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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

! PAS DE DEUX
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

SAQUAREMAS
& LUZIAS
A sociologia do desgosto com o Brasil

CHRISTIAN EDWARD CYRIL LYNCH


ADVOGADO E CIENTISTA POLÍTICO

E
xistem diversas maneiras de pensar o
Brasil. Mas entre os letreiros de maior
destaque, aqueles avisos iluminados
a indicar-nos certos percursos, há,
em especial, duas formas mais con-
sistentes reveladas em nossa história.
Ambas dizem respeito a uma maneira de encarar
o problema do atraso da sociedade brasileira, ou,
como se dizia antigamente, o retardo do Brasil
no concerto das nações. Ou ainda o subdesen-
volvimento, a emergência, a barbárie – todos di-
ferentes nomes e expressões, apresentados em
diferentes épocas, mas destinados a designar o
mesmo problema: o nosso atraso. Essas duas vi-
sões oferecem distintos diagnósticos para expli-
car o retardo da sociedade brasileira e, por con-
seguinte, prescrevem dois diferentes remédios.
Uma dissonância e uma dualidade essenciais de

OUTUBRO‡ NOVEMBRO‡ DEZEMBRO 2011 !


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discursos no âmbito político, que reverberam no do dê voz à sociedade civil, significa que preci-
campo acadêmico, ou o contrário. Essas duas samos de democracia “para ele”. O senhor feudal
formas de pensar o Brasil são os saquaremas e se considera a própria sociedade civil. Esta seria
luzias. Elas nos são úteis para apresentar e ana- a parte esclarecida da população. No diagnósti-
lisar as raízes do desconforto com o Brasil que co saquarema, como temos sociedade mas não
uma parte considerável do nosso pensamento uma nação, é impossível esperar que a própria
social e político revela. Entender esse desconfor- elite crie a nação. Afinal, ela só pensa em si e
to exige olhar para a história. nos seus familiares. Não tem virtude pública. É
preciso, portanto, uma elite instalada no coração

“S aquarema” é a denominação dada aos con-


servadores do Império. “Luzia” é o apeli-
do dedicado aos liberais da época. Chamavam-se
do Estado, que, de cima para baixo, seja capaz de
reformar essa sociedade.
Essa nova elite vai remodelar a sociedade e
assim por duas razões. Saquarema era o nome do elevá-la, mas, para tanto, tem de enfrentar os man-
município do Rio onde um dos líderes conserva- dões, os senhores feudais, os proprietários de terra
dores, o Visconde de Itaboraí, tinha uma fazen- que se pensam os únicos cidadãos, que reivindi-
da. Ali o grupo se reunia com frequência. Luzia cam para si a condição de sociedade civil. Esses
era uma referência a uma pequena cidade de Mi- proprietários de terra são, no fundo, uma meia dú-
nas Gerais, Santa Luzia, onde ocorreu a maior zia de egoístas, afirma o diagnóstico saquarema.
derrota dos liberais nas revoltas de 1842. Essa Não é possível criar uma sociedade de baixo para
percepção de que existem dois discursos no pen- cima, mas o seu inverso, através do Estado. Afinal,
samento social e político brasileiro foi primeiro a ordem de baixo para cima é um pântano; resul-
detectada por Oliveira Viana em 1924, quando tará em guerra civil e atraso ainda maior. A obses-
escreveu um texto muito famoso, intitulado “O são saquarema é a unidade territorial. Esta tem de
idealismo da Constituição”, que ganhou mais ser garantida por um Estado forte; não um Estado
duas edições, ampliadas. Ele voltaria ao assunto qualquer, não um Estado província, mas um Esta-
em 1949, ao publicar o livro “Instituições políti- do nacional. Essa ordem não pode ser construída
cas brasileiras”. Os saquaremas, conservadores, pelos grandes proprietários de terra, pois a iden-
defendiam a centralização do poder; os luzias, li- tidade destes é local. Eles não têm sentimento de
berais, pregavam a monarquia federativa, opon- nação ou unidade nacional. Por isso, o Estado –
do-se ao Poder Moderador e ao Senado vitalício, forte e centralizado – é a solução. Os saquaremas
dominado pelos conservadores. observam o exemplo da Europa e lembram que os
O diagnóstico saquarema informa: somos um Estados-nação foram criados no tempo do Absolu-
país enorme, sem meios de comunicação, com tismo por meio da centralização, sem a qual não
povoamento inorgânico e população profunda- há como fazer valer a Constituição. E sem Cons-
mente decaída do ponto de vista da instituição, tituição, não há liberdade. Não é possível tornar
da riqueza, da falta de saneamento básico. Com efetivos os dispositivos legais se o Estado não esti-
isso, chega-se à conclusão categórica de que não ver presente no conjunto do país. A centralização,
temos nação. Com um Estado muito fraco des- portanto, não significa opressão. Significa liberda-
de sempre, o país ficou nas mãos dos grandes de, ordem e unidade.
proprietários rurais, os mandões, os senhores
feudais, homens que mantêm a população su- Revolução pelo alto com uma monarquia centralizada
balternizada e dependente. Esse senhor feudal Convém recuar mais um pouco. Na Améri-
se pensa cidadão e, quando diz que precisamos ca Latina, a necessidade de criar repúblicas ou
de democracia ou que precisamos de que o Esta- países independentes, no contexto de uma socie-

