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GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
FICHAMENTO
Os mitos são ambivalentes. Por não serem racionais, podem conter vários significados.
Frequentemente, o mito pode, inclusive, inverter o seu significado. A conspiração, por
exemplo, pode ter uma conotação positiva (complô demoníaco X santa conjuração). O
segredo, a máscara, o juramento e os cúmplices podem ser, num aspecto mitológico, a
depender da história, atributos heroicos (conspiradores do bem).
A CONSPIRAÇÃO
O discurso do rabino também serviu de base para o texto ideológico “Os Protocolos do
Sábios de Sião” – falsificação produzida pela polícia russa no final do século XIX que
circulou em vários países antes da primeira guerra mundial. Esse “documento” erra
frequentemente citado por Hitler como justificativa para o extermínio dos judeus.
Girardet narra que o mesmo processo de construção mítica se deu para o complô
jesuítico e o complô massônico, que circulavam por meio de folhetins na sociedade do
século XVIII e XIX. “As variantes narrativas são inúmeras, suscetíveis de situar-se
tanto no espaço como no tempo. Contudo, são muito secundárias em relação à
permanência de uma mesma construção morfológica” (p.34).
A organização começa com a criação de uma entidade secreta que deve ser temida, é
repleta de segredos, indevassável e impossível de ser denunciada. Para entrar na
organização, é preciso passar por cerimônias e rituais em locais secretos e clandestinos.
Membros se comunicam por códigos e senhas, são ligados por juramentos e pactos de
silêncio. São capazes de trair, espionar e matar para cumprir seus objetivos.
A técnica literária gera uma narrativa quem envolve o indivíduo de tal forma que ele
perde a distinção sobre o que é real e o que é imaginário. O Nevoeiro, a tempestade
transportam os leitores para um mundo amedrontador. O vagabundo ameaça a ordem da
cidade, o forasteiro é o portador da desgraça e da doença. O inimigo é apresentado
como aquele que vai invadir sua casa e provocar a ruína.
Tal angústia gera uma efervescência mitológica que deixa os indivíduos sensíveis à
introdução do mito do herói capaz de combater a conspiração em nome do povo.
O SALVADOR
Quatro modelos:
Girardet aponta que são necessários alguns requisitos para a construção de um herói
nacional:
Tempo da espera e do apelo: há que existir uma certa disponibilidade social, no qual
sofrimentos e expectativas da sociedade formam o desejo por um salvador,
“cristalizando-se em tordo dela a expressão coletiva de um conjunto, na maior parte das
vezes confuso, de esperanças, de nostalgias e de sonhos” (p. 72);
a partir do momento em que todo mito desse tipo ganha uma certa amplitude coletiva,
ele tende a combinar vários sistemas de imagens ou de representações, a constituir-se,
em outras palavras, como uma espécie de encruzilhada do imaginário onde vêm cruzar-
se e embaralhar-se às aspirações e às exigências mais diversas, por vezes mais
contraditórias” (p. 72-73)
O profeta: Aquele que anuncia um novo tempo e consegue ler os sinais que os outros
ainda não percebem. Se apresenta como induzido por um impulso sagrado para conduzir
o seu povo pelos caminhos do futuro. Ele vincula seu destino pessoal ao destino
coletivo. Não se trata de apenas um representante, mas a encarnação da nação, do
destino histórico, de todo um povo que conduz a pátria.
A marca da história
“Se o mito não pode deixar de conservar a- marca do personagem em torno de qual ele
se constrói, se, engrandecendo-os, tende a assegurar através do tempo a perenidade dos
traços específicos que são os de sua fisionomia, não pode deixar, por outro lado, de
depender ele próprio, em sua forma como em seu conteúdo, das circunstâncias,
historicamente delimitadas, nas quais é elaborado. Todo processo de heroificação
implica, em outras palavras, uma certa adequação entre a personalidade do salvador
virtual e as necessidades de uma sociedade em O um dado momento de sua história. O
mito tende, assim, a definir-se em relação à função maior que se acha episodicamente
atribuída ao herói, como uma resposta a uma certa forma de expectativa, a um certo tipo
de exigência” (p. 82).
