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MESTRADO EM LITERATURA, CULTURA E DIVERSIDADE


UNIVERSIDADE DA MADEIRA

ESPAÇO EUROPEU, LITERATURAS, CULTURAS E DIVERSIDADE


Professora Doutora Ana Isabel Moniz

Criar diversidade: alguns aspectos do processo de mutação


em Mulher de Porto Pim de Antonio Tabbucchi

n.º 2017120 Laura Alba Moniz Gouveia


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Criar diversidade: alguns aspectos do processo de mutação


em Mulher de Porto Pim de Antonio Tabbucchi

Resumo
Uma característica constante e inerente a toda a arte é a criação de diversidade. Em
literatura, o processo de criação obriga o autor a manipular tanto a sintaxe como a
semântica no processo de articulação do discurso, afirmando verdades e mentiras,
sem se desligar da tradição de exploração do filão das ilhas. Esta reflexão foca-se em
alguns aspectos do processo de produção discursiva no texto de Antonio Tabucchi que
suportam o efeito final de paradoxo teórico e espácio-temporal que contribui para a
composição da atmosfera do fantástico insular e renovação de um tema recorrente na
literatura ocidental, numa tentativa de provar que literatura sem diferença não existe,
mesmo que se invoque a tradição.

Palavras-chave: continuum literário, mutação, linguolecto, ilha, diversidade, Antonio


Tabucchi

Abstract
A feature that is inherent and constant in all Art is the creation of diversity. In
literature, the creative process forces the author to manipulate not only the syntax but
as well the semantics along the process of articulation of the speech by stating truths
and deceit without cutting his connection with the tradition of exploring the insular
mining resources. This reflection focuses on some aspects of the discursive production
in Antonio Tabucchi’s text that lead to the resulting theoretical and space-time
paradox which add to the composition of the fantastic insular atmosphere and
renovation of a recurring theme in western literature, in an attempt to prove that
there is no literature as such without diversity, even if and when literary tradition is
evoked.

Key-words: literary continuum, mutation, linguolect, island, diversity, Antonio Tabucchi


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Criar diversidade: alguns aspectos do processo de mutação


em Mulher de Porto Pim de Antonio Tabbucchi

Introdução
É a variedade, a diversidade e a capacidade de mutação que, em conjunto,
permitem a sobrevivência das espécies. A mutação entendida como capacidade de
adaptação faz parte do património genético do ser humano. Um mundo onde
imperasse o igual não se perpetuaria. A nível biológico esse facto está devidamente
comprovado e não carece neste âmbito de qualquer explicação. O óbvio contém em si
o tautológico.
Já no que diz respeito ao fenómeno artístico, a sequência mais razoável deste
raciocínio produz a constatação de que em arte, ou para reduzirmos o campo de
reflexão, em literatura, é a diversidade que permite a evolução e permanência, e esta
advém da manipulação da linguagem, e por consequência da língua e dos seus
instrumentos.
Harold Bloom é a inspiração desta reflexão. A partir do momento em que
definiu os mecanismos de criação da diferença, processos que denominou de
misreading e misinterpreting (Bloom, 1975: 9-80), quando reflectiu acerca da inclusão
ou não no cânone de autores que inovaram e renovaram a literatura e causaram
impacto que perdura no tempo, considerou de algum modo, creio, a constante que
domina esta reflexão – a individualidade, em termos genéricos e universais, cria
alteridade, e é em si intrinsecamente diversa, mesmo que não insira o autor entre os
que se perpetuam no tempo.
Manuel Frias Martins, tradutor de Harold Bloom, na Introdução da edição
portuguesa de 2013 diz o seguinte:
“Aqui estão consolidadas, testadas e exemplificadas as suas posições
teóricas mais nucleares, nomeadamente quanto ao seu entendimento das
relações entre autores em termos de agon ou de luta agonística; quanto à
ansiedade da influência que caracteriza a dependência (e o simultâneo
desejo de ser diferente) dos escritores em relação aos seus precursores
(misprision); quanto às leituras desviantes e interpretações desviantes que
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cada escritor faz dos seus precursores (misreading e misinterpretation (...)”


(Bloom, 2013:10)

Harold Bloom reflectiu sobretudo acerca da necessidade de recriar e


reinterpretar para obter inovação suficiente e chegar ao panteão dos eleitos.
Seja através da mentira, da insinceridade, como através dos recursos estilísticos
que constituem o ADN da língua, a literatura contém em si o germe, ou genes, da
diversidade. É em si mesma alteridade. Tal como afirma Harold Bloom a propósito de
poesia, neste processo contraditório de criação em que se digladiam a sinceridade e o
seu contrário sem desvinculação do que já foi criado, mas reinterpretando de modo a
poder renovar.
“Oscar Wilde, sublimely remarked that “all bad poetry is sincere.”
Doubtless it would be wrong to say that all great poetry is insincere, but of
course almost all of it necessarily tells lies, fictions essential to literary art.
Authentic, high literature relies upon troping, a turning away not only from
the literal but from prior tropes. Like criticism, which is either part of
literature or nothing at all, great writing is always at work strongly (or
weakly) misreading previous writing.” (Bloom, 1997: XIX)