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dade muito mais atrasada do que a europeia, fez movimento de independência, feito em nome da
com que ganhasse corpo a ideia do despotismo liberdade, esses países foram obrigados a cons-
ilustrado como ideologia de construção nacional. truir Estados em nome da ordem, e passaram
No século XVIII, países como Portugal, Espanha a restringir essa mesma liberdade. Percebeu-se
e Prússia haviam percebido que algo ocorrera que era preciso granjear a ordem pública em tor-
com França e Inglaterra. Estes estavam muito no de uma autoridade vista como legítima, que
mais à frente, tinham exércitos muito maiores, detivesse o monopólio dos meios de coerção,
suas economias apareciam muito mais desenvol- para usar os termos de Weber. Obrigatoriamente
vidas. Aqueles começaram a se preocupar com foi preciso dar a marcha a ré.
os meios de resolver seu atraso. Perceberam que No processo de independência brasileiro,
cabia ao Estado enfrentar os senhores feudais e a quase todos os estados se dividiam entre as cor-
Igreja. Pensemos, então, no Marquês de Pombal rentes liberais, que desejavam o modelo america-
em Portugal; em Frederico, o Grande, na Prússia; no, de república federativa, e os conservadores,
em Catarina na Rússia. São todos exemplos de que preferiam centralização e unidade. Luzia e
despotismo ilustrado. Voltaire, o grande arauto saquarema foi a nossa maneira de ver o proble-
iluminista do despotismo ilustrado, dizia: um ma, mas a mesma questão foi enfrentada pelos
bom rei é a melhor coisa que um céu pode dar ao nossos vizinhos latino-americanos. Argentina,
país. O rei ilustrado, claro, orientado pelo bem México e Chile tiveram a mesma discussão. Por
comum, eliminará o poder da Igreja e da gran- exemplo, no Chile, os conservadores eram cha-
de propriedade rural para modernizar o país. O mados pelucones, alusão ao anacrônico uso de
despotismo ilustrado é a primeira manifestação, perucas [peluca, em castelhano]. Os liberais,
fora do Brasil, do que Wanderley Guilherme dos pipiolos [inexperientes]. Em outras palavras, de-
Santos chamou de autoritarismo instrumental. É pois da independência, em todos os países apa-
um discurso de modernização de países periféri- receu o problema da construção da ordem. No
cos que se acreditam atrasados. Uma revolução Brasil, porém, houve um feliz acidente com o
pelo alto. fato de o príncipe regente estar aqui. Não houve
Quando a América ibérica se tornou indepen- a independência sem quebra da ordem legítima.
dente, o grande debate começou: monarquia ou Não houve guerra civil, cisão ou separatismo.
república? Ocorreu então um fenômeno curioso. Isso ocorreria mais tarde, quando a oligarquia
A independência dos países foi feita em nome tomaria conta do poder, com o imperador ainda
da liberdade. A liberdade, por sua vez, estava pequeno. É quando surgem as revoltas, jus-
associada à descentralização. Os patriotas eram tamente quando a figura do governo
todos pertencentes às camadas dirigentes, às eli- antes legítimo desapareceu.
tes sociais. Mas havia um problema. Quando, O Brasil se tornou
zação
metaforicamente, cortou-se a cabeça do rei da um caso único na
ntraliia
Espanha, e as oligarquias se libertaram dos espa- América,
a ce rqu ado
nhóis, elas se olharam e se perguntaram: quem por-
diammonaao Sen
mandará a partir de agora? Todas as oligarquias
defenam a dor e
reivindicaram o posto. E começou a guerra
ores, egav dera
civil. Afinal, não havia mais a autori-
e rvad is, pr r Mo dores
dade legítima que mantinha o
ons era ode rva
centro e a unidade. Eis
a s, as, libe ao Pconse
c
a desgraça: no dia
uarems luzi do-s pelos
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que teve aqui um protótipo de burocracia estatal, lembravam que a Coroa não faria o que quises-
que nenhum país hispano-americano teve. Ao se; não se tratava de absolutismo ou despotismo,
retornar para Portugal, D. João não só deixou o mas de um despotismo ilustrado. Isso significa-
príncipe, como foram promovidos todos aqueles va que o rei seguiria as recomendações de um
que compunham o segundo escalão do seu mi- conjunto de intelectuais, conhecedores das leis
nistério. E praticamente todos eram brasileiros. da Natureza e imbuídos da razão. Não era a mo-
Haviam estudado em Coimbra e achavam impor- narquia como o primado dos caprichos. Essa bu-
tante manter os vínculos com Portugal, pois um rocracia conseguia enxergar o bem comum, eles
Reino Unido a Portugal significava manter os acreditavam. Abaixo da Coroa estavam as fac-
vínculos também com a Europa e, portanto, com ções, os interesses privados, os egoísmos de toda
a civilização. Na época, não havia nenhum seg- ordem. Somente a Coroa, que estava no alto, no
mento social, fora da burocracia, que conseguis- centro, no Estado, conseguia ver o bem comum.
se ver o país como uma unidade. Sua cidade era Não havia, portanto, uma associação imediata e
sua pátria, depois vinha sua província e, em se- clara entre pensar a monarquia e centralização
guida, a condição de português-americano. Nin- com o autoritarismo, o absolutismo e a ditadura.
guém tinha a identidade de brasileiro. Brasil era O governo poderia ser autoritário ou não.
simplesmente um nome genérico que designava
o conjunto de possessões de Portugal na Améri-
ca. Um oligarca cearense de 1820, se queria in-
dependência, liberalismo e Constituição, estava
Q uando a independência se tornou irreversí-
vel, essa burocracia luso-brasileira, chefia-
da por José Bonifácio – um ilustrado, membro
pensando em ficar com Portugal, mas garantindo da Academia de Ciências de Lisboa, um típico
autonomia à província, ou ficar independente de iluminista –, reconheceu a conveniência de en-
Portugal, mas com a mesma autonomia. De um trar na ordem constitucional, instituir um Esta-
jeito ou de outro, pensava em se governar. Não do liberal, ter uma Constituição, separação de
havia nas elites locais um sentimento de que poderes, declaração de direitos civis e governo
aquele conjunto de possessões portuguesas na representativo. Mas a burocracia percebeu, de
América pudesse se tornar uma entidade políti- maneira muito lúcida, que no Brasil não havia
ca por si mesma. Ou era português ou era cearen- sociedade, mas apenas uma população e um con-
se, fluminense, paulista, rio-grandense, mineiro. junto de territórios. Um terço do país era formado
Existe, nesse campo, uma grande mitificação. por escravos, bárbaros, iletrados. Na visão desses
A Inconfidência Mineira, por exemplo, não de- burocratas, a grande lavoura só pensava em seus
sejava emancipar o Brasil, e sim Minas Gerais. lucros e, por isso mesmo, queria manter a escra-
Quem quisesse, viesse junto com os mineiros. vidão. Para os burocratas, o político prevaleceria
A burocracia, no entanto, via o Império por- sobre o econômico. O Estado, portanto, teria de
tuguês como uma coisa só, unido em torno da moldar a sociedade. Reside aí uma curiosidade:
dinastia de Bragança. Angola, Moçambique, Bra- no liberalismo clássico ocorre o oposto; a socie-
sil, Portugal, Algárvia, tudo isso representava a dade cria o Estado. No Brasil, não. Aqui a socie-
mesma unidade. Havia uma hierarquia, claro, dade não existia e, portanto, era necessário inver-
mas de alguma maneira esses burocratas luso- ter o processo, daí o despotismo ilustrado, dentro
-brasileiros – todos mais ou menos discípulos de do quadro constitucional. Não que a realidade
Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, seja pior do que a teoria, mas o que tínhamos era
sobrinho do Marquês de Pombal e ministro de D. de responder aos problemas existentes aqui.
João – viam o Brasil e o Império como uma uni- Um texto de José Bonifácio deixa isso mui-
dade. Eram reformistas, defendiam a Coroa, mas to claro. Mostra que o governo tem de ser uno,