“Todo poder pode, em última análise, aparecer como legitimo quando, para a grande
massa da opinião e no segredo dos espíritos e dos corações, a manutenção das
instituições estabelecidas é reconhecida como uma evidência fatual, escapando a toda
contestação, ao abrigo de todo questionamento” (p.88).
A IDADE DE OURO
A memória pessoal não é um registro amplo e fiel da realidade. Mas nas na maioria
dos casos, os discursos evocados pelos velhos tempos na mitologia política são
idealizado a partir de referências fragmentadas da história.
O contraste entre as angústias do presente e as lembranças idealizadas do passado é algo
natural ao ser humano. Quanto maior a sensação de tristeza e decadência do presente,
mais o passado é imaginado como repleto de glória. O resultado é que a representação
desse tempo ancestral se torna um mito.
O mito da era de ouro é objetificada na moda retrô, nos objetos vintage com os quais
gerações mais jovens tentam vivenciar um passado idealizado. O mesmo fenômeno
ocorre na política ao idealizarmos um sistema social do passado.
Muitas vezes a noção dos bons tempos é puramente mitológica por não estar situada na
história, mas em um tempo lendário de inocência e felicidade que tem como
paradigma a imagem do paraíso perdido. Ele reflete o desejo da inserção perfeita de
homens e mulheres na ordem do universo. No fim das contas a busca pela pureza
original simbolizada pelo Jardim do Éden é um modelo de referência presente na
esfera das religiões que ajuda a construir narrativas no campo da política.
O mito da idade de ouro tem uma única oposição fundamental: o presente como tempo
de degeneração.
UNIDADE
“Não se poderia esquecer, sobretudo, que a instituição de uma religião civil não faz, no
caso, senão consagrar o modelo de uma sociedade reconciliada consigo mesma, onde o
homem religioso virá confundir-se com o cidadão, a celebração da divindade com a da
cidadania” (p. 147). Proposta da festa revolucionária – modificar a substância do
homem a fim de indentificá-lo com a forma de governo e fazer do amor à liberdade sua
paixão dominante.
Há uma intensão pedagógica nesse processo para impor, por meio de rituais repetitivos,
hábitos morais e rudimentos de uma disciplina coletiva. Graças às festas pátrias e suas
santas instituições e da república penetraria no coração do povo. Mas também é uma
forma de eliminação de fatores individualizantes.
Transição para a ideia de Estado Laico no qual a religião não é mais uma coisa que se
administra. “Dessa separação total da ‘ordem religiosa’ e da ‘ordem política’ não pode
nascer senão o estreito recolhimento de cada um sobre si mesmo, o antagonismo dos
interesses e dos egoísmos, a exclusiva preocupação com a dominação material” (p.
151).
Ideia de nação como a encarnação da Unidade. Ideia de uma França que preexiste à
França.
Um século que quer acreditar
Questionamentos:
“o hiato, cada vez mais profundo, estabelecido desde o advento das Luzes, entre o que
pertence à ordem do conhecimento científico e o que pertence ao domínio das
aspirações da fé. Já Joseph de Maistre, deplorando que “a afinidade natural” da religião
e da ciência se encontre doravante negada ou ignorada, falara de sua esperança de
reencontrá-las um dia reunidas “na cabeça de um único homem de gênio” (p. 166). O
clérigo abandonou o cetro a ciência, abrindo mão daquilo que também constituía seu
prestígio. Por outro lado, o homem da ciência, tendo renunciado a falar às almas, não
pode mais guiar a sociedade contemporânea.
A redescoberta do indivíduo acontece por meio das festas – onde as pessoas recuperam
sua condição de união fraterna.
“A busca da unidade não se reduz mais à simples procura de uma nova moral coletiva:
pertence doravante ao domínio do sagrado. Não se trata mais apenas de um convite à
reconstituição da integralidade da pessoa humana, à reconquista, por cada um de nós, da
coerência de seu destino. Não se trata mais tão-somente da necessidade de reconstituir a
trama rompida das velhas solidariedades sociais. Através da efusão coletiva, é o próprio
“princípio divino” que se procura redescobrir, a “unidade dinâmica” entre o Homem,
Deus e o universo que se trata de restabelecer” (p. 173).
Por outro lado, o mito político também é uma potência mobilizadora, podendo se
colocar como um instrumento de reconquista de identidade.