E é assim que começo por abordar esta questão. Que recursos utiliza a
literatura para se manter viva? Como contar e recontar mantendo o interesse do
leitor? Como produzir na mutação imperativa que, como já disse, é intrínseca à
literatura, diversidade?
Num mundo onde a constante é falar de diversidade e alteridade há algo que
passa despercebido: a inerente diferença construída da literatura, o seu labor
constante e perpétuo de mutação. Esta não visa a maior ou menor visibilidade ou
exposição, mas a criação de elementos ou de um objecto que na sua totalidade não
despertem nem pavor, nem repúdio, mas estranheza e curiosidade, abolindo as
fronteiras do preconceito para redundar na fruição da unicidade de um livro ou obra,
independentemente do género ou do tipo de registo escolhido.
Sendo assim, como explicar que deste magma primordial emerjam coisas
novas, palavras novas, ideias novas, ou mesmo palavras velhas sob outra luz, ideias
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velhas mas retrabalhadas – e ainda assim mutantes divergentes que despertam


interesse?
Em literatura o autor tem de exprimir-se como novo. Este processo ultrapassa a
simples questão do idiolecto – a diversidade de utilização individual e autónoma
dentro da unicidade de um idioma. O idiolecto reflecte e sustenta a diversidade e de
certo modo justifica-a, sendo um facto do quotidiano humano. Mas o transporte de
um fenómeno lexical para o campo da produção literária não explica a totalidade do
processo artístico e a solidão identitária do seu percurso e desfecho estético:
“One of the ineluctable stigmata of the canonical is aesthetic dignity, which
is not to be hired. [...] Aesthetic authority, like aesthetic power, is a trope
or figuration for energies that are essentially solitary rather than social.”
(Bloom, 1994:36-37).

Neste campo artístico, como é o da escrita, a alteração do ADN é anterior ao


discurso no seio da língua-idiolecto – e uso aqui idiolecto distanciando-me do seu
significado mais preciso e tentando converter esse significado não só em fenómeno
lexical, mas também, e sobretudo, em processo de articulação e manipulação da
linguagem e do discurso produzido por cada autor. O idioleto é aqui entendido como
algo que faz parte da capacidade da linguagem e da individualidade que cada criador
imprime à sua utilização a que se poderia talvez chamar de linguolecto.
Digamos que o autor não recria a língua como outra, mas muda-a o bastante
estruturalmente para que desviando-se, num processo que em si mesmo é identitário,
a torne paradoxalmente e fascinantemente diversa, e contudo comunicante. Nada
mais humano e natural do que artisticamente trabalhar o egotismo através de
palavras. E esta centralidade inerente ao indivíduo advém da sua formação e dos
processos mentais que medeiam o seu raciocínio e o produto final da sua obra. Toda a
sua aprendizagem, unida à capacidade de linguagem, tem como filtro a individualidade
que cria. Os recursos estilísticos podem muito bem ser os mesmos, mas é o modo
como utiliza esses instrumentos que nos mostra a sua identidade, e logo, a sua
diferença.
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O intuito desta reflexão, que se apropria do trabalho de Harold Bloom, não é


definir Antonio Tabucchi como eleito entre os membros do panteão canónico,
sobretudo porque:
“Se quisermos escolher um só escritor como o mais representativo do
nosso século, é muito provável que se acabe a vaguear desesperadamente
por entre legiões de desalojados. É provável que venha a existir um século
XXII, e que os leitores dessa altura – se por acaso houver leitores no nosso
sentido actual – venham a lançar luz sobre o nosso Dante (Kafka?) e o
nosso Montaigne (Freud?).” (Bloom, 2013: 437)

Breve nota sobre o autor


Antonio Tabucchi nasceu em Vecchiano, uma localidade nas proximidades de
Pisa, a 24 de Setembro de 1943. Faleceu em Lisboa a 25 de Março de 2012.
Valho-me do que dele conheço para redigir esta apresentação. Encontrei-o pela
primeira vez na cidade de Siena, onde este leccionava na altura, sendo detentor da
cátedra de Português da homónima universidade. Já tivera oportunidade de me cruzar
com a Maria José de Lancastre que em Pisa era sobejamente conhecida pela sua
ligação de musa ao seu célebre marido. Este conhecera-a num passeio que fizera por
Portugal e foi assim que o nosso país se entranhou na escrita do autor italiano. Além
de ter usado Portugal e se ter inspirado para a redacção de alguns dos seus livros em
alguns episódios que fizeram notícias nos jornais nacionais, foi, em conjunto com
Maria José de Lancastre, tradutor de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos em
Itália. A sua ligação a Portugal produziria vários textos, um deles é o texto sobre o qual
agora me debruço, publicado pela primeira vez em 1983.
Relativamente ao tema da insularidade e do fantástico das ilhas, o autor que
proponho, usou da sua capacidade de geneticista e burilador de palavras para,
repetindo um tópico tradicional do Ocidente – a literatura das ilhas – criar um novo
olhar discursivo, quase nissológico (Henriques, 2009), mais pela consciência do
património literário mundial e da cultura ocidental que se sobrepõe ao olhar autêntico
e real centrado na realidade insular, do que por ter visto ou descrito a ilha em si como
um todo observado do centro. Nesta narração o arquipélago ou a ilha, surge sempre,
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ou quase sempre, através das lentes do observador forasteiro. Em Mulher de Porto