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centralizado e enérgico, com muito poder para graçar os empates, as rivalidades e as oposições;
enfrentar as dificuldades que serão impostas pe- só assim haverá economia e responsabilidade; só
las elites, pelos interesses privados ou pela natu- assim finalmente, com o andar do tempo, haverá
reza. Ressalta também a importância da burocra- oficiais instruídos e capazes, que obrando de-
cia, braço da Coroa e do Estado. Diz ele: baixo de princípios certos e harmônicos hajam
“Do que é necessário, pois? Precisa-se o de tirar ramos tão importantes do abatimento e
quanto antes de uma boa administração, única da miséria em que ora jazem, e de os aproximar
e enérgica. “Precisa-se de novos regulamentos, gradualmente do ideal de perfeição que devem
assim gerais como particulares, acomodados às ter. Permita o Céu que o bom príncipe, que como
circunstâncias do Estado e às localidades parti- pai nos governa, livre dos cuidados da guerra,
culares de cada distrito, em que se aproveitem possa dar a esse mal o remédio de que tanto se
as boas ideias antigas e se corrijam as más por precisa.”
outras menores, fundadas em princípios científi- Quando veio a independência, os burocratas
cos e na experiência dos séculos, cuja execução reconheceram a necessidade de acompanhar o
seja acometida somente a uma diretoria única e movimento do mundo – ter um Estado liberal,
poderosa, que dirija e vigie com a mais sisuda representativo, com separação de poderes e de-
atenção sobre os administradores particulares, claração de direitos – mas, como já foi dito, per-
que se devam conservar, e sobre os novos que cebem que no Brasil não há sociedade. Caberia
se devam criar. Só assim se realizarão os mag- ao Estado criá-la. Acham que o Brasil é muito
nânimos desejos de nossos príncipes, sem des- decaído. A única coisa grande que tem é o seu

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território. Ou seja, perderá seu território se não em Pernambuco. Para eles, o Estado precisa cor-
houver ordem e centralização na capital. É como responder fielmente aos desígnios da sociedade
se fôssemos um analfabeto, barrigudo, comedor (a grande propriedade rural). São também fede-
de farinha que herdará uma gigantesca fazenda ralistas. Não veem utilidade em se criar um Es-
aos 18 anos de idade. É preciso cuidar da fazen- tado constitucional liberal que não lhes conceda
da, pois a única garantia de futuro glorioso está autonomia provincial.
no território da Natureza. Porém, se a Natureza Não havia nos luzias uma associação muito
é grande, o homem é pequeno. Por isso, o Esta- forte entre república e federalismo. O ideal re-
do tem de ser forte, centralizado e atuante. Daí, publicano era muito fraco. Tornaram-se eventu-
para essa burocracia luso-brasileira, era funda- almente republicanos somente depois de perde-
mental atacar o problema da escravidão. Não à rem a esperança de uma monarquia federalista.
toa José Bonifácio defende a abolição do tráfico Na história do Império, até 1870, não há projeto
e a escravidão tanto quanto possível, imigração de República unitária. São todos separatistas. O
em massa, proteção dos índios e mistura das ra- ideal republicano apareceu como reação à cen-
ças destinada a criar uma outra, como resultado tralização, mas eles não eram federalistas por se-
do cruzamento de todas elas. Diz ele: “Introduzir rem antimonárquicos. O problema, para eles, não
brancos e mulatos para ligar os interesses recí- estava na monarquia, mas na centralização. Ti-
procos com a nossa gente e fazer deles todos um nham receio da República, imaginando que, com
só corpo da nação, mais forte, instruída e empre- ela, chegaria também a insurreição dos escravos.
endedora.” Essa era a ideia. Ele entra no campo Ou seja, queriam a república restrita ao âmbito
dos direitos, fazendo uma espécie de CLT dos da elite. Com a democracia, a mesma coisa. Eles
escravos. Para açoitá-los, por exemplo, era preci- achavam que, se falassem muito em liberdade,
so ser em público, diante de uma autoridade pú- democracia ou república, isso começaria a vazar
blica. No fundo, quer acabar com o privatismo. para os setores subalternos, por isso preferiam
O Estado tem de crescer para implantar a ordem uma monarquia descentralizada, ou uma monar-
e a civilização. Sem um Estado nacional uno e quia federativa. Seria mais seguro. Ao mesmo
centralizado, não há liberdade. tempo, eram orientados pelo ideal americano,
diferentemente dos saquaremas. O ideal ameri-
A esquerda conservadora, direita progressista cano, é claro, era o do progresso baseado no cres-
cimento econômico, no primado da sociedade

O s adversários de José Bonifácio são aque-


les que anacronicamente chamo de luzias.
(Anacronicamente porque este nome não exis-
sobre o Estado, da economia sobre o político. Era
o ideal do liberalismo clássico, mas que naquele
momento se revelava no Brasil profundamente
te ainda nesse momento.) Os luzias pensam o oligárquico.
contrário dos saquaremas. Segundo eles, exis- Eis o traço brasileiro singular no Primeiro
tia, sim, sociedade civil. Essa sociedade civil é Reinado, se comparado com a Europa. Entre os
composta por eles próprios – a elite. Ela é forte, europeus havia o liberalismo, e também o setor
brava, corajosa, virtuosa. O Estado, por sua vez, de direita, que eram os senhores feudais de ver-
não pode ter autonomia, e sim um leal servidor, dade – aqueles com vínculos hereditários sobre a
representante dos interesses da sociedade. Do terra. Do lado esquerdo, uma grande população
contrário, não há liberdade, mas autoritarismo urbana – cerca de 20% da Europa Ocidental já
e ditadura – despotismo, como se dizia. Dando eram urbanizados. No meio disso havia as clas-
nome aos bois luzias: Gonçalves Ledo, no Rio; ses altas das cidades, atingidas pelo liberalismo:
Diogo Antonio Feijó, em São Paulo; Frei Caneca, profissionais liberais e altos burocratas do Esta-

