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Resumo
Uma característica constante e inerente a toda a arte é a criação de diversidade. Em
literatura, o processo de criação obriga o autor a manipular tanto a sintaxe como a
semântica no processo de articulação do discurso, afirmando verdades e mentiras,
sem se desligar da tradição de exploração do filão das ilhas. Esta reflexão foca-se em
alguns aspectos do processo de produção discursiva no texto de Antonio Tabucchi que
suportam o efeito final de paradoxo teórico e espácio-temporal que contribui para a
composição da atmosfera do fantástico insular e renovação de um tema recorrente na
literatura ocidental, numa tentativa de provar que literatura sem diferença não existe,
mesmo que se invoque a tradição.
Abstract
A feature that is inherent and constant in all Art is the creation of diversity. In
literature, the creative process forces the author to manipulate not only the syntax but
as well the semantics along the process of articulation of the speech by stating truths
and deceit without cutting his connection with the tradition of exploring the insular
mining resources. This reflection focuses on some aspects of the discursive production
in Antonio Tabucchi’s text that lead to the resulting theoretical and space-time
paradox which add to the composition of the fantastic insular atmosphere and
renovation of a recurring theme in western literature, in an attempt to prove that
there is no literature as such without diversity, even if and when literary tradition is
evoked.
Introdução
É a variedade, a diversidade e a capacidade de mutação que, em conjunto,
permitem a sobrevivência das espécies. A mutação entendida como capacidade de
adaptação faz parte do património genético do ser humano. Um mundo onde
imperasse o igual não se perpetuaria. A nível biológico esse facto está devidamente
comprovado e não carece neste âmbito de qualquer explicação. O óbvio contém em si
o tautológico.
Já no que diz respeito ao fenómeno artístico, a sequência mais razoável deste
raciocínio produz a constatação de que em arte, ou para reduzirmos o campo de
reflexão, em literatura, é a diversidade que permite a evolução e permanência, e esta
advém da manipulação da linguagem, e por consequência da língua e dos seus
instrumentos.
Harold Bloom é a inspiração desta reflexão. A partir do momento em que
definiu os mecanismos de criação da diferença, processos que denominou de
misreading e misinterpreting (Bloom, 1975: 9-80), quando reflectiu acerca da inclusão
ou não no cânone de autores que inovaram e renovaram a literatura e causaram
impacto que perdura no tempo, considerou de algum modo, creio, a constante que
domina esta reflexão – a individualidade, em termos genéricos e universais, cria
alteridade, e é em si intrinsecamente diversa, mesmo que não insira o autor entre os
que se perpetuam no tempo.
Manuel Frias Martins, tradutor de Harold Bloom, na Introdução da edição
portuguesa de 2013 diz o seguinte:
“Aqui estão consolidadas, testadas e exemplificadas as suas posições
teóricas mais nucleares, nomeadamente quanto ao seu entendimento das
relações entre autores em termos de agon ou de luta agonística; quanto à
ansiedade da influência que caracteriza a dependência (e o simultâneo
desejo de ser diferente) dos escritores em relação aos seus precursores
(misprision); quanto às leituras desviantes e interpretações desviantes que
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E é assim que começo por abordar esta questão. Que recursos utiliza a
literatura para se manter viva? Como contar e recontar mantendo o interesse do
leitor? Como produzir na mutação imperativa que, como já disse, é intrínseca à
literatura, diversidade?
Num mundo onde a constante é falar de diversidade e alteridade há algo que
passa despercebido: a inerente diferença construída da literatura, o seu labor
constante e perpétuo de mutação. Esta não visa a maior ou menor visibilidade ou
exposição, mas a criação de elementos ou de um objecto que na sua totalidade não
despertem nem pavor, nem repúdio, mas estranheza e curiosidade, abolindo as
fronteiras do preconceito para redundar na fruição da unicidade de um livro ou obra,
independentemente do género ou do tipo de registo escolhido.
Sendo assim, como explicar que deste magma primordial emerjam coisas
novas, palavras novas, ideias novas, ou mesmo palavras velhas sob outra luz, ideias
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O livro Mulher de Porto Pim é composto por três partes que se subdividem em
pequenos relatos. O conjunto tem uma estrutura fragmentária que se desenvolve por
trechos desconexos, mas em que o centro privilegiado é o arquipélago dos Açores e a
assumpção de Tabucchi de que o mítico Ocidente imaginado pelos gregos onde se
localizariam as ilhas afortunadas poderia bem ser esta zona geográfica.