Pim, há uma consciência profunda e sempre recorrente de toda a tradição literária e
da forma como esta se apropria do autor e dos lugares por onde este passa, ou por
onde a literatura passa: na sua vontade premente de criar o diverso, cria a destruição
da identidade real do lugar observado, gerando um paradoxo teórico através da
desestruturação e manipulação, que é paralelo ao processo de alheamento do autor
em relação à realidade física que o circunda, como é o caso, que mais adiante se verá,
do fragmento “Pequenas baleias azuis que passeiam pelos Açores”.
Acrescente-se também que a sinceridade, um tema sobejamente
autopsicográfico em Antonio Tabucchi, e logo, pessoano, que surge na confissão inicial
de que o narrador mente ou divaga, sustentando por consequência a tese de que
criará diversidade por não ter capacidade para reter e registar memórias factuais é não
só uma oportunidade de estratégia retórica que redunda na singularidade plausível
desta obra de Antonio Tabucchi, como também um dos instrumentos discursivos de
que se vale. E de que modo se materializa esse processo, é a tarefa que aqui se
propõe.
O objectivo desta reflexão é identificar e enumerar alguns dos recursos
retóricos, ou semânticos, de que Antonio Tabucchi se serviu para recriar os Açores em
Mulher de Porto Pim e Outras Histórias para provar que este é um processo de
invenção ou re-invenção de alteridade que abrange toda a literatura da ilha como
locus fantástico inserida no jogo de intertextualidades da tradição literária, mas que
em algumas zonas coincide com o ponto de vista da nissologia – que à época em que a
obra de Tabucchi surgiu, ainda não se desenvolvera – que disseca os lugares comuns
do discurso político acerca dos territórios insulares, por oposição ao espaço
continental, reflectindo sobre a criação literária e o modo como uma certa tradição
anula o espaço insular. Estas reflexões de Tabucchi são lançadas como «ilhas» ao longo
de toda a sua narração, quer recorrendo a intertextualidade, quer expondo as suas
reflexões na boca de personagens.
“Nos últimos anos, muito por influência dos estudos pós-coloniais, alguns
autores começaram a questionar a verdade destas «certezas», e mesmo a
sua bondade e até utilidade para as próprias regiões insulares. [...]
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“No estudo das ilhas em particular, a influência desta abordagem crítica


pós-colonialista traduziu-se na emergência da chamada nissologia, uma
nova geração de estudos, dominada por um novo paradigma, que tem
estado a questionar fortemente as teorias mais comuns sobre as ilhas e os
povos insulanos, geradas pelas mainlands, e que a essas narrativas
hegemónicas procura contrapor uma outra leitura da condição insular
engendrada nas próprias ilhas, produzida portanto a partir de «baixo» e de
«dentro», na tentativa de com isso construir uma teoria alternativa da
insularidade.” (Henriques, 2009: 16-17)

Como se estrutura a narrativa Mulher de Porto Pim e alguns recursos utilizados na


criação de diversidade

O livro Mulher de Porto Pim é composto por três partes que se subdividem em
pequenos relatos. O conjunto tem uma estrutura fragmentária que se desenvolve por
trechos desconexos, mas em que o centro privilegiado é o arquipélago dos Açores e a
assumpção de Tabucchi de que o mítico Ocidente imaginado pelos gregos onde se
localizariam as ilhas afortunadas poderia bem ser esta zona geográfica.
O livro inicia-se pelo Prólogo cujos termos declaram o conteúdo. Antonio
Tabucchi iria cumprir 39 anos quando o subscreveu, um dia antes do seu aniversário,
em 1982. Neste texto declara as bases norteadoras do seu projecto divergente de
escrita, afirmando a sua identidade, e logo a sua diversidade: “Tendo chegado a uma
idade em que me parece mais digno cultivar ilusões do que veleidades, resignei-me ao
facto de escrever segundo a minha índole.” (Tabucchi, 1983: 7)
Nas linhas iniciais em que regista o relatório de intenções começara por referir
a literatura de viagens que exige qualidades mnemónicas, que confessa não possuir,
além de disciplina que refreie a recriação inventiva do passado, ao declarar que é “(...)
género que pressupõe tempestividade de escrita ou uma memória impermeável à
imaginação que a memória produz (...).” (Tabucchi, 1983: 7), dando logo conta da sua
propensão criativa.
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”Hespérides. Sonho em forma de carta” é um relato suportado pela evocação


