e do


cavalheirismo à moda antiga das sociedades de corte. Também existem os nostálgicos
dos tempos da escravidão, das ditaduras e dos períodos “heroicos” das guerras. Esse
passado longínquo é almejado por aqueles que nunca vivenciaram esses tempos.

A partir do mito da idade de ouro, as ideologias políticas elaboram o discurso de


reconstrução de um tempo antigo e recuperação de valores que teoricamente
garantiam a ordem e a harmonia do passado.

Muitas vezes a noção dos bons tempos é puramente mitológica por não estar situada na
história, mas em um tempo lendário de inocência e felicidade que tem como
paradigma a imagem do paraíso perdido. Ele reflete o desejo da inserção perfeita de
homens e mulheres na ordem do universo. No fim das contas a busca pela pureza
original simbolizada pelo Jardim do Éden é um modelo de referência presente na
esfera das religiões que ajuda a construir narrativas no campo da política.

Há uma dualidade no mito da Idade de Ouro. A medida em que é uma evocação


nostálgica de uma felicidade perdida também é uma esperança e expectativa de seu
retorno. Muitas das representações do passado se relacionam a uma determinada visão
de futuro. As religiões que pregam a salvação se valem dessa dinâmica de um paraíso
perdido e de uma no era dos justos a ser iniciada após o fim dos tempos. Esse discurso é
apropriado pelo nacionalismo que exalta a suposta grandeza do povo do passado para
justificar a necessidade de lutar para a ressurreição da pátria no futuro. Nesse caso, há
uma reversibilidade do mito (é retrospectivo e prospectivo).

O mito da idade de ouro tem uma única oposição fundamental: o presente como tempo
de degeneração.

UNIDADE

Antagonismo – “De um lado, a insistência na autonomia do indivíduo e em sua


capacidade de livre disposição de si mesmo, a aceitação deliberara de uma sociedade
conflituosa, de suas divisões e diferenças, a desconfiança tenaz em relação a todas as
Igrejas, seus aparatos e seus dogmas. Do outro, a vontade de unir e de fundir, a visão de
uma sociedade homogênea e coerente, a condenação em nome do bem comum do
recolhimento do indivíduo em si mesmo e em seus interesses, o temos dos cismas e das
dissidências, a busca de uma fé comum e a exaltação das grandes efusões coletivas” (p.
145).

A temática da Unidade revela um segundo plano de construção mítica muito rica de


representações oníricas, imagens e símbolos.

Da religião civil ao poder espiritual

Divisão entre religião e Estado: “Da divisão e da coexistência de dois poderes, o do


príncipe e o daqueles que se consideram como representantes das leis divinas, resultou
“um perpétuo conflito de jurisdição” que tornou toda boa política impossível em nossas
sociedades. “Jamais se soube, escreve Rousseau, a quem, senhor ou padre, se era
obrigado a obedecer” A situação presente então é de um “direito misto e insociável que
não tem nem nome: dependendo das duas legislações, praticamente duas pátrias
diferentes, os membros de uma mesma comunidade política acham-se submetidos a
deveres contraditórios, colocados na impossibilidade de serem ao mesmo tempo
cidadãos e devotos.” (p. 146) Rousseau defende que é preciso restabelecer uma
ligação entre o culto divino e o amor às leis (religião civil). Hobbes – deve-se
conferir ao direito o status de dogma.
Entretanto, ao eliminar-se o lugar da festa, também se eliminaria a vida comunitária,
momento da redescoberta de almas que expandem e corações que se correspondem.

“Não se poderia esquecer, sobretudo, que a instituição de uma religião civil não faz, no
caso, senão consagrar o modelo de uma sociedade reconciliada consigo mesma, onde o
homem religioso virá confundir-se com o cidadão, a celebração da divindade com a da
cidadania” (p. 147). Proposta da festa revolucionária – modificar a substância do
homem a fim de indentificá-lo com a forma de governo e fazer do amor à liberdade sua
paixão dominante.

Há uma intensão pedagógica nesse processo para impor, por meio de rituais repetitivos,
hábitos morais e rudimentos de uma disciplina coletiva. Graças às festas pátrias e suas
santas instituições e da república penetraria no coração do povo. Mas também é uma
forma de eliminação de fatores individualizantes.

“Convinha, esclarecia ele, “apoderar-se do homem desde o berço, e mesmo antes


do nascimento, pois a criança que não nasceu já pertence à pátria”...” (p.149).

Desenvolvimento de altares da pátria, estátuas, procissões, paradas, fazendo


prevalecer sobre a ruína das velhas instituições uma nova forma de sagrado. Mas
essa foi a causa do insucesso – faltava enraizamento sociológico que existia na
profundidade milenar da fé tradicional.