O livro inicia-se pelo Prólogo cujos termos declaram o conteúdo. Antonio
Tabucchi iria cumprir 39 anos quando o subscreveu, um dia antes do seu aniversário,
em 1982. Neste texto declara as bases norteadoras do seu projecto divergente de
escrita, afirmando a sua identidade, e logo a sua diversidade: “Tendo chegado a uma
idade em que me parece mais digno cultivar ilusões do que veleidades, resignei-me ao
facto de escrever segundo a minha índole.” (Tabucchi, 1983: 7)
Nas linhas iniciais em que regista o relatório de intenções começara por referir
a literatura de viagens que exige qualidades mnemónicas, que confessa não possuir,
além de disciplina que refreie a recriação inventiva do passado, ao declarar que é “(...)
género que pressupõe tempestividade de escrita ou uma memória impermeável à
imaginação que a memória produz (...).” (Tabucchi, 1983: 7), dando logo conta da sua
propensão criativa.
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“Lady Macbeth, disse com ironia, a grande trágica. Sabes como se chamava
o local onde a encontrei?, chamava-se «La Baguette», e ela não fazia
propriamente de Lady Macbeth, sabes o que fazia? (...) Mostrava o traseiro
a uma plateia de velhos viciosos, a grande trágica, era o que ela fazia.”
(Tabucchi, 1983: 21-22)
“Agora falava sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão
imaginar-te, durante todo esse tempo choveu sempre, via-te sentado
numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão.
Também para mim, disse, mas nas praias estive pouco, o que mais vi foi a
máquina de escrever.” (Tabucchi, 1983: 24).
Tabucchi refere que o que mais o marcou foi a descrição do “fim de um cachalote”
(Tabucchi, 1983: 34).
O excerto que apresentamos de seguida sugere uma reflexão profunda acerca
do poder da palavra e da sua criação, e reinterpretação, como se a imaginação fosse
um facto aleatório mas determinante que age como espectro dentro da psique
humana.
“Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateubriand:
Inutile phare de nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de
desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela
um inutile phare de nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas
porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória
essa frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável:
Ile de Pico, inutile phare de nuit. (...) [L]i de novo Les Natchez, mas não
encontrei a minha frase. (...) Depois percebi que não encontrar uma frase
como esta pertence ao sentido mais íntimo da própria frase e isso
consolou-me. Perguntei ainda a mim próprio que papel possa ter
desempenhado a força evocadora e de sugestão (...) para me chamar a
uma ilha onde não havia nada que ali me chamasse. Por vezes os passos da
nossa vida podem ser guiados também pela combinação de poucas
palavras. (...) Resta-me dizer que no Pico, de noite, não brilha nenhum
farol.” (Tabucchi, 1983: 36-37).
A este excerto segue-se “Uma caça” que é o reconto de uma experiência real
em forma de elegia devido à desertificação dos Açores, que fora mencionada
anteriormente, pela crescente emigração e desertificação das ilhas, e o toque fúnebre
da matança da baleia que também representa o fim de um costume de gerações. À
pergunta do companheiro de viagem relativamente à razão da sua participação na
pesca à baleia surge este discurso entristecido:
“Demoro, pensando na resposta: queria responder-lhe a verdade, mas
contenho-me com receio que possa ser ofensiva. Deixo balançar uma mão
na água. Se esticasse o braço poderia quase tocar a enorme barbatana do
animal que estamos rebocando. Talvez porque ambos estão em extinção,
digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso.”
(Tabucchi:1983: 83).
E depois deste périplo pelo real, o subtítulo “Mulher de Porto Pim. Uma
história” que dá título ao livro relata na primeira pessoa a vida de um baleeiro
reformado que canta num bar em Porto Pim e cuja vida é uma sucessão de tradições e
lealdades ao local onde nasceu e núcleo familiar até conhecer uma mulher por quem
se apaixona e que o trai levando-o a cometer um acto homicida. Esta, comparada com
uma moreia, com um passado que manteve oculto do narrador órfico, surge neste
relato confessional como pretexto despoletado pela contemplação da companheira do
escritor. Este reproduz as palavras do homicida e ex-baleeiro açoriano. Esta história
poderia ser talvez interpretada como a colonização da ilha e sua contaminação pelo
exterior, pelo ocidente desconhecido que invade a pureza das ilhas.
Em “Post Scriptum, uma baleia vê os homens” o que sobressai é a tristeza e
solidão das baleias-macho que o narrador lamenta pela incapacidade física de
emitirem sons comunicantes assim como pela incapacidade de saberem o que é o
amor físico – humano – com as suas variantes de ternura. Aqui subsiste o olhar
humano sobre o animal, a incapacidade de criar empatia, por emulação, com uma
forma de vida que se admira mas que causa piedade por não ser humana.