intertextual de uma afirmada tradição literária da antiguidade e de um presente
narrado como politeísta, a referência às míticas ilhas imaginadas pela antiguidade
clássica, que em Tabucchi se localizam nos Açores, logo, primando pela
fundamentação num conhecimento erudito que refere ocorrências da literatura de
viagens e relatos míticos do fantástico, sendo as zonas de mutação da genética do
continuum literário trabalhadas em tom casual.
A criação da estranheza pela menção à raridade de espécies florais é um modo
de introduzir singularidade pela escassez de espécimes no mundo para conferir mais
importância a este microcosmos simultaneamente geográfico e literário e conferir-lhe
vestes de pérola dentro da vastidão do macrocosmos planetário e de raiz ocidental
que se lhe opõe: “(...) grandes flores azuis e cor-de-rosa, carnosas como frutos, que
nunca vi em nenhum outro lugar.” (Tabucchi, 1983: 11-12)
A inclusão e repetição de paradoxos, fórmula introduzida no prólogo em que o
núcleo da cultura ocidental se transforma em espectro, em sombra que pode ser
interpretável como a formatação cultural de que um autor nunca poderá
desenvencilhar-se, mas cuja pujança canónica nunca alcançará, embora por outro
prisma, se possa interpretar esta consciência como desejo de recriar, distanciando-se,
o microcosmos insular, ou de redefini-lo como espaço com identidade nuclear não
definida pelo olhar exterior da cultura de tradição europeia: “Depois de ter velejado
durante muitos dias e muitas noites, compreendi que o Ocidente não tem fim, antes
continua a deslocar-se connosco, e que podemos persegui-lo quanto quisermos que
nunca o alcançamos.” (Tabucchi, 1983: 11)
O discurso paradoxal, antitético, comparativo e metafórico-alegórico são em si
manipulação da realidade que se apresenta como estranha, diversa, uma alteridade
inalcançável e incompreensível: “Os homens são de pele clara, de olhos admirados
como se neles pairasse o espanto de um espectáculo visto e esquecido, são silenciosos
e solitários, mas não tristes, e riem muitas vezes e por nada como crianças”. (Tabucchi,
1983: 12)
Os paradoxos nestas Hespérides povoadas por homens simples e de uma
pureza infantilizada e por deuses que, pela denominação, seriam portentosos e
dominantes, são introduzidos pela sucessão de descrições. Os deuses afinal são
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reduzidos a elementos da natureza, apresentados de forma inferior ao humano, ou se


humanizados, degradados: “O deus do remorso e da Nostalgia é uma criança com cara
de velho” (Tabucchi, 1983: 12). Os seus domínios nada têm de grandioso ou pujante,
apenas são grandiosos para as multidões que os visitam e magníficos pela valorização
da natureza pura e não manipulada pela intervenção humana. Como se o locus
fantástico da pós modernidade pudesse ser descrito como ausência de poluição por
excesso de construções urbanas.
Tabucchi introduz novamente esse misto de paradoxo com antítese, metáfora e
comparação ao referir o seguinte:
“Chamei templo a uma construção a que deveria antes chamar tugúrio,
porque o deus do Remorso e da Nostalgia não pode habitar num palácio ou
numa casa luxuosa mas numa morada pobre como um soluço que está
entre as coisas deste mundo com a mesma vergonha com que uma pena
secreta está na nossa alma.” (Tabucchi, 1983: 13)

A propósito do deus do Amor, a quem o narrador presta homenagem, e da sua


ilha, pois nesta secção do livro é referida a existência de várias ilhas onde habita, em
cada uma delas, um deus, a paisagem muda subitamente, assim como o sentimento de
veracidade da experiência do narrador, e de seguida muda mais uma vez, de novo
criando um efeito de perplexidade poética que valoriza o discurso literário:
“E a muitos e estranhos efeitos se expõe quem honra este deus, porque o
seu princípio comanda a vida, mas é um princípio bizarro e caprichoso; e se
é verdade que ele é a alma e a concórdia dos elementos, também pode
produzir ilusões, delírios e visões. E eu assisti nesta ilha a espectáculos que
me perturbaram pela sua verdade inocente: tanto que tive dúvidas se tais
coisas existiam deveras ou se eram antes fantasmas do meu sentimento
que saíam de mim e tomavam aparência real no ar porque me tinha
exposto ao som enfeitiçado deste deus (Tabucchi, 1983: 16).

Novamente tropeça o leitor na intertextualidade, pela referência às


contradições dos deuses antigos da vetusta civilização politeísta grega, deuses feitos
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homens temperamentais, caprichosos, enganadores, egocêntricos e imprevisíveis,


como nos relatos épicos de que o autor não se esquece.
Mais adiante torna-se óbvio o processo de fundição de perplexidades
deliberadas quando o narrador após ter declarado o seu estado de semi-alucinação
perante as mudanças sucessivas a que assiste ou que experiencia diz o seguinte:
“[E] pensando isto, tomei por um caminho que leva ao ponto mais alto da
ilha, donde se pode ver o mar de todos os lados. E então apercebi-me de
que a ilha era deserta, que não havia nenhum templo na praia e que as
figuras e os vários rostos de amor que eu tinha visto como quadros vivos
[...] eram apenas miragens provocadas em mim, quem sabe por qual
sortilégio.” (Tabucchi, 1983: 16).