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do. No Brasil era diferente. Havia os grandes pro- Diferentes nomes para uma mesma categoria
prietários rurais e quase não havia cidades. Mas Como afirmei, a percepção de que existem
essa grande propriedade rural não era feudal. Ao duas maneiras diferentes de pensar o Brasil foi
mesmo tempo, havia uma burocracia, aquela que primeiro sentida por Oliveira Viana. O que chamo
D. João deixou aqui. Essa propriedade rural se de saquarema, ele chamou de idealistas orgânicos.
pensava como a classe urbana na Europa. Uma Os luzias, Oliveira Viana classificou de idealistas
“burguesia”. Em outras palavras, o discurso era utópicos. Essa dicotomia foi reiterada depois no
liberal, mas a prática, necessariamente oligárqui- Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb),
ca. O ideal era moderno, mas a prática era atrasa- nas décadas de 50 e 60, por Guerreiro Ramos. A
da. Queriam uma nação de senhores. Ao mesmo ideia é a mesma: a convicção de que o outro lado
tempo, os atrasados feudais, para eles, eram os – os luzias – é americanista, gosta de importa-
burocratas, os altos funcionários públicos. E es- ções e rejeita aproveitar a tradição nacional, que é
tes não eram senhores feudais; muitos deles nem sempre autoritária, atrasada, ibérica. Essa mesma
donos de terra eram. Na Europa, a direita conser- divisão será reiterada por Raymundo Faoro, para
vadora estava no campo feudal. No Brasil, não. quem havia no Brasil um liberalismo que não se
E o pessoal da burocracia era obrigado a ser pro- realiza, uma tradição ibérica que vem do tem-
gressista. Em outras palavras, em relação à Euro- po de D. João e um estamento burocrático. Ideia
pa, tínhamos uma “esquerda” liberal que tendia trabalhada também por Wanderley Guilherme
a ser mais conservadora e uma direita que tendia dos Santos, que do ponto de vista acadêmico foi
a ser mais progressista. Isso explica por que na quem, na minha visão, melhor delineou a divisão
nossa história não houve muitos radicalismos. nos estudos sobre a práxis liberal. Ele os dividiu
Simplesmente nunca houve segmento social in- entre autoritarismo instrumental e liberal doutri-
teressado no radicalismo. Resultado: aquilo que nários. Bolívar Lamounier trabalhou o tema na
parece mais moderno é mais atrasado, e o que análise do pensamento autoritário. Luiz Werneck
parece mais atrasado é mais moderno. Por essa Vianna falou em iberistas e americanistas. Gildo
razão, quem passou todas as leis de abolição dos Marçal Brandão retomou as categorias de Olivei-
escravos foram os conservadores. Não quero di- ra Viana, chamando-os de idealistas orgânicos e
zer que os nossos conservadores são mais pro- idealistas constitucionais. O problema dessas ca-
gressistas dos que os liberais, mas certamente há tegorizações é que ou as palavras empregadas sus-
algo estranho aí. citam problemas, ou dão asas à discussão ou são
Como afirmei, a burocracia luso-brasileira impregnadas de valor. Esses acadêmicos que men-
veiculou o discurso do despotismo ilustrado, cionei – e não só eles – também são saquaremas ou
que depois seria constitucionalizado e se torna- luzias. No fundo, identificam-se com um lado ou
ria o principal discurso conservador do Segun- com o outro, mal disfarçadamente.
do Reinado. Anacronicamente estou chamando
de saquarema o apelido do Partido Conservador
fundado em 1837. Como os luzias, transformo-os
em categorias universais, para tentar designar
P or que saquaremas e luzias e não outras
terminologias? Autoritarismo instru-
mental, a melhor delas, será atacada porque há
um tipo de ideologia política brasileira, que não autores que não são autoritários. Entendo o que
é conservadora em si mesma, mas aquela que Wanderley Guilherme quis dizer: aquilo que era
tem o diagnóstico da sociedade como decaída, considerado autoritário em 1974/1975, quando
que pensa na necessidade de formar um Estado ele estava escrevendo; qualquer coisa que não
forte, atuante, intervencionista e centralizado. A fosse claramente uma democracia, como EUA,
isso chamamos de saquaremas. Inglaterra e França, era autoritária. Werneck

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Vianna fala em iberismo ou americanismo, mas mologia: antes de procurar alterar a realidade e
no Império havia muita gente defendendo a mo- promover reformas institucionais, é preciso co-
narquia constitucional inglesa, o que eliminaria nhecer a realidade nacional, olhar para o país e
o enquadramento no americanismo. Teríamos fazer as adaptações do que se deseja importar.
de recorrer a uma via anglo-saxã, que é tipica- É um argumento tipicamente saquarema, ou,
mente um interesse do luzia. Já iberismo é ques- se quiser, autoritário instrumental, ou idealis-
tionável porque pressupõe que nosso problema ta orgânico, ou iberista. O luzia, não. O luzia
está no atraso ibérico, caindo numa linha segui- sustenta que, se você adaptar determinada ins-
da por Raymundo Faoro: uma herança maldita, tituição, estará deformando-a, e as ideias ficam
que vem da colonização portuguesa. Este é outro fora do lugar – para usar a expressão de Rober-
tema luzia, a crença de que o atraso do Brasil to Schwartz, um luzia de esquerda. Para evitar
vem dessa herança maldita deixada pelo Estado a deformação e a corrupção, é preciso fazer o
português – um Estado intervencionista, sufo- transplante perfeito. Esse tipo de visão está em
cante, fiscalista, com seu exército de burocratas Rui Barbosa e Tavares Bastos: convém fazer um
parasitários. Isso está em “Donos do poder”, mas transplante perfeito das instituições democráti-
não se originou nele. Vem de Diogo Feijó, Tava- cas liberais estrangeiras. O incrível é que – em
res Bastos – o grande liberal doutrinário, o gran- algum momento teríamos de chegar à USP – a
de luzia do Império – e Campos Salles. série de discussões entre Guerreiro Ramos, do
Iseb, e Florestan Fernandes, da USP, sobre o
Desconfortos diferentes modo de institucionalização da sociologia no
Os saquaremas têm uma espécie de episte- Brasil seguirá os mesmos termos. O primeiro