“Permanecem longo tempo em silêncio, mas depois entre eles gritam com
fúria repentina, com um amontoado de sons essenciais que quase não
varia e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento,
amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: e áspero,
quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, favorecido pela
sua natureza filiforme que não prevê a heroica dificuldade da união, nem
os magníficos e ternos esforços para a realizar.” (Tabucchi, 1983: 94)
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Conclusão
Esta é uma deambulação por vários géneros literários: viagem pela literatura de
viagem, pelo locus fantástico das ilhas, pelo género epistolar, digressão histórica e
classicista a que se enreda a narrativa ficcional num tempo e lugares reais que se
transmutam com o decorrer da narração, oscilando entre zonas nebulosas da mente e
a realidade factual das ilhas açorianas.
A fragmentação declarada pela narração de Mulher de Porto Pim é resultado
das múltiplas influências que têm de ser retrabalhadas por cada autor. Como afirma
Harold Bloom:
“Indeed it is now virtually impossible to master the western canon. Not
only would it mean absorbing well over three thousand books, many, if not
most marked by cognitive and imaginative difficulties, but the relations
between these books grow more rather than less vexed as our perspectives
lengthen. There are also the vast complexities that constitute the essence
of the western canon, which is anything but a unity or stable structure.”
(Bloom, 1994: 37)
Poems are not psyches, nor things, nor are they renewable archetypes in a
verbal universe, nor are they architectonic units of balanced stresses. They
are defensive processes in constant change, which is to say that poems
themselves are acts of reading. [...]
Every strong poem, at least since Petrarch, has known implicitly what
Nietzsche taught us to know explicitly: that there is only interpretation, and
that every interpretation answers an earlier interpretation, and then must
yield to a later one. (Bloom, 2003: p. 342)
“Cognition cannot proceed without memory, and the canon is the true art
of memory, the authentic foundation for cultural thinking. Most simply the
canon is Plato and Shakespeare; it is the image of the individual thinking,
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Assim, a arte, por extrapolação, como inicialmente foi referido, contém essa
persistência que a vida biológica em si transporta – o poder de recriar-se, para se
manter, nem que seja como exercício de sobrevivência.
A obra proposta, Mulher de Porto Pim, serve, creio, para o fim de validar a
identidade diversa e mutante da existência e perpetuação literária. Outro modo de
dizer que em arte a rejeição abate-se e verga-se despudoradamente e sem espartilhos
sociais ou políticos à diversidade. Em arte não se torna necessário questionar a
diversidade, esta é observada como facto inegável e natural, tornando-nos de algum
modo humanos como deveríamos ser e inadvertidamente alheios à cultura social da
diversidade que impreterivelmente nos formatou e que quotidianamente
questionamos mas com a qual permanentemente nos reconciliamos porque, como
acima se pode inferir das palavras de Harold Bloom, mesmo em arte só se pode
escapar para dentro de nós mesmos, porque a diversidade é em si mesma identidade.
“Talvez que ao passar do estado de sonho ao estado de texto tenha sofrido más
alterações, mas cada um tem o direito de tratar os seus próprios sonhos como melhor
lhe parece.”(Tabucchi, 1983: 9)
Ficam ainda alguns aspectos por abordar: o da diversidade que se cria
expressando o real, ou ao tentar-se reproduzi-lo, é uma outra variante do que referi
como linguolecto, e aqui, pela ousadia, peço desculpa aos linguistas. Outro aspecto
ainda é o da nissologia: como ler e escrever a ilha ou o espaço insular sem o peso da
tradição cultural do Ocidente a que Tabucchi se refere no início, faz deste texto um
precursor de uma reflexão que surge décadas mais tarde (Henriques, 2009). Será um
modo de dizer que é necessário repensar a perspectiva da arte literária ocidental?
Tabucchi, em Mulher de Porto Pim, reflecte de várias formas acerca dos lugares
comuns da cultura literária ocidental e da sua multiplicidade de formas e da
necessidade de, novamente, criar uma ruptura com padrões estabelecidos, um debate
que é reflexo, por coincidência ou não, da obra de Harold Bloom.
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BIBLIOGRAFIA
Bloom, Harold (2003). A Map of Misreading. Oxford: Oxford University Press 2nd edition.
Bloom, Harold (1994). The Western Canon, The Books and School of the Ages. London:
Hartcourt Bace & Company
Bloom, Harold (2013). (Tradução, Introdução e notas de Manuel Frias Martins, 2013).
O Cânone Ocidental, Os grandes livros e os escritores essenciais de todos os
tempos. Temas e Debates. Lisboa: Círculo de Leitores.
Bloom, Harold (1997). The anxiety of Influence. Second Edition. Oxford, New York:
Oxford University Press,
Henriques, Eduardo Brito (2009). Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais
e sentido de lugar no espaço da Macaronésia. Instituto Açoriano de Cultura,
Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa
Tabucchi, Antonio (1983).(Tradução Maria Emília Marques Mano). Mulher de Porto
Pim. Lisboa: Difel, Difusão Editorial Lda.