Nesta sequência de reflexões, continua:


“(...) e enquanto (...) já me estava a abandonar ao mal-estar que o
desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me
para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o
grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava
apenas a sonhá-lo.” (Tabucchi, 1983: 16-17)

Este fragmento só revela que tem um destinatário preciso no final. Um


interlocutor, ou interlocutora, anónimo, e que assim permanecerá eternamente. Esta
imprecisão cria ondas de interrogação sobre o leitor, mas contribui para tornar mais
eficaz o paradoxo da experiência descrita, fechando o círculo da deambulação pelas
Hespérides açorianas e conferindo ao lugar uma atmosfera mítica, acrescentando-lhe
um registo epistolar, anunciado pelo título mas que até o fim omite o destinatário.
As partes principais do livro, o núcleo duro da narrativa, em que a primeira se
intitula “Naufrágios, destroços, passagens, distâncias”, e a segunda “De baleias e
baleeiros” à primeira vista são desconexas.
Em “Naufrágios, destroços, passagens, distâncias” o primeiro subtítulo é
“Pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores. Fragmento de uma história.”
Este fragmento narrativo é pontilhado por referências que são introduzidas
com aparente casualidade, no decurso de uma viagem desconfortável de barco entre
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as ilhas açorianas, e que permitem entrever a autorreferencialidade do processo e


tradição de escrita e da vida de Marcel. Shakespeare surge através da satirização de
uma mulher chamada Albertine que Marcel, personagem neste fragmento, refere:

“Lady Macbeth, disse com ironia, a grande trágica. Sabes como se chamava
o local onde a encontrei?, chamava-se «La Baguette», e ela não fazia
propriamente de Lady Macbeth, sabes o que fazia? (...) Mostrava o traseiro
a uma plateia de velhos viciosos, a grande trágica, era o que ela fazia.”
(Tabucchi, 1983: 21-22)

Este desprezo por Albertine é substituído pelo avistamento da ilha do destino e


por aquilo a que Marcel chama de rochas: “Moveu o braço para a esquerda e apontou
duas excrescências turquesa, como dois chapéus pousados na água. Que rochas feias,
disse, parecem almofadas.” (Tabucchi:1983: 23). Estas acabam por se converter no que
de facto são: “(...) pequenas baleias azuis que passeiam nos Açores [...]” (Tabucchi,
1983:23).
Nesta narração descontínua, coloquial, descobre-se que Marcel é escritor. “O
homem fez um gesto com a mão para pedir a palavra: fiquei no hotel, bem sabes, o
prazo ainda está a terminar e ainda tenho de rever o texto.” (Tabucchi:1983: 24). No
decorrer desta narração verifica-se que este fragmento contém novamente de forma
muito evidente a reflexão acerca do peso do Ocidente, da sua cultura e literatura,
sobre a produção do escritor ocidental e sobre a manipulação dessa espécie de
realidade abstracta, e da disciplina e concentração que esse exercício de criação exige.

“Agora falava sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão
imaginar-te, durante todo esse tempo choveu sempre, via-te sentado
numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão.
Também para mim, disse, mas nas praias estive pouco, o que mais vi foi a
máquina de escrever.” (Tabucchi, 1983: 24).

A interlocutora de Marcel refere-se também à escrita e à diferença que reside


entre o que se pode imaginar, mas que se não for verbalizado e registado não se
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transforma em arte: “Nem sequer te perguntei se conseguiste, e pensar que, se a


teoria contasse, também eu teria escrito dez comédias, à força de imaginar a tua: diz-
me como é, já não aguento mais a curiosidade.” (Tabucchi:1983: 24). A resposta surge
com toda a pujança da consciência de manipulação e mutação literária: “Oh, digamos
que é uma releitura de Ibsen em chave brilhante, disse ele sem esconder um certo
entusiasmo (...)” (Tabucchi, 1983:24).
Tudo isto impede Marcel de ver e experienciar o lugar onde se hospedou – as
ilhas açorianas – e até ignorá-lo e desdenhar o seu valor.“De qualquer modo escrevi
outras coisas, prosseguiu ele, estas ilhas são de um tédio mortal, para passar o tempo
não há outro remédio senão escrever.” (Tabucchi, 1983: 25). Na sequência desta
reflexão o autor confessa o seu cansaço em relação a uma certa tradição ficcional e a
consciência de que escrever não é viver, citando o poema “Chanson de la plus haute
tour” de Arthur Rimbaud e ao enunciar o título da sua futura obra revela mais uma vez
a vontade de se desligar da tradição, ao referir de seguida como sugestão de futuro
título para uma obra um «olhar sem escola»:
“E além disso queria confrontar-me com uma dimensão diferente, passei
toda a vida a escrever ficção. A mim parece-me mais nobre, disse a mulher,
pelo menos é gratuita, e portanto, como dizer?, mais leve... Oh sim, riu o
homem, a delicadeza: par délicatesse j’ai perdu ma vie. Mas a certa altura é
preciso ter a coragem de se medir com a realidade, pelo menos com a
realidade da nossa vida. [...] são memórias? [...] Mais ou menos isso, mas
libertas da elaboração da interpretação e da lembrança, os factos nus e
crus: são esses que contam. (...) Já tens título?, perguntou. Talvez Le regard
sans école, disse ele, que tal o achas ? Acho-o espirituoso, disse ela.”
(Tabucchi, 1983: 25)