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afirma que há uma tradição nacional a ser se- Domínios luzias e saquaremas
guida; cada país tem a sua. Relativiza a ideia de Há duas épocas paradigmáticas do domínio
ciência social e seu universalismo. Lembra que saquarema e do domínio luzia. O Segundo Rei-
é preciso aproveitar as discussões feitas preteri- nado é a apoteose do saquarema. O começo da
tamente para criar uma ciência social brasileira. regência e, mais tarde, a República Velha, são a
Florestan Fernandes pensa o inverso. Diz que é apoteose do luzia. Desde o Império, jamais hou-
preciso fazer um transplante perfeito das insti- ve separação entre pensamento e discursos polí-
tuições, justamente o plano seguido pela USP. ticos. Parece uma coisa separada da outra, mas
Daí a frase meio debochada dita por Michel não é. Como a elite era muito pequena, quem
Foucault, quando esteve no Brasil certa época: produzia pensamento eram os próprios políti-
“A USP é um departamento francês de ultra- cos, na forma de discursos parlamentares, arti-
mar.” Muita gente achou aquilo um elogio, mas gos de jornal, livros, brochuras, panfletos. Essas
ele quis dizer que a USP era uma cópia de uma duas maneiras de pensar o Brasil que já podiam
universidade francesa de província. Não quero ser identificadas no Império vão se adaptando e
dizer que a USP seja isso, mas transparecem aí continuam existindo.
essas diferenças de ver o Brasil, fazer o diagnós- Veio a República e chegou o momento luzia,
tico da sociedade brasileira e prescrever os seus que teve ali dois representantes paradigmáticos.
remédios. Isso nada tem com ser de direita e es- Um deles, Rui Barbosa. Ele era o chefe dos lu-
querda. zias progressistas, enquanto Campos Salles era
o chefe dos luzias conservadores. São as figuras

S e há, porém, um elemento invariável no


pensamento político brasileiro é essa divi-
são genérica entre saquaremas e luzias. Nessa di-
mais representativas do período, que chefiarão a
oposição liberal ao pensamento conservador da
Primeira República. Quando a República Velha
visão, o desconforto com o Brasil é geral. Trata- começou a fazer água, voltou o domínio saqua-
-se de um desconforto percebido nos dois lados rema: a federação arruinando o Brasil, o país
e resulta da percepção do atraso do país. Ambos exposto à intervenção estrangeira, a ameaça de
sabem que o Brasil é periférico. Atrasado, peri- recolonização, o imperialismo à vista, tudo isso
férico e doente. A diferença é que o saquarema fez parte do discurso de retorno saquarema, que
exibe o desconforto, mas tem uma visão mais reapareceu em autores como Alberto Torres e
nacionalista, acha que é menos universalista na Oliveira Viana. O movimento tenentista, che-
proposição dos remédios e sustenta que cada fiado por Juarez Távora, era saquarema. (Távora
país tem sua tradição, seu jeito de ser. Em suma, era leitor de Alberto Torres.) Retomou-se a ideia
acredita que é possível resolver o problema do do Estado forte e interventor e, com ele, o mesmo
atraso sem desnaturar aquilo que seria autênti- diagnóstico passado: sociedade decaída, inexis-
co do Brasil. O luzia, por outro lado, é orienta- tência de nação e necessidade, portanto, de um
do mais por teorias que vêm de fora, tem menos Estado forte. E o núcleo burocrático do Estado
tolerância com a adaptação e vê nela a corrup- que podia executar a tarefa era o Exército. Alber-
ção e a deformação. O que o saquarema vê como to Torres não diz isso com todas as letras, mas é
peculiaridades do Brasil é visto pelo luzia como natural que o Exército se veja no direito de pen-
desvio. O pensamento uspiano, ou aquilo que sar que era o núcleo ilustrado cívico patriótico
entendemos como pensamento político e social do país. E, naquele momento, pode-se dizer que
uspiano, é muito guiado pelo entendimento do o movimento tenentista era profundamente pro-
Brasil a partir da categoria do desvio e da defor- gressista e antioligárquico.
mação. Seu desconforto, portanto, é maior. O que desejo mostrar é que, na História do

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Brasil, não faltam luzias e saquaremas andando bateu a propaganda republicana – dizia que a
por aí, mostrando suas garras, difundindo suas única maneira de fazer reforma social seria com
visões, apresentando suas críticas, desfiando o Estado forte e autônomo em relação às elites.
seus ataques mútuos. Quando um saquarema vê Daí a necessidade de manter a monarquia. Com
um luzia, afirma: “Elitista! Oligárquico! Quan- a república, haveria a federalização. Com a fede-
do você fala em povo, está olhando para a elite. ralização, viria a oligarquização do país, o que
Sociedade civil para você é um eufemismo.” O impediria a reforma social. Foi exatamente o que
luzia, por sua vez, responde: “Autoritário! Caudi- ocorreu. Passamos a entender algumas coisas
lhista! Liberticida! Chavista! (na versão contem- que parecem incongruentes a partir dessa chave
porânea).” de interpretação, tanto política quanto social. É
Como já foi possível perceber, essa divisão um debate que começa nas lutas partidárias e só
tem um componente fortemente geográfico. O depois passa a se intelectualizar, a partir das pre-
Rio de Janeiro tende a ser geograficamente pró- missas dadas antes.
ximo do pensamento saquarema, pois aqui era
a capital monarquista do Império, que conti- Condomínio oligárquico
nuou monarquista por pelo menos 10 anos da Principal bastião dos luzias, a cidade de São
República. Era a forma de valorização do Estado Paulo ganhou força com o federalismo vigente na
centralizado. Já as províncias eram os focos do República Velha. Campos Salles, um dos princi-
pensamento luzia. Quando São Paulo começa a pais luzias, era ultrafederalista. Para ele, o papel
crescer muito, depara-se com um problema: era do Estado nacional e do presidente é ser uma
uma província rica num Império centralizado. espécie de soldado das oligarquias estaduais. O
Ali os paulistas se tornam federalistas. Eviden- Brasil enfrentava uma crise econômica grave. Os
temente, se fossem a capital, provavelmente primeiros 10 anos da República se mostraram
seriam centralizadores. Ou seja, defendem a fe- uma década perdida: inflação galopante, câmbio
deralização ou a separação do Brasil. A ideia de deteriorado, dívida pública crescente. Campos
que São Paulo é uma locomotiva que carrega 15 Salles teve a convicção de que é preciso sair da
ou 20 vagões vazios vem do Império. Trata-se de crise com uma reforma econômica. A obsessão
uma propaganda republicana da época. Carica- estava no progresso material, no dinheiro, no
turas que mostram a Bahia como a mulher gorda mercado, na economia. Mas viabilizar a reforma
e preguiçosa, ou o nordestino em geral como al- econômica exigia antes uma reforma política. O
guém decadente, também são desse período. Al- Congresso é o lugar do pluralismo político, e isso
berto Salles, irmão de Campos Salles, escreveu lhe criaria problemas. Era preciso um Congres-
um livro separatista, “A pátria paulista”, no qual so transformado em rebanho. E Campos Salles
defendeu tirar São Paulo do restante do Brasil. resolveu fazer um pacto com os governadores.
Esse tipo de pensamento vinha sempre acom- Como as eleições eram fraudadas, os governado-
panhado de uma visão muito dura do Nordes- res se comprometiam a mandar para o Congres-
te e do Rio. Segundo Alberto Salles, São Paulo so apenas deputados e senadores afinados com
cresceu porque não houve mistura com índios e a política federal; o presidente, por outro lado,
negros. O Nordeste afundou porque se misturou assegurava-lhes que jamais decretaria qualquer
com os índios. Rio e Minas, com sangue negro. intervenção em seus estados. Com as fraudes
A elite paulista parece, para a história, mui- eleitorais, as oligarquias se perpetuavam no po-
to progressista, mas no fundo é profundamente der. Sua única ameaça era a intervenção fede-
conservadora. Joaquim Nabuco – de início um ral, e esta passava a estar fora do horizonte por
luzia e depois um ultramonarquista que com- promessa de Campos Salles. Foi desse modo que