Transição para a ideia de Estado Laico no qual a religião não é mais uma coisa que se
administra. “Dessa separação total da ‘ordem religiosa’ e da ‘ordem política’ não pode
nascer senão o estreito recolhimento de cada um sobre si mesmo, o antagonismo dos
interesses e dos egoísmos, a exclusiva preocupação com a dominação material” (p.
151).

Ponto de convergência entre Maistre, Lemannais, Saint-Simon e La Rèveillière-


Lépaux: “a vontade de construir o que se poderia designar como teologia moral do
político. Ou, em outros termos, de assegurar o encontro, de realizar a imbricação do
moral, do religioso e do político. Ou, em outros termos ainda, de reconstituir os
fundamentos morais e religiosos da política” (p. 155) – desejo de equilíbrio e fusão.

“Essa grande e nobre unidade da pátria”

Ideia de nação como a encarnação da Unidade. Ideia de uma França que preexiste à
França.
Um século que quer acreditar

Questionamentos:

“o hiato, cada vez mais profundo, estabelecido desde o advento das Luzes, entre o que
pertence à ordem do conhecimento científico e o que pertence ao domínio das
aspirações da fé. Já Joseph de Maistre, deplorando que “a afinidade natural” da religião
e da ciência se encontre doravante negada ou ignorada, falara de sua esperança de
reencontrá-las um dia reunidas “na cabeça de um único homem de gênio” (p. 166). O
clérigo abandonou o cetro a ciência, abrindo mão daquilo que também constituía seu
prestígio. Por outro lado, o homem da ciência, tendo renunciado a falar às almas, não
pode mais guiar a sociedade contemporânea.

“Ruptura, portanto, entre a fé e o conhecimento, oposição do crente e do homem de


ciência. Ao que é apresentado como um abalo muito profundo da consciência moderna,
um outro atestado - não menos doloroso - vem, contudo, acrescentar-se: uma
sociabilidade em via de rompimento, a erosão das velhas solidariedades, a decadência
das antigas formas da vida comunitária” (p.168). Com isso, o indivíduo perde sua
transcendência e reduz-se a sua função profissional.

A redescoberta do indivíduo acontece por meio das festas – onde as pessoas recuperam
sua condição de união fraterna.

“A busca da unidade não se reduz mais à simples procura de uma nova moral coletiva:
pertence doravante ao domínio do sagrado. Não se trata mais apenas de um convite à
reconstituição da integralidade da pessoa humana, à reconquista, por cada um de nós, da
coerência de seu destino. Não se trata mais tão-somente da necessidade de reconstituir a
trama rompida das velhas solidariedades sociais. Através da efusão coletiva, é o próprio
“princípio divino” que se procura redescobrir, a “unidade dinâmica” entre o Homem,
Deus e o universo que se trata de restabelecer” (p. 173).

NA DIREÇÃO DE UM ENSAIO DE INTERPRETAÇÃO

Manifestações do imaginário tendem a adquirir um valor revelador, uma vez que os


mitos podem ser considerados como resposta a fenômenos de desequilíbrios sociais e
angústias coletivas. “O essencial está no fato de que a efervescência mítica começa a
desenvolver-se a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se
pode considerar como um fenômeno de não-identificação” (p. 181).
A ausência de consciência da presença de elementos mitológicos é o fato mais
dramático, uma vez que provoca um estado de alienação. “O nascimento do mito
político situa-se no instante em que o traumatismo social se transforma em traumatismo
psíquico. É na intensidade secreta das angústias ou das incertezas, na obscuridade dos
impulsos insatisfeitos e das esperas vãs que ele encontra a sua origem” (p. 181, 182).

A função preenchida pela atividade mítica é a de reestruturação mental. Cada mito


político contém em si uma visão global e estruturado do presente e futuro coletivos.

Por outro lado, o mito político também é uma potência mobilizadora, podendo se
colocar como um instrumento de reconquista de identidade.

“uma das consequências visíveis das manifestações do imaginário político é essa


emergência de formas novas de organização comunitária, nascidas no interior da
sociedade global e no mais das vezes em oposição a ela (...). O mito político aparece
assim, do ponto de vista da observação sociológica, como tão determinante quanto
determinado: saído da realidade social, é igualmente criador de realidade social” (p.
184).

Para se analisar a história política, é preciso reunir fatores de interpretação sociológica e


de explicação psicológica. Mais prudente é reconhecer a voz mítica que ressoa em nós a
tentar abafá-la.

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