A este título segue-se “Outros fragmentos” que constituem uma amálgama de


olhares e escritos de viagens e de passagens de forasteiros citados pelo narrador de
Mulher de Porto Pim e o seu fascínio por uma frase cuja autoria julgava que fosse de
Chateaubriand, registada na sua mente muito antes da visita aos Açores, que se segue
a um relato da passagem de Alberto do Mónaco pelo arquipélago dos Açores em que
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Tabucchi refere que o que mais o marcou foi a descrição do “fim de um cachalote”
(Tabucchi, 1983: 34).
O excerto que apresentamos de seguida sugere uma reflexão profunda acerca
do poder da palavra e da sua criação, e reinterpretação, como se a imaginação fosse
um facto aleatório mas determinante que age como espectro dentro da psique
humana.
“Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateubriand:
Inutile phare de nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de
desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela
um inutile phare de nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas
porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória
essa frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável:
Ile de Pico, inutile phare de nuit. (...) [L]i de novo Les Natchez, mas não
encontrei a minha frase. (...) Depois percebi que não encontrar uma frase
como esta pertence ao sentido mais íntimo da própria frase e isso
consolou-me. Perguntei ainda a mim próprio que papel possa ter
desempenhado a força evocadora e de sugestão (...) para me chamar a
uma ilha onde não havia nada que ali me chamasse. Por vezes os passos da
nossa vida podem ser guiados também pela combinação de poucas
palavras. (...) Resta-me dizer que no Pico, de noite, não brilha nenhum
farol.” (Tabucchi, 1983: 36-37).

Logo a seguir a algumas considerações sobre o périplo pessoal do narrador pela


ilha encontra-se “Antero de Quental. Uma vida”. Este título constitui um exercício de
memória ficcionada sobre as razões do suicídio de Antero de Quental em que o autor
cria um ambiente de conflito em que a poesia se confunde com o drama da
criatividade e do pesadelo recorrente do escritor açoreano perante a página branca e o
conflito com a tradição afirmada e a sua própria vida em que o «nada» se transforma
em razão de ser e de não ser, através da morte autoinfligida.
Em “De Baleias e Baleeiros” encontra-se “Alto Mar” que relata o costume de
caça à baleia que se foi perdendo. É um texto com citações de Melville e dos diários do
Príncipe do Mónaco, a que minuciosamente acrescenta também excertos sobre a
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legislação de caça baleeira (Tabucchi, 1983: 69-75), além da referência a conversas do


narrador com o encarregado da capitania local para saber dos procedimentos
burocráticos para poder aventar-se a uma caça à baleia.
Em conversa com o senhor Chaves, habitante do lugar, cujos “olhos azuis”
serão “de algum antepassado flamengo” (Tabucchi, 1983: 75) o narrador revela o que
lhe vai na alma:
“Pergunto-lhe se se está a referir aos cachalotes, e ele ri-se divertido. Não,
referia-me aos baleeiros, especifica, emigraram todos para a América,
todos os açoreanos emigram para a América, os Açores estão desertos, não
viu? Sim, claro, apercebi-me disso, digo, lamento muito. Porquê?, pergunta
ele. É uma pergunta embaraçosa. Porque gosto dos Açores, respondo com
pouca lógica. Então gostará mais deles desertos, objecta. E depois sorri
como que a desculpar-se de ter sido brusco. (Tabucchi, 1983:75-76)

A este excerto segue-se “Uma caça” que é o reconto de uma experiência real
em forma de elegia devido à desertificação dos Açores, que fora mencionada
anteriormente, pela crescente emigração e desertificação das ilhas, e o toque fúnebre
da matança da baleia que também representa o fim de um costume de gerações. À
pergunta do companheiro de viagem relativamente à razão da sua participação na
pesca à baleia surge este discurso entristecido:
“Demoro, pensando na resposta: queria responder-lhe a verdade, mas
contenho-me com receio que possa ser ofensiva. Deixo balançar uma mão
na água. Se esticasse o braço poderia quase tocar a enorme barbatana do
animal que estamos rebocando. Talvez porque ambos estão em extinção,
digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso.”
(Tabucchi:1983: 83).

O exerto anterior também faz reflectir em relação tanto à postura de Harold


Bloom sobre a tradição, o que ele designa por cânone, e o que em Antonio Tabucchi
designo por continuum literário. A desaparecerem as bases, as referências, que resta
para perpetuar a memória, tanto literária como quotidiana?
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What happens if one tries to write, or to teach, or to think, or even to read


without the sense of a tradition?
Why, nothing at all happens, just nothing. You cannot write or teach or
think or even read without imitation, and what you imitate is what another
person has done, that person’s writing or teaching or thinking or reading.
(Bloom, 2003:, p. 32)

E depois deste périplo pelo real, o subtítulo “Mulher de Porto Pim. Uma
história” que dá título ao livro relata na primeira pessoa a vida de um baleeiro
reformado que canta num bar em Porto Pim e cuja vida é uma sucessão de tradições e
lealdades ao local onde nasceu e núcleo familiar até conhecer uma mulher por quem
se apaixona e que o trai levando-o a cometer um acto homicida. Esta, comparada com
uma moreia, com um passado que manteve oculto do narrador órfico, surge neste
relato confessional como pretexto despoletado pela contemplação da companheira do
escritor. Este reproduz as palavras do homicida e ex-baleeiro açoriano. Esta história
poderia ser talvez interpretada como a colonização da ilha e sua contaminação pelo
exterior, pelo ocidente desconhecido que invade a pureza das ilhas.
Em “Post Scriptum, uma baleia vê os homens” o que sobressai é a tristeza e
solidão das baleias-macho que o narrador lamenta pela incapacidade física de
emitirem sons comunicantes assim como pela incapacidade de saberem o que é o
amor físico – humano – com as suas variantes de ternura. Aqui subsiste o olhar
humano sobre o animal, a incapacidade de criar empatia, por emulação, com uma
forma de vida que se admira mas que causa piedade por não ser humana.