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Campos Salles conseguiu um Congresso de cor- sas. Mantém-se o liberalismo político, mas não
deiros. Praticamente não enfrentou a oposição há como manter o liberalismo econômico.
e, criando esse grande condomínio oligárquico, Essa utopia liberal estava na cabeça de Rui
conseguiu passar as reformas que quis – todas Barbosa, mas para Campos Salles o Estado era
elas liberais ortodoxas. Enxugou o meio circu- oligárquico mesmo, e a eleição tinha de ser frau-
lante, provocou recessão, renegociou a dívida dada, sim, senhor. A UDN repetiu o modelo
externa, aumentou brutalmente os impostos para adiante. Mas a tragédia udenista foi tentar rea-
refinanciar os estados. Enfim, o mesmo receituá- lizar o sonho de Rui Barbosa em 1950, e não em
rio que, mais tarde, repetiria Fernando Henrique 1920. Vem dessa visão o ódio udenista a Getulio
Cardoso. Aparentemente deu certo. A crise foi – o homem que traiu o sonho de implantação de
resolvida. Rodrigues Alves encontrou uma casa um liberalismo autêntico no Brasil. A Primeira
saneada, reurbanizou o Rio, reequipou os portos, República brasileira é liberalismo, luzia, con-
e o país avançou. servadora, oligárquica e fraudada. Depois de 30
viria a República maravilhosa pensada por eles,

A política se viu aí submetida a uma lógica


econômica, que é a lógica do mercado,
a lógica da sociedade. Mas a sociedade, nesse
com eleições autênticas. Por isso Getulio é o cau-
dilho, o populista, a categoria analítica preferen-
cial da USP, dedicada a Getulio.
caso, são os empresários, os jornalistas, os ad-
vogados. As eleições são fraudadas? O sistema A USP, São Paulo e o Rio
é oligárquico? Não importa. Isso não pode ser A identidade de São Paulo foi forjada como
resolvido pela ação do Estado, mas pelo cresci- o avesso do Rio. O Rio era a cidade de gente
mento da economia. O crescimento trará o en- que não trabalha. A cidade de uma burocracia
riquecimento dos empresários, que permitirá o imensa e parasitária, pendurada no Estado, que
enriquecimento do povo e, naturalmente, tudo sangra os cofres da nação para sustentar sua con-
vai se resolvendo no caminho. Com dinheiro dição de nababos. A cidade dos funcionários pú-
para construir escola, o povo passará a votar me- blicos ociosos, do clima quente de estufa, onde é
lhor. Um luzia chamado Gilberto Amado fez, na impossível trabalhar. A cidade demasiadamente
época, um sensacional discurso na Câmara, no bonita, que desvia os funcionários brasileiros do
qual afirmou que a eleição nada tem a ver com trabalho. A cidade de cosmopolitismo falsifica-
representação. As eleições podem ser fraudadas, do, de povo ignorante e mestiço. O Rio é o atra-
mas justamente por isso o povo estará bem re- so, enquanto São Paulo é o progresso. São Pau-
presentado no Congresso. Afinal, se o povo es- lo é a grande imigração branca, italiana, alemã
colher os seus próprios candidatos, o Congresso e japonesa. O Rio, português e preto. O Rio é a
terá uma multidão de tiriricas. Essa é a utopia máquina inchada. São Paulo é o trabalhador de
liberal: o desejo de uma sociedade que tenha um verdade. O ideal paulista são os EUA. O Rio é a
Estado mínimo, que todos votem e, ainda assim, Ibéria. São Paulo é a modernidade. Essa imagem
o Estado continue mínimo. Trata-se de uma uto- é repetida por Simon Schwartzman, que não é
pia porque o Estado liberal é oligárquico, um paulista mas é tucano, no livro “As bases do au-
Estado de elite. Analfabetos, mulheres e pesso- toritarismo no Brasil”. Parece um manifesto de
as dependentes em geral não votam. Eles não FHC, ao afirmar que o único lugar moderno do
percebem que, quando o sistema começa a se Brasil que superou o patrimonialismo foi São
democratizar, os trabalhadores passam a exigir Paulo. É uma imagem antiga, que vem do final
escola pública, hospital público, intervenção do do Império.
Estado, redução dos lucros das grandes empre- A USP foi criada numa década muito ruim

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para a política paulista. Com a intervenção fe- Ser antigetulista, na época, significava ser, aci-
deral depois da revolução de 1932 – logo a inter- ma de tudo, contrário ao primado do Estado na-
venção, o grande pesadelo da elite paulista – a cional, à intervenção federal em São Paulo e ao
oligarquia local, pelas mãos de Armando Sales autoritarismo.
Oliveira (um interventor, mas um paulista), de- Encerrada a guerra, surgiu a divisão entre sa-
cidiu criar a Universidade de São Paulo. A ideia quaremas e luzias de esquerda e de direita, coisa
era: se não se pode dominar pela política, domi- que não havia antes. A direita luzia era obviamen-
ne-se pelo intelecto. Formem-se elites, pessoas te a UDN, prolongamento dos partidos oligárqui-
preparadas – uma expressão tipicamente oligár- cos anteriores e a grande frente antigetulista. A
quica. A USP foi criada, portanto, para ser um esquerda luzia era democrática e se transforma
celeiro de formação das elites. Chega-se perto no PSB, com Antonio Candido e outros na USP.
do ideal udenista. Cria-se a FFLCH, a Faculdade Politicamente era insignificante, mas começou a
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com li- produzir um discurso acadêmico a partir de uma
nha marcadamente luzia. Ou seja, seu foco está perspectiva política. O PSB era também antige-
na sociedade. Aos poucos, ela deixa de ser oli- tulista: Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, João
gárquica, para se diferenciar da Faculdade de Mangabeira, todos tinham uma origem liberal e
Direito, que é elitista e oligárquica, uma luzia seguiram para uma linha socialista e progressis-
de direita. Com Florestan Fernandes e Antonio ta. Surgiram também os saquaremas de esquerda,
Candido e ligada à intelectualidade paulistana instalados no seio do trabalhismo. Pensemos em
profundamente antigetulista, a FFLCH vai para a figuras como Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe,
esquerda, especialmente depois do Estado Novo. os nacional-desenvolvimentistas, o Iseb – todos