“Permanecem longo tempo em silêncio, mas depois entre eles gritam com
fúria repentina, com um amontoado de sons essenciais que quase não
varia e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento,
amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: e áspero,
quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, favorecido pela
sua natureza filiforme que não prevê a heroica dificuldade da união, nem
os magníficos e ternos esforços para a realizar.” (Tabucchi, 1983: 94)
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O “Apêndice: um mapa, uma nota, alguns livros” inclui efectivamente um mapa


das ilhas açorianas, que confere ao texto um semblante de relato de cartógrafo
viajante, a que a nota que se lhe segue faz referência descrevendo a origem do nome
do arquipélago e a actividade vulcânica e eventos sísmicos que desde sempre assolam
aquela zona do Atlântico.
“Alguns livros” é uma lista de relatos e narrativas sobre as ilhas açorianas que
não surpreende, a menção aos livros que provam a não-inocência da narração de
Antonio Tabuchi e a sua consciência do cânone e da tradição que desde o início norteia
a sua narrativa, criando esta sinergia de referências intertextuais e recursos estilísticos
distorcidas pela criatividade.

Conclusão
Esta é uma deambulação por vários géneros literários: viagem pela literatura de
viagem, pelo locus fantástico das ilhas, pelo género epistolar, digressão histórica e
classicista a que se enreda a narrativa ficcional num tempo e lugares reais que se
transmutam com o decorrer da narração, oscilando entre zonas nebulosas da mente e
a realidade factual das ilhas açorianas.
A fragmentação declarada pela narração de Mulher de Porto Pim é resultado
das múltiplas influências que têm de ser retrabalhadas por cada autor. Como afirma
Harold Bloom:
“Indeed it is now virtually impossible to master the western canon. Not
only would it mean absorbing well over three thousand books, many, if not
most marked by cognitive and imaginative difficulties, but the relations
between these books grow more rather than less vexed as our perspectives
lengthen. There are also the vast complexities that constitute the essence
of the western canon, which is anything but a unity or stable structure.”
(Bloom, 1994: 37)

Poder-se-ia afirmar que o efeito de estranheza fragmentada de Porto Pim, e


logo, de diversidade, que como já foi afirmado aqui é requisito universal de quase toda
a literatura, se completa ou talvez se defina, em parte do seguinte modo:
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“Seguramente que o termo ”kafkiano” adquiriu um sentido


inquietadoramente estranho (...) para muitos de nós, e talvez se tenha
tornado um termo universal para aquilo a que Freud chamou «o
ameaçadoramente estranho», isto é, algo que nos é absolutamente
familiar e, ao mesmo tempo também estranho e afastado de nós. De uma
perspectiva puramente literária, esta é a idade de Kafka, mais ainda do que
a Idade de Freud, seguindo astuciosamente Shakespeare, deu-nos o nosso
mapa da mente, mas Kafka fez-nos saber que não devíamos acalentar
qualquer esperança de utilizar esse mapa para nos salvarmos, nem mesmo
de nós próprios.” (Bloom, 2013: 237-438)

Estes recursos que se acumulam e foram democratizados ao longo dos séculos


não são utilizados simplesmente como instrumentos estéticos para obter um objecto
de arte, e nesta reflexão não enveredei pelo caminho de definir um estilo próprio para
Antonio Tabucchi mas de esboçar uma abordagem ao seu linguolecto.
Espero, no entanto, que tenha sido explicitado de que modo o autor usa a sua
arte como estratégia de persuasão do efeito fantástico servindo-se de uma sucessão
de imagens e ideias veiculadas pela articulação de um discurso sustentado por
momentos paradoxais que produz. Este processo retórico e de declarado
distanciamento da tradição, mas que se contradiz estrategicamente, irá estender-se a
toda a narrativa por meio de citações ou referências a autores ou elementos da
tradição literária, tornando-se mais óbvio na parte final do livro: um apêndice com
referências bibliográficas que completa o ciclo iniciado com a negação do(s) género(s)
de relato inicial, mas que irá concluir o deliberado paradoxo construído pelo autor:
negar o género para poder recriá-lo ou introduzir zonas de silêncio que sugerem, sem
obviar, a evocação de antigos mitos, ou descrição de espaços enobrecidos pela sua
permanência de natureza intocada e rústica a que o autor opõe o jogo de xadrez de
um reino de um deus, uma cidade plana redesenhada pelos habitantes,
aleatoriamente, e que pode ser interpretada como mise-en-abyme – reflexão e reflexo
subtil acerca do texto que se escreve e da ordem aleatória de todos os fragmentos,
subtítulos, narrativos que compõem esta obra de Antonio Tabucchi.
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O autor, no seu labor de mutação da genética do texto, valeu-se do substrato


conhecido e moldou-o para criar uma coisa nova. Quem escreve um livro ou um texto
literário cria um Frankenstein, um mutante, um novo ser-diverso, planta uma nova
árvore, faz um novo filho, por muito prosaica que esta observação possa parecer. Pura
e simplesmente biológico – o que nos está nos genes transporta-se para o exterior,
realiza-se pela criatividade e pela recriação.

Poems are not psyches, nor things, nor are they renewable archetypes in a
verbal universe, nor are they architectonic units of balanced stresses. They
are defensive processes in constant change, which is to say that poems
themselves are acts of reading. [...]
Every strong poem, at least since Petrarch, has known implicitly what
Nietzsche taught us to know explicitly: that there is only interpretation, and
that every interpretation answers an earlier interpretation, and then must
yield to a later one. (Bloom, 2003: p. 342)

Deste modo se compreende que, por muito que se invoque a tradição, o


substrato que sustém o aparente rigor da experiência de criação literária, a mutação
intrínseca à criatividade é o imperativo categórico da sua perpetuação e o que lhe
confere vigor, ou melhor, o que alicia este diálogo entre produto artístico e receptor é
a persistência da literatura em criar ou recriar espaços de interesse que, a não
existirem, eliminariam completamente a recepção, e logo, o diálogo com o fruidor-
leitor.
Tanto se pode dizer que muito há a fazer em literatura como se pode também
afirmar que tudo já foi feito entrando no domínio de The Anxiety of Influence de
Harold Bloom: ter noção do que já foi produzido deve servir de estímulo para criar e
não de dissuasor. Deste modo, a consciência e conhecimento reiterado do cânone, ou
melhor, da tradição literária, em Antonio Tabucchi , não elimina a sua individualidade.

“Cognition cannot proceed without memory, and the canon is the true art
of memory, the authentic foundation for cultural thinking. Most simply the
canon is Plato and Shakespeare; it is the image of the individual thinking,
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whether it be Socrates thinking through his own dying, or Hamlet


contemplating that undiscovered country.” (Bloom, 1994: 35)

Assim, a arte, por extrapolação, como inicialmente foi referido, contém essa
persistência que a vida biológica em si transporta – o poder de recriar-se, para se
manter, nem que seja como exercício de sobrevivência.
A obra proposta, Mulher de Porto Pim, serve, creio, para o fim de validar a
identidade diversa e mutante da existência e perpetuação literária. Outro modo de
dizer que em arte a rejeição abate-se e verga-se despudoradamente e sem espartilhos
sociais ou políticos à diversidade. Em arte não se torna necessário questionar a
diversidade, esta é observada como facto inegável e natural, tornando-nos de algum
modo humanos como deveríamos ser e inadvertidamente alheios à cultura social da
diversidade que impreterivelmente nos formatou e que quotidianamente
questionamos mas com a qual permanentemente nos reconciliamos porque, como
acima se pode inferir das palavras de Harold Bloom, mesmo em arte só se pode
escapar para dentro de nós mesmos, porque a diversidade é em si mesma identidade.
“Talvez que ao passar do estado de sonho ao estado de texto tenha sofrido más
alterações, mas cada um tem o direito de tratar os seus próprios sonhos como melhor
lhe parece.”(Tabucchi, 1983: 9)
Ficam ainda alguns aspectos por abordar: o da diversidade que se cria
expressando o real, ou ao tentar-se reproduzi-lo, é uma outra variante do que referi
como linguolecto, e aqui, pela ousadia, peço desculpa aos linguistas. Outro aspecto
ainda é o da nissologia: como ler e escrever a ilha ou o espaço insular sem o peso da
tradição cultural do Ocidente a que Tabucchi se refere no início, faz deste texto um
precursor de uma reflexão que surge décadas mais tarde (Henriques, 2009). Será um
modo de dizer que é necessário repensar a perspectiva da arte literária ocidental?
Tabucchi, em Mulher de Porto Pim, reflecte de várias formas acerca dos lugares
comuns da cultura literária ocidental e da sua multiplicidade de formas e da
necessidade de, novamente, criar uma ruptura com padrões estabelecidos, um debate
que é reflexo, por coincidência ou não, da obra de Harold Bloom.
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BIBLIOGRAFIA
Bloom, Harold (2003). A Map of Misreading. Oxford: Oxford University Press 2nd edition.
Bloom, Harold (1994). The Western Canon, The Books and School of the Ages. London:
Hartcourt Bace & Company
Bloom, Harold (2013). (Tradução, Introdução e notas de Manuel Frias Martins, 2013).
O Cânone Ocidental, Os grandes livros e os escritores essenciais de todos os
tempos. Temas e Debates. Lisboa: Círculo de Leitores.
Bloom, Harold (1997). The anxiety of Influence. Second Edition. Oxford, New York:
Oxford University Press,
Henriques, Eduardo Brito (2009). Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais
e sentido de lugar no espaço da Macaronésia. Instituto Açoriano de Cultura,
Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa
Tabucchi, Antonio (1983).(Tradução Maria Emília Marques Mano). Mulher de Porto
Pim. Lisboa: Difel, Difusão Editorial Lda.

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