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com suas diferenças se observados mais de per- ria consagrada por Francisco Weffort na USP. E
to, mas certamente comprometidos com a ideia que Lula dizia: a CLT era o AI-5 dos trabalhado-
de desenvolvimento a partir do Estado nacional. res. Aquilo era, portanto, um movimento luzia
A diferença desse saquarema de esquerda para de esquerda, que negava Vargas, a tradição do
o anterior é que agora há o sindicato no meio do Estado e a relação estabelecida entre Estado e
caminho. Já o saquarema de direita aparece no sindicatos. Basta lembrar quem subscreve a fun-
PSD e no grupo militar linha-dura e nacionalista. dação do PT: Sérgio Buarque de Holanda, Anto-
A partir dessa chave é possível entender o golpe nio Candido e Florestan Fernandes. Brizola era
de 1964 como uma aliança entre os luzias e os o velho caudilho. E, mais adiante, o PSDB era
saquaremas de direita, contra os saquaremas e um partido luzia social-democrata. Com o tem-
luzias de esquerda. po, acabou a transição, caiu o Muro de Berlim e
as coisas começaram a voltar para seus leitores
A legitimação uspiana naturalmente. O PSDB se transformou num par-
tido luzia de direita, liberal, americanista, socio-

P or que Lula pôde dizer que admirava Gei-


sel e, ao mesmo tempo, Getulio? Porque
ambos tinham em comum o estadocentrismo. Os
cêntrico. Brizola desapareceu, e o trabalhismo
morreu. E o PT virou um partido saquarema. Foi
nesse momento que se deu a virada de Lula fa-
luzias, ao contrário, são sociocêntricos. Num, o lando do desenvolvimentismo, fazendo elogios
Estado tem papel ativo na modelação da socie- a Geisel e a Getulio, a sua mão preta saindo do
dade. Noutro, a própria sociedade põe arreio no poço de petróleo.
Estado. Os luzias falam de sociedade, mas não Enquanto isso, a sociologia do Rio era centra-
falam de povo. Povo, para eles, quer dizer outra da na política e no Estado. Leia Guerreiro Ramos
coisa. Povo é Getulio, é Lula, é o caudilho, é o e Wanderley Guilherme dos Santos. Em São Pau-
populista. Pegue-se o magnífico artigo publicado lo, a sociologia nega o político e o Estado nacio-
por Fernando Henrique Cardoso no ano passado, nal. O que explica o Brasil na USP não é o Esta-
“Para onde vamos?” É uma pérola do luzianismo. do, mas a sociedade. No Rio se estuda Estado; em
Fala de uma sociedade civil sufocada pelo Esta- São Paulo, classes sociais. Ali só se estuda o Esta-
do e de um povo que segue o César. Diferencia, do a partir das conexões com a burguesia ou com
portanto, sociedade civil de povo. Sociedade ci- o proletariado. Não se reconhece a possibilidade
vil são os jornalistas, os empresários, os advoga- de autonomia do Estado como agência pública.
dos; enfim, a elite. E o povo são os iletrados, que Na USP, enraizou-se a ideia de que o Estado des-
seguem César, ou seja, Lula. O discurso permite via a correta conduta da democratização no Bra-
voltar aos anos 1950 e compará-lo ao discurso sil. Criada com a mentalidade luzia, que busca
da UDN. Permite também voltar ao regime logo fazer um transplante perfeito das instituições es-
após a abolição da escravatura e compará-lo ao trangeiras, a USP espera que seus professores se
discurso republicano federalista, segundo o qual comportem como franceses, americanos ou coi-
a princesa Isabel era idolatrada pelo povo, fato sas do gênero. Com o mesmo vigor com que vê
desprezado pelos republicanos. no populismo a chaga mais evidente nascida do
Convém lembrar que Lula era, na origem, ventre do Estado forte e centralizado.
um luzia de esquerda. O saquarema de esquer- Como o exemplo mais bem-acabado de uma
da era Brizola, herdeiro do trabalhismo. O PT universidade feita de transplantes, a FFLCH fez
surgiu contra o trabalhismo, em defesa de uma uma espécie de negação da tradição brasileira.
forma de esquerda não pelega, não populista. Uma tradição que vem de Visconde de Uruguai,
Lembremo-nos que o populismo foi uma catego- Oliveira Viana, Alberto Torres, Azevedo Amaral

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– todos eles passam a ser vistos como autoritários com Guerreiro Ramos, depois com Wanderley
e defensores do Estado centralizado. Numa con- Guilherme dos Santos. O departamento de So-
ferência do início da década de 1950, Florestan ciologia da USP não é o lugar para estudar pensa-
Fernandes afirma: “Não me filio a Oliveira Viana mento social, e sim para produzir teoria social, ou
e Alberto Torres. Filio-me, ao contrário, a Nestor pesquisas de cunho científico. Não à toa que, na
Duarte, a Sérgio Buarque de Holanda, a Antonio USP, a história do pensamento social começou
Candido.” Os uspianos inventam, assim, um ou- a ser estudada na literatura. Roberto Schwartz
tro cânone do pensamento social brasileiro. A não surge do nada. A porta havia sido fechada
célebre briga de Guerreiro Ramos com o Flores- no departamento de Sociologia. O marco teórico
tan Fernandes passava por aí também. Euclides dos estudos sociais no departamento de Letras foi
da Cunha, Silvio Romero – tudo isso aí, dizia Antonio Candido, com “Formação da literatura
Florestan Fernandes, é pensamento autoritário brasileira”. Para quem o nosso pensamento não
e pré-científico. Guerreiro Ramos respondia que passa de um ramo da árvore portuguesa, que por
não; era um formalismo ridículo jogar fora todas sua vez já é subalterna no concerto das nações.
as reflexões pretéritas pelo fato de que, quando Em 1967, Antonio Candido escreveu o pre-
eles produziram, não existia faculdade de ciên- fácio da quinta edição de “Raízes do Brasil”,
cias sociais. Guerreiro Ramos chamou isso de so- quando o livro de Sérgio Buarque de Holanda
ciologia consular, ou sociologia enlatada. realmente estourou. No prefácio, ele afirma:
“‘Raízes do Brasil’ foi uma das principais obras

H oje a USP é hegemônica, e o cânone inte-


lectualizado produzido por ela também é
hegemônico. Mas nos anos 1950 a universidade
da minha geração. Três livros formaram a minha
geração.” Antonio Candido não queria saber de
Oliveira Viana, um velho autoritário. Dos três li-
não tinha a visibilidade de hoje. Essa visibilidade vros que formaram sua geração, segundo ele, um
estava no Iseb. Para se legitimar, o pensamento us- representava o passado, outro o presente, outro
piano buscou criar seu próprio cânone. E quando o futuro. O passado é “Casa Grande & Senzala”,
conseguiu inverter, o Iseb passou a ser visto como de Gilberto Freyre, personagem muito adorado
a fábrica de ideologia, uma coisa pelega cravada na época pelos luzias de esquerda paulistas, que
com as mãos do Estado. Florestan Fernandes di- somente depois descobriram que ele era conser-
zia: quem produzirá pensamento científico somos vador. A primeira edição de “Raízes do Brasil”
nós da USP. Havia uma vontade de legitimar a - livro que representava o presente - é repleta de
USP como o verdadeiro celeiro do conhecimento referências a Gilberto Freyre. E representava o
no Brasil, e para essa legitimação era fundamental futuro “Formação do Brasil contemporâneo”, de
a desqualificação dos outros centros. Caio Prado Júnior, comunista, também luzia. Ou
O cânone da USP é obviamente um cânone seja, uma frente inteiramente antigetulista e so-
luzia. Há uma rejeição do pensamento político, ciocêntrica. O livro de Sérgio Buarque não fez
ou aquilo que era tido como o pensamento po- tanto sucesso até essa quinta edição. Coube a
lítico brasileiro, identificado com o autoritaris- Antonio Candido a responsabilidade de alçá-lo
mo entre os autores do Rio. A USP tinha de criar aos píncaros, assim como a esse cânone que pas-
um cânone sociocêntrico. E essa tarefa coube a sa sobretudo pela USP. Eis a grande trinca fun-
Antonio Candido. Florestan Fernandes negou a dadora do pensamento social uspiano: Gilberto
possibilidade de um pensamento social científi- Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado
co válido no Brasil porque tudo era autoritário Júnior. No ano passado, observando o programa
pré-científico. Por isso, os estudos do pensamen- de graduação de pensamento social no Brasil do
to político brasileiro começam no Rio. Primeiro, departamento de Sociologia da USP, vi os auto-

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res lidos. Eram os mesmos. No segundo momen- academicizada na USP mais tarde por Francisco
to, vinham Fernando Henrique Cardoso, Octávio Weffort. Não era uma chave udenista, por se tra-
Ianni e Florestan Fernandes. Ou seja, o pensa- tar de um luzia de esquerda, mas era uma chave
mento social do Brasil é o pensamento sociológi- segundo a qual houve um desvio aí, uma vez que
co do departamento de Sociologia da USP. Uma o proletariado ou as massas foram instrumenta-
máquina de reprodução e autoelogio. lizadas por Vargas. Essa visão não consegue en-
tender a trajetória brasileira por ela própria. Ao
A sinistrose luzia paulista contrário, enxerga aquilo que devia ser e não era.
Toda a literatura canônica produzida na USP Por isso o PT surgirá para resolver o problema,
tem uma ideia central: a defesa do transplante para rejeitar a tutela do Estado e colocar as coisas
perfeito. Florestan, Fernando Henrique e We- no lugar com o socialismo democrático. Esse é o
ffort pecaram por isso. Seus textos mostrarão a luzianismo de esquerda na USP. Um luzianismo
fórmula. Se a realidade não está de acordo com segundo o qual o Brasil entrará na sua senda na-
o livro, está errada. A realidade brasileira se tor- tural, da qual foi desviado por esse modelo auto-
na um grande desvio. É onde chegamos no maior ritário corporativo surgido a partir de Vargas. Não
desconforto deles com o Brasil. A visão livresca, entendem que era do interesse dos trabalhadores
a fidelidade às fórmulas teóricas, decorrente do seguir aquela política? Não entendem que os sin-
universalismo luzia, e a convicção de que tudo é dicatos eram ativos e atuantes? Curiosamente,
igual em toda parte, somente no Brasil é diferen- esse discurso se repetirá no governo Lula, também
te, resultam na convicção de que isso pode ser pelos luzias, na análise de que os sindicatos foram
explicado como deformação ou desvio. Não há cooptados pelo lulismo.
caminho próprio. Não é possível entender os fe- A USP trabalha em nome do progresso com
nômenos sociais ou políticos através de uma aná- categorias normativas encobertas de científicas
lise da trajetória do Brasil entendida como outra que, paradoxalmente, desqualificam o povo real
qualquer, feito a da Inglaterra, da França ou dos e o movimento democrático real e empírico em
EUA. Diferentemente disso, tenta-se ver a traje- nome do ideal, amparando-se na ideia do sin-
tória desses países e encaixar no Brasil. Não há gular. O problema do Brasil é que é singular.
jeito, vira desvio. Eles não conseguem entender o Por que é diferente dos EUA, da Inglaterra e da
processo de democratização no Brasil começan- França? Por causa da herança maldita da colo-
do com Vargas, com o modelo corporativo, com nização ibérica, que trouxe esse maldito Estado
a unicidade sindical, com os sindicatos atrelados fiscalista e interventor, que impede a sociedade
ao Ministério do Trabalho. Aquele processo era de se desenvolver livremente. Eis o desvio. Vis-
uma via da nossa democratização. Claro que os to assim, a constituição do percurso se torna in-
trabalhadores eram gratos a Getulio no Estado teligível. Vira a sociologia da falta. A sociologia
Novo. Claro que achavam a liderança dele fun- do desconforto. É preciso sempre romper com o
damental para que adquirissem direitos sociais. passado e com a tradição, porque a herança será
Caiu o Estado Novo e veio a UDN dizer que Var- sempre maldita. Com isso, ou se parte para uma
gas montou uma máquina de tutela sobre os tra- perspectiva revolucionária, como foi Florestan
balhadores, instrumentalizando-os para os seus no fim da vida, ou para o desencanto total, a vi-
desígnios pessoais, que Vargas desviou a trajetó- são de que estamos num beco sem saída.
ria comum, de sindicatos livres e independentes
na luta contra a burguesia. Essa visão torna pejo- clynch3@hotmail.com
rativo o sistema democrático entre 1946 e 1964 e O articulista é professor da Universidade Federal Fluminense

dá vigor à ideia de República populista, categoria Depoimento a Rodrigo de Almeida

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